I - A representação voluntária é dominada pela procuração, a qual, embora seja um acto jurídico unilateral, pressupõe uma relação entre o representante e o representado a estabelecer os termos em que os poderes devem ser exercidos.
II - A regra da anulabilidade do negócio celebrado pelo representante consigo mesmo, consagrada no art. 261.º do CC, é excepcionada quando o representado tenha especificamente consentido na sua celebração ou quando o negócio exclua por sua natureza a possibilidade de um conflito de interesses.
III - O art. 265.º, n.º 3, do CC considera irrevogáveis as procurações que tenham sido outorgadas no interesse comum do procurador e do dominus, já o podendo ser com o acordo de ambos.
IV - A ineficácia do negócio representativo, para o representado, decorrente do abuso de representação, prevista no art. 269.º do CC, pressupõe a verificação de uma actividade abusiva do representante e o conhecimento do abuso ou dever de conhecer pelo representado.
V - Não há abuso de representação quando o representado não provou, como lhe competia, que o representante agiu com intenção de o prejudicar ou que actuou contra a vontade daquele, na celebração de um contrato de compra e venda, fazendo uso de uma procuração outorgada, no seu interesse e irrevogável, para celebrar esse negócio, inclusive consigo mesmo, pelo preço e condições que entendesse, e quando não se verifica que tenha conscientemente excedido os seus poderes.
AA instaurou acção declarativa, com processo comum, contra BB, ambos melhor identificados nos autos, pedindo:
a) a declaração de nulidade da procuração irrevogável e da escritura de compra e venda de um imóvel, outorgada em 27 de Maio de 2011, com base na mesma, e consequente restituição ao autor do imóvel, com fundamento na simulação na outorga da procuração;
subsidiariamente:
b) a declaração de ineficácia em relação ao autor do negócio de compra e venda de um imóvel, com fundamento em abuso de poderes de representação, com o consequente cancelamento do registo de aquisição e a restituição do imóvel ao autor;
ainda subsidiariamente:
c) a condenação do réu na restituição ao autor do imóvel em causa ou, em alternativa, no pagamento da quantia de 200.000,00 € ou no valor que se vier a apurar com fundamento em enriquecimento sem causa, acrescida dos juros pela mora à taxa legal de 4 % ao ano, desde a citação até integral pagamento.
Para tanto, alegou, em síntese, que:
Por escritura pública de 27 de Maio de 2011, o réu, outorgando por si e na qualidade de procurador do autor, vendeu a si próprio o prédio misto, sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 303/... e inscrito na matriz predial urbana sob o actual artigo 464 da união das freguesias de ... e ... e na matriz cadastral sob o artigo 48 da secção I, o qual havia sido adquirido na totalidade pelo autor, mediante escritura de permuta outorgada no dia 5 de Março de 2001, data em que este outorgou a favor do réu uma procuração pela qual lhe conferiu poderes para vender ou prometer vender, pelo preço e condições que entendesse, inclusive a si próprio, o identificado prédio.
A referida procuração era irrevogável e foi outorgada com o intuito comum a ambos de subverter as regras da sucessão por forma a evitar que, em caso de morte do autor, tal imóvel fosse herdado pela sua mãe.
Não quis vender aquele prédio, nem foi intenção do réu comprá-lo, mas tão só apropriar-se dele, sem nada pagar, declarando um preço inferior ao real e dando quitação, locupletando-se à custa e contra a vontade do autor.
O réu contestou, por impugnação, pugnando pela improcedência da acção.
Na audiência prévia realizada, foi proferido despacho saneador tabelar, foi fixado o objecto do litígio e foram enunciados os temas da prova.
Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença a julgar a acção improcedente, absolvendo o réu dos pedidos deduzidos.
Inconformado, o autor interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão de 8/11/2018, deliberou alterar a matéria de facto (nos moldes nele expostos – aditando aos factos provados o n.º 15) e confirmar, no mais, a sentença recorrida.
Ainda irresignado, o autor interpôs recurso de revista excepcional e apresentou a respectiva motivação, alegando como questões de relevância jurídica o “abuso de representação” e o “negócio consigo mesmo” e invocando a contradição de julgados e o disposto no art.º 672.º, n.º 1, als. a) e c), do CPC.
A Formação, por acórdão de 21/3/2019, considerando verificada a dupla conforme por a alteração da matéria de facto ser apenas relativamente a um ponto da matéria de facto, admitiu a revista excepcional, com fundamento na relevância jurídica da questão suscitada a respeito do abuso de representação na compra e venda realizada pelo réu consigo mesmo ao abrigo de uma procuração irrevogável (cfr. fls. 628 a 631).
O recorrente apresentou as suas alegações com conclusões que aqui se transcrevem na parte que se afiguram úteis para a decisão do recurso, apesar de extensas (expurgadas, nomeadamente, do que se refere ao “histórico” do processo, por já constar do relatório, a transcrições iniciais de normas jurídicas por não serem próprias de conclusões e aos pressupostos da admissibilidade da revista excepcional, por já ter sido admitida pela formação):
«… aa) Feito o necessário enquadramento jurídico da factualidade provada, impõe-se concluir que o Acórdão cuja Revista ora se pretende, viola Lei substantiva, por via de erros sucessivos na interpretação da mesma.
bb) Assim, a grande questão a apreciar é a da utilização da procuração pelo recorrido, em termos lesivos dos direitos do A./recorrente, em ordem a aferir do invocado Abuso de representação.
cc) Desde logo se diga que foram violados os artigos 268.º e 269.º do Código Civil.
dd) Este ultimo determina que – “O disposto no artigo anterior é aplicável ao caso de o representante ter abusado dos seus poderes, se a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso.”.
