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ACÇÃO POPULAR
INTERESSES DIFUSOS
COMPETÊNCIA MATERIAL
LEGITIMIDADE PROCESSUAL
Sumário
Os tribunais comuns são competentes para julgar um procedimento cautelar no qual se pede que seja decretada a suspensão da execução de uma obra, independentemente de esta ter sido objecto de licenciamento administrativo e de o meio processual constituir, pela natureza dos interesses a proteger, uma acção popular.
Texto Integral
Proc. nº 288/19.3T8ESP-A.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo de Competência Genérica de B… - Juiz 2
Acordam no Tribunal da relação do Porto
I - Relatório
Na acta de inquirição de 04-09-2019 foi proferido o seguinte despacho:
” Quanto à ilegitimidade passiva dos requeridos por violação do litisconsórcio necessário passivo, importa pronunciar-se nos seguintes termos: Invocam os requeridos que há ilegitimidade passiva por violação do litisconsórcio necessário por considerarem que devia ser demandada a Câmara Municipal B… por esta ter licenciado a construção em causa. Por seu lado, os requerentes vieram responder a tal exceção de ilegitimidade passiva, alegando, em síntese, que os requeridos são demandados por serem proprietários de um terreno e de uma construção de uma oficina de manutenção e reparação automóvel potencialmente perigosa e que causa danos para o ambiente. Não estando, por isso, em discussão o ato administrativo de licenciamento da citada oficina, pois que o que os requerentes pretendem é uma avaliação das consequências para o ambiente da atividade da oficina a instalar no edifício. Ora, é nosso entendimento, tal como alegam os requerentes, que não está em causa a apreciação de um qualquer ato administrativo proferido pela Câmara Municipal B…, mas antes o eventual perigo para o ambiente da atividade de oficina de reparação automóvel e no edifício licenciado. Assim, não ocorre qualquer ilegitimidade passiva dos requeridos, por violação do litisconsórcio necessário, nem por qualquer outra causa, já que reconhecidamente os requeridos são quem estão a construir o edifício destinado a oficina de manutenção e reparação automóvel, a qual alegadamente é potenciadora de violação dos direitos do ambiente, mormente dos requerentes e dos mais moradores na área onde se situa a construção. Aproveita-se aqui, desde já, para referir que está em causa um procedimento cautelar no âmbito de uma ação popular e, portanto, tem o procedimento em vista à prevenção de danos ambientais na área envolvente à oficina em construção, ou seja, estamos perante uma Ação Popular abrangida, pelo artigo 1° da Lei da Ação Popular n° 83/95, de 31/8. Quanto à exceção de incompetência dos Tribunais Comuns em razão da matéria, importa dizer o seguinte: Os requeridos invocam que as ações que visam promover a prevenção, cessação e reparação de violação de interesses difusos em matéria de ambiente, urbanismo, ordenamento de território, qualidade de vida, património cultural e domínio público quando promovidos pelas entidades públicas e ações que visem por em causa atas administrativos são da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Mais alegam, que o que resulta da petição inicial, põe em causa atas administrativos do Município B…, atas de gestão pública, pretendendo-se a cessação e reparação do dano urbanístico provocado por tais atas. Por seu lado, os requerentes respondendo à exceção vêm dizer que estão em causa interesses difusos, referentes ao ambiente entre populares, ou seja, entre proprietários de uma oficina automóvel e cidadãos e consequentemente a defesa de tais interesses difusos, concluindo os mesmos que para a apreciação destes são competentes os tribunais comuns, mais concretamente os tribunais cíveis. Apreciando: Como já deixámos referido, segundo o nosso entendimento, o que está em causa na presente providência cautelar não é a apreciação ou análise de atas administrativos levados a cabo pela Câmara Municipal B…, mormente o licenciamento de uma construção de uma oficina automóvel, mas antes, como referem os requerentes, trata-se de uma providência preventiva de eventual dano ambiental que tal construção e subsequente atividade de oficina automóvel possa provocar. Acresce que, mesmo que licenciamento de uma obra seja legal, pode essa obra causar danos de natureza particular ou natureza difusa, nomeadamente, no que se refere a este último interesse, de natureza ambiental, entre outros. Trata-se, esta providência, de apreciar o potencial interesse difuso em causa e consequentemente se trata de uma apreciação a efetuar pelos tribunais comuns e não pelos tribunais administrativos e fiscais. Consequentemente, não cai na alçada do artigo 1° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais a matéria a apreciar nesta Providência Cautelar. Posto isto, improcede também a exceção de incompetência em razão da matéria deste Tribunal.
