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CRIME DE AMEAÇA
CRIME CONTRA A LIBERDADE
Sumário
Quer através do critério objetivo-individual, traduzido na vontade do agente (ameaça, simples aviso ou advertência), quer mediante recurso à teoria dos bens jurídicos protegidos (liberdade de formação da vontade ou segurança e tranquilidade da pessoa visada versus constrangimento da liberdade de agir ou de ação) a frase «se torna a falar das minhas filhas, parto-lhe as pernas» não integra um crime de ameaça, sem prejuízo de poder integrar uma outra tipologia no espectro dos crimes contra a liberdade – liberdade de decisão e ação.
Texto Integral
Processo nº 25/17.7GDOAZ.P1 Acordam os Juízes que integram esta 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.
Relatório.
Em processo comum, com intervenção do tribunal singular, procedeu-se a julgamento de:
a) B…, filho de F… e de G…, casado, nascido a 02/03/1977, natural da Freguesia de …, concelho de Oliveira de Azeméis, actualmente residente na Rua …, nº …, …, São João da Madeira, portador do BI n º………, e
b) C… (recorrente), filha de H… e de I…, casada, nascida a 27/11/1982, natural da Freguesia de …, concelho de Oliveira de Azeméis, Rua …, nº …, …, São João da Madeira, portadora do CC nº …….. …..
Da discussão da causa resultou o dispositivo:
a) Absolver o arguido B…, da prática, em autoria material de um crime de ameaça, p.p. pelo artº 151, nº 1, do CP.
b) Condenar a arguida C…, pela prática, em autoria material e em concurso efectivo e real, de:
1) um crime de ameaça, p. e p. pelos artigos 14, nº1, 26, 153, nº1, do CP, na pena de 80 dias de multa, à razão diária de 6,50€ (seis euros e cinquenta cêntimos);
2) um crime de injúria, p. e p. pelos artigos 14, nº1, 26, e 181, nº1, do CP, na pena de 40 dias de multa, à razão diária de 6,50€ (seis euros e cinquenta cêntimos);
3) um crime de injúria, p. e p. pelos artigos 26, 14, nº1, e 181, nº1, do CP, na pena de 60 dias de multa, à razão diária de 6,50€ (seis euros e cinquenta cêntimos); e
c) Em cúmulo jurídico, ao abrigo dos artigos 30, nº1, e 77 do CP, na pena única de 140 dias de multa, à razão diária de 6,50€ (seis euros e cinquenta cêntimos), perfazendo o montante global de 910,00 €.
(…)
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1) No dia 25 de Janeiro, pelas 02h00m, via «Messenger», a arguida C… em mensagem escrita dirigida a D… e referindo-se à ofendida E…, disse: «se torna a falar das minhas filhas parto-lhe as pernas».
2) O teor de tal mensagem chegou ao conhecimento da ofendida E… porquanto D… reencaminhou-lhe a referida mensagem, tendo a mesma sido recebida pela ofendida em data não concretamente apurada mas após 25/01/17.
3) No dia 25 de Janeiro de 2017, cerca das 01h 00m, através do Facebook/Messenger, a arguida enviou à assistente as seguinte mensagens: “O vaca de mera ele está aqui otária” e “O bando está comigo oh rota de merda”.
4) No dia 26/01/2017, cerca das 12h45m, a assistente e o arguido B… encontraram-se nas imediações da Escola J…, junto à rotunda ali existente, em Oliveira de Azeméis, a fim de a irmã do arguido lhe devolver alguns dos seus pertences, uma vez que assistente e arguido haviam terminado o relacionamento que existia entre ambos.
5) No dia 17/02/2017, cerca das 16h 45m, junto da Escola J…, em Oliveira de Azeméis, estando presente o filho da assistente, a arguida C… dirigiu-se à assistente e disse-lhe: “És uma puta que se deita com homens casados”.
6) A referida expressão foi proferida em voz alta, de modo a poder ser ouvida por todos os que ali se encontravam, designadamente o filho da assistente.
7) Ao agir da forma supra descrita a arguida C… fê-lo de forma voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era adequada, como foi, a causar medo e receio na assistente pela sua integridade física, o que foi querido por aquela.
6) Por todo o exposto, a assistente E… sente medo da arguida, temendo que esta venha a concretizar o mal anunciado.
7) A expressão proferida em 1) pela arguida C… no que respeita à assistente é meio idóneo a provocar-lhe medo e inquietação, o que aconteceu, na medida em que a ofendida, em consequência da mesma, ficou a temer pela sua integridade física.