ee) Como refere o ACÓRDÃO FUNDAMENTO, que se passa a citar: “O negócio consigo mesmo, também apodado na doutrina portuguesa de auto-contrato, tem, na sua base, a emissão de uma procuração, o que coloca a questão dos poderes representativos, convocando o normativo do art. 258º do Código Civil…. Se a outorga de poderes representativos implica uma relação de fiducia do representado no representante, confiando aquele que os seus interesses são eficazmente defendidos, mais exigente deve ser a actuação do representante a quem, além da representação, são conferidos poderes para negociar consigo mesmo, sendo aqui claro que, a um tempo, representa o emitente da procuração e ele mesmo – clara situação de auto-contrato… O representante deve agir com imparcialidade, probidade, moralidade e fiducia, zelando os poderes que lhe foram conferidos pelo representado… O conflito de interesses pode decorrer de excesso ou abuso de representação… Não pode o representante, mesmo no caso de assentimento do representado, agir de modo egoísta, acautelando apenas os seus próprios interesses, sob pena de anulabilidade… Compete-lhe a defesa dos interesses do outro contraente que representa.”.
ff) No caso dos autos, na procuração em causa consta que o procurador poderá celebrar o contrato de compra e venda imóvel, negociando consigo mesmo, fazendo o negócio “pelo preço, condições e cláusulas que achar por convenientes”.
gg) Voltando ao Acórdão fundamento que se tem vindo a citar: “…Na execução do contrato, autorizado pela procuração, não estava o procurador dispensado de actuar segundo as regras da boa-fé – art. 762º, nº1, do Código Civil.
hh) Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado” – vol. I, pág. 249: “Há abuso dos poderes de representação, quando o representante, actuando embora dentro dos limites formais dos poderes que lhe foram outorgados, utiliza conscientemente esses poderes em sentido contrário ao seu fim ou às indicações do representado”.
ii) No caso em apreço e como à evidência está demonstrado, foram descurados os interesses do A./recorrente, emitente da procuração.
jj) Já se viu que está provado que: “O réu nunca pagou o preço declarado de 28.700,00 € na escritura de venda”.
kk) O R. vendeu o imóvel a si próprio, declarando como preço a quantia de 28.700,00 euros, que sabia ser de montante muito inferior ao real valor do imóvel, que nunca pagou (facto provado).
ll) Assim, como resultou da prova pericial, o real valor do imóvel era de 164.100,00 € - isto é, quase seis vezes superior ao preço declarado na escritura.
mm) Está pois provado o não pagamento do preço declarado na escritura e ainda o facto deste ser muito inferior ao valor real do imóvel.
nn) Voltando ao acórdão fundamento em causa: “É certo que o não pagamento do preço apenas significaria, se o negócio fosse eficaz em relação à representada, mora dessa obrigação inerente ao contrato oneroso de compra e venda – art. 874º e 879º c) do Código Civil – não deixando o contrato de ter alcançado a perfeição, mas na perspectiva de ajuizar a conduta da procuradora, esse é um facto revelador da actuação intencional lesiva do direito da representada, que implicava a contrapartida do lesto pagamento do preço da alienação, como é da boa ética negocial, preço esse que, inquestionavelmente, representasse o valor venal da coisa.
oo) Tal como no acórdão fundamento se afirma, a actuação do recorrido é passível de ser considerada abusiva do direito – art. 334º do Código Civil – por evidenciar de forma evidente uma actuação que a boa fé negocial condena, tendo-se provado que prejudicou o A., a quem nem sequer pagou o preço que ele mesmo decidiu.
pp) O ACÓRDÃO FUNDAMENTO, para além de justificar a necessidade da Revista excepcional, contém a resposta às questões jurídicas levantadas pela situação sub judice, designadamente no seu sumário que aqui se dá por reproduzido.
qq) O procurador ora recorrido exorbitou os poderes representativos, vendendo a si próprio por 27.800 € que não pagou, um prédio que valia 164.100 €, fazendo abuso dos poderes de representação, pelo que, o negócio é ineficaz em relação ao representado, nos termos dos arts. 268º e 269º do Código Civil, sendo certo que não houve ratificação.
rr) O Tribunal da primeira instância tinha resolvido a questão do abuso de poderes de representação suscitada pelo recorrente, de forma simplista, afirmando que “… o negócio jurídico realizado a coberto da procuração está previsto na mesma, logo inexiste qualquer abuso de poderes de representação.”.
ss) Isto é, na tese do Tribunal de primeira instância, como formalmente o R. detinha os poderes, sempre os poderia exercer sem que o fizesse abusivamente.
tt) Isto, na prática, é o mesmo que negar o instituto - é confundir a falta de poderes com o abuso dos mesmos.
uu) Não se nega que formalmente o R. detinha os poderes conferidos pela procuração - a grande questão a apreciar era, se fez dos mesmos um uso lícito, e se agiu exorbitando os poderes que formalmente lhe haviam sido conferidos.
vv) A isso, o Tribunal recorrido, como se vê, não respondeu – e, impunha-se-lhe que o fizesse.
ww) A situação de abuso de representação, a que alude o artº 269.º do CC, verifica-se quando o representante, embora dentro dos limites formais dos poderes que lhe foram outorgados, utiliza esses poderes em sentido contrário ao seu fim ou às indicações do representado.
xx) O que está em causa, no abuso de representação, é um afastamento objectivo às directrizes impostas pelo representado e uma actuação que não serve notoriamente os seus interesses: em suma, um mau negócio, desde que isso resulte de um desvio claro do procurador, às instruções que lhe foram fornecidas ou aos fins genéricos queridos pelo representado com o negócio representativo.
yy) O Tribunal de primeira instância não considerou nem deu relevo aos especiais deveres de cuidado que devem nortear o procurador que celebra negócio consigo mesmo, e, por sua vez, o acórdão da Relação de Évora ora recorrido, resolveu a questão de forma não menos simplista, negando o ABUSO DE REPRESENTAÇÃO com um fundamento, que, além de simplista é errado e assenta em pressupostos também eles errados, a saber:
“Não se conhece qual era o valor do prédio na data da outorga da escritura de compra e venda; após a aquisição do imóvel, existiram obras de restauro, beneficiação, conservação e manutenção do imóvel (cfr. n.º 11 dos factos provados), cujas datas não constam provadas.
