CONTRA-ORDENAÇÃO
PROVA TESTEMUNHAL
DECISÃO POR DESPACHO
Sumário

Se em processo de contra-ordenação, o arguido que impugna judicialmente a decisão da autoridade administrativa aceita que se decida a causa por “simples despacho”, deve entender-se que prescinde da audição das testemunhas que arrolou, conformando-se com a matéria de facto considerada provada na decisão administrativa.

Texto Integral

Acordam, após audiência, na 1.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto


I.- RELATÓRIO.

1. No Processo n.º …../06.9TBPRG do ….º Juízo do Tribunal de Peso da Régua, em que são:

Recorrente/Arguido: B…………

Recorrido: Ministério Público.

por sentença de 2006/Jun./30, a fls. 57-59, foi julgado improcedente o recurso interposto pelo arguido, da decisão da DGV, Delegação de Vila Real, que tinha condenado o mesmo pela prática de uma contra-ordenação ao art. 45.º, n.º 1, Código estrada, numa coima de € 120 e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias.
2.- O arguido inconformado com esta decisão, interpôs recurso da mesma em 2006/Jul./26, constante a fls. 78-87, pugnando pela revogação dessa sentença, de modo a que seja ordenado o prosseguimento do processo com marcação da audiência de julgamento, apresentando, em suma, as seguintes conclusões:
1.ª) Através do presente recurso o recorrente pretende manifestar o seu inconformismo face à decisão proferida pela Mm.ª Juiz do Tribunal “a quo”, que, em consequência da prática, por aquele, de uma contra-ordenação, p. p. pelo art. 45.º, n.º 1 do Código da Estrada, decidiu manter a totalidade da condenação administrativamente aplicada;
2.ª) Entendeu a Mm.ª Juiz “a quo” proferir a decisão dos autos sem que fosse previamente julgada em sede de audiência de julgamento a versão circunstanciada dos factos constantes do auto de contra-ordenação, em face da tomada deposição do arguido em sede de recurso de impugnação judicial.
3.ª) Na sua motivação de recurso de impugnação judicial o recorrente descreve os factos que quanto a si lhe permitiriam infirmar a acusação de que foi alvo, apresentando versão diversa dos factos, indicando para tanto os meios probatórios reputados de adequados, designadamente documentando, através de reproduções fotográficas, o local e indicando também prova testemunhal.
4.ª) A acusação de que o recorrente teria realizado uma manobra de inversão do sentido de marcha em local de grande intensidade de trânsito, este responde ter realizado uma manobra de mudança de direcção à esquerda, de acordo com a trajectória descrita no mapa e fotografias juntas sob docs. 1 a 3.
5.ª) Apesar das duas versões apresentadas, a da acusação e a da defesa do arguido/recorrente, a Mm.ª Juiz “a quo” entendeu não existir matéria controvertida. Antes, decidiu do mérito, apesar do conjunto de factos invocados e da prova indicada, a produzir em audiência de julgamento, optou por não ouvir, nem o arguido, nem quaisquer outras pessoas que conhecessem bem a factualidade “sub iudice”.
6.ª) De acordo com o texto do art. 64.°, n.° 2 do D.L. 433/82, de 27 de Outubro, “O juiz decide por despacho, quando não considere necessária a audiência de julgamento e o arguido e o Ministério público não se oponham”.
7.ª) A teleologia subjacente a esta norma é a de não fazer depender da vontade discricionária da pessoa do juiz à realização ou não de uma audiência de julgamento, aplicando-se sim quando esteja em causa apenas uma questão de interpretação e aplicação do Direito ao caso concreto, que não implique qualquer produção de prova.
8.ª) Compulsado o teor da motivação de recurso de impugnação judicial apresentado pelo arguido/recorrente, verificamos que este invoca factos e apresenta meios probatórios susceptíveis de infirmar a presunção prevista no art. 170. °, n.º 3 do Código da Estrada, abalando o auto de notícia.