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Quanto à ilegitimidade ativa dos requerentes: Invocam os requeridos que, com a presente providência, os requerentes pretendem proteger interesses individuais e não interesses da comunidade em que se inserem, ou melhor, onde se insere a construção em causa. Acrescentando que, tanto assim é, que a grande maioria das pessoas que assinam o abaixo assinado contra a construção da oficina se tratam de familiares dos requerentes e algumas outras pessoas que nem sequer residem próximo do local da construção, pelo que os mesmos requerentes não podiam agir em nome de interesses difusos. Responderam os requerentes à invocada ilegitimidade ativa, dizendo que deve improceder a invocada exceção na medida em que, como alegam, a presente providência cautelar tem por fim a salvaguarda dos direitos ambientais da comunidade onde se situa a oficina automóvel. Apreciando:
Dispõe o artigo 30° do C. P. Civil:
"1 - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer. 2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha. 3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.': portanto, de acordo com a devida norma os autores/requerentes têm interesse em demandar os requeridos para salvaguarda do direito ambiental que possa ser posto em causa pela construção da oficina automóvel.". Acresce que os mesmos requerentes apresentaram a presente providência em nome de alegados membros da comunidade onde se situa a construção da oficina. Portanto, atenta a causa de pedir e os pedidos formulados no procedimento cautelar, diga-se também, na própria ação principal, estão abrangidos pelo artigo 31°, do C. Processo Civil, e consequentemente, pela Lei da Ação Popular. Assim sendo, conjugando com o que já se referiu a propósito das demais exceções analisadas anteriormente, a configuração da ação e da providência cautelar, quer na sua causa de pedir quer no pedido, são compatíveis com interesses difusos e, como tal, os requerentes, que se inserem na comunidade onde está em construção a oficina, têm legitimidade para em nome desses elementos da comunidade proteger o direito ambiental. Acresce referir que não olvidamos que, relativamente ao abaixo assinado apresentado pelos requerentes e demais supostos membros da comunidade onde se situa a construção, há membros desse abaixo assinado que vieram entretanto desistir da sua concordância com o mesmo, conforme resulta dos documentos juntos aos autos na ação principal, na oposição e ainda os documentos juntos no dia 3/09/2019. Ainda assim, apesar dessas desistências, a causa de pedir quer da ação, quer do processo cautelar, não deixa de corresponder à defesa de interesses difusos, pois que, para além dos requerentes, há outros subscritores do abaixo assinado que certamente também se sentiram, pelo menos abstratamente, ameaçados nos seus direitos ambientais. Refira-se que o abaixo assinado não é a razão, nem pode ser, para que os interesses em apreciação se considerem difusos, basta que a defesa dos interesses possa abranger vários membros da comunidade onde a construção da oficina está a ser realizada e isso, convenhamos, está alegado. Assim sendo, improcede também a ilegitimidade ativa dos requerentes.
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Quanto à alegada impropriedade do procedimento cautelar comum para a defesa para os interesses difusos invocados, mas antes de eventual procedimento cautelar embargo de obra nova: Vejamos: Alegam os requeridos, mais uma vez, que estão em causa atos administrativos do Município B… e que com a ação e o procedimento cautelar se pretende a cessação e reparação do dano urbanístico provocado por tais atos, pelo que se trataria de uma ação a intentar nos tribunais administrativos e fiscais para obtenção de tais propósitos. Ora, em relação a tal questão, já se referiu anteriormente que os tribunais comuns são os tribunais competentes, aliás como referem os requerentes. Na verdade, o que imana da petição inicial é a defesa de interesses difusos referentes ao ambiente entre os proprietários de uma oficina automóveis e os cidadãos da comunidade onde se insere aquela. Acresce que, como já referimos anteriormente, não está em causa a ilegalidade de uma qualquer construção, quer por violação do direito administrativo quer por violação do direito privado porque, aí sim, seria de recorrer ao embargo de obra nova, mas antes está em causa a sindicância das eventuais consequências que podem advir para a comunidade pelo destino que a construção alegadamente terá, qual seja, a instalação da oficina de reparação automóvel. Portanto, não se aplica ao caso presente, Providência Especificada de embargo de obra nova como alegam os requeridos, mas antes a providência cautelar comum ou não especificada por a mesma não caber em qualquer outra providência cautelar especificada. Aliás, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido nestes autos já tratou tal questão ao dizer que o procedimento cautelar não específico é o único idóneo à defesa preventiva dos alegados direitos ambientais. Assim, também improcede a referida exceção.
