PRISÃO PREVENTIVA
PRINCÍPIO REBUS SIC STANTIBUS
Sumário

A medida de coação de prisão preventiva, não sendo imutável, está sujeita à condição ou ao princípio do caso julgado rebus sic stantibus.
A alteração de tal medida, no reexame da subsistência dos respetivos requisitos, pressupõe sempre que algo mudou entre a decisão que aplicou tal medida e a segunda decisão que procede ao reexame.
O Juiz não se confrontando com qualquer alteração superveniente das circunstâncias que possam pôr em causa os pressupostos que fundamentaram a aplicação da medida de prisão preventiva, não pode reformar essa decisão, sob pena de criar uma instabilidade jurídica decorrente de julgados contraditórios.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I -RELATÓRIO
1.1. No processo n.º 44/19.9PKLRS-B, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte - Juízo Central Criminal de Loures - Juiz …, em que é arguido CF…, por despacho proferido em 06-06-2019, ao abrigo do disposto no art. 213º, n.º 1, b), do Código de Processo Penal, foi reapreciada e mantida a medida de coação aplicada ao arguido nos seguintes termos:
Tendo sido deduzida acusação, impõe-se proceder ao reexame dos pressupostos da medida de coacção de prisão preventiva aplicada ao arguido CF… (art.º 213º, nº 1, alínea b), do C.P.P.).
O arguido foi sujeito à medida de coacção de prisão preventiva em 08.02.2019 (fls. 86 a 95).
Posteriormente, em 06/05/2019 tal medida foi revista e mantida.
Compulsados os autos, constata-se que deles não resultam quaisquer elementos que afastem os pressupostos de facto e de direito que levaram à aplicação de tal medida ao arguido, pelo que se julga desnecessária a audição do mesmo.
Não se mostra excedido o prazo previsto para tal medida cautelar (artº 215º, nº 2, do C.P.P.).
Nestes termos, porque se mantêm rigorosamente inalteradas as circunstâncias de facto e de direito que determinaram a aplicação da medida de prisão preventiva ao arguido, que se mostra até reforçada pela dedução da acusação, ao abrigo do que se dispõe no artº 213º, nº 1,al. b) do C.P.P., mantém-se a referida medida cautelar, aguardando o arguido os ulteriores termos do processo na situação em que presentemente se encontra.
Notifique.
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1.2. O arguido CF…, inconformado com a decisão, interpôs recurso para este Tribunal da Relação com os fundamentos constantes da respectiva motivação que aqui se dão por inteiramente reproduzidas, apresentando então as seguintes conclusões:
a) O Arguido nos presentes autos encontra-se indiciado da prática como autor material, na forma consumada, da prática de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p.p. art. 14º, n.º 1, art. 26º e art. 165º, n.º 1 e 2 todos do Código Penal.
b) Em sede de Primeiro Interrogatório foi aplicada ao Arguido a medida de coação de prisão preventiva, nos termos conjugados do art. 191º, n.º 1, art. 192º, art. 193º, n.º 1 e 3, art. 194º, n. 2, art. 196º, 202º, n.2 1, al. a) e b) e art. 204º, al. a) e c) todos do Código de Processo Penal, tendo esta medida sido reexaminada pelo despacho datado de 06.06.2019 tendo se mantido inalterada.
e) A Prisão Preventiva somente "pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida: a) fuga ou perigo de fuga; b) perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; c) perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquílidade pública", não estando nos autos presentes os requisitos necessários.
d) Apesar do Arguido ter contra si de afastamento coercivo por se encontrar em situação irregular, isso por si só não pode automaticamente significar perigo de fuga. A personalidade relvada pelo Arguido, não aparenta qualquer indício de se eximir ao presente processo ou eventuais consequências, tendo pausadamente procurado esclarecer o tribunal, apresentando a sua versão dos factos.
e) Além disso, as pessoas com quem o Arguido tem as suas relações mais próximas encontram-se em Portugal, além disso, o Arguido apesar de ter trabalho pontual na construção civil, consoante lhe é solicitado, não possui rendimentos ou conhecimentos suficientes para conceber um plano de fuga que lhe permita eximir à justiça.
f) Por fim, a possibilidade de ocorrer perigo de fuga é reduzida no tempo, estando o Arguido detido à diversos meses.
g) Inexiste também perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, estando as provas relevantes para o processo já recolhidas na presente data.