8) A arguida C… sabia que estava a proferir a expressão escrita através do Messenger a um amigo comum, pretendendo com isso que tais expressões intimidatórias e ameaçadoras fossem transmitidas à assistente, o que conseguiu.
9) A arguida agiu com o propósito de intimidar a ofendida e de lhe provocar receio de vir a sofrer ato atentatório da sua integridade física, ciente de que o meio por si utilizados era adequado a causar-lhe tal receio, como efectivamente causou, bem como a prejudicar a sua liberdade de determinação, o que conseguiram, não se abstendo de agir do modo descrito.
10) Por outro lado, ao dirigir à assistente as expressões: És uma puta, rota de merda e otária, a arguida fê-lo com o propósito de ofender a honra, bom nome e consideração da assistente e consciente do carácter ofensivo das palavras que utilizou.
11) Agiu de modo livre, deliberado e consciente, apesar de saber que tais condutas não são permitidas e que ao adoptá-las praticava actos proibidos e punidos por lei.
12) Do CRC dos arguidos nada consta.
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Enquadramento jurídico-penal
Dos crimes de ameaça
Preceitua o artigo 153 do Código Penal, na parte que interessa:
“1- Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”.
O tipo legal do crime de ameaça visa proteger o bem jurídico da liberdade pessoal, que se traduz na liberdade de decisão e de acção, pois “as ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, afetam, naturalmente, a paz individual que é condição de uma verdadeira liberdade” (cf. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte especial, Tomo I, Coimbra, 1999, p. 342).
O preenchimento deste tipo legal de crime basta-se com a verificação da aptidão genérica e abstracta do concreto ato praticado para causar medo. Isto é, não é necessário que, em concreto, a vítima fique efectivamente amedrontada, sendo suficiente que a conduta ameaçadora tenha essa aptidão, a avaliar segundo um critério objectivo-individual, o que impõe relevar, por um lado, as circunstâncias em que a ameaça é proferida e a personalidade do arguido e, por outro lado, as características e a debilidade da própria vítima (cfr. Taipa de Carvalho, ob. cit.., I, p. 348).
Em correspondência, não existe crime de ameaça, mesmo que o destinatário da conduta do agente fique atemorizado, se o mal ameaçado não for idóneo para esse efeito.
A doutrina e a jurisprudência esclarecem, de modo pacífico, que o mal ameaçado tem de ser futuro, não se preenchendo o crime de ameaça se o mal ameaçado é iminente, pois, “neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento” (cfr. Taipa de Carvalho, ob. cit., I, p. 343; Acórdão da Relação do Porto, de 28.11.2007, proc. nº071215, in www.dgsi.pt).
Com efeito, esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coacção, entre ameaça (de violência) e violência. Assim, p. ex., haverá ameaça, quando alguém afirma “hei – de - te matar”; já se tratará de violência, quando alguém afirma: ”vou-te matar já”. Que o agente refira, ou não, o prazo dentro do qual concretizará o mal, e que, referindo-o, este seja curto ou longo, eis o que é irrelevante. Necessário é só, como vimos, que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos de tentativa (cf. art. 22-2 c))” – cf. Taipa de Carvalho, ob. cit., I, p. 343; Acórdão da Relação de Coimbra, de 12.12.2001, proc. nº 2880/2001; e Acórdão da Relação do Porto, de 25.01.2006, processo nº 0544124, ambos in www.dgsi.pt.
Encontra-se demonstrado que, no dia 25 de Janeiro de 2017 a arguida C… remeteu uma mensagem escrita a D… e referindo-se à assistente, dizendo: “Se torna a falar das minhas filhas, parto-lhe as pernas”. Nesta sequência, a assistente, que teve conhecimento da mensagem através daquela testemunha, ficou com medo de que a arguida pudesse concretizar, em momento futuro e dependente em exclusivo da sua vontade, o que lhe estava a dizer, pelo que receou pela sua integridade física e pela sua vida.
A arguida quis dirigir a D… aquela expressão sabendo que este ia de imediato transmiti-la à assistente, como era sua intenção e se lê na mensagem.
Neste passo, compete fazer a destrinça entre o sujeito passivo ou vítima do crime, coincidente com o destinatário da ameaça, e a pessoa objecto do crime ameaçado, i.e, o sujeito passivo ou vítima da prática (futura) do crime que dá corpo à ameaça, sendo certo que a pessoa objecto da ameaça e a pessoa objecto do crime ameaçado poderão não coincidir (cf. Taipa de Carvalho, ob. cit., p. 346).