9.ª) A Mm.ª Juiz “a quo” negou ao arguido a possibilidade deste provar a sua versão dos factos, o que bastaria para afastar a sua punição e consequente condenação, por inexistência de qualquer facto ilícito.
10.ª) Aquele art. 64.°, n.º 2 impõe ainda que, cumulativamente com o pressuposto já enunciado, não se verifique qualquer oposição por parte dos demais sujeitos processuais a que a decisão a proferir seja dada por simples despacho.
11.ª) A posição processual assumida pelo arguido/recorrente foi sempre no sentido de querer ser submetido a julgamento, porquanto na sua motivação “...refuta redondamente a imputação que lhe é feita pela simples mas decisiva razão que não cometeu qualquer infracção ao Código da Estrada”, apresentando versão diversa dos factos e, ainda, pelo facto de aí ter indicado como meios probatórios 3 documentos, tomada de declarações ao arguido e prova testemunhal a produzir em audiência.
12.ª) Não se revela, assim, licito interpretar ò silêncio por parte do arguido como uma não oposição, pois se essa fosse a consequência da não resposta, esta deveria também resultar expressa do texto da própria notificação, de acordo com o direito à informação e o direito de defesa do arguido
13.ª) Do seu silêncio nunca poderão resultar consequências negativas ou ser retiradas ilações desfavoráveis para o arguido, como resulta do previsto nos arts. 343, n.º 1 e 345. °, do C.P. Penal.
14.ª) O despacho recorrido, proferido sem cumprimento prévio da audição das partes e preterindo diligência essencial para a descoberta - da verdade material - a audiência de julgamento -, enferma de nulidade, nos termos do disposto no art. 379.°, n. 1, al. c), aplicável ex vi art. 32.° do DL 433/82 de 27 de Outubro, uma vez que conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, ao dar como provados factos ainda controvertidos, não submetidos a produção de prova em audiência de julgamento, condenando o recorrente.
15.ª) Ao não decidir assim violou a douta decisão em crise, entre outras, as disposições conjugadas dos artigos 32.°, 41. 64.° do DL. 433/82 de 27 de Outubro, 170.°, n.º 3 do Código da Estrada, 343.°, 345.° e 379.° do C.P. Penal e art. 32.°, n.°s 1, 5 e 8 da C.R.P.
3.- O Ministério Público respondeu em 2006/Set./27, conforme resulta de fls. 95-100, pugnando pela improcedência deste recurso, porquanto:
1.ª) o recorrente manifestou nos autos não se opor a que a decisão fosse proferida por simples despacho, pelo que renunciou à audição das testemunhas que indicou aos factos constantes do auto de notícia;
2.ª) as testemunhas indicadas já haviam sido ouvidas nos autos perante a autoridade administrativa, pelo que não se verifica a violação do princípio do contraditório ou do direito de defesa;
3.ª) o auto de noticia faz fé e, por isso, face a essa renúncia é assente a matéria de facto que resulta do auto de contra-ordenação levantado ao recorrente, a qual se subsume à infracção p. e p. pelo art. 45.º, do Código da Estrada (Dec.-Lei n.º 44/2005, de 23/Fev.);
4.ª) Essa contra-ordenação é classifi8cada como grave, nos termos da al. f) do art. 145.º do Código da Estrada (Dec.-Lei n.º 44/2005, de 23/Fev.);
5.ª) Pode ser suspensa a execução da sanção acessória aplicada a contra-ordenações graves no caso de se verificarem os pressupostos de que a lei penal geral faz depender a suspensão da execução das penas, desde que se encontre paga a coima, nas condições previstas nos números seguintes;
6.ª) O recorrente não procedeu ao pagamento voluntário da coima, pelo que não se verifica um dos pressupostos dessa suspensão, não sendo por isso a mesma possível;
4.- Nesta instância o ilustre PGA emitiu parecer em 2006/Out./18, existente a fls. 106, concordando com a resposta anterior e concluindo pela improcedência do recurso.
5.- Colheram-se os vistos legais, nada obstando que se conheça do mérito do presente recurso.