Logo, não existe fundamento fáctico para afirmar que, à data da outorga da escritura, o preço estava clamorosamente desfasado dos valores reais de mercado, colocando em causa o interesse do representado de forma ostensiva.”.
zz) Como se sabe, a escritura foi celebrada em Maio de 2011, e, da avaliação realizada em Abril de 2017 resultou que o valor de mercado do imóvel era de 164.100,00 €.
aaa) Conforme consta de fls. 9 do relatório pericial: “A moradia encontra-se em razoável estado de conservação. Segundo informações do R. tem aproximadamente 80/90 anos, tendo sido realizadas obras de conservação as últimas em 2001/2002”.
bbb) Por sua vez, o recorrido declarou como preço de venda o montante de 28.700,00 € - preço este que sabemos não pagou ao seu representado.
ccc) Posto isto é evidente que as obras de restauro, beneficiação, conservação e manutenção do imóvel, feitas após a aquisição do mesmo por A. e R. em 1992 (ponto 2.1.1. dos factos provados), são irrelevantes para a decisão do caso em apreço, pois que, foram realizadas muito antes da escritura de aquisição pelo recorrido em 2011.
ddd) Assim, está confirmada e é manifesta a enorme discrepância entre o valor real do imóvel apurado em 2017 (164.100 €) e o valor que o recorrido lhe atribuiu para efeitos de escritura (28.700 €) e 2011 – isto sem que entretanto tenha ocorrido qualquer beneficiação (como o recorrido expressamente declarou).
eee) Verifica-se pois uma divergência entre o valor declarado e o valor real do imóvel superior a 130.000,00 € - ou seja, o valor real é 5,7 vezes superior ao valor declarado.
fff) Cai assim por terra o único argumento em que Acórdão fundou a sua decisão de não julgar verificada a actuação em abuso de representação.
ggg) Argumento que, diga-se, sempre seria manifestamente insuficiente. – Como o acórdão fundamento, na posse de menores dados sobre o valor do bem, bem ilustra.
hhh) Para além de insuficiente, este argumento padece de erro – pois que, não só ignora a prova pericial constante dos autos, como de forma frontal a contradiz.
iii) Assim, o que se verificou no caso em apreço e que cabia ao tribunal recorrido sancionar, foi que o R. exorbitou os poderes representativos, agindo com o intuito de celebrar consigo próprio um negócio, que apenas lhe trazia vantagens e que sabia não ser desejado pelo A., ao qual apenas acarretava prejuízos.
jjj) Posto isto, verifica-se que o R. utilizou a referida procuração no seu exclusivo interesse, e, assim, prejudicando os interesses do representado e violando a confiança que este nele depositava.
kkk) Tanto mais que, já tinham decorrido dez anos desde a permuta e outorga da procuração, sem que esta tivesse sido utilizada e sem que tivesse ocorrido o facto que pressupunha a sua utilização.
lll) Pelo que, o negócio de “Venda” celebrado em 27 de Maio de 2011, pela escritura junta como doc. 1, por ter sido celebrado com abuso dos poderes de representação, sempre será ineficaz em relação ao pretenso representado e ora A..
mmm) Por todo o exposto, deverá declarar-se ineficaz em relação ao A., o negócio de “Venda” outorgado no dia 27 de Maio de 2011, no Cartório de ..., na cidade de ..., a fls. 132 e seguintes do livro 211-A, relativamente ao prédio misto, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 303/... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo urbano 542º (actual artigo 464.º urbano da união das freguesias de ... e ...) e na matriz cadastral sob o artigo 48º da secção I, mais se determinando o cancelamento do registo de aquisição (ap. 3560 de 2011/05/30 da Conservatória do Registo Predial de ...) de tal prédio a favor do R..
nnn) O acórdão sob recurso viola as seguintes normas jurídicas de natureza substantiva: artigos 261.º, 269º, nº 1, art.º 268.º, 258º; 334.º e 762º, nº 1 todos do Código Civil.
ooo) Pelo que, se impõe a REVISTA do Acórdão sob recurso, tendo por consequência a sua REVOGAÇÃO INTEGRAL, julgando-se procedente o pedido de ineficácia em relação do recorrente da venda feita pelo recorrido a si próprio, do imóvel supra melhor identificado.
Nestes termos e nos mais de Direito, admitindo-se a REVISTA como excepcional e concedendo-se a mesma, revogando-se o acórdão recorrido e condenando-se o R./recorrido como peticionado, farão V. Exas., Senhores Juízes Conselheiros, a costumada JUSTIÇA.»
O réu contra-alegou pugnando pela rejeição da revista excepcional e, caso ela não ocorra (como não ocorreu), pela sua improcedência, com a consequente confirmação do acórdão recorrido.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.
Face às conclusões do recurso de revista que, como é sabido, nos termos dos art.ºs. 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, todos do CPC, delimitam o seu objecto e atento o teor do acórdão da Formação que admitiu a revista excepcional, a única questão que importa dirimir consiste em saber se o negócio de compra e venda celebrado pelo réu, consigo mesmo, com base na procuração que lhe foi outorgada pelo autor, foi feito com abuso de representação, sendo ineficaz em relação ao recorrente.
Com efeito, decorre das conclusões do recurso de revista aa) a ooo) que a única questão subsistente em que se baseia o recorrente para a pretendida ineficácia do negócio é a do abuso de representação, sendo certo que, igualmente e em todo o caso, a delimitação feita pelo acórdão da Formação se circunscreve a esta questão, pelo que apenas a ela se deve ater o objecto da revista.
É este o sentido que vem sustentando o Supremo Tribunal de Justiça, como se pode ver no recente acórdão de 11/4/2019, proferido no processo n.º 622/08.1TVPRT.P2.S1[3], onde se entendeu que, nos casos de admissão excepcional da revista, “(…) os poderes cognitivos da conferência julgadora circunscrevem-se às questões suscitadas no recurso relativamente às quais foi, em antecedente acórdão da formação de apreciação preliminar, decidido que se verificavam um ou alguns dos pressupostos específicos que, para aquele efeito, são enunciados no n.º 1 do artigo 672.º do Cód. Proc. Civil. É que, se assim não fosse, afrontar-se-ia o cariz restritivo da admissibilidade da revista subjacente à instituição da dupla conforme e contornar-se-ia o respectivo regime legal. Consequentemente, o objecto do recurso, assim delimitado, não abarca quaisquer outras questões que, cumulativa e paralelamente, hajam sido enunciadas na revista e contornar-se-ia o respectivo regime legal. (…)”.