No caso concreto, conclui-se que a vítima (destinatária) do crime de ameaça coincide com a pessoa objecto do crime ameaçado, verificando-se a particularidade de tal ameaça ter sido efectuada por interposta pessoa, que, por sua vez, a comunicou à assistente.
Com efeito, o crime de ameaça não impõe que a ameaça seja efectuada directamente à pessoa ameaçada (e coincidente com a pessoa objecto do crime ameaçado), podendo ter lugar na ausência do ameaçado (cf., neste sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 6.05.1998, proc. nº0065353, in www.dgsi.pt), desde que chegue ao conhecimento deste e lhe provoque medo ou inquietação (cf. Acórdão da Relação de Lisboa, de 6.11.2001, processo nº 0075505, in www.dgsi.pt),como sucedeu no caso concreto.
A arguida anunciou, um mal futuro, dirigido à assistente (a pessoa objecto do crime ameaçado), ameaçando-a de que lhe partia as pernas, sendo que as expressões que a arguida utilizou eram aptas a provocar um estado de temor ou medo capaz de limitar ou constranger, de forma reputada relevante, a paz individual ou a liberdade de determinação da assistente, mormente se considerarmos o enquadramento socio emocional em que foram proferidas.
No plano do tipo subjectivo, o crime de ameaça caracteriza-se pelo dolo genérico (não exigindo um dolo específico, traduzido na intenção de causar medo ou intranquilidade, ou na intenção de concretizar a ameaça), bastando que o agente represente e, pelo menos, se conforme com a adequação da expressão ameaçadora proferida a provocar medo ou intranquilidade no ameaçado (cf. Taipa de Carvalho, ob. cit., I, p. 351; e Acórdão da Relação de Coimbra, de 14.02.2001, proc. nº3324-2000, in www.dgsi.pt).
A arguida actuou com dolo directo (cf. artigo 14, nº1, do CP), pois agiu de forma voluntária, livre e consciente, representando (elemento intelectual) e querendo (elemento volitivo) incutir na assistente inquietação e receio de que viria a atentar contra a integridade física desta, designadamente partindo-lhe as pernas, sabendo que as expressão utilizada era idónea a produzir tal resultado.
Por conseguinte, o elemento subjectivo do tipo legal de crime de ameaça agravada em apreço encontra-se igualmente presente na actuação da referida arguida.
A arguida actuou com consciência da ilicitude, pois sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Não se verifica qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
Por todo o exposto, a arguida praticou, em autoria material, um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 14, nº1, 26, 153, nº1, do CP.
Nenhuma outra matéria de fato resultou provada que permita concluir pela imputação quer à arguida, quer ao arguido da prática de um outro ou de um crime de ameaça, pelo que, nesta parte, impõe-se a absolvição do arguido B… da prática de um crime de ameaça, p. p. pelo artº 153, nº 1, do C.P. e da arguida C…, da prática, em autoria material e concurso real de um outro crime de ameaça, p.p. pelo artº 153, nº 1 do CP.
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Recurso da arguida C…. Conclusões:
I. A recorrente foi condenada pela prática, em autoria material e em concurso efectivo e real, de a) um crime de ameaça, p. e p. pelos artigos 14, nº 1, 26, 153, nº 1, do Código Penal, na pena de 80 dias de multa, à razão diária de 6,50€ (seis euros e cinquenta cêntimos); b) um crime de injúria, p. e p. pelos artigos 14, nº 1, 26, 181, nº 1, do Código Penal, na pena de 40 dias de multa, à razão diária de 6,50€ (seis euros e cinquenta cêntimos); c) um crime de injúria,
p. e p. pelos artigos 14, nº 1, 26, 181, nº 1, do Código Penal, na pena de 60 dias de multa, à razão diária de 6,50€ (seis euros e cinquenta cêntimos); em cúmulo jurídico, ao abrigo dos artigos 30°, n° 1, e 77 do Código Penal, na pena única de 140 dias de multa, à razão diária de 6,50€ (seis euros e cinquenta cêntimos), perfazendo o montante global de 910,00€.
II. Mais foi a recorrente, julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização, condenada a pagar à assistente a quantia global de 1.000€ (mil euros), acrescido de juros de mora contados à taxa legal desde a notificação para contestar, até integral pagamento.
