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ACTIVIDADE PERIGOSA
PRESUNÇÃO DE CULPA
NEXO CAUSAL
ÓNUS DA PROVA
Sumário
I- A responsabilidade por factos ilícitos, com base na culpa, é a regra, pois só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei – artigo 483.º, n.º 2 do Código Civil.
II- A presunção consagrada no artigo 493.º, n.º 2, é uma presunção legal de culpa, porque implica uma inversão do ónus da prova (artigo 350.º, n.º 1, do Código Civil). E é uma presunção iuris tantum, na medida em que admite a ilisão por prova em contrário (artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil).
III– O nível de diligência imposto pelo n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil para a determinação das providências exigidas para afastar a produção dos danos é definido pelo critério do bom pai de família – padrão de um sujeito ideal, designado pelos romanos de «bonus pater familias», a diligência relevante para efeitos de determinação da culpa é a de um homem normal perante as circunstâncias do caso concreto – adaptado às circunstâncias e particularidades especificas da actividade perigosa.
IV– A qualificação de uma actividade como perigosa será a sua especial aptidão para produzir danos, aptidão que há-de resultar, como a própria lei o define, da sua própria natureza ou da natureza dos meios utilizados.
V– O artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil estabelece uma presunção de culpa sobre quem exerce uma actividade perigosa (por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados), com a inerente inversão do ónus da prova, de acordo com o estatuído no artigo 344.º do Código Civil, pois que ao lesante se passa a exigir a demonstração de que adoptou todos os cuidados (regras técnicas e deveres ditados pelas regras da experiência comum) que as concretas circunstâncias exigiam para evitar o dano.
VI– Essa presunção só funciona após a prova de que o evento se ficou a dever a razões relacionadas com a actividade perigosa.
VII– Esse ónus de prova (do facto que serve de base à presunção de culpa) cabe ao lesado (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil).
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
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I - RELATÓRIO.
AS PARTES
A: E. G. RR.: X, LDA.
M. M.
Y-MATERIAIS DE CONSTRUÇÃO, LDA
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A A. demanda os RR. pedindo a condenação solidária dos Réus a pagarem-lhe a quantia de 80.000,00 €, a título de danos não patrimoniais.
Alegou, para tal, ser filha única de A. G., que no dia 28 de Setembro de 2015 se encontrava a exercer a actividade de subempreiteiro da Ré X, Lda. A qual, por sua vez havia celebrado um contrato de empreitada com o Réu M. M. para execução de trabalhos de construção civil na habitação deste.
Nessa ocasião e quando um trabalhador da Ré Y, Lda., manobrava uma grua que descarregava vigas de betão no primeiro andar da referida habitação, sendo tais vigas presas à lança da grua com correntes, estas ficaram presas na laje, após o que, um outro trabalhador solicitou ao manobrador da grua que levantasse a lança para colocar um calço debaixo das vigas e soltar aquelas correntes.
Na sequência e quando o condutor/manobrador do camião grua moveu a lança da grua, as correntes “deram um esticão” e as vigas balançaram, indo embater nas pernas do pai da Autora, causando a sua queda numa altura de cerca de seis metros, o que lhe provou lesões várias que determinaram a sua morte no dia 29 de Novembro de 2015.
Ademais, alegou que, na altura do acidente, a obra não dispunha de meios de protecção colectiva, nem individual, designadamente, guarda corpos, linhas de vida e arnês contra risco de queda em altura, mais concluindo que a queda do A. G. se deveu ao embate das vigas nas pernas do mesmo e à falta dos meios de segurança contra risco de queda em altura.
Acresce que a ACT, em inquérito, concluiu que, embora tivesse sido elaborado o plano de segurança e saúde (PSS) pela 1ª R. para aquele estaleiro, na qualidade de entidade executante da obra, que este não se encontrava a ser cumprido pela mesma, nomeadamente, no que se refere à intervenção de subempreiteiros na obra, à movimentação de cargas e às medidas específicas de segurança nos trabalhos a realizar em altura, violando assim o artigo 11º, do Decreto-Lei n.º 273/2003, de 29 de Outubro. A mesma ACT concluiu ainda que não foi nomeado coordenador de segurança e saúde na fase de execução da obra, embora constasse do PSS como responsável pela segurança V. J., sócio-gerente da 1ª R., que não podia exercer esse cargo por pertencer à entidade executante, em violação do artigo 9º do mesmo diploma legal.