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Quanto a custas: Atentas as diversas exceções invocadas e a sua consequente improcedência, importa a condenação dos requeridos em custas, quanto a essa atividade processual. Assim, fixam-se custas pelos referidos incidentes condenando os requeridos 3 (três) UC's, sem prejuízo do eventual apoio judiciário se o mesmo vier a ser deferido. Notifique.”
Os requeridos interpuseram recurso, concluindo: …………………………………………………. …………………………………………………. …………………………………………………. NESTES TERMOS e nos mui douta mente apreciados por Vossas Excelências, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, com a consequente revogação da douta decisão recorrida, substituindo-se por outra que julgue procedente a exceção da ilegitimidade passiva, bem como procedente a exceção de incompetência dos tribunais comuns e, se assim não acontecer, que revogue a douta decisão de julgar improcedente a exceção de ilegitimidade ativa, relevando o conhecimento da mesma para final do julgamento, como qual se fará a sempre desejada e sã JUSTIÇA.
Os requerentes apresentaram contra-alegações, concluindo: ……………………………………………………… ……………………………………………………… ………………………………………………………. Nestes termos e nos mais de direito, deve negar-se provimento ao presente recurso de Apelação pelas razões aduzidas, mantendo-se o despacho proferido que julgou improcedentes as exceções invocadas pelos Requeridos, com as demais consequências legais, fazendo-se assim inteira e sã JUSTIÇA!
Nos termos da lei processual civil são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, as questões a resolver consistem em saber se:
- são competentes para a acção e providência aqui em causa os tribunais da jurisdição comum;
- existe ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário;
- os recorridos têm legitimidade activa para a acção e providência;
- a excepção de ilegitimidade activa deveria ser apreciada a final, depois de produzia a prova.
II – Fundamentação de facto
Para a decisão do recurso releva a factualidade que se extrai do relatório supra.
III – Fundamentação de direito
Em primeiro lugar, referem os recorrentes que se está perante uma obra devidamente Iicenciada, cujo acto administrativo emanado pela autoridade competente nunca foi atacado e, como tal, não podem os tribunais civis sobrepor-se à Câmara Municipal B…, que emitiu o competente Alvará de Construção.
A partir do momento em que se peticiona a imediata suspensão de uma obra licenciada pela autoridade competente, esta é parte interessada e, tal como se preceitua no nº 2 do artigo 33º do CPC, "é igualmente necessário a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil norma!", pelo que estamos perante um Iitisconsórcio necessário, sendo que a falta de um dos interessados na relação controvertida é motivo de ilegitimidade
Aqui chegados, dizem, imediatamente se questiona a legitimidade dos tribunais comuns para apreciação desta matéria, pois a entidade administrativa actuou no exercício de funções administrativas de gestão pública, exercitando poderes públicos, ao abrigo de normas de direito administrativo e cuja resolução depende da aplicação de normas de direito administrativo.
Atentemos.
Os requerentes propuseram contra os requeridos uma providência cautelar invocando que a construção de uma oficina de manutenção e reparação automóvel destes últimos, bem como o exercício das actividades dessa mesma oficina é prejudicial ao ambiente e à vida das pessoas que vivem naquela freguesia e concelho.
Dispõe o artigo 52º, nº 3 da Constituição que “É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para: a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural; b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.”
A acção popular configura-se, hoje como um ingrediente de democracia directa, e, nessa medida, como um verdadeiro direito político (de modo paralelo v.g. ao direito de petição), como flui da sua inserção sistemática na CRP (Tit.II, Cap. II sobre "direitos, liberdades e garantias de participação política"); daí que se possa afirmar que "a acção popular representa um apreciável poder de intervenção na coisa pública e revela uma visão essencialmente democrática das relações entre o indivíduo e a organização político-administrativa" (Andrade, J. Robin, 1967, p. 141).