h) Mesmo no que diz respeito à testemunha MN…, que já prestou testemunho nos autos, tendo o processualismo penal válvulas de escape, uma vez que em caso de existir divergências no depoimento prestado em julgamento com os anteriores, pode ser peticionada a reprodução das declarações prestadas previamente, as mesmas podem ser analisados em audiência, ficando o juiz sempre sujeito à livre apreciação das mesmas, cfr. art. 356º, n.º 2, al. b), n.º 3, al. b), n.º 5, e art. 121º ambos do Código de Processo Penal.
i) Por fim, inexiste perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas, uma vez que o Arguido não tem qualquer averbamento no seu registo criminal, nem nunca teve qualquer processo criminal a correr contra si, pelo crime pelo qual se encontra acusado ou por qualquer outro e inexiste qualquer parecer que permita concluir pela perigosidade do Arguido ter qualquer tendência libidinosa.
j) Não está também presente qualquer perigo de perturbação da ordem ou da tranquilidade pública, uma vez que tem residência perto da ofendida e nos testemunhos nada faz indicar que existiu uma repercussão no meio em que ambos se inserem.
k) Assim, sob pena de estarem a ser violados princípios de direito, a medida de coação tem que ser alterada, sendo aplicada uma medida de coação não privativa da liberdade, sendo a mais adequada, necessário e proporcional a medida de apresentações periódicas em posto policial.
Nestes termos e nos mais de direito requer-se a V. Exa. que seja dado provimento ao presente recurso, sendo o Arguido parte legitima e ter sido o recurso apresentado tempestivamente, sendo em Acórdão proferido pelos Venerandos Desembargadores alterada a medida de coação de prisão preventiva aplicada e substituída pela medida de apresentações diárias na esquadra mais próxima da habitação do Arguido.
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1.3. O MINSTÉRIO PÚBLICO exerceu o seu direito de resposta à interposição do recurso, formulando as seguintes conclusões:
I – O arguido recorreu do despacho proferido pelo Tribunal a quo 06/06/2019, que procedeu ao reexame dos pressupostos da medida de coacção e manteve a prisão preventiva aplicada ao arguido – vide 213.º n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal – por considerar que se mantinham “(…)inalteradas as circunstâncias de facto e de direito que determinaram a aplicação da medida de prisão preventiva aplicada ao arguido, que se mostra até reforçada pela dedução da acusação (…), mantém-se a referida medida cautelar, aguardando o arguido os ulteriores termos do processo na situação em que presentemente se encontra.”
II – Pugna o recorrente pela substituição do despacho proferido por outro que lhe aplique a medida de coacção de apresentações diárias na esquadra mais próxima da sua habitação.
III – Para tanto defende que o despacho recorrido não respeita os pressupostos gerais de aplicação das medidas de coacção (vide artigo 204.º alíneas a) a c) do CPP), bem como os pressupostos específicos da medida de coacção de prisão preventiva (vide artigo 202.º do CPP).
IV – Sucede que a alteração de uma medida de coacção para outra menos gravosa apenas pode ocorrer no caso de se verificar uma diminuição das exigências cautelares que levaram à sua aplicação, de acordo com a previsão do artigo 212.º n.º 3 do Código de Processo Penal.
V - Tal significa que as medidas de coacção estão sujeitas à condição rebus sic stantibus, ou seja, o tribunal que aplicou a medida em caso algum pode substituí-la ou revogá-la sem que tenha havido alteração dos pressupostos de facto ou de direito (vg. neste sentido Ac. RC de 26/06/2013, Proc. N.º 40/11.4JAAVR-K.C1, relatado por Luís Ramos e disponível para consulta em www.dgsi.pt).
VI – Já o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido nestes autos em 11/07/2019 pronunciou-se em sede de recurso do despacho proferido pelo Tribunal a quo exarado ao tempo do reexame trimestral da prisão preventiva em 06/05/2019, tendo sublinhado que o que importava era apurar se os pressupostos que determinaram a aplicação daquela medida detentiva ao recorrente se alteraram e, assim sendo, se resulta atenuação das exigências cautelares que constituíram os seus fundamentos.
VII – Como tal impõe-se concluir que não cabe neste momento analisar os fundamentos que levaram à aplicação da medida de coacção de prisão preventiva ao arguido em sede de primeiro interrogatório, uma vez que os mesmos foram atendidos no despacho proferido naquela diligência o qual transitou pacificamente em julgado.
