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DANO BIOLÓGICO
PRIVAÇÃO DE USO
VALORES DA INDEMNIZAÇÃO
Sumário
Sumário (da relatora):
I - A equidade tem que ser o critério último para a fixação da indemnização pelo dano biológico, na vertente patrimonial de perda de capacidade de ganho, uma vez que essa fixação tem como pressuposto a diferença entre a situação real e a situação hipotética do lesado se o mesmo não tivesse sido alvo do facto ilícito e, por isso, exige juízos de prognose e de probabilidade referentes a dados que apenas são constatáveis no futuro e por um muito longo período de tempo, e que são variáveis, como seja, a evolução da economia, da produtividade, do emprego, dos salários ou da inflação.
II - Considera-se perfeitamente adequado, ajustado e conforme com a equidade fixar em € 15 000 a indemnização pelo dano biológico na vertente patrimonial de perda de capacidade de ganho relativamente a lesado que, à data do acidente, tinha 59 anos de idade, trabalhava pelo menos 2 dias por semana, auferindo € 75 por cada dia de trabalho, e, em consequência do acidente, deixou de poder exercer a sua atividade profissional.
III - A mera privação do uso de um veículo, ainda que desacompanhada de qualquer prejuízo patrimonial concreto, constitui um dano juridicamente ressarcível na medida em que implica a substração ao lesado de uma parte das faculdades que o direito de propriedade lhe confere, designadamente a faculdade de gozar o bem.
IV - A indemnização da privação do uso que não implica qualquer prejuízo patrimonial concreto deve ser fixada com recurso a critérios de equidade, nos termos do art. 566º, nº 3, do CC.
V - A desproporção entre o valor acumulado da indemnização pela privação do uso e o valor comercial do veículo não torna abusivo o exercício do direito por parte do lesado. Todavia, a indemnização para ser justa e equitativa não se pode traduzir num enriquecimento do lesado. Por isso, a indemnização pela privação do uso deve ter como limite máximo o valor de aquisição de um veículo equivalente em novo nos últimos anos em que o mesmo foi produzido.
Texto Integral
Acordam em conferência na 1ª seção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:
RELATÓRIO
MANUEL (…) intentou ação declarativa de condenação com processo comum contra (…) S.A., pedindo que a ré seja condenada:
I - a proceder à reparação in natura (em espécie) do veículo;
II. ou, na indemnização por equivalente, no pagamento da indemnização para a reparação do mesmo veículo;
III. no pagamento da quantia da quantia líquida de € 48.999,99 e,
IV. na quantia diária de € 15,00 por dia útil até entrega do veículo devidamente reparado, sendo que, por estes danos não poderem ser determinados ou quantificados nesta data, requer-se seja a sua liquidação remetida para execução de sentença.
V - a ministrar ao demandante todo o tipo de tratamento de fisiatria, de fisioterapia, de ortopedia, etc, médicos, medicamentosos, até final da sua vida, o que terão que ser ministrados pela demandada, ou,
VI - caso assim se não entenda, sejam estes mesmos tratamentos por ela, demandada, suportados, sendo que, e, por estes danos não poderem ser determinados ou quantificados nesta data, requer-se seja a sua liquidação remetida para execução de sentença nos termos dos artigos 564º e 569º Cód. Civil e 556º nº1 alínea b) e nº 2 e 358º C.P.C.
Como fundamento destes pedidos alega, em síntese, que, no dia 13.12.2016, pelas 18.30h, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o veículo ligeiro misto, matrícula IP, propriedade de A. M., e por ele conduzido, e o veículo ligeiro de passageiros, matrícula DV, propriedade do A. e por ele conduzido.
O acidente de viação ficou a dever-se a culpa exclusiva do condutor do IP já que este não conduzia com atenção e circulava com velocidade excessiva razão pela qual não logrou imobilizar o dito IP e foi embater no DV que estava parado à espera que um peão transpusesse na passadeira.
Decorrência do acidente o DV ficou danificado na parte de trás e o A. sofreu lesões que importaram a sua hospitalização em serviço de urgência.
Como sequelas o A. teve dores, sofre de cervicalgia com irradiação para o ombro esquerdo, lombalgia quando em esforços e diminuição da amplitude da mobilidade cervical e lombar.
Deixou de poder exercer a sua profissão de trabalhador da construção civil, deixou de poder fazer caminhadas e sofre de dores recorrentes.
Mais alega que o DV está por reparar e que tal é possível.
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Regularmente citada, a ré contestou impugnando a factualidade alegada pelo A. e alegando o abuso de direito deste porquanto terá aceite a perda total do DV e agora pretende a sua reparação.
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Foi proferido despacho saneador, definiu-se o objeto do processo e procedeu-se à seleção dos temas de prova.
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Procedeu-se a julgamento e a final foi proferida sentença com o seguinte teor decisório:
“Pelo exposto, decide-se condenar a R. Companhia de Seguros X Portugal, S.A. a pagar ao A. M. P., a quantia de: 1. €199,99 pelo telemóvel danificado; 2. € 2300,00 pela reparação do DV; 3. € 1253,00 pela retribuição que deixou de auferir no período de incapacidade; 4. € 300,00 pelo custo dos atos médicos que suportou; 5. € 64,00 pelo custo da certidão; 6. € 15000,00 pela perda de ganho/dano biológico; 7. € 7500,00 pelos danos não patrimoniais; 8. € 10,00 mensais até ao fim da vida do A. para compra de medicamentos (analgésicos e anti-inflamatórios); 9. € 15,00 por cada dia útil desde, 13.12.2016, até efetiva reparação do DV, a título de indemnização por privação do uso. Valores aos quais acrescem juros moratórios, às taxas legais entretanto em vigor, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento. No mais, absolve-se a R. do pedido.”