Como tal, encontrando-se prejudicada a possibilidade de apreciação das demais questões analisadas pelas instâncias – nulidade da procuração, por simulação, e do contrato de compra e venda e enriquecimento sem causa – apenas importa apreciar da existência de uma situação de ineficácia do negócio por abuso de representação.
II. Fundamentação
1. De facto
A matéria de facto provada a considerar, após a alteração parcial introduzida pela Relação é a seguinte:
1. Foi registada, em 1992, a aquisição, por Autor e Réu, em comum e em partes iguais, do prédio misto composto de solo subjacente de cultura arvense, olival, figueiras e casa de rés-do-chão, dependências, pátio, quintal e alpendorada, sito em ... descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 303/... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 542 (atual artigo 464 da União das Freguesias de ... e ...) e na matriz rústica sob ao artigo 48 da Secção I.
2. Em 05 de Março de 2001, no Primeiro Cartório Notarial de ..., Autor e Réu, celebraram escritura pública de permuta, mediante a qual o Réu BB deu ao Autor AA, metade do prédio identificado no ponto anterior, recebendo em troca metade do prédio urbano, composto de casa de rés-do-chão para habitação, dependência e logradouro, sita em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 297/..., inscrito na matriz sob o artigo 11 da referida freguesia, da qual Autor e Réu eram proprietários em comum e em partes iguais.
3. No mesmo dia – 05 de Março de 2001 – e no mesmo Cartório Notarial, o Autor AA outorgou a procuração cuja cópia certificada se encontra a fls. 29 e 30, mediante a qual constitui seu procurador o Réu BB, a quem, com a faculdade substabelecer conferiu poderes para “vender, ou prometer vender, pelo preço e condições que entender, podendo ele próprio ser o comprador, fazendo negócio consigo mesmo, o prédio misto composto de olival, solo subjacente de cultura arvense, figueiras e casa de rés-do-chão para habitação, dependência anexas e logradouro, denominado “...” “...” ou “ ...”, situado nos ..., inscrito na matriz sob o artigo rústico 48 da secção “I”, e sob o artigo urbano 542 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número trezentos e três da aludida freguesia, podendo ser mandatário o próprio comprador, pelo que o presente mandato é também conferido no próprio interesse daquele mandatário e nas referidas condições, podendo este celebrar consigo mesmo o contrato de compra e venda do referido prédio”.
4. Conferiu, ainda poderes para “...outorgar na respectiva escritura, receber o preço e dar quitação, podendo, ainda celebrar contrato-promessa de compra e venda, e assinar a respectiva escritura, requerer quaisquer actos de registo predial, provisórios ou definitivos, averbamentos e cancelamentos...”.
5. Da referida procuração consta ainda: “Esta procuração é conferida no interesse do mandatário, pelo que é irrevogável, nos termos do número três, do artigo duzentos e sessenta e cinco, e número dois do artigo mil (cento) e setenta, do Código Civil e os poderes nela conferidos não caducarão por morte, interdição ou inabilitação do mandante, nos termos do artigo mil cento e setenta e cinco, do Código Civil.”
6. (…) e “Que o mandante renuncia expressamente ao direito de exigir prestação de contas decorrente da presente procuração.”
7. Do texto da referida procuração consta ainda: “Fiz a leitura e explicação desta quanto ao seu conteúdo”.
8. Por escritura pública de “Venda” outorgada no dia 27 de Maio de 2011, no Cartório de ..., na cidade de ..., a fls. 132 e seguintes do livro 211- A, o ora Réu, outorgando por si na invocada qualidade de procurador do ora Autor, vendeu a si próprio o prédio misto composto de olival, solo subjacente de cultura arvense, figueiras e casa de rés-do-chão para habitação, dependência anexas e logradouro, denominado “...” “...” ou “ ...”, situado nos ..., inscrito na matriz sob o artigo rústico 48 da secção “I”, declarando que a venda foi efetuada pelo preço de €28.700,00, e que já recebera para o seu representado, pelo que dava quitação.
9. Até ao ano de 2001 e depois dele, Autor e Réu, continuaram a usufruir do imóvel, descrito no ponto anterior.
10. Até data não concretamente apurada o Autor manteve no imóvel alguma mobília.
11. Foi o Réu BB que suportou e suporta, desde a data de aquisição dos imóveis em 1990 e até aos dias de hoje, todas as despesas relacionadas com a aquisição (Esc. 2.500.000$00 + Esc. 38.450$00 despesas mediadora do imóvel descrito no ponto 2.1.1.) restauro, beneficiação, conservação, manutenção, equipamentos e alimentação de animais (ração, impostos, água, luz).
12. O Autor foi notificado em 26/11/2012 pelo Serviço de Finanças de Lisboa, pela para entregar a declaração de rendimento Modelo 3- Ano de 2011 e preencher o Anexo G, declarando a venda referida no ponto 2.1.8.
13. O Réu pagou à empresa “...” a quantia de €3.500,00, referente à primeira prestação do montante de €7.366,26 devido a esta sociedade pelo Autor AA.
14. Em Abril de 2017 o valor do mercado do imóvel identificado no ponto 1. era de € 164.100,00.
15 – O R nunca pagou / entregou ao Autor o preço de €28.700 declarado na escritura de venda [aditado pela Relação na sequência da impugnação da decisão de facto].
2. De direito
Sob a epígrafe “Negócio consigo mesmo”, o art.º 261.º do Código Civil dispõe:
“1. É anulável o negócio celebrado pelo representante consigo mesmo, seja em nome próprio, seja em representação de terceiro, a não ser que o representado tenha especificamente consentido na celebração, ou que o negócio exclua por sua natureza a possibilidade de conflito de interesses.
2. Considera-se celebrado pelo representante, para o efeito do número precedente, o negócio realizado por aquele em quem tiverem sido substabelecidos os poderes de representação”.
O negócio consigo mesmo, celebrado pelo representante quer em nome próprio quer em representação de terceiro, tem na sua base a emissão de uma procuração, o que coloca a questão dos poderes representativos, convocando a norma do art.º 258.º do Código Civil que estabelece:
“O negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último”.
Embora este normativo não forneça uma definição, ao dispor sobre os efeitos da representação, estabelece os requisitos necessários à sua verificação, que, segundo alguma doutrina, são três, a saber:
- actuação jurídica em nome de outrem;
- por conta dessa mesma pessoa;
- e com poderes representativos para o fazer[4].