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II.- FUNDAMENTAÇÃO.
1.- CIRCUNSTÂNCIAS A CONSIDERAR.
1.º) Em 2006/Abr./19 e nos termos referenciados a fls. 38-42, o arguido impugnou judicialmente a decisão da DGV, Delegação de Vila Real, tendo arrolado testemunhas e apresentado documentos.
2.º) Em 2006/Mai./05 e nos termos melhor indicados a fls. 50, foi proferido despacho judicial no qual se determinou a “notificação do arguido, bem como do Ministério Público para, no prazo de 10 dias virem aos autos declarar se se opõe a que a decisão seja proferida por simples despacho, nos termos do disposto no n.º 1, in fine e n.º 2 do art. 64.º do supra citado Dec.-Lei”.
3.º) O arguido por requerimento, assinado pelo seu advogado, de fls. 54, datado de 2006/Mai./22, veio “declarar que não se opõe a que a decisão seja proferida por simples despacho”.
4.º) Em 2006/Jun./30, foi proferida a decisão impugnada neste recurso, sem que tenha sido precedida de audiência
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2.- DO DIREITO.
A questão suscitada em recurso prende-se em saber se a decisão judicial aqui impugnada, padece de nulidade e essencialmente porque foi preterida a audição de testemunhas, conhecendo-se ainda questões de que não se podia tomar conhecimento, ao se dar como provados factos ainda controvertidos, não submetidos a produção de prova em audiência de julgamento.
Estabelece o citado art. 64.º, n.º 2 do RGCOC, que “O juiz decide por despacho, quando não considere necessária a audiência de julgamento e o arguido e o Ministério público não se oponham”.
A propósito decidiu-se no Ac. R. L. de 1992/Mar./04 [CJ II/164], que:
“I.- No processo de recurso de aplicação de coima, para o tribunal de comarca, o juiz só pode decidir por despacho quando, para além de considerar desnecessária a audiência de julgamento, se não verifique oposição do Ministério Público e do arguido.
II.- Traduz oposição inequívoca do arguido a essa forma de apreciação da causa a indicação, no requerimento de recurso, de uma ou mais testemunhas para serem ouvidas”.
Diga-se, para se perceber minimamente o contexto da situação aqui em apreço, que tinha sido proferido sentença, sem realização de audiência, a requerimento do Ministério Público e sem se ter ouvido o arguido.
Nestes casos tem se entendido que tal decisão judicial enfermará de nulidade insanável prevista no art. 119.º, al. c) ou então de nulidade sanável da previsão do art. 120.º, n.º 2, al. d), ambos do Código Processo Penal, e, consequentemente, será inválida, nos termos do art. 122.º, n.º 1 do mesmo Código – neste duplo sentido o Ac. R. E 1997/Mai./20 [CJ III/283]; Ac. R. P. de 2006/Out./25, divulgado em www.dgsi.pt, propendo no entanto para aquele primeiro entendimento; no último sentido os Ac. R. L. de 1990/Mar./13 e 1997/Mai./13, [BMJ 395/650 e 467/620], o Ac. R. P. de 1996/Nov./20 [CJ V/234]; Ac. R. P. de 2006/Fev./22, divulgado em www.dgsi.pt.
Já outros preferem considerar que o tribunal “Ao conhecer de questões que lhe estão vedadas, a decisão recorrida incorre no vício dói art. 379.º, n.º 1, al. c) do C.P.Penal (ex vi art. 41.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 433/82), sendo por isso nula”, como se afirmou no Ac. R. C. de 2001/Mar./14, divulgado em www.trc.pt .
Será no entanto de constatar, que o caso aqui em apreço não coincide com nenhuma das situações versadas nos citados arestos, porquanto nos mesmos o arguido não tinha sido ouvido para efeitos do disposto no citado art. 64.º, n.º 2 e aqui foi.
Relembrando o que caracteriza a presente situação temos de considerar que o arguido, muito embora no requerimento da sua impugnação judicial tenha arrolado testemunhas, veio posteriormente e expressamente notificado para o efeito, veio “declarar que não se opõe a que a decisão seja proferida por simples despacho”.