III. A expressão "se torna a falar das minhas filhas parto-lhe as pernas”, não poderá, nunca, ser considerada uma ameaça, nos termos que a lei pretende punir através do artigo 153 nº 1 do Código Penal, configurando um aviso ou advertência na dependência do comportamento da ofendida.
IV. A expressão usada, típica de uma situação de conflito, de acordo com as circunstâncias dadas como provadas, não era adequada a causar medo ou inquietação, não assumindo gravidade suficiente reveladora do perigo concreto para o bem jurídico protegido com o tipo legal.
V. Decorre do exposto que a recorrente deve ser absolvida da prática do crime de ameaças que lhe é imputado.
VI. O tribunal a quo violou, pois, o artº 153 nº 1 do Código Penal, subsumindo ao crime de ameaça uma expressão que não é adequada a produzir tais efeitos.
VII. Quanto ao pedido cível, tendo como causa de pedir o ilícito criminal, a absolvição decorrente deste impõe a absolvição também daquele.
VIII. Por outro lado, considerado o conjunto fáctico provado resulta que a culpa da recorrente e a necessidade da pena apresentam-se especialmente diminuídas em relação aos limites da moldura correspondente aos tipos de facto descrito na lei, e a fixação da pena única de 140 dias de multa - mesmo no caso de improcedência da primeira parte do recurso relativamente ao crime de ameaças, o que apenas por mera hipótese académica se concede - revela-se exagerada, devendo ter sido aplicado o instituto da atenuação especial da pena nos termos do disposto no artº 72 e 73 do Código Penal.
IX. Se assim se não entender, sempre foi excessiva, por desajustada à culpa bem como às particulares exigências de prevenção especial e, mesmo, geral, a pena aplicada à recorrente, pelo que deverá ser diminuída.
X. Relativamente ao quantitativo diário da multa, a recorrente considera que não foram devidamente valoradas as suas condições económico-financeiras, sendo o quantitativo diário da multa que lhe foi aplicado, desproporcional às suas capacidades para a cumprir mantendo designadamente o digno sustento do seu agregado familiar, do qual faz parte o seu marido e três filhas, auferindo os membros do casal apenas o salário mínimo nacional.
XI. Nesta medida, torna-se incompreensível a fixação de um quantitativo diário superior ao mínimo.
XII. Foram violados os artigos 40 nº 2, 47 nº 1, 70, 71, 72, 73 e 77 todos do CP.
XIII. Relativamente ao pedido de indemnização civil em que o recorrente/demandada foi condenada, face a toda a argumentação supra expendida, sempre o mesmo se encontra desenquadrado da culpa da recorrente, ou seja, deverão efectivamente ser analisadas as indemnizações em que aquela foi condenada, de acordo com a sua culpa e apenas esta, o que se requer.
Resposta do MP Conclusões:
1. A factualidade julgada como provada integra, entre o mais, a prática pela arguida de um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153, nº 1 do CP, cujo preenchimento resulta devidamente sustentado na sentença recorrida.
2. É inequívoca a aptidão das expressões utilizadas pela arguida, ameaçando que partiria as pernas à assistente, a provocar um estado de temor ou medo capaz de constranger, de forma reputada relevante, a paz individual ou a liberdade de determinação da assistente, mormente se considerarmos o enquadramento socio emocional em que foram proferidas.
3. O Tribunal a quo bem andou na determinação da medida da pena de multa aplicada à arguida recorrente, não se verificando in casu qualquer das circunstâncias previstas no artigo 72 do CP.
4. Face ao escrupuloso cumprimento dos princípios basilares que compõem todo o sistema de escolha e determinação da medida da pena e das finalidades da punição (e que encontram consagração legal nos artigos 40 e ss e 70 e ss do Código Penal), e, bem assim, ao atendimento de todas as circunstâncias elencadas no artigo 71.º do Código Penal in casu relevantes, não se encontra qualquer motivo para alterar os quantii sancionatórios alcançados.
5. Assim, pelas razões melhor expendidas na sentença recorrida, afigura-se-nos adequada e suficiente às circunstâncias do caso concreto a aplicação das penas parcelares de multa e da pena única alcançada, reclamada, por um lado, pelas não despiciendas exigências de prevenção geral e, por outro, pelas exigências de prevenção especial acrescidas ao nível da necessidade da pena e de incutir na arguida a inadequação da respectiva reacção com a prática de ilícitos criminais em contexto de conflito emocional; e ainda justificada pela intensa culpa com que actuou (dolo directo) e de forma reiterada, com considerável grau de ilicitude manifestado na prática dos últimos factos;
6. Plenamente se justificando, à luz dos critérios legais aplicáveis, a determinação dos 140 dias de multa nos quais o Tribunal a quo veio a condenar a recorrente.