Assim, podemos definir a representação como o exercício jurídico por uma pessoa (o representante), em nome e no interesse de outra (o representado), com imputação dos seus efeitos na esfera jurídica desse outrem.
Embora haja quem dispense a verificação do requisito da actuação no interesse do representado, por o representante poder actuar também em nome próprio, como resulta do n.º 3 do art.º 265.º do Código Civil[5], não deixa de ser absolutamente indispensável a verificação dos dois restantes requisitos, como reconhecem os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, ao escreverem: “Dois requisitos são indispensáveis para que a representação produza o seu efeito típico, que é a inserção directa, imediata, do acto na esfera jurídica do representado (dominus negotii): a) que o representante aja em nome do representado (contemplatio domini); b) que o acto realizado caiba dentro dos limites dos poderes conferidos ao representante. Não se verificando este último requisito, só a ratificação pode tornar o negócio eficaz em relação ao representado (art.º 268.º, n.º 1)”.
Explicando melhor aqueles requisitos, escreveu o Prof. Menezes Cordeiro:
“A actuação jurídica em nome de outrem – também dita nomine alieno ou havendo contemplatio domini – significa que o representante, para o ser, deve agir esclarecendo a contraparte e todos os demais interessados de que age nessa qualidade. …
O representante deve actuar por conta do representado… Aparentemente, este requisito tende a perder a sua autonomia, na representação. Havendo contemplatio domini, isto é, invocando o representante que está a agir em nome do representado, fica implícito que o faz por conta deste. Podemos, todavia, ir mais longe. Ninguém pode ad nutum agir por conta (à custa de outrem…
O representante deve, por fim, ter poderes para actuar eficazmente em nome do dominus, também dito principal ou representado: os poderes de representação. No domínio da representação voluntária, tais poderes provêm de um negócio a tanto dirigido: a procuração ou um negócio misto que, no seu seio, tenha elementos da procuração”[6].
A representação voluntária é, assim, dominada pela procuração, a qual tem um duplo sentido que logo emerge do art.º 262.º do Código Civil: traduz o acto pelo qual alguém confere a outrem poderes de representação e exprime o documento onde esse negócio tenha sido exarado.
Enquanto acto, é um negócio jurídico unilateral: “implica liberdade de celebração e de estipulação e surge perfeita apenas com uma declaração de vontade”.
Mas “a lei pressupõe que, sob a procuração, exista uma relação entre o representante e o representado, em cujos termos os poderes devam ser exercidos: veja-se a tal propósito, o artigo 265.º/1. Teoricamente, poderíamos assistir a uma atribuição puramente abstracta de poderes de representação; todavia, tal “procuração pura” não daria, ao procurador, qualquer título para se imiscuir nos negócios do representado.
A efectiva concretização dos poderes implicados por uma procuração pressupõe, pois, um negócio nos termos do qual eles sejam exercidos: o negócio-base.”
Normalmente, este negócio será um contrato de mandato, embora possam surgir outras situações que aqui não importa considerar.
E, muito embora sejam perfeitamente distintas as noções de representação e de mandato, ambas ficarão, aquando da celebração do negócio-base, “numa específica situação de união. De resto, a própria lei – artigos 1178.º e 1179.º - manda aplicar ao mandato regras próprias da procuração; as vicissitudes desta vêm bulir com o mandato. Podemos ir mais longe: a extensão da procuração, as suas vicissitudes, a natureza geral ou especial dos poderes que ela implique e o modo por que eles devam ser exercidos dependerão, também, do contrato-base”[7].
Da representação sem poderes ocupa-se o já referido art.º 268.º, cujo n.º 1 estabelece que“[O] negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado”.
E, como dele resulta claramente, pressupõe que o acto seja praticado em nome e por conta de outra pessoa sem que, para tanto, existam os necessários poderes de representação.
Por sua vez, o art.º 269.º reporta-se ao abuso de representação e preceitua que “[O] disposto no artigo anterior é aplicável ao caso de o representante ter abusado dos seus poderes, se a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso”.
Daqui resulta que são dois os pressupostos da cominação da ineficácia do negócio representativo, para o representado, prevista neste último preceito, a saber:
- uma actividade abusiva do representante;
- e o conhecimento do abuso ou dever de conhecer pela contraparte ou terceiro.
Sabe-se que o abuso de representação não ocorre apenas nas situações em que o representante excede, formalmente, os poderes que lhe foram conferidos.
Tem sido unanimemente entendido que também existe abuso dos poderes de representação quando o representante, embora actuando dentro dos limites formais dos poderes que lhe foram outorgados, utilize conscientemente esses poderes em sentido contrário ao seu fim ou às indicações do representado[8].
Como ensina o Prof. Menezes Cordeiro, “[E]m termos mais gerais, o abuso de representação vem a ser o exercício dos inerentes poderes em oposição com a relação subjacente: com o que dela resulta, de modo directo ou por violação dos deveres de lealdade que ela postula”[9].
Segundo Helena Mota, o que está em causa no abuso de representação é um afastamento objectivo às directrizes impostas pelo representado e uma actuação que não serve notoriamente os seus interesses: em suma, um mau negócio, desde que isso resulte de um desvio claro do procurador, ainda que não intencional ou para servir interesses ocultos, às instruções que lhe foram fornecidas, ou aos fins genéricos queridos pelo representado com o negócio representativo[10].
Ou, no dizer de Raul Guichard, Catarina Brandão Proença e Ana Teresa Ribeiro, dentro do abuso cabem não só as actuações do representante contrárias ao fim para o qual o poder foi conferido, onde se incluem os negócios anormais ou extravagantes, mas também «atuações contrárias a “instruções ou vinculações internas” (…), onde o procurador se conduz ao arrepio de instruções para o exercício do poder ou mesmo de restrições deste não integradas no conteúdo da procuração; e atuações “desleais” (…), quando o representante utiliza ou aproveita os seus poderes para alcançar interesses próprios ou alheios ou, mais em geral, de modo contrário à boa fé.