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A ré não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª) Em face da gravação dos autos e da impugnação factual trazida ao presente recurso, de par com a ampla aquisição pericial e documental da instrução dos autos, devem os factos dos itens referidos no texto desta minuta de alegações da apelação ser tidos como totalmente “não provados”; 2ª) Com efeito, nem dos depoimentos das testemunhas respetivas, nem do relatório de perícia médico-legal constantes da fundamentação da sentença se pode extrair válida prova dos itens respetivos, bem pelo contrário - como supra se deixou antes expresso; 3ª) Os princípios atinentes à responsabilidade civil, ou à reparação dos danos provindos de ato ilícito, segundo o disposto nos arts. 562º segs. CCivil, impõem uma equivalência de resultado pela recomposição do statu quo ante, e não devem constituir um meio de proporcionar injustificado enriquecimento ao lesado, ter um carácter especulativo ou, muito menos, constituir um modo fraudulento de enriquecimento patrimonial do lesado à custa do lesante, por rica ou saudável seguradora que seja em sua legal substituição; 4ª) Tampouco pode o lesado, senão em nítido abuso de direito, pretender receber pela privação dum veículo clássico, de coleção e de garagem, com uns 40 anos de matrícula e mais de 400 mil kms de uso, com o valor venal, comercial ou de troca de três a quatro mil euros e cuja reparação custava uns meros 2,3 mil euros, mea culpa mea culpa que seja quanto à seguradora responsável pela mesma, uma quantia à atualidade já duns 15 mil euros!; 5ª) A indemnização respetiva, em Direito, não pode é criar desequilíbrio tamanho como o que é imediatamente valorável/sindicável segundo as verbas supra citadas e a comparação entre si mesmas, numa análise que se requer vista à luz da história do nosso País – v. transcrições levadas ao texto desta minuta de alegações; 6ª) Também a indemnização do chamado dano biológico, rectius DPF (v. dano patrimonial futuro), deve respeitar as normas da equidade e composição do statu quo ante, à luz da perícia médico-legal que a tanto foi chamada – e que para tanto foi trazida ao lume dos autos explicitamente a propósito; 7ª) A verba que foi concedida na sentença a tal respeito, no valor de €15 mil, está mui para além e até mesmo fora dos parâmetros jurisprudenciais mais comuns, constituindo iníqua composição daquele dito statu quo ante, com violação da lei aplicável supra citada; 8ª) Deve a mesma ser reduzida para a quantia de € 5.000,00 e não mais; 9ª) Bem como deve a privação de uso ser retida na proporção equitativa do caso a ajuizar melhor a final, nesta sede;
Termos em que, deve o recurso ser julgado procedente, reduzindo-se a condenação da aqui apelante Ré seguradora em conformidade, com todas as legais consequências”.
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O autor contra-alegou pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
OBJETO DO RECURSO
Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.
Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes:
I –Alteração da matéria de facto;
II - Fixação do valor da indemnização na parte referente:
a) ao dano biológico;
b) à privação do uso do veículo.
FUNDAMENTAÇÃO
FUNDAMENTOS DE FACTO
Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos:
1. O Autor nasceu a -.03.1957.
2. A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro IP encontrava-se transferida, à data do embate, para a Ré por acordo de seguro titulado pela apólice n.º 200872332.
3. No dia 13.12.2016 (1), pelas 18h30m, na rua …, Caldelas, Amares ocorreu um embate, em que intervieram os veículos com as matrículas IP e DV.
4. O veículo ligeiro, matrícula IP, era propriedade de A. M., e por ele conduzido e o veículo ligeiro de passageiros, matrícula DV, era propriedade do Autor e por ele conduzido.
5. Era de noite.
6. O tempo estava seco.
7. A via era ladeada por edificações de um e outro lado.
8. Tem a velocidade limitada a 50 km/h.
9. Configura uma reta, em patamar.
10. Com uma largura de 6,20 metros.
11. O seu pavimento, em betuminoso, estava sem buracos, nem fissuras.
12. No local existe uma passadeira destinada ao atravessamento de peões, constituída por barras longitudinais paralelas ao eixo da via (marca M11), a qual está sinalizada por sinalização vertical – sinal A16a e H7.
13. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, o veículo do Autor transitava por aquela artéria no sentido Terras do Bouro – Rendufe.
14. Atento ao trânsito de veículos e de peões.
15. Porque um peão estava a realizar a travessia da via, pela passadeira o Autor imobilizou o veículo antes da passadeira de forma a possibilitar a travessia da via.
16. Quando estava imobilizado junto daquela mesma passadeira, surge o veículo seguro na Ré, cujo condutor por conduzir distraído, desatento relativamente ao restante trânsito e de forma imperita, não logrou imobilizar o veículo no espaço livre, visível e disponível à sua frente.
17. Embatendo na traseira do veículo do demandante.
18. O qual foi projetado para a frente.
19. Tendo percorrido, pelo menos, 27,00 (vinte e sete) metros.
20. Onde, após o embate, ficou imobilizado.
21. Como consequência direta e necessária do acidente de viação supra descrito, o demandante foi transportado de ambulância para o Hospital de Braga, onde foi assistido no Serviço de Urgência,
22. Por ter dores na zona cervical.
23. Foi observado e radiografado.
24. Teve alta no próprio dia, medicado e com a indicação de se manter em repouso.
25. Tinha dores que dificultavam o descanso
26. A data de consolidação médico-legal das lesões é fixável em 13.2.2017.
27. O autor sofreu um período de défice funcional temporário parcial de 63 dias.
28. Teve um quantum doloris de grau 3.
29. Sofre de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 2 pontos.
30. Carece de ajuda medicamentosa permanente de analgésicos e anti-inflamatórios.
31. O demandante passou a sentir limitações na locomoção e em cargas.
32. O demandante atualmente padece de Cervicalgia;
33. O demandante, mercê das sequelas de que ficou a padecer, sofre atualmente de dificuldade na realização de todas e quaisquer tarefas que impliquem mobilidade cervical e transporte de cargas.
34. Dificuldade de permanecer de pé por períodos superiores a 1/2 (meia) hora,
35. Dificuldades em caminhar mais do que 15,00 minutos,
36. O demandante, operário de construção civil, que realizava trabalhos de pedreiro, picheleiro, eletricista, carpinteiro.
37. Trabalhava à jorna, auferindo por cada dia de trabalho € 75,00.
38. Mercê destas sequelas o demandante não consegue agora realizar aqueles trabalhos que antes realizava.
39. Na sua profissão, precisa de estar de cócoras, de aninhar-se, de vergar-se, de usar o trabalho braçal, de se debruçar, de estar de pé muito tempo, de pegar em pesos, superiores a 10 kg, de trabalhar em esforço, de realizar trabalhos que exijam destreza.
40. O que já não consegue fazer dadas as dores e limitações físicas. 41. Em resultado das sequelas, o demandante não consegue exercer a sua profissão.
42. O demandante fazia caminhadas que consequência direta e necessária das sequelas de que passou a padecer está impedido de fazer.
43. O Autor trabalhava em média 2/3 dias por semana.
44. Nos quais auferia cerca de € 75,00 diários.
45. O demandante é dono e legítimo possuidor do veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca Mercedes Benz, modelo 190 D, a gasóleo, com a matrícula DV.