VIII – O Ministério Público não concorda com os argumentos do recorrente.
IX – Relativamente ao perigo de fuga, o recorrente não invoca novas circunstâncias que não estivessem presentes ao tempo do primeiro interrogatório e que pudessem debelar este perigo.
X – Ademais este perigo encontra-se no momento reforçado pelo facto do arguido, ora recorrente, saber que tem contra si uma acusação pela prática de factos que integram o um crime punível com a pena de prisão de dois a dez anos.
XI – Relativamente ao perigo consagrado no artigo 204.º alínea c) do Código de Processo Penal – em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas – consideramos que o recorrente limitasse a discordar da existência do mesmo no momento da aplicação da medida detentiva, sem trazer quaisquer factos capazes de alterar aqueles pressupostos, o que, só por si, não é passível de ser analisado no âmbito do recurso do despacho recorrido, motivo pelo qual se mantêm inalterados os seus pressupostos.
XII – Acresce que consideramos que estão verificados os pressupostos da medida de coacção mais gravosa, os quais foram devidamente analisados em sede de primeiro interrogatório judicial, não havendo fundamento para aplicar a medida de coacção não privativa da liberdade sugerida pelo recorrente – apresentações periódicas na esquadra mais próxima da residência do arguido com periodicidade diária.
XIII – Ademais, o recorrente não demonstrou que após a prolação do despacho em sede de primeiro interrogatório judicial tenham ocorrido factos susceptíveis de atenuar as exigências cautelares, nos termos e para os efeitos do artigo 212.º n.º 3 do Código de Processo Penal.
XIV – Encontrando-se bem fundamentado o despacho recorrido e correcta a decisão de aplicação da medida de coacção, a que acresce a circunstância de inexistir a alteração dos respectivos pressupostos de facto e de direito que determinaram a sua aplicação, deve ser negado provimento à pretensão do recorrente.
Nestes termos e nos demais de Direito, deve o presente recurso ser julgado improcedente e, em consequência, ser mantido o despacho recorrido.
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1.4. Nesta instância, a Exmª. Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se refere o art. 417º, n.º 1, do Código de Processo Penal, emitiu parecer no sentido de o recurso não merecer provimento.
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1.5. No âmbito do disposto no art. 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido não respondeu a esse parecer.
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1.6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c) do citado código.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
2. 1.  – Objeto do Recurso
O âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso.
Assim, no caso vertente, a questão que constitui objeto do recurso consiste em saber se deve ser mantido o despacho recorrido que, em reapreciação da medida de coação de prisão preventiva aplicada anteriormente ao arguido, determinou a sua manutenção.
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2.2. – A decisão que aplicou a medida de coação de prisão preventiva em sede de interrogatório judicial de arguido detido (1º Interrogatório judicial de arguido detido-art. 141º C. P. Penal).
A decisão tem o seguinte ter:
I - A detenção foi legal e o arguido foi tempestivamente apresentado - art.º 254º, n. 1, al. a), 255º, n.º 1, al. a) e 257º, n. 2 todos do CPP.
II - Como bem refere a Digna Magistrada do Ministério Público contém os autos, neste momento, fortes indícios da prática pelo arguido do crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência p. e p. pelos art. 14°, n. 1, 26º, 165º, n. 1 e 2 todos do Código Penal.
Com efeito tal resulta, desde logo, do depoimento objectivo e credível prestado pela ofendida, que explicou de forma clara e suficientemente pormenorizada a actuação do arguido, não obstante as limitações verbais descritas. Tal depoimento torna-se ainda mais credível porquanto compatível com as lesões apresentadas e constantes do relatório clinico de fls. 13 e com o reconhecimento pessoal efectuado nos autos a fls. 51, reconhecimento que se encontra conforme as imposições legais não merecendo censura.
O arguido negou a prática dos factos, quando ouvido pela Polícia Judiciária, continuando a negá-los neste tribunal afirmando que no dia em causa esteve a trabalhar numa obra em Caneças até às 18 horas, tendo depois seguido para casa de um amigo de nome S… onde esteve a ver um jogo de futebol. Nega ter estado no local o dia dos factos afirmando que a ultima vez que aí se deslocou foi na passada segunda-feira no período da manha. Tais declarações, porém, não merecem credibilidade já que se encontram em contradição com as declarações da ofendida, que no dizer do arguido não tem nem nunca teve nada contra si, e bem assim da testemunha M… que afirma que na terça-feira viu o arguido junto ao quintal bem perto da meia-noite.