De facto, a Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto (LAP) alude, no artigo 14º a "direitos e interesses" e, no artigo 22º a interesses cujos titulares estão identificados e interesses em que os seus titulares não estão identificados, como posições de vantagem distintas, ou seja, acolhe pelo menos a distinção, quanto ao seu objecto, entre interesses divisíveis e indivisíveis.
Este aspecto parece vir na linha da distinção constitucional entre "direitos e interesses legítimos" (artigo 20º nº 1da CRP) ou entre "direitos e interesses legalmente protegidos" (artigo 268º nº 5 da CRP).
Parece dar-se, deste modo, resposta legal positiva à necessidade de tutela de interesses meta-individuais, designadamente os difusos cuja subjectivização se revela tarefa complicada (para efeitos de integração da noção clássica de "direito subjectivo"), sobretudo quando um certo bem se revela polifacetado, susceptível de ser apreendido como direito de personalidade de um indivíduo, em certas situações, e como bem comunitário insusceptível de apropriação exclusiva por cada indivíduo da colectividade.
Parece claro que interesses difusos não são interesses públicos, porque a sua titularidade não pertence a nenhuma entidade ou órgão público, também não se identificam com interesses colectivos, porque não pertencem a uma comunidade ou grupo mas a cada um dos seus membros, e também não são interesses individuais, porque, como o bem jurídico a que se referem é inapropriável individualmente, esses interesses são insusceptíveis de serem atribuídos em exclusivo a um sujeito. (vide Sousa, Miguel Teixeira, 1994, p. 412).
Quanto ao âmbito de tutela do direito de acção popular, atendendo ao tipo de providências sobre que se pode decalcar o direito de acção popular pode dizer-se que esta visa a "prevenção, a cessação ou a perseguição judicial" das infracções contra os interesses previstos no nº 3 do artigo 52º da CRP.
Estas acções podem ser não só reparatórias mas também preventivas ou inibitórias, consoante as situações em presença.
A acção popular administrativa apresenta já alguma tradição na legislação portuguesa pois o Código Administrativo de 1842 (artigo 29º) previa uma forma de acção popular na disponibilidade de qualquer eleitor contra ilegalidades em matéria eleitoral, assim como em 1892 (Lei 6 de Agosto de 1892) o direito de reclamar, por via hierárquica ou junto dos tribunais, em defesa do "interesse público" contra deliberações administrativas. Veio, depois, este instituto a tomar corpo no Código Administrativo de 1936 (versão de 1940) através da acção popular supletiva pela qual visava manter, reivindicar e reaver bens ou direitos da autarquia local, quando hajam sido usurpados ou lesados (artigo 369º) - sugerindo um carácter "sub-rogatório" - e a acção popular correctiva que consistia num recurso directo de anulação das decisões ilegais dos órgãos das autarquias (artigo 822º).
A LAP veio regulamentar, especificamente e no seguimento do Código de Procedimento Administrativo (artigo 53º, entre outros), a participação procedimental dos cidadãos. E a via contenciosa também foi contemplada, podendo a acção popular ser enquadrada nas várias vias processuais próprias deste contencioso.
Em termos penais, a lei de acção popular (artigo 25º) reconhece aos titulares da acção popular o direito de queixa ou participação criminal por violação dos interesses tutelados quando revista natureza criminal, bem como - e este será o aspecto decisivo - o direito de se constituírem assistentes no respectivo processo, ampliando, assim, o âmbito de legitimidade que resultava das normas processuais penais em matéria de queixa e constituição como assistente.
Pela formulação expressa, inflecte-se, de modo abrangente às situações em que estejam em causa os bens jurídicos aludidos (ambiente, saúde pública, etc.), a regra processual penal de reconhecer legitimidade apenas ao "ofendido", estendendo esta a todos os legitimados para a acção popular - qualquer cidadão, associações, fundações e autarquias locais, nos termos dos artigos 2º e 3º da LAP -, tornando-se, por esta via, verdadeiros sujeitos processuais com poderes para influenciar o destino processual da acção penal, mesmo perante a inércia processual do Mº Pº. Deste modo, reconhece-se à sociedade civil uma etapa da via jurisdicional para a prossecução de um dos fins das penas - a reafirmação das normas pela tutela das expectativas da comunidade (prevenção geral positiva ou de integração), quando os cidadãos se revejam na assunção da "defesa do ordenamento jurídico" como acto de cidadania.