Tal questão já mereceu tratamento nesta Relação, tendo sido a propósito decidido que “Se em processo de contra-ordenação, o arguido que impugna judicialmente a decisão administrativa aceita que se decida a causa por despacho, deve entender-se que prescindiu da audição das testemunhas que arrolou, conformando-se com a matéria de facto considerada provada na decisão administrativa” – Ac. de 2003/Fev./19 e também 2001/Out./17, ambos divulgados em www.trp.pt .
Afigura-se-nos que a generalidade deste entendimento é aquela que deve subsistir e pelas razões que sumariamente enunciaremos de seguida
Fazendo apelo ao disposto no art. 236.º do Código Civil, podemos certamente afirmar que qualquer declaração vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contra com ele.
Perante isto não temos quaisquer dúvidas em afirmar que mediante a última declaração constante no requerimento de 2006/Mai./22 [3.º], o arguido quis prescindir da audição das testemunhas por si arroladas, não podendo ser invocado qualquer desconhecimento da lei ou do sentido do despacho de que tinha sido notificado, porquanto não só o mesmo é claro, como aquele requerimento é subscrito pelo seu advogado, portanto, um profissional qualificado para apreciar tais questões.
Por outro lado, é sabido que mesmo no âmbito do processo de contra-ordenações e por injunção constitucional, decorrente do art. 32.º, n.º 10 C. Rep., devem ser “assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa”.
No entanto tem se entendido que esse direito de audiência e de defesa, no sentido do modo como o mesmo estabelece a sua estratégia ou utiliza os expedientes legais que lhe estão facultados, encontra-se na sua livre disponibilidade, recordando-se aqui que, mesmo no âmbito do processo penal, é permitido a realização do debate instrutório ou mesmo a audiência de julgamento, mediante certos pressupostos, na ausência do arguido – cfr. art. 300.º, 3, 332.º, 333.º, n.º 1 e 2, 334.º, n.º 1 e 2, do Código Processo Penal.
Por sua vez, no âmbito do processo de contra-ordenações e no caso previsto no citado art. 64.º, n.º 2 é permitido proferir-se decisão judicial que aprecie a impugnação da decisão administrativa, sem que para tal se realize a correspondente audiência, estando tal faculdade na livre disponibilidade do próprio arguido, entre outros.
Também neste processo, devemos fazer apelo à exigência de um processo equitativo, tal como resulta do art. 20.º, n.º 4 da C. Rep. e o disposto no art. 6.º, n.º 1 da CEDH, que impõe, entre outras coisas, um comportamento de lealdade processual por parte de todos os sujeitos processuais, incluindo o arguido.
Essa lealdade processual deve, na prática, ser sustentada por procedimentos de total “fair play”, afastando-se assim de condutas sinuosas ou contraditórias – veja-se a propósito “Do princípio da objectividade ao princípio da lealdade do comportamento do Ministério Público no processo penal”, Figueiredo Dias, na RLJ 128/344 e ss.
Aqui chegados, podemos concluir que muito embora o arguido tenha no seu requerimento de impugnação judicial indicado prova testemunhal, donde se pode presumir a sua pretensão de realização da audiência, o mesmo pode posteriormente prescindir desse direito, como é o caso em que declara que não se opõe a que a decisão judicial seja proferida mediante despacho judicial, quando foi expressamente notificado para efeitos do art. 64.º, n.º 2 do RGCOC.
Foi isso o que aqui sucedeu com o arguido, como resulta do indicado sob os números 2.º) e 3.º), pelo que o presente recurso é desprovido de qualquer sustentabilidade.
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III.- DECISÃO.
Nos termos e fundamentos expostos, decide-se julgar improcedente o presente recurso interposto pelo arguido B…………. e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Condena-se o recorrente na taxa de justiça de (5) UC e nas correspondentes custas – cfr. art. 513.º, 514.º, do C. P. Penal e art. 87.º, n.º 1, al. b), do CC Judiciais.

Notifique.

Porto, 24 de Janeiro de 2007
Joaquim Arménio Correia Gomes
Manuel Jorge França Moreira
Manuel Joaquim Braz
José Manuel Baião Papão