A postura assumida pelo arguido demonstra que o mesmo não revela qualquer tipo de arrependimento, pretendendo escudar-se nas debilidades da ofendida e no facto de não ter havido testemunhas oculares dos factos.
Com a sua conduta o arguido demonstra uma total ausência de princípios e valores de vida em sociedade, aliado ao sentimento de profundo desrespeito pelos valores da intimidade e liberdade individual. Mais demonstra que o arguido não consegue controlar os seus instintos libidinosos, aproveitando-se do facto de a vítima ser portadora de acentuado deficit físico e cognitivo, que aliás conhecia, assim a forçando a manter consigo relações sexuais de cópula e coito anal.
No caso concreto, é por demais evidente que o arguido se aproveitou da fragilidade e da vulnerabilidade da ofendida, atentando contra a sua liberdade sexual.
III - Em face da factualidade indiciada vislumbra-se a ocorrência de forte perigo de continuação da actividade criminosa, sendo inquestionável a gravidade objectiva das condutas imputadas ao arguido, bem como o sentimento de insegurança, intranquilidade e medo, que a mesma gera na ofendida e na sociedade em geral.
O arguido encontra-se em situação irregular em território nacional, possuindo processo de afastamento coercivo desde 2012 (fls. 29). Conhecedor da pendência deste processo e da gravidade do crime que lhe é imputado afigura-se possível que o mesmo se sinta tentado a eximir-se à acção da justiça, existindo, assim, perigo concreto de fuga, tanto mais que de acordo com o depoimento da testemunha MN… o arguido não tem residência nem trabalho fixo neste país, não obstante as declarações que agora prestou afirmando residir ora com o pai adoptivo em Santo António dos Cavaleiros ora em Montemor em casa de um amigo mais velho a quem chama tio.
Impõe-se assim aplicar ao arguido, medida de coacção que evite a continuação da actividade criminosa e que o arguido se exima à actuação da justiça.
Em face da natureza e gravidade do cri.me em apreciação, entende-se que nenhuma outra medida será eficaz e adequada a evitar os referidos perigos, senão uma medida privativa da liberdade.
Sendo que se mostra, por ora afastada a possibilidade de aplicação de OPHVE face à incerteza respeitante ao local onde o arguido reside e ainda ao desconhecimento da verificação dos pressupostos necessários a tal aplicação.
IV -Assim, ao abrigo do disposto nos art.º 191º, n.º 1, 192º, 193º, n.º 1 a 3, 194º, n.º 2, 196º, 202º, n.º 1, al. a) e b) e 204º, al. a) e c) todos do CPP, o arguido aguardará os ulteriores trâmites processuais sujeito:
· As obrigações decorrentes do TIR que prestará de novo face a desconformidade na identificação dos pais que se verifica do TIR prestado
- à medida de prisão preventiva.
Emita mandados de condução ao EP.
Notifique e comunique - art.º 194º, n.º 10 do CPP.
Comunique as prisões preventivas ao TEP e DGSP
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2.3. – Apreciemos, então, a questão que constitui objeto do recurso, enunciada supra.
Segundo o disposto no art.º 212º do CPP:
1 - As medidas de coacção são imediatamente revogadas, por despacho do juiz, sempre que se verificar:
a) Terem sido aplicadas fora das hipóteses ou das condições previstas na lei; ou
b) Terem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação.
2 - As medidas revogadas podem de novo ser aplicadas, sem prejuízo da unidade dos prazos que a lei estabelecer, se sobrevierem motivos que legalmente justifiquem a sua aplicação.
3 - Quando se verificar uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação de uma medida de coacção, o juiz substitui-a por outra menos grave ou determina uma forma menos gravosa da sua execução.
4 - A revogação e a substituição previstas neste artigo têm lugar oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou do arguido, devendo estes ser ouvidos, salvo nos casos de impossibilidade devidamente fundamentada, e devendo ser ainda ouvida a vítima, sempre que necessário, mesmo que não se tenha constituído assistente.
In casu, foi decretada a prisão preventiva do arguido porquanto há fortes indícios da prática pelo recorrente CF… de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, na forma consumada, previsto e punível pelos artigos 14.º n.º 1, 26.º, 165.º, n.ºs 1 e 2 todos do Código Penal, a que corresponde a pena de dois a dez anos de prisão.