É pacífico dizer-se que o Direito Civil constitui, por excelência, o espaço de garantia da autonomia individual.
Actualmente, com a emergência dos apodados "direitos de terceira geração" coloca-se em causa a visão clássica dos institutos e princípios deste ramo do direito, substantivo e adjectivo, seja o da responsabilidade civil, seja o da delimitação de direitos (v.g. de propriedade e sua função social) e situações de conflito ou compressão de direitos, seja dos esquemas do litisconsórcio e coligação e acesso colectivo à justiça.
Não deixa de ser importante reafirmar que a consagração da acção popular nesta sede, isto é, para além do âmbito administrativo, é dos aspectos mais arrojados na estruturação do instituto, precisamente pela reformulação do pensamento "clássico" que naturalmente implica.
Nesta medida, a acção popular vem prestar um contributo para a reformulação interna, sem ruptura de continuidade atenta a versatilidade deste ramo do Direito, das concepções e regras tradicionais civis.
A LAP inovou no quadro legal português ao consagrar, no artigo 14º, um "regime especial de representação" do autor popular da acção relativamente a todos os demais titulares dos direitos e interesses em causa que não tenham exercido o direito de auto exclusão com repercussão na extensão dos efeitos do caso julgado em decisões que não tenham improcedido por insuficiência de provas.
Nos termos do artigo 12º, nº 2 "a acção popular pode revestir qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil". Em rigor, dir-se-ia que a forma de processo para concretização da acção popular haverá de ser a forma comum, já que não se concebe que outras formas de processo, designadamente os processos especiais, estejam talhados para tal efeito; o que sucederá - e certamente será essa a alusão que o legislador teria em mente com as "formas previstas no CPC" - é que se pode recorrer aos tipos de acções e providências previstas naquele Código, desde acções declarativas (condenatórias, constitutivas ou de simples apreciação) e executivas e, ainda, providências cautelares, especificadas ou inominadas.
Posteriormente, o artigo 26.º-A do Código de Processo Civil de 1961, sob a epígrafe “acções para a tutela de interesses difusos”, passou a prever: “Têm legitimidade para propor e intervir nas acções e procedimentos cautelares destinados, designadamente, à defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural e do domínio público, bem como à protecção do consumo de bens e serviços, qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público, nos termos previstos na lei”.
E a partir de 2004, o n.º 2 do artigo 9.º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), sob a epígrafe “legitimidade activa”, passou a prever:
“2 - Independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais”.
Temos de concluir que a acção popular se estrutura no alargamento da legitimidade processual em determinas matérias, podendo elencar-se as seguintes especificidades:
a) O juiz assume uma intervenção activa: indefere a petição quando seja manifestamente improvável a procedência do pedido, medida que desincentiva a instauração de acções com fins dilatórios, sobretudo quando existe isenção de pagamento de taxa de justiça inicial (artigo 13.º da LAP); promove a recolha de provas (artigo 17.º da LAP) e pode conferir efeito suspensivo a um recurso, para evitar dano irreparável ou de difícil reparação (artigo 18.º da LAP).
b) Trata-se de um sistema de opt-out: por um lado, o autor representa, com dispensa de mandato, todos os demais titulares dos direitos e interesses em causa que não tenham exercido o direito de auto exclusão previsto no artigo 15.º da LAP (artigo 14.º da LAP). Por outro lado, o caso julgado abrange todos os titulares dos direitos ou interesses que não tenham exercido o direito de auto exclusão (artigo 19.º nº1 da LAP).