Concluiu elencando as várias normas legais imperativas violadas pela 1ª e 2º Réus e evidenciando que o trabalhador da 3ª Ré (que se encontrava sob ordens e direcção desta), também não agiu com o cuidado e diligência necessárias, para que, ao manobrar a grua, evitasse que as vigas fossem embater no pai da A..
Terminou peticionando as quantias indemnizatórias de € 20.000,00 pelo sofrimento do sinistrado no período que mediou desde o acidente até ao seu decesso, € 50.000,00 pelo dano da vida e € 10.000,00 por danos não patrimoniais sofridos com a morte de seu pai.
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O I.S.S., I.P., não deduziu pedido de reembolso.
A 3.ª Ré Y - Materiais de Construção, Lda., veio contestar, impugnando a factualidade alegada pela Autora e excepcionando a ilegitimidade da Autora pelo facto de a titularidade de a indemnização pelo dano próprio do sinistrado e pelo direito à vida caberem aos herdeiros daquele, sendo que a Autora nem sequer invoca a qualidade de herdeira do sinistrado, acrescentando que tal qualidade só se prova por habilitação de herdeiros que no caso inexiste.
Mais referiu, que o acidente se deu por negligência do próprio sinistrado que trabalhava sem qualquer protecção, mais dizendo que o manobrador da grua, não tendo visibilidade para o telhado, se limitou a seguir as ordens do sinistrado e do trabalhador J. L.. Continuou dizendo que o sinistrado caiu porque se aproximou da beira do telhado sem tomar os devidos cuidados, concluindo que nenhum facto ilícito foi praticado pelo manobrador da grua e seu empregado, pelo que pugnou pela improcedência da acção.
Os 1.º e 2.º Réus X, Lda. e M. M. contestaram, começando por requerer a intervenção principal, provocada da Companhia de Seguros W, S.A., dado ter para ela transferido a responsabilidade civil decorrente da sua actividade de construção civil por contrato de seguro.
Mais excepcionou a ilegitimidade da Autora pelo facto de a titularidade de a indemnização pelo dano próprio do sinistrado e pelo direito à vida caberem aos herdeiros daquele, sendo que a Autora nem sequer invoca a qualidade de herdeira do sinistrado, acrescentando que tal qualidade só se prova por habilitação de herdeiros que no caso inexiste.
Prosseguiram impugnando a factualidade alegada pela Autora e alegaram que a 1ª Ré, por força do contrato de sub-empreitada de mão-de-obra firmado com o sinistrado, transferiu para este toda a responsabilidade pela execução do mesmo, nomeadamente quanto à segurança. Acrescentaram que, aquando da celebração do contrato, entregaram ao sinistrado todo o material necessário à implementação das medidas de segurança (guarda corpos, linha de vida e arnês) imputando ao sinistrado o incumprimento do plano de segurança.
Por fim, concluíram pela existência de negligência por banda do sinistrado e pugnaram pela sua absolvição do pedido.
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A Autora veio responder defendendo a sua legitimidade para a causa dado que, como alegou logo no artigo 1º da douta petição inicial, é a única filha do falecido A. G., o qual faleceu no estado de divorciado, sendo ela a única titular do direito indemnizatório em causa na presente acção, quer pela via sucessória, quer como direito próprio.
Mais se pronunciou sobre a documentação junta pelos Réus, nada tendo oposto à requerida intervenção principal.
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Foi proferido despacho a admitir a intervenção principal provocada da Companhia de Seguros W, S.A..
Veio a Companhia de Seguros W, S.A., ora denominada SEGURADORAS ..., S.A., apresentar contestação onde invocou a excepção peremptória da inexistência do direito de ser directamente accionada pela Autora em face do disposto no artigo 140º do DL 72/2008, de 16 de Abril e, bem assim, a sua ilegitimidade passiva para ser demandada por via principal, porquanto só por via da intervenção acessória poderá a segurada, caso seja responsabilizada, obter o reembolso do que tiver de prestar.