Importa ter presente que o despacho recorrido não determinou a aplicação da medida de coação de prisão preventiva ao arguido, antes se limitou, em cumprimento do disposto no art. 213º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, a proceder ao reexame obrigatório dos pressupostos invocados no despacho que decretou essa medida de coação, proferido aquando do interrogatório judicial de arguido detido.
É consabido, porque pacífico, que as medidas de coação estão sujeitas à condição rebus sic standibus, como claramente se deduz do disposto no n.º 1, al. b) e n.º 3 do art.º 212º do CPP. Quer isto dizer que (i) só podem ser revogadas se deixarem de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação; e (ii) só devem ser substituídas por outras menos gravosas se se verificar uma atenuação das exigências cautelares.
Compreende-se que assim seja por respeito pelo caso julgado material.
Na verdade, havendo uma decisão transitada não pode a mesma ser alterada a não ser por alteração de circunstâncias supervenientes.
Como assinala Paulo Pinto de Albuquerque[1], do referido princípio resultam duas consequências práticas:
a) permanecendo inalterados os pressupostos da medida de coação e as exigências cautelares que a determinaram, ela não pode ser alterada;
b) se aquando do reexame dos pressupostos da medida de coação e, designadamente, da prisão preventiva, não se verificarem circunstâncias supervenientes que modifiquem as exigências cautelares ou alterem os pressupostos que determinaram a sua aplicação, basta a referência à persistência do condicionalismo que justificou a medida para fundamentar a decisão da sua manutenção.
Como tem sido entendimento constante, a decisão que impõe a prisão preventiva, apesar de não ser definitiva, é intocável e imodificável enquanto não se verificar uma alteração, em termos atenuativos, das circunstâncias que a fundamentaram, ou seja, enquanto subsistirem inalterados os pressupostos de facto e de direito da sua aplicação.[2]
Embora neste domínio, excecionalmente, o princípio do caso julgado formal não vigore na sua plena dimensão, permanecem válidas as razões que desaconselham as decisões de sentido contrário perante situações de facto e de direito idênticas. Não existindo alterações relevantes ou significativas das circunstâncias que contribuíram para fixar a medida de prisão preventiva ao arguido, não pode o tribunal "reformar" tal decisão, sob pena de, fazendo-o, provocar a instabilidade jurídica decorrente de julgados contraditórios, com inevitáveis reflexos negativos no prestígio dos tribunais e nos valores de certeza e segurança que constituem os verdadeiros fundamentos do caso julgado.[3]
Em resumo, o despacho judicial que aplique a prisão preventiva não é definitivo, mas a decisão deve permanecer imutável enquanto “tudo se mantenha igual”, isto é, sempre que posteriormente não se verifiquem circunstâncias, quer de facto quer de direito, que justifiquem a revogação ou a alteração da medida de coação.
Daqui decorre que o despacho proferido nos termos do art. 213º, como é o caso da decisão recorrida, destina-se unicamente a proceder à reapreciação dos pressupostos constantes do despacho que anteriormente determinou a aplicação da prisão preventiva e que a justificaram.
Como tal, a sua fundamentação tem por objeto, apenas, a análise de circunstâncias supervenientes cuja ocorrência possa abalar a sustentabilidade dos pressupostos que conduziram à aplicação da medida de coação, alterando-os, e por esta via, levando à sua substituição ou revogação.
Assim sendo, neste momento, não está em causa saber se a medida de coação de prisão preventiva imposta ao recorrente o foi em conformidade, ou não, com as exigências prescritas nos artºs 191º a 194º, 202º, n.º 1, als. a) e b), e 204º, a), todos do Código de Processo Penal, invocados no despacho que a decretou. O que importa averiguar é se, após o interrogatório judicial em que a mesma lhe foi aplicada, sobreveio algum facto ou circunstância que implique a insubsistência ou a diminuição das exigências cautelares que a justificaram.
Confronte, também, neste sentido o Ac. proferido pelo TRP, sendo relator o Sr. Desembargador Francisco Marcolino, Processo: 189/12.6TELSB-D.P1, com o nº Convencional: JTRP000, datado de 13/01/2016 in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRP:2016:189.12.6TELSB.D.P1.CE#integral-text
Como deixamos expressamente referido, e repetimos, a medida de coacção só pode ser revogada ou substituída se tiverem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação ou se as exigências cautelares se houverem atenuado.