7. Também a fixação do quantitativo diário da pena de multa aplicada (em €6,50), a situar num intervalo entre €5,00 e €500,00, obedeceu a critérios de proporcionalidade e adequação, face às condições socio económicas da arguida recorrente.
8. Por tudo o exposto, não deverá o recurso a que ora se responde merecer provimento, mais devendo a douta sentença recorrida ser confirmada e integralmente mantida.
Resposta da assistente E…
Com argumentação que passa pela interpretação do regime legal, a assistente reitera as posições defendidas na sentença e resposta a quo.
O recurso deve improceder.
Parecer.
Defende-se que a natureza condicional da ameaça não retira o caracter ameaçador da expressão. A frase “se torna a falar das minhas filhas, parto-lhe as pernas” não deixa de anunciar um mal futuro a concretizar. Partir as pernas significa causar ofensas corporais.
Na defesa de uma atenuação especial a arguida vem brandir com o comportamento da assistente; a depressão da arguida e o tempo decorrido após a prática dos factos. O comportamento da assistente não terá provocado a arguida … O facto de estar medicada, situação não devidamente provada, não constitui causa especial de atenuação e o decurso do tempo, não é tão expressivo de modo a justificar o funcionamento desta causa.
O quantum diário não é passível de ser diminuído pois está muito perto do mínimo legal.
Por tudo, o recurso deve ser improcedente.
Cumpriu-se o artº 417 nº 2 do CPP:
Resposta da recorrente ao parecer.
Mantém tudo que alegou em sede de recurso, devidamente sumariado nas conclusões.
Colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta à apreciação do mérito.
Mantém-se a regularidade da instância.
Fundamentação e direito.
Os fundamentos do recurso são explanados na motivação, com o pedido devidamente sumariado nas conclusões – artº 410 nº 1 do CPP.
O objecto do presente recurso levanta as seguintes questões:
a) A factualidade dada como provada não preenche o crime de ameaças, previsto e punido pelo artº 153 nº 1 do CPP.
b) As penas de multa aplicadas são excessivas, além disso, pelo facto de a culpa da arguida ser diminuída, deve funcionar um critério de atenuação especial.
c) A redução do respectivo quantitativo diário nas multas aplicadas.
d) A indemnização (pedido cível) fixada deve ser revista de acordo com a medida concreta da culpa.
Do crime de ameaças.
Prescreve o artº 153 nº 1 do CPP - “Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”.
O artigo configura actualmente um crime de mera acção e perigo. A primitiva concepção de crime de resultado foi irremediavelmente afastada no sentido de apenas se definir um nexo causal entre a conduta e o resultado desejado (provocar medo …) – doutrina da causalidade adequada.
A ameaça terá que ser adequada a provocar medo e inquietação ou prejudicar a liberdade de determinação, não sendo agora necessário produzir concretamente um resultado ou dano, precisamente porque o crime basta-se com a mera acção e perigo.
Os bens ameaçados confinam-se (restrição) à vida, integridade física, liberdade pessoal, liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor.
A acção de ameaçar pode ser desencadeada por qualquer forma: oralmente, por escrito, gestualmente ou através das novas tecnologias. Pode ser exercida directa ou indirectamente e o mal ameaçado deve consistir num facto ilícito criminal típico.
Por último, a ameaça pode ser exercida através de interposta pessoa mas sempre com individualização do ameaçado. A pessoa objecto da ameaça e a pessoa objecto do crime ameaçado poderão não coincidir. Importante é a ameaça com a prática de um crime, seja ou não a pessoa do ameaçado – Comentário Conimbricense ao artº 153 do CP – A. Taipa de Carvalho - Coimbra Editora – fls 346.Decisivo é que o destinatário tome conhecimento da ameaça.
O bem jurídico protegido é a liberdade de decisão e acção.
A ameaça terá que conter um mal futuro que dependa da vontade do agente.
A arguida C… disse, por meio de mensagem, a D…, referindo-se à assistente E…: se torna a falar das minhas filhas, parto-lhe as pernas.
Os elementos da ameaça parecem estar todos preenchidos.
Esta aparência tem de ser questionada.