46. O qual usava e fruía com o ânimo de único e exclusivo proprietário.
47. À vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.
48. Dele retirando todos as utilidades e proveitos.
49. Bem como suportando os inerentes encargos, pagando o competente imposto automóvel (IUC), procedendo às reparações necessárias, às inspeções periódicas.
50. Providenciando na sua conservação.
51. Como consequência direta e necessária do acidente de viação supra descrito, o veículo do demandante viu a sua traseira amolgada, bem como a tampa da mala e guarda-lamas traseiros.
52. O veículo foi peritado pela Ré sendo que, segundo esta, a estimativa da reparação ascendia a € 4.172,04.
53. Perante esta situação, a Ré determinou a perda total do veículo por alegada onerosidade excessiva.
54. O que foi comunicado por carta de 02 de Janeiro de 2017.
55. Naquela mesma carta consta:
56. “Procedeu um nosso perito à vistoria, a título condicional, do vosso veículo, tendo apurado que a reparação não se mostra aconselhável já que tem um a estimativa, de 4.172,04€, efetuada por …, valor superior ao que tinha antes do sucedido. Este, segundo números colhidos no mercado especializado, era, no máximo, o de, Euros 2050,00.
Os salvados, considerando a viatura tal como se encontra, poderão ser vendidos por Euros 120,00 …
Assim, e desde que se prove a nossa obrigatoriedade de indemnizar, por ter havido culpa do nosso Segurado, liquidaremos, Euro 1930,00..”
57. O demandante, por carta de 03 de Janeiro remetida à demandada, não se conformando com o valor, propôs o valor de € 2.300,00, valor por que se propunha reparar o veículo.
58. No que não obteve por parte da demandada qualquer resposta.
59. O veículo do demandante é de 1987 tem pintura metalizada, com vidros elétricos, direção assistida, jantes especiais, fecho central, teto de abrir elétrico.
60. Era guardado em garagem.
61. Com todas a revisões em dia.
62. O DV tinha 477.965 quilómetros.
63. Tendo, àquela data, um valor comercial entre de € 3.900,00.
64. O Autor propunha-se reparar o DV por € 2300,00.
65. O demandante destinava aquele veículo às suas deslocações profissionais e pessoais.
66. Sendo necessário e indispensável para o seu dia-a-dia.
67. E que precisa para ir, com a esposa, às compras, quer para o exercício da sua atividade, quer para as suas necessidades pessoais, para visitar os seus familiares, os seus amigos, para dar os seus passeios.
68. Está o Autor privado do veículo desde a data do acidente.
69. O demandante suportou ainda quantia de € 300,00 em honorários médicos.
70. € 64,00 com o auto de ocorrência.
71. Em resultado do acidente, o demandante ficou com o telemóvel da marca LG, no valor de € 199,99, inutilizado.
FUNDAMENTOS DE DIREITO
Cumpre apreciar e decidir.
I –Alteração da matéria de facto;
Dispõe o artigo 662.º, n.º 1, do C.P.C., que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A norma em questão alude a meios de prova que imponham decisão diversa da impugnada e não a meios de prova que permitam, admitam ou apenas consintam decisão diversa da impugnada.
Por seu turno, o art.º 640.º do C.P.C. que tem como epígrafe o “ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, dispõe que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
Como se escreveu no Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 19.6.2019 (in www.dgsi.pt):
“Importa referir que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade do julgador ou da prova livre, consagrado no n.º 5 do artigo 607º do CPC (…), segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que tenha formado acerca de cada um dos factos controvertidos, salvo se a lei exigir para a prova de determinado facto formalidade especial, ou aqueles só possam ser provados por documento, ou estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes. Sobre a reapreciação da prova impõe-se assim toda a cautela para não desvirtuar, designadamente o princípio referente à liberdade do julgador na apreciação da prova, bem como o princípio de imediação que não podem ser esquecidos no convencimento da veracidade ou probabilidade dos factos. Não está em causa proceder-se a novo julgamento, mas apenas examinar a decisão da primeira instância e respetivos fundamentos, analisar as provas gravadas, se for o caso, e procedendo ao confronto do resultado desta análise com aquela decisão e fundamentos, a fim de averiguar se o veredicto alcançado pelo tribunal recorrido quanto aos concretos pontos impugnados assentou num erro de apreciação. Em suma, a alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação tem de ser realizada ponderadamente, em casos excecionais, pontuais e só deverá ocorrer se, do confronto dos meios de prova indicados pelo recorrente com a globalidade dos elementos que integram os autos, se concluir que tais elementos probatórios, evidenciando a existência de erro de julgamento, sustentam, em concreto e de modo inequívoco, o sentido pretendido pelo recorrente. Tal sucede quando a convicção do tribunal de 1.ª instância assentou em erro tão flagrante que o mero exame das provas gravadas revela que a decisão não pode subsistir.”
Tendo por base estes critérios, analisemos então se a matéria de facto deve ser alterada nos termos pretendidos pela recorrente.
A ré pretende que os factos provados nºs 33, 34, 35, 38, 39, 40, 41, 65, 66 e 67 sejam dados como não provados.
Com vista à procedência de tal pretensão invoca o documento nº 8, o relatório pericial e os depoimentos das testemunhas Manuel, A. P. e S. P..
Os factos nºs 33 a 35 e 38 a 41 têm a seguinte redação:
33. O demandante, mercê das sequelas de que ficou a padecer, sofre atualmente de dificuldade na realização de todas e quaisquer tarefas que impliquem mobilidade cervical e transporte de cargas. 34. Dificuldade de permanecer de pé por períodos superiores a 1/2 (meia) hora, 35. Dificuldades em caminhar mais do que 15,00 minutos, 38. Mercê destas sequelas o demandante não consegue agora realizar aqueles trabalhos que antes realizava. 39. Na sua profissão, precisa de estar de cócoras, de aninhar-se, de vergar-se, de usar o trabalho braçal, de se debruçar, de estar de pé muito tempo, de pegar em pesos, superiores a 10 kg, de trabalhar em esforço, de realizar trabalhos que exijam destreza. 40. O que já não consegue fazer dadas as dores e limitações físicas. 41. Em resultado das sequelas, o demandante não consegue exercer a sua profissão.
O tribunal ouviu na íntegra os depoimentos das testemunhas Manuel, A. P. e S. P..