In casu, não só não verificam as ditas circunstâncias supervenientes como o arguido nem sequer as alega (a doença já se verificava à data da decisão). Refugia-se, antes, em questões formais que, naturalmente, não influem na medida de coacção decretada, pois que, quando muito, poderiam conduzir à anulação do despacho recorrido e à obrigatoriedade de ser proferido novo despacho.
Em verdade, o Recorrente pretende por em crise o despacho que decretou a medida de coacção e não aquele que reexaminou os pressupostos.
Ora, não nos cansamos de repetir, o despacho que decretou a medida de coacção está a coberto do caso julgado pelo que não pode o Recorrente fazer entrar pela janela o que a lei lhe impede de entrar pela porta.
Na verdade, e mais uma vez o dizemos, não pode aqui discutir-se se a prisão preventiva foi decretada com base em indícios insuficientes ou se os perigos a que alude o art.º 204º do CPP não se verificavam.
No caso da prisão preventiva, o art. 213º, n.º 1, al. b) do CPP, determina que o juiz proceda oficiosamente ao reexame da subsistência dos seus pressupostos, exclusiva finalidade a que se destinou o despacho recorrido.
O art. 212º do Código de Processo Penal, como vimos, regula os casos de revogação ou de substituição da medida de coação por outra menos gravosa, prevendo o art. 203º a imposição de medida mais gravosa que a anterior.
No entanto, em ambos os casos a lei pressupõe sempre que algo mudou entre a primeira e a segunda decisão. Em caso algum pode o juiz, sem alteração dos dados de facto ou de direito, “reequacionar” o despacho anterior ou, simplesmente, revogar a anterior decisão na medida em que, também aqui, proferida a decisão, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto ao seu objeto.[4]
No caso dos autos, o despacho que decretou a prisão preventiva ao arguido/recorrente fundou-se na existência de fortes indícios da prática pelo arguido do crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência p. e p. pelos art. 14°, n. 1, 26º, 165º, n. 1 e 2 todos do Código Penal e existência dos perigos de continuação da atividade criminosa e de fuga. E, no despacho recorrido, ao manter a mesma medida coativa, a Exmª. Juiz a quo limita-se a reafirmar a manutenção daqueles pressupostos de facto e de direito, face à inexistência de novos factos, concluindo que não se verificou qualquer atenuação das respetivas exigências cautelares, a que acresce, ainda, o facto de tais pressupostos saírem reforçadas com a dedução da acusação e seu recebimento.
Assim, o despacho proferido não podia ser outro, porquanto, após o despacho que aplicou a prisão preventiva ao arguido, nenhum facto ou circunstância ocorreu suscetível de alterar os pressupostos que a determinaram, sendo certo que as circunstâncias por ele alegadas no recurso não são, de todo, suscetíveis de revelar semelhante alteração.
Na verdade:
Alega o recorrente que não existe perigo de fuga, porquanto apesar de se encontrar em Portugal de forma irregular desde 2012, de ter contra si um processo de afastamento coercivo e de ter sido deduzida acusação, não significa só por si que abandone o país.
Como bem refere o MP ao motivar a resposta ao recurso interposto pelo arguido “recordemos que o tribunal a quo, em sede de primeiro interrogatório já se pronunciou relativamente a estas circunstâncias, bem como a outras, designadamente, o facto do arguido não ter trabalho regular, de viver de biscates, de não ter domicílio certo e de pernoitando em casa de amigos, motivos que densificaram ao tempo o perigo em causa.
Na motivação do recorrente não vislumbramos novas circunstâncias que não estivessem presentes ao tempo do primeiro interrogatório e que pudessem debelar este perigo.
Bem pelo contrário, este perigo encontra-se no momento reforçado pelo facto de saber que tem contra si uma acusação pela prática de factos que integram o crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, na forma consumada, previsto e punível pelo artigo 165.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, a que corresponde a pena de prisão de dois a dez anos, intensificam o perigo em análise, ao invés do que pretende dar a entender o recorrente.”.
No que concerne ao perigo da continuação da actividade criminosa, e subscrevendo integralmente a posição assumida pelo MP da 1ª Instância, “alega o recorrente que o mesmo não se verifica, referindo em síntese, que não tem qualquer averbamento no seu registo criminal, nem nunca teve qualquer processo criminal a correr contra si, pelo crime pelo qual se encontra acusado ou por qualquer outro (…) que nunca teve qualquer contacto com os tribunais portugueses, nem nunca revelou quaisquer tendências libidinosas ou instintos sexuais predatórios (…) pelo que não poderá ser considerado como para esses efeitos.