O mal é de natureza pessoal e corporiza uma ofensa corporal – parto-lhe as pernas. O mal ameaçado tem que ser futuro. O mal não pode ser iminente, sob pena de uma tentativa de execução, mas será que pode ser condicional (?): se torna a falar …
Por último o mal futuro depende da vontade da arguida (agente). Pressupõe, naturalmente, que a arguida manifeste vontade de que a ameaça chegue ao conhecimento do destinatário, problemática que nos conduz para o tipo subjectivo de ilícito, com a ressalva de que é irrelevante a intenção de concretizar a ameaça. Esta delicada questão remete-nos para a apreciação mais ampla do tipo objectivo de ilícito, onde o mal futuro dependa, ou apareça como dependente, da vontade do agente. Resulta que é necessário estabelecer a perfeita distinção entre ameaça e advertência ou aviso – Citado Comentário, fls 343/344.
O critério objectivo-individual, seguido por este autor (com exemplos práticos), leva-nos a aferir a vontade de um (agente) homem médio/comum. O que pretende a arguida nestas circunstâncias: ameaçar ou coagir? Ameaça de violência ou violência? O aviso ou advertência funcionam como meio de coacção?
A vontade do agente interpretada através da frase: se torna a falar das minhas filhas, parto-lhe as pernas não constitui um meio de ameaça mas antes pura coacção, aviso ou advertência, coarctando a liberdade de decisão e acção. Ainda sobre esta matéria veja-se o brilhante acórdão do Desembargador Joaquim Gomes do TRP – nº 416/10.4TAOAZ.P1, de 13/07/2011 – I) O critério distintivo tradicional entre crimes de ameaça (artº 153 do CP) e coacção (artº 154 do CP) é a temporalidade da intimidação. II) Sem prejuízo deste critério formalista funcionar como coadjuvante, deve contudo assentar em razões teleológicas ligadas à especificidade dos bens jurídicos tutelados por cada uma das normas. III) Assim integrará o crime de ameaça a conduta que afectar a liberdade de formação da vontade ou a segurança e tranquilidade da pessoa visada e do crime de coacção se ocorrer constrangimento da liberdade de agir ou de acção (decidir). IV) A expressão … vou fodê-lo, dou-lhe dois tiros nos cornos …constitui um crime de ameaça.
Ao invés do que diz Taipa de Carvalho in “Comentário Conimbricense”, ao centrar a interpretação da ameaça no critério objectivo-individual, o citado acórdão, suportado em bibliografia mais transversal, procura a diferença, e por vezes a distinção, no confronto com outros tipos de crime, projectando a teoria do bem jurídico, como base irrenunciável de um sistema jurídico-penal racional – La Teoria del Bien Jurídico – Andrew von Hirsch (entre outros) Marcial Pons, fls 33 e sgs. Além da abundante bibliografia citada no acórdão, veja-se concretamente Gunter Stratenwerth – Derecho Penal – Parte General I – El Hecho Punible - fls 55/59. AindaH. Jescheck – Tratado de Derecho Penal – Parte General fls 7/9 – Editorial Comares. Gunther Jakobs – Derecho Penal – Parte General – Fundamentos e Teoria de la Imputación – fls 44/55 – Marcial Pons.Numa súmula, sobre o que demais importante há nas doutrinas alemã e anglo-saxónica (harm principle), J. Figueiredo Dias – Direito Penal – Parte Geral Tomo I – Coimbra Editora - §21/§30, aborda as concepções sobre bem jurídico, sistema social e sistema jurídico-constitucional…
Evitando ser fastidioso sobre esta matéria, importa concluir que, quer através do critério objectivo-individual, traduzido na vontade do agente (ameaça, simples aviso ou advertência) quer mediante recurso à teoria dos bens jurídicos protegidos (liberdade de formação da vontade ou segurança e tranquilidade da pessoa visada versus constrangimento da liberdade de agir ou de acção) a frase: se torna a falar das minhas filhas, parto-lhe as pernas, não integra um crime de ameaças, sem prejuízo de poder (aviso, advertência, constrangimento…) integrar uma outra tipologia no espectro dos crimes contra a liberdade pessoal – liberdade de decisão e acção. Neste sentido, quanto a esta causa, o recurso é procedente.
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……………………………………………………….. Acordam os juízes que integram esta 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em dar provimento parcial ao recurso interposto pela arguida C…, absolvendo-a da prática de um crime de ameaças (artº 153 nº 1 do CP), reformulando a pena única de multa, com consequente redução da indemnização (pedido cível), tudo nos termos supra referidos.
Sem tributação.
Registe e notifique.
Porto, 25 de Setembro de 2019.
Horácio Correia Pinto.
Moreira Ramos.