Ao contrário do sustentado pela recorrente, a veracidade destes factos resulta dos depoimentos dessas testemunhas.
Com efeito, e tal como é referido na sentença recorrida, em sede de fundamentação da matéria de facto, e com o que se concorda visto que corresponde aos depoimentos que este tribunal ouviu, a testemunha “Manuel, colega de trabalho do A. há 6 anos – pelo que demonstrou ter conhecimento do por si relatado – reportou-se às funções do A. – as quais descreveu – ao facto de antes do acidente trabalhar e depois não conseguir. Especificou as queixas do Autor. Concretizou que o A. não trabalharia os 5 dias por semana, mas que por cada dia ganhava € 75,00. Descrevendo o Autor depois do acidente disse-o mais gordo e que já não fazia as caminhadas que costumava por se queixar de dores. Reportando-se ao DV identificou a marca e o modelo, tendo descrito o estado do veículo – como sendo estimado por “ser de garagem” – e os seus componentes. Por fim foi peremtório em afirmar que o DV está por reparar, mas que o Autor tem outro carro. O depoimento desta testemunha foi pleno de pormenores e congruente per se e com a demais prova produzida pelo que foi merecedor de credibilidade. A. P., primo do Autor e a quem ajudou a procurar um automóvel idêntico ao DV para este adquirir – pelo que demonstrou ter conhecimento direto do por si realizado – reportou-se ao facto de, posteriormente ao acidente, o Autor ter engordado. No que se refere ao DV descreveu-o como estando acidentado e que os veículos idênticos que encontrou no mercado rondariam os € 4500,00/4700,00. Concretizou que o agregado do A. tinha dois carros. O depoimento da testemunha foi objetivo, solícito e sem incoerências pelo que foi merecedor de credibilidade. S. P., filha do A. e com quem convive e mora – pelo que demonstrou ter conhecimento direto do por si relatado – reportou-se ao problema de saúde, pré-existente, do A. e à operação que este sofreu; bem como se referiu ao facto do pai ter voltado a trabalhar, sem problemas, após a intervenção a que foi sujeito. Identificou a profissão do A., concretizando a sua atividade e bem assim especificou quanto este ganhava - € 75,00 por cada dia de trabalho. A testemunha descreveu o dia-a-dia do A. antes e após o acidente, tendo especificado que após tal acidente aquele não consegue trabalhar, que não consegue fazer as caminhadas que fazia, que não se verga, nem pega em pesos. Caracterizou o seu pai como estando mais gordo. Reportando-se ao DV descreveu-o como sendo carro estimado – utilizado pela família - tendo sido recuperado pouco tempo antes do acidente, pelo que estava novo. Especificou o telemóvel do A. como tendo ficado partido com o acidente. Referindo-se às sequelas sofridas pelo A., concretizou – para além do mais – que as mesmas implicam que este tomasse medicamentos para as dores e bem assim que foi assistido, por várias vezes, no médico. A testemunha depôs de forma objetiva, espontânea e segura, tendo sido o seu depoimento congruente com a demais prova produzida pelo que foi merecedor de credibilidade.”
O relatório pericial junto aos autos confirma os factos que foram dados como provados. No aludido relatório foi fixada ao autor uma incapacidade permanente de 2 pontos em 100. A fixação desta incapacidade nada nos diz sobre a possibilidade de o autor exercer a sua profissão pois que no relatório tal situação não foi analisada, visto constar que o autor se encontra reformado desde outubro de 2017.
Não há coincidência entre o grau de incapacidade permanente de que uma pessoa se encontra afetada e a possibilidade de continuar a exercer a sua atividade profissional.
Uma incapacidade pequena pode impedir uma pessoa de exercer o seu trabalho habitual, e uma incapacidade grande pode permitir que a profissão continue a ser exercida. A incapacidade para o exercício do trabalho habitual tem de ser aferida casuisticamente, analisando-se quais as concretas tarefas profissionais necessárias ao desempenho da atividade e se a incapacidade sofrida impede ou não a execução dessas tarefas. Assim, por exemplo, uma pequena lesão num dedo pode ser praticamente indiferente para a possibilidade de exercício da atividade de motorista mas impedir em absoluto que um neurocirurgião exerça a sua atividade profissional.
Como já dito, só em cada caso concreto se pode fazer tal análise, sendo que no caso sub judice o relatório pericial não indagou sobre esta matéria por o autor já se encontrar reformado.
Por outro lado, as testemunhas Manuel e S. P. confirmaram que o autor depois da operação à coluna voltou a trabalhar. Só depois do acidente ter ocorrido é que ficou impossibilitado de o fazer. Destes depoimentos não resulta, como pretende a ré, que o autor deixou de trabalhar por problemas da coluna de que já sofria em data prévia ao acidente e que foi por esses problemas que se reformou. Resulta, ao invés, que foi devido às lesões decorrentes do acidente que o autor deixou de poder trabalhar e teve que se reformar.
Assim sendo, conjugados os depoimentos das testemunhas atrás referidos com o relatório pericial constante dos autos, conclui-se pelo acerto da decisão recorrida ao dar como provados os factos nºs 33 a 35 e 38 a 41.
Consequentemente, a apelação improcede nesta parte.
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A recorrente pretende ainda que os factos 65º a 67º, que foram dados como provados, sejam considerados não provados.
Tais factos têm a seguinte redação:
65. O demandante destinava aquele veículo às suas deslocações profissionais e pessoais. 66. Sendo necessário e indispensável para o seu dia-a-dia. 67. E que precisa para ir, com a esposa, às compras, quer para o exercício da sua atividade, quer para as suas necessidades pessoais, para visitar os seus familiares, os seus amigos, para dar os seus passeios.
Os depoimentos das testemunhas confirmaram na íntegra estes factos, conforme já acima se referiu.
O facto de o autor ter outro carro em nada invalida o que se deu como provado pois as testemunhas referiram que o agregado familiar era composto pelo autor, pela esposa e pela filha e que todos utilizavam o veículo. Assim, havendo três pessoas e dois veículos pode-se considerar necessário e indispensável o veículo para o dia a dia.
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O documento nº 8 junto com a p.i. no qual o autor propõe um valor para resolução extrajudicial do litígio, proposta essa que não foi aceite pela ré, nada de útil traz quanto à prova, ou ausência dela, relativamente aos factos atrás referidos.
Na verdade, uma pessoa pode estar disposta a aceitar um certo valor para resolver extrajudicialmente uma situação e evitar os transtornos, incómodos e custos que representa o recurso a tribunal sem que daí se possa concluir que os danos que efetivamente sofreu se resumem exclusivamente aos valores propostos para acordo.