De uma forma mais genérica, pode dizer-se que o abuso de representação consiste numa actividade que (objectiva e efectivamente) pospõe, à luz da relação interna e do princípio da boa fé, o interesse do representado…»[11]
Para averiguar da finalidade da representação, especialmente nos casos em que a procuração é subscrita também no interesse do representante (ou só no interesse dele) haverá que atender, sobretudo, ao teor do negócio que desencadeou a emissão da procuração e concedeu poderes representativos, porquanto o representado, em situações dessas, perde, praticamente, o poder de instruir o representante ou de lhe dar indicações.
No caso da procuração no interesse comum, esta deverá ser outorgada tendo em consideração um interesse próprio do procurador na conclusão ou na execução do negócio que constitui a relação subjacente, tendo tal efeitos no regime da sua revogabilidade.
Tal interesse não pode ser um interesse que resulte pura e simplesmente de um estado psicológico, subjectivo do procurador. O interesse tem de resultar objectivamente da relação subjacente que deu lugar à outorga da procuração, constituindo tal condição para que, nos termos legais, a procuração possa ser considerada irrevogável.[12]
Assim, no art.º 265.º, n.º 3, do Código Civil, a lei considera irrevogáveis as procurações que tenham sido outorgadas no interesse comum do procurador e do dominus. Tendo a procuração sido outorgada no interesse de duas pessoas, só pode ser revogada com o acordo de ambas. Nenhum dos dois, procurador e dominus, tem por si legitimidade para revogar a procuração, pois não é no exclusivo interesse de qualquer deles.
A irrevogabilidade da procuração vigora independentemente de estipulação na procuração. Desde que exista um interesse relevante do procurador na procuração e que este interesse seja emergente da relação subjacente, a procuração é irrevogável nos termos do mencionado preceito. Não se trata, assim, de uma questão de poder ou não ser irrevogável, ou de poder ou não estipular a sua revogabilidade, o que releva é a verificação desse interesse relevante de ambos decorrente da relação subjacente[13].
Dito isto, vejamos o caso dos autos.
No presente caso, não subsistem dúvidas acerca da procuração em causa, ao abrigo da qual foi realizado o contrato de compra e venda impugnado, ter sido outorgada no interesse comum do procurador e do dominus, respectivamente, do autor e do réu, sendo, por conseguinte, e atenta a relação subjacente, irrevogável, nos termos do art.º 265.º, n.º 3, do Código Civil, conforme ficou, aliás, expressamente declarado no texto da procuração, ao fazer-se menção a que a procuração foi “conferida no interesse do mandatário”, “é irrevogável”e, inclusive, que não caducaria, sem que as partes em litígio nos autos o ponham em causa (cfr. factos provados n.ºs 3, 4 e 5).
Para além disso, ficou a constar da procuração que a mesma conferia poderes ao procurador para celebrar negócios consigo mesmo, porquanto aí declarou o autor conferir poderes ao réu para vender, ou prometer vender, pelo preço e condições que entendesse, o imóvel em causa nos autos, podendo ele próprio ser o comprador, fazendo negócio consigo mesmo (cfr. facto provado n.º 3).
A regra da anulabilidade do negócio celebrado pelo representante consigo mesmo consagrada no art.º 261.º do Código Civil, é excepcionada quando o representado tenha especificamente consentido na sua celebração ou quando o negócio exclua por sua natureza a possibilidade de um conflito de interesses.
Assim, apesar dos reconhecidos perigos do contrato consigo mesmo (contrato a semet ipso), traduzidos na tentação do representante em sacrificar os interesses do representado em benefício dos seus, admite a lei, no n.º 1 do mesmo art.º 261.º, duas excepções: a de haver consentimento do representado – consentimento que tem de especificar o negócio a realizar, pois só assim há a garantia de que o representado tem consciência dos riscos que corre; e a de o negócio excluir, por sua natureza, a possibilidade de conflito de interesses.[14]
A proibição do negócio consigo mesmo consagrada nesta norma pode, assim, ser considerada como um limite ao poder de representação, designadamente, voluntária. Todavia, não se trata de uma proibição absoluta, mas relativa – derrogável, conhecendo as mencionadas excepções, e cuja sanção é a anulabilidade.
No cotejo do negócio consigo mesmo com a figura do abuso de representação, entende a doutrina que o negócio consigo mesmo aproxima-se do abuso da representação, constituindo um caso particular da problemática do conflito de interesses. Neste releva per se a possibilidade de um tal conflito, ou seja, a preterição dos interesses do representado aparece como de tal modo provável, o seu perigo tão iminente em face da especial configuração da situação, que o legislador prescindiu de apurar a sua concreta ocorrência, tendo-a por verificada in re ipsa. Isto ajuda a explicar a disparidade de tratamento legal em relação ao abuso da representação: de um lado, a ineficácia, do outro, a anulabilidade do negócio.[15]
Efectivamente, nos termos do citado art.º 269.º no caso de o representante actuar, em nome de outrem, abusando dos seus poderes de representação, é ineficaz a celebração do negócio, se a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso.
Assim, entende a doutrina, com algumas variações, existir abuso de representação quando o representante age, formalmente, no âmbito dos poderes que lhe foram conferidos mas os utiliza para um fim não ajustado àquele em função do qual eles se constituíram.[16]
Ou, noutra formulação, há abuso dos poderes de representação, quando o representante, actuando embora dentro dos limites formais dos poderes que lhe foram outorgados, utiliza conscientemente esses poderes em sentido contrário ao seu fim ou às indicações do representado.[17]
No abuso há relação de representação. Na verdade, o representante tem poderes para agir alieno nomine e exerce-os. Ao nível formal, o efeito legitimador da representação produz-se. Mas, uma vez que o representante age em desconformidade ao interesse do representado, perde essa legitimidade, não podendo o representante ter a pretensão de que os actos assim praticados sejam eficazes. A relação de representação fica suspensa no seu efeito legitimador, em consequência daquele impedimento, embora continue a existir.[18]
O abuso de representação poderá ocorrer em virtude de um desvio puro e simples aos deveres contratuais específicos da relação gestória ou devido a um desvirtuamento real dos interesses do representado, do fim visado com o negócio representativo, causado igualmente pela actuação do representante e pelo negócio representativo que este realizou em nome do representado.[19]
No caso sub judice, a questão a decidir consiste em saber se o negócio de compra e venda em relação ao qual é peticionada a respectiva declaração de ineficácia, nos termos e com o circunstancialismo resultante da matéria de facto, e atento o enquadramento das diversas figuras jurídicas envolvidas – procuração irrevogável, negócio consigo mesmo e abuso de representação – acima analisado, deve ser considerado como realizado em abuso de representação.