Tendo em vista o exercício do direito de auto exclusão, os titulares dos interesses em causa são citados (por anúncios publicados nos meios de comunicação social ou por éditos) para, no prazo fixado pelo juiz, ou até ao termo da produção de prova ou fase equivalente, intervirem na acção ou excluírem-se da mesma, sob pena de aceitação tácita (artigo 15.ºn.ºs 1, 2 e 4 da LAP).
c) A publicação da sentença condenatória é feita a expensas da parte vencida e sob pena de desobediência, com menção da data do trânsito em julgado, em 2 jornais presumivelmente lidos pelo universo dos interessados no seu conhecimento (artigo 19.ºnº 1 da LAP).
d) O autor está isento do pagamento de taxas de justiça iniciais e de custas processuais a final, mesmo em caso de procedência parcial do pedido (artigo 20.º/1 e 2 da LAP). Em caso de improcedência do pedido, o autor deve pagar entre um décimo e metade das custas que normalmente seriam devidas, tendo em conta a sua situação económica e a razão formal ou substantiva da improcedência (artigo 20.º nº3 da LAP).
e) Existe uma dicotomia em sede de dever de indemnizar: por um lado, a condenação do agente causador origina o dever de indemnizar o lesado pelos danos causados, nos termos gerais da responsabilidade civil subjectiva (artigo 22.º nºs 1 e 3 da LAP), podendo aqui vislumbrar-se um interesse individual homogéneo; mas, por outro lado, “a indemnização pela violação de interesses de titulares não individualmente identificados é fixada globalmente” (artigo 22.º nº 2 da LAP), ou seja, pertence à comunidade, pois estamos perante um interesse colectivo.
f) Consagra-se a responsabilidade civil objectiva: o dever de indemnizar os danos independentemente de culpa, sempre que da acção ou omissão do agente tenha resultado ofensa de direitos ou interesses protegidos nos termos da LAP (artigo 23.º da LAP).
g) Os titulares do direito de acção popular têm o direito de denúncia ou participação ao Ministério Público por violação dos interesses previstos na LAP que revistam natureza penal (artigo 25.º da LAP).
Feito este devido enquadramento, estamos em condições de ir ao encontro dos questionamentos dos recorrentes.
O actos de licenciamento são actos praticados pela Administração pública que aferem da conformidade das construções com os instrumentos de gestão territorial aplicáveis, sob pena de nulidade.
Estamos no âmbito das relações entre os particulares e a Administração Pública na estrita execução dos poderes que lhe são atribuídos por lei.
É que em matéria de ordenamento do território os instrumentos jurídicos existentes definem com a precisão e o rigor possíveis os limites da intervenção humana, existindo um contexto de normas e regras que disciplinam essa acção do homem nos mais variados aspectos, em particular no que respeita à gestão e utilização do espaço no campo da actividade construtiva.
Porém, como tem sido reiterado pelo nosso Supremo Tribunal de Justiça nenhum licenciamento administrativo pode apagar uma ofensa a direitos básicos, sob pena de a definição do direito ficar confiada à opção de qualquer agente administrativo.
Portanto, temos aqui planos diferentes: no caso do licenciamento a relação é estabelecida entre os recorrentes e a Administração Pública; no caso que aqui nos ocupa a relação é entre recorrentes e recorridos (entre particulares) num confronto resultante de violação de direitos, mais precisamente dos invocados interesses meta-individuais.
O litisconsórcio configura-se quando a relação material controvertida respeita a uma pluralidade de partes principais que se unem no mesmo processo para discutirem uma só relação jurídica material; diz-se voluntário nas situações em que é permitido que só uma das partes intervenha, embora possam participar as restantes e necessário naquelas em que é exigida a intervenção de todas em conjunto.
Ora, se, como se viu, estas relações se estabelecem em níveis completamente distintos é completamente absurdo falar em litisconsórcio cuja génese está na existência de uma única relação material.
A única relação material que aqui importa é aquela que é configurada pelos requerentes/ autores, acima caracterizada.
Logo, patentemente se não verifica a propalada ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário.
A determinação da natureza pública ou privada da relação litigiosa, ao tempo da acção, e a consequente determinação do tribunal competente para dela conhecer aferem-se pela forma como o autor configura a acção, definida pelo pedido e pela causa de pedir.
Já se viu que entre nós a acção popular começou por ser consagrada no domínio do Direito Administrativo mas com o evoluir da sua conceptualização, o direito civil representa hoje o seu principal terreno de actuação.