A pessoa pode até desconhecer, quando faz ela própria a proposta, quais os danos que podem ser objeto de indemnização, conhecimento esse que lhe poderá advir posteriormente, depois de recorrer aos serviços jurídicos de um advogado que a esclareça da amplitude dos seus direitos perante a situação ocorrida.
Consequentemente, e não tendo a seguradora aceite a proposta que o autor lhe fez para resolver extrajudicialmente a situação, não pode agora, posteriormente, vir dizer que os danos ficam circunscritos ao referidos nessa proposta que a mesma declinou.
Do exposto se conclui que o documento nº 8 não tem a virtualidade de dar como não provados os factos que a recorrente pretende.
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Pelo que se vem de expor, a apelação improcede na parte relativa à impugnação da matéria de facto, mantendo-se, sem quaisquer alterações, os factos que foram dados como provados na sentença recorrida.
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II. a) Fixação do valor da indemnização na parte referente ao dano biológico
A ré insurge-se contra a sentença na parte em que fixou em € 15 000 o valor devido como indemnização pelo dano biológico/perda de ganho, em sede de dano patrimonial, considerando que não se justifica atribuir valor superior a € 5 000.
Nos autos está plenamente assente a existência de obrigação de indemnizar a cargo da ré, não tendo esta vindo sequer discutir a obrigação de indemnizar o dano biológico na vertente patrimonial, discordando unicamente quanto ao valor fixado a esse título, pelo que não se entrará em considerações sobre aquela matéria, analisando-se apenas se o valor fixado é ou não o correto.
O art. 562º, do CC, consagra o princípio da reconstituição natural pois quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão, (art. 563º, do CC) e o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (art. 564º, do CC). A indemnização devida abrange assim quer os danos emergentes, quer os lucros cessantes, consistindo aqueles numa diminuição efetiva do património e estes na frustração de um ganho.
Assim, no cálculo da indemnização importa considerar a diferença entre a situação real e hipotética do lesado se o mesmo não tivesse sido atingido pelo facto ilícito.
É de realçar a dificuldade e delicadeza subjacente ao cálculo do dano biológico na vertente patrimonial, enquanto perda futura de capacidade de ganho, pois exige a previsão, sempre problemática, de dados que apenas são constatáveis no futuro e por um muito longo período de tempo, como seja a evolução da economia, da produtividade, do emprego, dos salários ou da inflação (cf Acórdão da Relação de Guimarães, de 19.10.2017, in www.dgsi.pt).
Como se escreveu no Acórdão do STJ, de 10.11.2016 (in www.dgsi.pt) “constitui entendimento jurisprudencial reiterado que a indemnização a arbitrar por tais danos patrimoniais futuros deve corresponder a um capital produtor do rendimento de que a vítima ficou privada e que se extinguirá no termo do período provável da sua vida, determinado com base na esperança média de vida (e não apenas em função da duração da vida profissional ativa do lesado, até este atingir a idade normal da reforma, aos 65 anos).”
Sobre a determinação do valor indemnizatório correspondente ao dano biológico, na vertente de danos patrimoniais futuros, segue-se o Acórdão desta Relação de Guimarães, de 19.10.2017, (in www.dgsi.pt) onde se considera que “como é posição sucessivamente reiterada pelo nosso mais Alto Tribunal, o tribunal está apenas sujeito aos critérios que emergem do preceituado no Código Civil e, em particular ao critério da equidade, pois que os critérios consagrados na Portaria n.º 377/2008, de 26.05 (ou na Portaria n.º 679/2009, de 25.06, que procedeu à sua alteração/atualização), não obstante possam (ou devam) ser considerados pelo julgador, não se sobrepõem aos que decorrem do restante sistema substantivo e, sobretudo, em primeiro lugar, do Código Civil. De facto, como se pode alcançar da nossa jurisprudência, é pacífico o entendimento de que os critérios previstos nas citadas Portarias não substituem os critérios de fixação da indemnização consignados no Código Civil e não vinculam os tribunais em tal tarefa casuística, visando, sobretudo, em sede de apresentação de proposta célere e razoável por parte das seguradoras ao lesado, servir de critério orientador para esse confessado fim.”
Em idêntico sentido de o critério último para a fixação da indemnização pelo dano biológico na vertente patrimonial ser a equidade, escreveu-se no Acórdão desta Relação de Guimarães, de 4.10.2017 (in www.dgsi.pt) que “mesmo a análise do dano na perspetiva essencialmente patrimonial, considerando que assenta em juízos de prognose, de simples probabilidade e o conjunto de variáveis que se deverão fazer intervir para projeção do mesmo num futuro mais ou menos longínquo, só pode, em última análise, ser obtida pela equidade.”
Revertendo ao caso concreto, temos como assente que, à data dos factos, o autor tinha 59 anos. Trabalhava em média 2 a 3 dias por semana e auferia a quantia diária de € 75. Devido ao acidente deixou de poder desempenhar a sua atividade profissional.
A sentença recorrida considerou que sendo a vida ativa até aos 65 anos, o autor teria ainda pela frente 5 anos e 3 meses de vida profissional e que as lesões permanecem para além do termo da denominada “vida ativa”, pelo que atendeu à esperança média de vida de, no mínimo, 75 anos. Com bases nestes pressupostos, atribuiu uma indemnização de € 15 000, o que equivale a um valor anual de € 937,50 (€ 15 000: 16 anos - visto que o autor tinha 59 anos e a esperança de vida considerada foi de 75 anos)
Assim, partindo do pressuposto de que o autor trabalharia, no mínimo dois dias por semana, anualmente auferiria a quantia de 7 200 € (€ 75 x 2 dias x 4 semanas x 12 meses = € 7 200).
Destes cálculos resulta manifesto que a sentença, se pecou na fixação da indemnização, não foi seguramente por excesso.
Assim, considera-se perfeitamente adequado, ajustado e conforme com a equidade o valor de € 15 000 fixado na sentença como indemnização pelo dano biológico na vertente patrimonial de perda de capacidade de ganho, não se justificando reduzir tal valor para € 5 000, como pretendido pela recorrente.
Consequentemente, a apelação improcede nesta parte.
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II. b) Fixação do valor da indemnização na parte referente à privação do uso do veículo
A ré insurge-se contra a sentença na parte em que fixou € 15 por cada dia útil desde, 13.12.2016, até efetiva reparação do veículo DV, a título de indemnização por privação do uso.