Mais excepcionou a prescrição do direito de indemnização da Autora pelo facto de o acidente ter ocorrido em 28 de Setembro de 2015, tendo a Ré sido citada apenas no dia 15 de Novembro de 2018.
Invocou também o facto de a Autora não ter deduzido qualquer pedido contra a Interveniente, concluindo não poder ser condenada, sob pena de manifesta nulidade da decisão.
Prosseguiu na impugnação da factualidade alegada pela Autora e afirmou que o alegado evento não está coberto pelo seguro em causa por não ter enquadramento nas garantias da apólice, ademais que o dito evento teve origem numa manobra da grua e o A. G. era trabalhador independente e assumia, no momento, a dupla posição de empregador e trabalhador, sendo que a Ré X não era a entidade patronal daquele.
Mais salientou que era àquele A. G. que competia ter tomado as medidas necessárias para prevenir a ocorrência do acidente e o risco de queda em altura, de tudo o que concluiu pela improcedência da acção.
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Dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador onde foi declarada a ilegitimidade da Interveniente SEGURADORAS ..., S.A., com a consequente absolvição da instância e afirmada a legitimidade da Autora e julgados verificados os demais pressupostos da instância, tendo-se em seguida fixado o objecto do litígio e elaborado os temas da prova, sem reclamação das partes.
Prosseguiram os autos os seus termos e após audiência final foi proferida SENTENÇA, julgando a demanda improcedente, absolvendo os RR. dos pedidos.
A A dela vem interpor RECURSO, pedindo a revogação da sentença e sua substituição por outra, a julgar totalmente procedente a presente acção.
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A recorrente apresentou as seguintes CONCLUSÕES:
“1. Com o presente recurso, a Apelante vem impugnar a decisão, quer quanto à matéria de facto, quer quanto à matéria de direito. 2. Salvo o devido respeito por opinião diversa, verifica-se erro na apreciação da prova por parte do Tribunal “a quo”, relativamente aos factos dados como provados nos números 8 e 13 e relativamente aos factos dados como não provados nos números 1, 6, 7 e 9, os quais se reportam às circunstâncias e modo em que terá ocorrido a queda do pai da Apelante. 3. De facto, o Tribunal “a quo” não deu como provado a forma e as circunstâncias em que ocorreu a queda do sinistrado. 4. O Tribunal “a quo” decidiu desta forma, uma vez que “os depoimentos das testemunhas A. V. e J. F. (…) se revelaram bastante divergentes em várias das circunstâncias ocorridas nos momentos que precederam a queda. 5. A prova que o Tribunal recorrido disponha, no que toca a esta matéria, não se limitava aos depoimentos das ditas testemunhas A. V. e J. F.. 6. Além dos ditos depoimentos, versaram sobre esta matéria o relatório do inquérito elaborado pela ACT, do qual constavam as declarações prestadas pelo entretanto falecido J. L., bem como do depoimento da testemunha A. M., inspetora da ACT. 7. Do dito relatório da ACT, consta que “o sinistrado; A. G., que assumia a qualidade de subempreiteiro, estava a executar trabalhos de requalificação da habitação ao nível do vigamento da laje do teto do 1.º andar (a cerca de 6 metros de altura) quando se deu a sua queda. Nesses trabalhos estavam envolvidos mais dois trabalhadores, por si contratados, um deles a testemunha J. L.. Segundo declarações dessa testemunha, o sinistrado encontrava-se a posicionar vigas na laje do 1.º andar, juntamente com ele. As vigas de betão eram presas à lança do camião grua através de correntes para, posteriormente, serem elevadas e colocadas na laje por ambos, que as soltavam e posicionavam na laje. No momento do acidente, as cadeias transportavam cerca de 5/6 vigas que estavam a ser pousadas na laje, quando a corrente que prendia as vigas ficou presa na cofragem da laje. Para soltar a corrente, a testemunha pediu ao condutor manobrador para levantar a lança a fim de meter um calço de madeira debaixo das vigas e assim soltar a corrente. Foi quando a lança da grua se moveu que as correntes deram um esticão provocando o balancear das vigas que embateram nas pernas do sinistrado, atirando-o de cima da obra e originando a sua queda em altura.” 