O acórdão recorrido concluiu não ter o autor demonstrado, como lhe competia (art.º 342.º, n.º 1, do CC), que as circunstâncias fácticas revelem ter o réu actuado de forma abusiva na sua representação.
Destacou, nesse sentido e para chegar a esta conclusão, a circunstância de não existirem factos suficientes para afirmar que, à data da outorga da escritura, o preço era clamorosamente desfasado dos valores reais do mercado, colocando em crise o interesse do representado de forma ostensiva.
Considerou, designadamente, que a circunstância de não se ter provado o valor do prédio na data da outorga da escritura e o facto de terem sido executadas obras de restauro, beneficiação, conservação do imóvel em datas não apuradas, faziam com que não se pudesse concluir que tenha sido ostensivamente colocado em causa o interesse do representado (cfr. acórdão a fls. 539).
Ora, em nosso entender, ainda que se possa secundar este entendimento e concluir como no acórdão recorrido que, efectivamente, a materialidade fáctica não se mostra inequívoca quanto ao desfasamento entre o preço declarado na escritura e os valores reais de mercado, atenta a dilação temporal de cerca de sete anos entre o momento da venda (Maio de 2011) e o do valor de mercado apurado nos autos (Abril de 2017) e as obras em data incerta realizadas, julgamos que as razões para concluir pela inexistência de uma situação de abuso de representação se fundam, sobretudo e essencialmente, no que acima se referiu a respeito da caracterização desta figura.
Com efeito, a figura do abuso de representação não prescinde da verificação de uma situação de abuso, pois, tal como no caso do abuso do direito (art.º 334.º do CC) é requisito essencial que o direito exista e que só o seu exercício seja abusivo, pelo que também no abuso de representação é indispensável que haja representação e que o representado tenha conscientemente excedido os seus poderes[20].
Assim, ainda que parte da doutrina entenda que o abuso de representação parece não pressupor a consciência ou intenção do representante de prejudicar o dominus ou de se desviar da prossecução dos seus interesses (dentro de uma concepção objectiva, como também se defende para o abuso do direito), a verdade é que mesmo para tais autores, há casos-limite em que não se pode prescindir da consciência do abuso, uma vez que há actuações que só resultam em prejuízo do dominus como consequência da intenção dolosa do representante, dando como exemplo, precisamente o caso deste ter como intento apropriar-se ulteriormente da prestação da contraparte.[21]
Ora, no caso presente, não resulta da matéria de facto qualquer elemento que demonstre ter o réu actuado com intenção de prejudicar o autor ou que tenha actuado contra o interesse deste, sendo certo que a circunstância de lhe ter sido outorgada procuração, no seu interesse e irrevogável, para celebrar o negócio em causa, inclusive consigo mesmo, pelo preço e condições que entendesse, excluiria, em nosso entender, na falta de outros elementos, e sem prejuízo do tempo que mediou entre ambos os actos notarialmente formalizados, a possibilidade de ocorrer esse abuso.
Na verdade, o facto de o imóvel ter sido vendido, ao próprio réu, por um valor que, face ao valor actualizado do bem se mostra discrepante em medida não desprezível em relação ao que foi declarado na escritura, não permite, só por si, concluir ter havido abuso dos poderes de representação, os quais cingindo-nos ao teor da procuração permitiam que a venda fosse feita “pelo preço e condições” que o réu entendesse.
A viabilidade da pretensão deduzida nos autos de ineficácia do negócio, com base no instituto do abuso de representação, careceria de plena demonstração por parte do autor de uma situação de contradição ou desrespeito dos poderes de representação que foram outorgados, a que – em nosso entender – acresceria a necessidade de prova da consciência ou intenção por parte do representante de atentar contra a vontade do representado.
No caso, nada disso se verificou, já que não só a matéria de facto provada não permite chegar a essa conclusão como, inclusive, resulta da matéria de facto não provada, confirmada pela Relação, não ter o autor logrado demonstrar, designadamente, que “o réu sabia que actuava contra a vontade do autor” (facto não provado n.º 2.2.16 da sentença) e que “ao outorgar a procuração (…), o autor não pretendeu conferir poderes ao réu para que este procedesse à venda do imóvel a si próprio, fosse porque preço e em que condições fosse, com excepção da hipótese de ocorrência da sua morte, o que era do conhecimento do réu” (facto não provado n.º 2.2.18 da sentença).
Não cumpriu, por conseguinte, o autor o ónus que sobre si recaía (art.º 342.º, n.º 1, do CC) por forma a viabilizar o equacionar de uma situação de abuso no que se refere aos poderes de representação e, dessa forma, permitir ponderar pela aplicação da sanção de ineficácia do negócio celebrado pelo réu consigo mesmo, ao abrigo da procuração irrevogável e do disposto no art.º 269.º do Código Civil.
Em termos textuais e fácticos o que resulta dos autos é que o réu actuou ao abrigo dos poderes de representação que lhe foram conferidos, vendendo, a si próprio, o imóvel pelo preço e condições que entendeu fixar, nos termos da procuração que lhe foi outorgada e nos seus precisos limites, ficando por demonstrar que tenha ocorrido uma situação de abuso desses poderes.
Bem diferente é, pois, a situação em causa nestes autos daquela que foi objecto do Acórdão do STJ de 25-06-2013 (Processo n.º 532/2001.L1.S1, em que foi Relator Fonseca Ramos), que vem mencionado nas alegações de revista e que foi, inclusive, destacado para efeitos de admissibilidade da revista excepcional – tendo a Formação considerado que a relevância jurídica decorrente da controvérsia jurisprudencial associada aos temas em debate prejudicava a apreciação da eventual oposição de julgados que, a ocorrer, seria meramente implícita já que a análise das situações fácticas subjacentes a cada um dos arestos afastariam a possibilidade de contradição directa.