Vejamos, então, se lhe assiste razão.
A questão da reparação do dano da privação do uso não tem sido unívoca, quer na doutrina, quer na jurisprudência.
No essencial, pode dizer-se que nesta matéria se confrontam duas correntes: uma que defende que a privação do uso só é indemnizável se dela resultar um autónomo ou específico dano patrimonial e que se poderá denominar como teoria dos prejuízos concretos; outra que defende que a indemnização é quase conatural a essa privação na medida em que o simples uso constitui uma vantagem suscetível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano, sendo certo que própria opção pelo não uso é uma manifestação dos poderes do proprietário, também afetado pela privação do uso.
Como já supra referido, quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (princípio da reconstituição natural), sendo que o dever de indemnizar compreende os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (arts. 562º e 564º, do CC).
Assim, em matéria de indemnização o princípio fundamental é o da reconstituição natural devendo o lesado ser colocado na situação em que se encontraria se a lesão não tivesse ocorrido.
No que concerne à privação do uso, a menos que o lesante, voluntariamente, tenha fornecido ao lesado um bem de características semelhantes àquele que o lesado possuía e usava, é inquestionável que não é possível a reconstituição natural.
Todavia, o facto de a reconstituição natural não ser possível não pode desembocar, sem mais, na liberação do responsável com o argumento de que o lesado não teve prejuízos concretos com a privação do uso.
É que, em nosso entender, a privação do uso constitui ela própria um dano.
Estabelece o art. 62º, nº 1, da CRP, que a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.
Por seu lado, estatui o art. 1305.º, do CC, que o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.
Assim, quem é proprietário de um bem tem o poder e a faculdade de o gozar e fruir e o simples facto de estar temporariamente privado de exercer tais poderes constitui em si mesmo um dano ressarcível pela atribuição de um equivalente pecuniário.
Se a privação do uso de um veículo originou a perda das utilidades que o mesmo era suscetível de originar e se essa perda não foi reparada mediante a forma natural de reconstituição, impõe-se que o responsável compense o lesado.
Fazer depender a indemnização da prova de danos concretos imputáveis diretamente à privação do uso é solução que se pode compreender quando o lesado pretende a atribuição de uma quantia suplementar correspondente aos benefícios que deixou de obter ou às despesas acrescidas que o evento lhe determinou, mas já não quando o mesmo pretende somente a compensação devida pela privação correspondente aos danos emergentes.
A teoria que defende a exigência de prejuízos concretos para a indemnização pela privação do uso pode, em concreto, conduzir a soluções diversas e injustas para uma mesma situação.
Imagine-se dois lesados privados do uso do seu veículo temporariamente. Um deles aluga um veículo semelhante ao que possuía e usa-o durante o tempo de privação. O outro, por não dispor de meios económicos para o efeito, não recorre ao aluguer de qualquer veículo.
Segundo a teoria dos prejuízos concretos, só o lesado que alugou o veículo receberia indemnização. Ora, em nosso entender, esta solução é manifestamente injusta e distingue situações materialmente idênticas, o que é ilegítimo.
A privação do uso, ao implicar a perda definitiva e irrecuperável de parte dos poderes de que é titular o proprietário do bem, constitui um dano ressarcível.
Assim sendo, o proprietário que se vê privado de usar, fruir e dispor de um bem de que é proprietário sofre um dano imediato por efeito dessa mera privação, ainda que não tenha tido qualquer dispêndio de natureza patrimonial causada pela privação do uso.
O mero facto de não pode usar o bem de que é proprietário é um dano juridicamente relevante e suscetível de avaliação pecuniária.
Assim, aderimos à segunda corrente.
Naturalmente que esta segunda corrente se depara com um problema: se não houve um concreto prejuízo patrimonial, como fixar o valor indemnizatório da mera privação do uso?
Pois parece-nos que o único caminho possível é o recurso à equidade, nos termos do art. 566º, nº 3, do CC, que estabelece que, se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.
Para o efeito, poderá, designadamente, recorrer ao valor de aluguer de um veículo com caraterísticas idênticas àquele de cujo uso houve privação.
No sentido de se dever recorrer à equidade para fixação da indemnização por não uso vejam-se:
- o Acórdão da Relação de Coimbra ,de 6.2.2018, (in www.dgsi.pt) segundo o qual “a medida da indemnização terá que ser encontrada com recurso à equidade, pois que deve concluir-se pela existência de um dano que se traduziu na impossibilidade do lesado o utilizar nas suas deslocações diárias, profissionais e de lazer, havendo que encontrar em termos quantitativos um valor que se mostre adequado a indemnizar o lesado pela paralisação diária de um veículo que satisfaz as suas necessidades básicas diárias” (...) Concluindo-se pelo dano e não sendo possível quantificá-lo em valores certos face aos factos provados, o tribunal deverá recorrer à equidade para fixar a indemnização, nos termos previstos no artigo 566º, n. 3, do Código Civil. Para este efeito pode tomar-se como ponto de referência, por exemplo, a quantia necessária para o aluguer de um bem de características semelhantes, devendo realizar-se em abstrato uma ponderação global das várias situações por forma a chegar-se a um valor concreto, nomeadamente que tal valor deve ser sempre tomado como simples referência e não em termos absolutos, que deve do mesmo ser excluída a normal taxa de lucro obtida por estas entidades por forma a evitar-se um benefício injustificado por parte do lesado, tendo-se sempre presente o uso concreto que o lesado fazia do veículo em causa.”
- o Acórdão da Relação de Lisboa, de 12.7.2018 (in www.dgsi.pt) em cujo sumário se lê
“I - A mera privação do uso do veículo configura um dano patrimonial específico e autónomo que atinge o direito de propriedade, por retirar ao proprietário lesado a possibilidade de utilizar a coisa e a capacidade de dispor materialmente dela quando e como melhor lhe aprouver. II - A lesão patrimonial decorrente da perda dessa possibilidade de utilização do veículo é passível de avaliação pecuniária, devendo recorrer-se à equidade na falta de prova de danos efetivos causados pela privação do uso do veículo.”
- o Acórdão desta Relação de Guimarães, de 19.1.2017, (in www.dgsi.pt) segundo o qual “não se provando prejuízos concretos consequência da privação do uso de veículo, a indemnização por tal privação será encontrada com recurso à equidade dentro dos limites do que se tiver provado (art. 566, n.º 3, do CC), o que nos remete para uma ponderação das circunstâncias reais, e não para uma resposta em abstrato. Mesmo considerando que se trata de uma viatura de 7 lugares e que o titular, apesar de dono de outras, não as tem disponíveis, € 15 diários são suficientes para ressarcir as eventuais consequências da indisponibilidade do veículo.”
Posto isto, e concluindo-se que a mera privação do uso do veículo deve ser ressarcida fixando-se o valor indemnizatório com recurso à equidade, vejamos então qual o valor a fixar no caso concreto.
Provou-se que o autor destinava aquele veículo às suas deslocações profissionais e pessoais, sendo necessário e indispensável para o seu dia-a-dia, e que dele precisa para ir, com a esposa, às compras, quer para o exercício da sua atividade, quer para as suas necessidades pessoais, para visitar os seus familiares, os seus amigos, para dar os seus passeios.
O autor está privado do veículo desde a data do acidente, ou seja, desde 13.12.2016.
Para além destes factos há que ter em conta que este não era o único veículo do autor uma vez que era também proprietário de um outro carro, como confirmado por várias testemunhas e referido na própria sentença a propósito da fundamentação do valor diário fixado.
Perante estes factos parece-nos perfeitamente justo, proporcional e adequado fixar a indemnização pela privação do uso do veículo na quantia diária de € 15.
Na sentença determinou-se que tal valor é devido desde, 13.12.2016, até efetiva reparação do DV.
Nesta parte, discordamos do decidido.
A sentença condenou a ré no pagamento de € 2 300,00 pela reparação do DV. Considerou que “quanto à reparação e atendendo a que o A. a consegue fazer por um valor mais baixo em cerca de € 2000,00 que a R. seguradora, entende o Tribunal que deve esta ser condenada em indemnização em dinheiro e não na feitura da reparação pois que, na economia da ponderação, se torna muito mais oneroso para o devedor fazer a reparação do que pagar o valor pedido pelo A.”
Assim, se a obrigação de reparação não ficou a cargo da ré, mas antes na disponibilidade do autor, apenas tendo a ré que lhe pagar a quantia de € 2 300 reputada como suficiente para que o próprio autor possa mandar efetuar a reparação, lógico é que o pagamento da indemnização pela privação do uso termine no momento em que a ré cumpra a sua obrigação de pagamento da quantia de € 2 300 que é substitutiva da reparação. Não pode ficar a cargo da ré o ressarcimento de uma privação de uso relativa a factos que escapam por completo ao seu controle, como seja o autor não mandar efetuar a reparação ou esta se atrasar por motivo imputável ao reparador ou qualquer outro motivo a que a ré é alheia.
Assim sendo, a responsabilidade da ré tem que estar limitada ao momento em que a mesma cumpre a obrigação substitutiva da reparação e que se traduz no pagamento da indemnização em dinheiro no valor de € 2 300 que é referida no ponto 2 do dispositivo da sentença.
Pelo que o tribunal considera que a ré deve ser condenada a pagar ao autor € 15,00 por cada dia útil desde, 13.12.2016, até pagamento da quantia de € 2 300 devida pela reparação do DV, a título de indemnização por privação do uso.
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Alega a ré que constitui abuso de direito, na modalidade de desequilíbrio das prestações, obter uma indemnização que atualmente ronda os € 15 000 para um veículo cujo valor comercial são € 3 900.
Sob a epígrafe «abuso do direito», prescreve o art. 334ºdo Código Civil : “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
A justificação do instituto do abuso do direito assenta em razões de justiça e de equidade e prende-se com o facto das normas jurídicas serem gerais e abstratas.
O instituto do abuso de direito é uma verdadeira “válvula de segurança” para impedir ou paralisar situações de grave injustiça que o próprio legislador preveniria se as tivesse previsto, é uma forma de antijuricidade cujas consequências devem ser as mesmas de todo o ato ilícito (Ac. do STJ, de 23.1.2014, in www.dgsi.pt).
Poder-se-á dizer que ocorre uma situação típica de abuso do direito quando alguém, detentor de um determinado direito, consagrado e tutelado pela ordem jurídica, o exercita, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante (Ac. da Relação de Coimbra, de 9.1.2017, in www.dgsi.pt).
Há abuso de direito quando o direito, em princípio legítimo e razoável, é exercido em determinado caso de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante.
Não basta que o titular do direito exceda os limites referidos, sendo necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório e ofensivo daqueles valores.
Para determinar os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, há que lançar mão dos valores éticos predominantes na sociedade e para os impostos pelo fim social ou económico do direito deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados na lei (Ac. do STJ, de 23.1.2014, in www.dgsi.pt).
A nossa lei adota a conceção objetiva do abuso do direito pois não exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo. Não é por isso necessário que o titular do direito tenha a consciência de que, ao exercê-lo, está a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo seu fim social ou económico; basta que objetivamente esses limites tenham sido excedidos de forma evidente para que se considere preenchida a atuação com abuso de direito.
Nas palavras de Antunes Varela (in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 128º, pág. 241) o abuso de direito é um instituto que rege para as situações concretas em que é clamorosa, sensível e evidente a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjetivo e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou dos direitos de certo tipo.
O abuso de direito pode revestir as modalidades de suppressio, de venire contra factum proprium e de desequilíbrio.
A suppressio designa a posição do direito subjetivo ou, mais latamente, a de qualquer situação jurídica, que, não tendo sido exercida em determinadas circunstâncias e por um certo lapso de tempo, não mais possa sê-lo por, de outro modo, se contrariar a boa fé.
O abuso de direito na sua vertente de “venire contra factum proprium”, pressupõe que aquele em quem se confiou viole com a sua conduta os princípios da boa fé e da confiança em que aquele que se sente lesado assentou a sua expectativa relativamente ao comportamento alheio. A proibição da conduta contraditória em face da convicção criada implica que o exercício do direito seja abusivo ou ilegítimo. Impõe que alguém exerça o seu direito em contradição com a sua conduta anterior em que a outra parte tenha confiado.
O abuso de direito na modalidade do desequilíbrio entre o exercício do direito e os efeitos dele derivados abrange subtipos diversificados, nomeadamente o do exercício de direito sem qualquer benefício para o exercente e com dano considerável a outrem, o da atuação dolosa daquele que vem exigir a outrem o que lhe deverá restituir logo a seguir e o da desproporção entre a vantagem obtida pelo titular do direito exercido e o sacrifício por ele imposto a outrem.