8. Assim, com a reapreciação da matéria de facto, o que se pretende é que o Venerando Tribunal da Relação, proceda, com base no relatório da ACT e do depoimento da testemunha A. M., inspetora da ACT, à alteração da matéria dada como assente. 9. Com efeito, dos referidos relatório e depoimento, facilmente se pode concluir que o sinistrado A. G. caiu de uma altura de cerca 6 metros, onde se encontrava a executar trabalhos de construção civil, em consequência das vigas lhe terem embatido nas pernas. 10. O depoimento da testemunha J. L., prestado perante a Inspetora da ACT, só não foi reproduzido em audiência, devido ao facto do mesmo ter, entretanto, também falecido. 11. Porém, tal depoimento foi relatado em audiência pela Inspetora da ACT, pelo que, embora o mesmo fosse indireto, deveria ter sido valorado com vista à descoberta da verdade material. 12. Aliás, relativamente a outras matérias, o Tribunal “a quo” socorreu-se destes meios de prova, nomeadamente, a factualidade provada sob os pontos I.17 e I.18, que “foi confirmada, desde logo e em data mais próxima do sucedido, pelas declarações prestadas pelo entretanto falecido J. L. no âmbito do inquérito da ACT a fls.135 verso dos autos (…)”. 13. Assim, tendo o Tribunal “a quo” valorizado as declarações prestadas pelo falecido J. L. no âmbito do inquérito da ACT para considerar como provados outros factos, não se compreende que não tenha valorizado tal depoimento para dar como provada a matéria de facto relativa às circunstâncias e modo como ocorreu a queda. 14. O Tribunal “a quo”, salvo o devido respeito, também não decidiu “preparava-se para posicionar vigas de betão no 1º andar da referida habitação, quando sofreu uma queda” e que “o pai da A. e um outro trabalhador, J. L., iriam soltar e posicionar as vigas nessa estrutura de ferro” e que a queda do falecido A. G. “nem sequer ocorre na execução de trabalhos de construção civil propriamente ditos, mas sim quando o lesado se preparava para posicionar vigas de betão no 1º andar da referida habitação, ou seja, imediatamente antes da operação de descarga dessas vigas”. 15. Ora, mesmo que o sinistrado não se encontrasse a posicionar as vigas, o que não se concede, mas se equaciona para efeitos de mero raciocínio, a verdade é que é manifesto que o mesmo já estava no 1º andar da obra a cerca de 6 metros de altura a executar trabalhos de construção civil, com a ajuda da referida grua. 16. Aliás, os trabalhos de construção civil para o “vigamento” na estrutura onde iria ser executada a laje de cobertura do edifício, não se limita apenas às tarefas de soltar e posicionar as vigas nessa estrutura. 17. De facto, todos os trabalhos preparatórios, designadamente, o posicionamento dos trabalhadores na estrutura onde seria executada a laje de cobertura a cerca de 6 metros de altura, para receber e posicionar as vigas, já constituem em si trabalhos de construção civil. 18. De acordo com o disposto no artigo 3º, alínea b), da Lei n.º 41/2015, de 03/06, define-se a atividade da construção como “a atividade que tem por objecto a realização de obras, englobando todo o conjunto de atos que sejam necessários à sua concretização”. 19. Ou seja, dúvidas não restam, que o pai da Apelante, aquando da sua queda, já se encontrava a executar trabalhos de construção civil. 20. Pelo exposto, da matéria de facto dada como provada deveriam ser alterados os n.os 8 e 13 dos factos dados como provados, os quais deverão ter a seguinte redação: “8. No dia 28 de Setembro de 2015, o pai da Autora encontrava-se a cerca de 6 metros de altura, a posicionar vigas de betão no 1º andar da referida habitação, quando sofreu uma queda”. “13. O pai da Autora e um outro trabalhador, J. L., encontravam-se a soltar e a posicionar as vigas de betão” 21. Além disso, com base no depoimento da testemunha J. L., prestado perante a Inspetora da ACT e o depoimento da mesma Inspetora, aos factos dados como provados deverão ser adicionados os seguintes: -“Quando o condutor/manobrador do camião grua moveu a lança da grua, as correntes “deram um esticão” e as vigas balançaram”. -“Indo embater nas pernas do A. G. e causando a queda”. - “A queda do pai da A. deveu-se ao embate das vigas nas pernas do mesmo e à falta dos meios de segurança contra risco de queda em altura”. -“Na altura em que se deu a queda, o pai da A, encontrava-se a executar trabalhos de construção civil”. 