Refere ainda que dos autos não consta qualquer relatório ou parecer que indique uma propensão do foro mental para a realização de actos de cariz sexual forçado com terceiros (…) além de que, (…) não é compreensível a consideração de existir perturbação grave da ordem ou tranquilidade pública.
(…)
Ora, “considerou o Tribunal a quo em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, que a circunstância do recorrente ter acesso à ofendida poderá reiterar os seus comportamentos para satisfação dos seus instintos sexuais e libidinosos, sem qualquer pudor pela ofendida e pelas suas especiais necessidades, até porque o mesmo não demonstrou qualquer tipo de arrependimento ou consciência da gravidade dos factos por si praticados, pretendendo antes escudar-se nas debilidades da ofendida e no facto de não ter havido testemunhas oculares dos factos (vide fls. 8 do despacho proferido em sede de primeiro interrogatório judicial).
Além do mais, a gravidade da conduta imputada ao arguido e pelo qual foi acusado, é geradora de um sentimento de insegurança, não só para a ofendida, mas para a sociedade em geral, como também defende, e bem, a Mmª. Juiz de Instrução, que lhe aplicou a medida de coação e, bem assim, do tribunal a quo que reiterou o mesmo entendimento.”.
Em suma, ao recorrer, com esta argumentação, do despacho que manteve a prisão preventiva, o recorrente mais não pretende do que atacar os fundamentos da anterior decisão que a decretou, discutindo-os nesta sede, o que lhe está vedado, pelas razões acima expendidas.
Na verdade, o recorrente vem questionar a matéria do despacho que aplicou a prisão preventiva, a saber, a existência dos indícios e a verificação dos perigos de fuga e de continuação da atividade criminosa, pressupostos que já haviam sido declarados como verificados nesse despacho já transitado.
Por outro lado, carece de qualquer sustentação legal a argumentação do recorrente no sentido de que, volvidos cerca de 5 meses, a possibilidade de ocorrer perigo de fuga é reduzida pelo tempo.
Tratam-se de meras afirmações, não demonstradas por quaisquer elementos, entretanto, carreados para os autos.
Pelo exposto, porque não existem novos factos que possam e devam ser ponderados, outra coisa não poderia ter sido decidida pelo tribunal recorrido senão a manutenção da medida anteriormente aplicada, pelo que a decisão recorrida não implicou qualquer violação das normas legais invocadas pelo recorrente, termos em que não merece censura.
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III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar não provido o recurso interposto pelo arguido CF… e, em consequência, confirmar o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três unidades de conta (art. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, art. 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma).

Lisboa e Tribunal da Relação, 20 de novembro de 2019
Alfredo Costa
Vasco Freitas
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[1] In Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Portuguesa, 3ª edição atualizada, pág. 550, onde é citada vária jurisprudência.
[2] Cf., entre os mais recentes, os acórdãos do TRL de 08-11-2016 (processo n.º 1028/15.1TELSB-5), 15-09-2016 (processo n.º 1005/12.4PBAMD-A.L1-9) e 28-01-2016 (2210/12.9TASTB-L.L1-9); do TRP de 20-11-2013 (processo n.º 832/10.1JAPRT-A.P1); do TRG de 24-10-2016 (processo n.º 7/15.3GBBRG-E.G1) e 18-04-2016 (processo n.º 1131/15.PBGMR.G1); do TRC de 26-06-2013 (processo n.º 40/11.4JAAVR-K.C1); do TRC de 06-03-2013 (processo n.º 52/12.0GBNLS-F.C1); e do TRE de 21-06-2016 (211/13.9GBASL-N.E1), 14-04-2016 (processo n.º 23/13.0GBSTR-B.E1) e 19-01-2016 (processo n.º 276/15.9JALRA-A.E1), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[3] Cf. o acórdão do TRE de 03-02-2015 (processo n.º 321/14.5GDLLE-A.E1), disponível em http://www.dgsi.pt.
[4] Princípio elementar e básico de direito adjetivo é o de que, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa – n.º 1 do art. 666.º do CPC, aqui aplicável ex vi art. 4.º do CPP.