Está aqui em causa uma pretensão fundada na violação por particulares de direitos inerentes à preservação do ambiente.
Também se disse que a acção popular pode revestir qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil, isto é, podem apresentar-se todos os tipos de acções e providências previstas neste Código, desde acções declarativas (condenatórias, constitutivas ou de simples apreciação) e executivas e, ainda, providências cautelares, especificadas ou inominadas.
Nesta base, não há qualquer dúvida que compete aos tribunais comuns o conhecimento da presente providência cautelar.
Argumentam também os recorrentes contra o caracter altruísta dos recorridos, alegando que eles não representam entes colectivos nem sujeitos passivos que tenham sido afectados pela matéria em causa, uma vez que expressamente disseram em todas as reclamações, junto das diversas entidades a que antes recorreram, que estavam prejudicados individualmente.
Foi dito que a acção popular abarca necessariamente os interesses difusos, que são os radicados na própria colectividade, deles sendo titular, afinal, uma pluralidade indefinida de sujeitos, reportando-se a bens por natureza indivisíveis e insusceptíveis de apropriação individual e "os interesses individuais homogéneos" (divisíveis) que se exprimem naqueles casos em que os membros da classe são titulares de direitos diversos, mas dependentes de uma única questão de facto ou de direito, pedindo-se para todos eles um provimento jurisdicional de conteúdo idêntico, destacando-se de entre estes os direitos dos consumidores.
Na situação patenteia-se a invocação dos ditos interesses difusos referentes a um bem polifacetado, susceptível de ser apreendido como direito de personalidade de um indivíduo, em certas situações, e como bem comunitário insusceptível de apropriação exclusiva por cada indivíduo da colectividade.
Os interesses difusos são interesses que possuem, de um mesmo passo, uma dimensão individual e outra supra - individual, ao contrário dos interesses individuais, que só possuem uma dimensão individual, pertencem exclusivamente a um ou a alguns titulares.
Melhor explicando, os interesses difusos são interesses sem sujeito ou sem titulares, cabem a todos e a cada um dos membros de uma classe ou de um grupo, mas são insusceptíveis de apropriação individual por qualquer desses sujeitos, sendo, pois, a dita dupla dimensão individual e supra -individual uma característica essencial desses interesses.
Portanto, este aspecto individual de que os recorrentes se queixam também tem de estar presente nos interesses difusos ligados ao ambiente e qualidade de vida em causa na providência.
Por fim, sustentam os recorrentes que sempre a excepção de ilegitimidade activa deveria ser apreciada a final, depois de produzia a prova.
A legitimidade processual distingue-se da legitimidade em sentido material que consiste num complexo de qualidades que representam os pressupostos da titularidade, por um sujeito, decerto direito que invoque ou que lhe seja atribuído.
A lei e a doutrina falam em legitimidade para designar essas condições subjectivas da titularidade do direito. A falta delas dará lugar, na mesma terminologia, a uma ilegitimidade diferente da legitimidade processual.
Esta legitimidade material é, na verdade, uma questão de mérito pois a falta de legitimidade para a causa equivale à ausência de direito material. Esta condição não pode ser matéria estranha ao mérito porque ao afirmar-se que o autor não tem legitimatio ad causam, denega-se-lhe o bem jurídico a que aspirava.
Porém, a legitimidade de aqui se cuida é a legitimidade processual.
A esta alude o artigo 30º, nº3 do CPC determinando que, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor. Trata-se de um pressuposto processual que, como refere Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pág.148, fica circunscrito aos casos (raros) de divergência entre as pessoas identificadas pelo autor como adversários da sua pretensão e as pessoas efectivamente ingressadas em juízo, e os casos (não menos raros) em que da própria petição transpareça a conclusão de que o autor chama a juízo pessoas, que não são os sujeitos da relação controvertida.
Ora os recorridos apresentam-se como sujeitos da relação material controvertida tal como esta é descrita na requerimento inicial.
Em suma, os recorrentes confundem a legitimidade substantiva e a legitimidade processual, realidades totalmente distintas tal qual se enunciou.
Pelo exposto, delibera-se julgar totalmente improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
Porto, 12 de Novembro de 2019
Ana Lucinda Cabral
Maria do Carmo Domingues
José Carvalho