E, efectivamente, no mencionado aresto conclui-se pela ineficácia de um contrato de compra e venda celebrado pela procuradora consigo mesmo por se entender que esta não estava dispensada de actuar de acordo com as regras da boa fé, nos termos do art.º 762.º, n.º 2, do CC, mas num contexto fáctico em que ficou demonstrado que a procuradora em causa sabia que com a escritura prejudicava o representado, tendo-se concluindo, nesse caso, ter a representante exorbitado os poderes representativos e agido com animus nocendi, sendo o negócio intencionalmente lesivo da representada e violador da protecção da confiança (cfr. acórdão a fls. 577).
Tais pressupostos fácticos e jurídicos são distintos dos que estão em causa nos presentes autos, na medida em que, desde logo, nestes autos ficou por provar qualquer intenção do réu representante de prejudicar o autor, não podendo este Supremo Tribunal com base na matéria de facto singelamente provada, e limitado que está no que se refere à matéria de facto, extrair qualquer presunção ou formular um juízo que permita concluir por uma situação atentatória da boa-fé na execução da representação.
Falece, pois, a pretensão do recorrente de, por via do apelo ao caminho jurisprudencial trilhado neste aresto do Supremo, lograr obter a declaração de ineficácia do negócio celebrado, porquanto as dissonâncias fácticas subjacentes à emissão do juízo jurídico em causa em cada um dos arestos inviabilizam qualquer comparação.
Não estão, pois, verificados os pressupostos suficientes para considerar verificada a existência de uma situação de abuso de representação, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 269.º do Código Civil.
Como se decidiu no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 14/10/2004[22], constando do respectivo sumário:
“O negócio consigo mesmo, não sendo excedidos os poderes contidos na procuração, não coenvolve abuso de representação ou representação sem poderes, sancionados com a ineficácia em relação ao representado”.
Destarte, o recurso soçobra.
Sumário a que alude o art.º 663.º, n.º 7, aplicável ex vi do art.º 679.º, ambos do CPC:
1. A representação voluntária é dominada pela procuração, a qual, embora seja um acto jurídico unilateral, pressupõe uma relação entre o representante e o representado a estabelecer os termos em que os poderes devem ser exercidos.
2. A regra da anulabilidade do negócio celebrado pelo representante consigo mesmo, consagrada no art.º 261.º do Código Civil, é excepcionada quando o representado tenha especificamente consentido na sua celebração ou quando o negócio exclua por sua natureza a possibilidade de um conflito de interesses.
3. O art.º 265.º, n.º 3, do Código Civil considera irrevogáveis as procurações que tenham sido outorgadas no interesse comum do procurador e do dominus, já o podendo ser com o acordo de ambos.
4. A ineficácia do negócio representativo, para o representado, decorrente do abuso de representação, prevista no art.º 269.º do Código Civil, pressupõe a verificação de uma actividade abusiva do representante e o conhecimento do abuso ou dever de conhecer pelo representado.
5. Não há abuso de representação quando o representado não provou, como lhe competia, que o representante agiu com intenção de o prejudicar ou que actuou contra a vontade daquele, na celebração de um contrato de compra e venda, fazendo uso de uma procuração outorgada, no seu interesse e irrevogável, para celebrar esse negócio, inclusive consigo mesmo, pelo preço e condições que entendesse, e quando não se verifica que tenha conscientemente excedido os seus poderes.
III. Decisão
Por tudo o exposto, acorda-se em julgar o recurso de revista improcedente e confirmar o acórdão recorrido.
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Custas pelo recorrente.
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Lisboa, 4 de Julho de 2019
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[1] Do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, actual Juízo Central Cível de Santarém – Juiz 4.
[2] Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Juíza Conselheira Dr.ª Maria João Vaz Tomé
2.º Adjunto: Juiz Conselheiro Dr. António Magalhães
[3] Disponível em www.dgsi.pt, onde são citados vários acórdãos no mesmo sentido.
[4] Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V, parte geral, edição de 2011, pág. 77 e Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, edição da AAFDL, 1974, pág. 267.
[5] Cfr. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 1976, pág. 411, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, vol. I, 3.ª ed., págs. 239 e 240.
[6] In obra citada, págs. 78 e 79.
[7] Cfr. Menezes Cordeiro, obra citada, págs. 89, 92 e 93.
[8] Cfr, entre outros, Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 3.ª ed., págs. 248 e 249, Ennecerus Nipperdey, Tratado, tradução espanhola, 2ª ed., tomo I, vol. 2.º, pág. 270, Conselheiro Mário Brito, Anot. I, pág. 329, anotação ao art.º 269, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, pág. 658 e acórdãos do STJ de 13/2/2003, proferido no processo n.º 03B2201 e de 7/2/2006, no processo n.º 05A4285, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, e da Relação do Porto, relatado também pelo ora Relator, de 27/1/2015, processo n.º 110/10.6TVPRT.P1, in www.dgsi.pt.
[9] In Tratado de Direito Civil, parte geral, V, reimpressão de 2011, pág. 112.
[10] Cfr. Do Abuso de Representação, pág. 144.
[11] Comentário citado, pág. 658.
[12] Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Procuração Irrevogável, 2012, Almedina, pág. 83.
[13] Idem, pág. 87.
[14] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 1987, Coimbra Editora, pág. 243.
[15] Raul Guichard, Catarina Brandão Proença e Ana Teresa Ribeiro, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, 2014, UCP, pág. 633.
[16] Pedro de Albuquerque, A Representação Voluntária em Direito Civil, 2004, Almedina, pág. 765, sintetizando e remetendo as definições fornecidas, designadamente, por Carvalho Fernandes, Vaz Serra, Rui de Alarcão, Mota Pinto e Oliveira Ascensão.
[17] Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 249.
[18] Rui Pinto, Falta e Abuso de Poderes na Representação Voluntária, 1994, AAFDL, pág. 110-
[19] Helena Mota, Do Abuso de Representação, 2001, Coimbra Editora, págs. 135 e 136.
[20] Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., págs. 249 e 250.
[21] Raul Guichard, Catarina Brandão Proença e Ana Teresa Ribeiro, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, 2014, UCP, pág. 659.
[22] In Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do STJ -, ano XII, tomo III, pág. 52. No mesmo sentido, citando-o, decidiu o acórdão deste Supremo de 17/12/2009, processo n.º 365/06.0TBALSB.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt.