COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
INVENTÁRIO
CABEÇA DE CASAL
ACÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS
Sumário

I– Face ao disposto no artigo 947.º do Código de Processo Civil, o juízo de família e menores de Cascais, onde pende um inventário para partilha dos bens comuns do casal, é o competente para conhecer da acção de prestação de contas instaurada pelo cabeça de casal.

Texto Integral

        Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa


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M… instaurou acção declarativa, com processo comum, contra L…, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo Local Cível de Oeiras – Juiz 3, pedindo a aprovação das contas por si apresentadas e a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 13.994,49 (treze mil novecentos e noventa e quatro euros e quarenta e nove cêntimos) acrescida de juros de mora à taxa legal, bem como de metade das despesas que vierem a ser suportadas pelo autor até partilha efectiva dos imóveis, valor que se fixará em execução de sentença.

O aludido tribunal cível de Oeiras proferiu o seguinte despacho:
“Pelo presente processo o A. pretende prestar contas do cabecelato que exerceu entre a propositura da acção de divórcio e a partilha dos bens comuns do casal.
Estabelecendo o artigo 947.º do CPC que “as contas a prestar (…) pelo cabeça de casal (…) são prestadas por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita’’ – pelo que é evidente que o presente processo deve correr por apenso ao processo de inventário para partilha dos bens comuns do casal (4772/04.5TBCSC-H do Juízo de Família de Cascais).
Pelo exposto, e ao abrigo das regras dos artigos 102.º, 104.º/1c), e 105.º do CPC, declara-se a incompetência relativa da presente Instância Local Cível de Oeiras e determina-se a oportuna remessa dos autos ao Juízo de família de Cascais (por apensação)’’.

Remetidos os autos ao Juízo de Família e Menores de Cascais – juiz 4, aí foi proferido o despacho seguinte:
“Conforme resulta do despacho proferido na conferência de interessados realizada em 31 de Outubro de 2018 no inventário apenso a estes autos (apenso H), foram os interessados remetidos para os meios comuns, no que tange aos créditos que o cabeça de casal invoca titular sobre a interessada.
Ora, foi na sequência do citado despacho que o A. propôs a presente acção.
Por conseguinte e ao invés do que consta da decisão de 02.10.2018, com o presente processo não pretende o A. “… prestar contas do cabecelato que exerceu, entre a propositura da acção de divórcio e a partilha dos bens comuns do casal”, mas propor uma acção comum para averiguação e decisão sobre a existência da dívida ajuizada, como, aliás, resulta do petitório.
A competência das secções de família e menores relativa ao estado civil das pessoas e família encontra-se consignada nos nºs 1 e 2 do artº 122º da LOSJ.
Assim, vista a natureza dos presentes autos e a norma legal citada, constata-se que o Juízo de Família e Menores de Cascais é incompetente, em razão da matéria para preparar e proferir decisão neste processo, sendo, para tanto, competente o Juízo Local Cível de Oeiras (cfr. artº 130º da LOSJ).
Pelo exposto, ao abrigo dos citados preceitos legais e, ainda, dos artº 96º, 99º, nº 1, 278º, nº 1, al. a), 576º, nº s 1 e 2, 577º, al. a) e 595º, nº 1, todos do CPC, declaro a incompetência absoluta deste Tribunal e, em consequência, absolvo a R. da instância’’.

Inconformado, interpôs o autor competente recurso, cuja minuta concluiu da seguinte forma:
I.– O Autor não se conforma com o teor da sentença recorrida, a qual determinou a incompetência absoluta do Tribunal, absolvendo a Ré da instância.
II.– Em primeiro lugar, porque, efectivamente, o artigo 947.º do C.P.C. dispõe que “As contas a prestar (…) pelo cabeça de casal (…) são prestadas por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita.”, o que significa que a acção de prestação de contas que o Autor instaurou deve correr por apenso ao processo de inventário que, no caso concreto, é o processo n.º 4772/04.5TBCSC-H.
III.– Em segundo lugar, porque, dispõe o art.º 105.º, n.º 2, do C.P.C. que, nos casos de incompetência relativa, “a decisão transitada em julgado resolve definitivamente a questão da competência, mesmo que esta tenha sido oficiosamente suscitada”.
IV.– Devendo, neste caso, a contradição de julgados anormalmente criada no processo ser resolvida através da aplicação da regra da prevalência fixada ex lege pelo art.º 625.º do C.P.C..
V.– No caso dos autos, ao ter transitado em julgado o despacho proferido pelo Tribunal de Oeiras, estava precludida, por força do citado art.º 105.º, n.º 2, do C.P.C., a recolocação da questão da incompetência no Tribunal de Cascais, isto, independentemente da bondade ou do acerto ou desacerto daquela decisão.
VI.– Pelo que deverá o Tribunal de Cascais apreciar e julgar a acção instaurada pelo Autor, por ser este o Tribunal competente para o efeito.
VII.– O Tribunal a quo violou as normas previstas nos artigos 105.º, n.º 2; 625.º e 947.º do C.P.C..
Termos em que deverão V.ªs Ex.ªs conceder provimento ao presente recurso, revogando a sentença recorrida e reconhecendo a competência para o julgamento da presente acção ao Tribunal Judicial de Lisboa Oeste – Cascais, por apenso ao processo de inventário.
E.D.“.

Não foram apresentadas contra-alegações.
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A única questão decidenda consiste em saber se um tribunal de competência especializada, como é o juízo de família e menores de Cascais, é competente para conhecer da acção de prestação de contas instaurada, face ao disposto no artigo 947.º do Código de Processo Civil
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São enunciados de facto os que constam do relatório supra e para o qual se remete.
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Quem está encarregado da administração de interesses alheios (ou alheios e simultaneamente próprios) está obrigado a prestar contas perante o titular desses interesses.

De acordo com o artigo 2079.º do CC “A administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça de casal”.


As funções próprias do cabeça de casal iniciam-se com a sua nomeação judicial  que no caso sujeito ocorreu em 6.1.2012, e terminam com o trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha (cfr. Ac.RE de 10.12.1981, CJ, T 5.º:330).

Naquele âmbito o cabeça de casal deve prestar contas anualmente (artigo 2093.º, 1, CC). Esta norma deve ser interpretada no sentido de que visa estabelecer a periodicidade com que o cabeça-de-casal terá que prestar contas da administração da herança, caso lhe sejam exigidas (Ac. RE, de 13.11.1986, BMJ, 331.º:606).

O Autor veio prestar voluntariamente contas da sua administração. E instaurou para tal um processo especial no tribunal cível de Oeiras.

Terá andado bem?

Quanto à forma de processo a resposta é obviamente afirmativa.

Preceitua o artigo 941.º do CPC (serão deste código os artigos ulteriormente citados sem qualquer outra menção), sob a epígrafe “Objecto de acção”: “A acção de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las, ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”.

A prestação de contas pode ser provocada ou espontânea. Sobre este caso dispõe o artigo 946.º, que reza, no n.º 1, que sendo as contas voluntariamente oferecidas por aquele que tem obrigação de as prestar, é citada a parte contrária para as contestar no prazo de 30 dias.

Acrescenta o artigo 947.º que as contas a prestar (…) pelo cabeça de casal são prestadas por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita.

Esta norma corresponde à do artigo 1018.º, corpo, da versão primitiva do Código de 39.

A esta modalidade de prestação de contas cabe usualmente a designação de “contas por dependência’’. Referindo-se a elas nestes precisos termos dizia Alberto dos Reis: “As contas do cabeça-de-casal, do tutor, do curador e de qualquer outro administrador nomeado judicialmente serão dependência do processo em que tiver sido feita a nomeação (art. 1018.º). quer isto dizer que a petição inicial para estas contas não se distribui; apensa-se, por linha, ao processo em que se tenha feito a nomeação , do tutor, do curador, do administrador (art. 211.º, § único)’’ (Processos Especiais, Vol I, Coimbra, 1982:323).

As contas do cabeça-de-casal são portanto apensadas ao processo de inventário. Citando ainda aquele mestre dir-se-á que “desde que o processo de contas tem de ser apensado ao processo em que se fez a nomeação, é claro que a acção de contas, em vez de ser intentada no juízo do domicílio do réu (art. 85.º), há-de sê-lo no juízo em que correu o processo ao qual as contas têm de ser apensadas’’ (ibidem).

Independentemente do que se possa dizer a propósito da natureza da competência a que se refere a norma do artigo 947.º, se funcional, como parece, territorial ou material, a verdade é que se nos afigura ser o tribunal recorrido o competente para conhecer da acção.

E não se diga que a prestação de contas excede o âmbito do cabecelato. Por um lado, porquanto já se entendeu, é certo que num inventário para partilha de bens de um de cujus, que a prestação de contas pelo cabeça-de-casal, por dependência do processo de inventário, não tem que se cingir apenas ao período decorrido desde a sua nomeação judicial, podendo abarcar todo o tempo anteriormente decorrido a partir do decesso do inventariado.

Por outro lado, mesmo se considerarmos que o período abrangido pela prestação de contas só se inicia em 16.1.2012, ainda assim haverá um largo campo para ser conhecido nesta acção que se refere (também) a encargos relativos a IMI, condomínio, consumos de água, electricidade e gás e taxa de protecção civil suportados pelo autor na administração de bens comuns do casal.
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Pelo exposto, acordamos em julgar procedente o recurso e, consequentemente, em revogar a decisão recorrida que se substitui por outra que ordena o prosseguimento da acção no Tribunal Judicial de Lisboa Oeste – Cascais, por apenso ao processo de inventário.
Sem custas.
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Lisboa,14.11.2019


Luís Correia de Mendonça
Maria Amélia Ameixoeira
Rui Moura