De todo o modo, para que possa funcionar o comando contido no artigo 334º, do Código Civil, tem de haver um excesso manifesto, o que significa que a existência do abuso de direito tem de ser facilmente apreensível sem que seja preciso o recurso a extensas congeminações.
Haverá abuso de direito, segundo o critério proposto por Coutinho de Abreu "quando um comportamento aparentando ser exercício de um direito se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumental e na negação de interesses sensíveis de outrem" (in Abuso de Direito, p. 43).
Configura-se, assim, um comportamento antijurídico que se caracteriza pelo exercício anormal do direito próprio, que não pela violação de um direito de outrém ou pela ofensa de uma norma tuteladora de um interesse alheio.
E para que o abuso de direito exista, não basta que o exercício do direito pelo seu titular cause prejuízo a alguém - a atribuição de um direito traduz deliberadamente a supremacia de certos interesses sobre outros interesses com aqueles confluentes, sendo necessário, sim, que o titular dele manifestamente exceda os limites que lhe cumpre observar, impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do próprio direito exercido (cf. Acórdãos da Relação de Guimarães de 2.7.2009, do STJ de 1.7.2004, da Relação de Coimbra, de 2.12.2003 in www. dgsi.pt; do STJ de 19.10.2000, in CJ, Ano VIII, Tomo III-2000, pág. 83 a 84).
Revertendo agora ao caso em apreço, a existência de abuso de direito apenas se poderá enquadrar, em abstrato, na modalidade de desequilíbrio entre o exercício do direito e os efeitos dele derivados.
É verdade que o valor atual da indemnização pela privação do uso (cerca de € 15 000) é muito superior ao valor comercial do veículo (€ 3 900).
Porém, daqui não resulta o exercício de nenhum direito de forma abusiva. Não há, nem tem que haver, qualquer correspondência entre o valor atribuído como compensação pela privação do uso e o valor comercial do veículo. O valor comercial do veículo até podia ser nulo, mas a verdade é que o veículo representava uma utilidade para o autor: conferia-lhe a possibilidade de o utilizar quando necessitasse para as suas deslocações. E o autor ficou privado desse uso durante quase 3 anos. Durante três anos, o seu direito de propriedade ficou comprimido pois foi-lhe subtraída a vertente de faculdade de uso. O que se indemniza é precisamente esta compressão do direito de propriedade, que não tem correspondência com o valor comercial do bem. O veículo no seu estado atual e com um baixo valor comercial continua a permitir ao autor o mesmo uso que permitia quando era novo e tinha um valor comercial elevado. Por isso, não há qualquer abuso da sua parte em pedir o ressarcimento dos danos que sofreu nesse período nem há que condicionar a fixação da indemnização ao valor comercial do bem.
O único limite a introduzir é o da impossibilidade de enriquecimento por via da atribuição da indemnização. Ou seja, o autor não pode receber a título de indemnização pela privação do uso valor superior ao custo do veículo em novo. Só assim, haverá uma fixação justa e equitativa da indemnização.
Neste sentido, veja-se o Acórdão do STJ, de 13.7.2017 (in www.dgsi.pt) o qual numa situação em que estava em causa uma indemnização por privação do veículo acima de € 49 000 relativamente a um veículo que tinha um valor comercial de € 14 478,74, sendo que o preço do veículo em novo, nos últimos anos em que foi produzido era de € 41 000, considerou que “compreendendo-se o período de privação do uso do veículo entre 04-01-2013 e a data da entrega efetiva da indemnização pela perda total do veículo (que se desconhece se já ocorreu), uma vez que o valor acumulado da indemnização pela privação de uso ascenderá presentemente a um nível extremamente elevado e desproporcionado, tanto em relação ao valor devido pela perda total do veículo sinistrado, como em relação ao preço de um veículo novo nos últimos anos em que foi o mesmo foi produzido, deve o valor da indemnização a atribuir ter como limite máximo este último valor”.
Aderindo-se a esta orientação do Tribunal Superior, considera-se que a indemnização pela privação do uso de veículo deve ter como limite máximo o valor de um veículo novo Mercedes 190 D nos últimos anos em que foi produzido.
DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência:
A) alteram o ponto 9 do dispositivo da sentença recorrida nos seguintes termos: 9. € 15,00 por cada dia útil desde 13.12.2016 até pagamento da quantia de € 2 300 pela reparação do DV, referida em 2, a título de indemnização por privação do uso, tendo esta indemnização como limite máximo o valor de um veículo novo Mercedes 190 D nos últimos anos em que foi produzido.
B) No mais, mantêm a decisão recorrida.
Custas por apelante e apelado na proporção de 5/6, 1/6, respetivamente.
Notifique.
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Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC):
I - A equidade tem que ser o critério último para a fixação da indemnização pelo dano biológico, na vertente patrimonial de perda de capacidade de ganho, uma vez que essa fixação tem como pressuposto a diferença entre a situação real e a situação hipotética do lesado se o mesmo não tivesse sido alvo do facto ilícito e, por isso, exige juízos de prognose e de probabilidade referentes a dados que apenas são constatáveis no futuro e por um muito longo período de tempo, e que são variáveis, como seja, a evolução da economia, da produtividade, do emprego, dos salários ou da inflação.
II - Considera-se perfeitamente adequado, ajustado e conforme com a equidade fixar em € 15 000 a indemnização pelo dano biológico na vertente patrimonial de perda de capacidade de ganho relativamente a lesado que, à data do acidente, tinha 59 anos de idade, trabalhava pelo menos 2 dias por semana, auferindo € 75 por cada dia de trabalho, e, em consequência do acidente, deixou de poder exercer a sua atividade profissional.
III - A mera privação do uso de um veículo, ainda que desacompanhada de qualquer prejuízo patrimonial concreto, constitui um dano juridicamente ressarcível na medida em que implica a substração ao lesado de uma parte das faculdades que o direito de propriedade lhe confere, designadamente a faculdade de gozar o bem.
IV - A indemnização da privação do uso que não implica qualquer prejuízo patrimonial concreto deve ser fixada com recurso a critérios de equidade, nos termos do art. 566º, nº 3, do CC.
V - A desproporção entre o valor acumulado da indemnização pela privação do uso e o valor comercial do veículo não torna abusivo o exercício do direito por parte do lesado.
Todavia, a indemnização para ser justa e equitativa não se pode traduzir num enriquecimento do lesado. Por isso, a indemnização pela privação do uso deve ter como limite máximo o valor de aquisição de um veículo equivalente em novo nos últimos anos em que o mesmo foi produzido.