22. Consequentemente, deverão ser eliminados dos factos dados como não provados os números 1, 6, 7 e 9. 23. Quanto à aplicação do direito, salvo o devido respeito por opinião diversa, também o Tribunal “a quo” não fez uma correta aplicação das normas legais relativas ao apuramento da responsabilidade extracontratual dos RR., aqui Apelados. 24. Em primeiro lugar, sendo alterada a matéria de facto dada como provada, de acordo com o acima requerido, haverá necessariamente responsabilidade civil extracontratual de todos os RR., aqui Apelados. 25. De facto, considerando-se provado que o pai da Apelante caiu na sequência do embate nas pernas das vigas de betão, que se encontravam a ser descarregadas e que, nessa altura, não se encontravam a ser cumpridas quaisquer regras de segurança coletivas e individuais contra o risco de queda em altura, ficam preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual. 26. Com efeito, são pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, a violação ilícita de um direito de outrem ou de uma lei que protege interesses alheios; através de um facto (ato ou omissão) voluntário do lesante; a imputação do facto ao lesante a título de culpa; a existência de um dano e a verificação de um nexo de causalidade entre o facto e o dano. 27. Ora, verifica-se a violação ilícita do direito à vida do pai da Apelante. 28. Verifica-se, também, que tal violação resultou, não só de um ato culposo dos lesantes, aqui Apelados, na medida em que o dano foi consequência do embate das vigas nas pernas do sinistrado, mas também da omissão do dever de cumprir as regras de segurança e saúde exigidas por lei. 29. Os Apelados agiram com culpa, uma vez que deviam e podiam ter agido de outro modo, já que sabiam, ou pelo menos deveriam saber, que da atividade que executavam poderia resultar a queda em altura de trabalhadores, e que tal resultado seria evitado se usassem da diligência devida. 30. Assim, o dano aqui em causa resultou dos factos ilícitos e culposos praticados pelos Apelados. 31. Pelo exposto, verificados todos estes pressupostos, os lesantes devem repor a situação no estado em que se encontrava antes da lesão, de acordo o princípio da reconstituição natural (artº. 562º Código Civil), indemnizando a Apelante pelos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes da morte de seu pai. 32. Por outro lado, mesmo que não se proceda, nos termos acima requeridos, à alteração da matéria de facto, a verdade é que, mesmo nessa circunstância, o Tribunal “a quo”, salvo o devido respeito, que é muito, também não aplicou com acerto as normas legais aos factos que considerou como provados. 33. De facto, o Tribunal “a quo”, embora considerando que ficou “amplamente demonstrado o incumprimento, pelas entidades legalmente responsáveis (ou seja, os 1º e 2º Réus) e contratualmente responsável (o falecido pai da Autora), das regras de segurança em obra e de segurança de trabalhos realizados em altura”, bem como que resultaram “violados, para além do estipulado no 37º do DL 50/2005, de 25 de Fevereiro, os normativos constantes dos artigos 17º/ d)., h). e i). do DL 273/3003, de 29 de Outubro (no caso do dono da obra, aqui 2º Réu) e dos artigos 20º/ d)., e)., f)., g)., h). j)., 21º e 22º/1 a). e c). do DL 273/3003, de 29 de Outubro (no caso da 1ª Ré, enquanto entidade executante)”, entendeu que “não basta a verificação da prática desses ilícitos para fazer responsabilizar tais Réus, sendo, ainda, necessário, fazer a prova da culpa do agente nessa inobservância e, bem assim, a demonstração do nexo de causalidade entre essa conduta, ou inobservância, e a produção do acidente”. 34. Com efeito, o Tribunal “a quo” considerou que a construção civil é uma atividade intrinsecamente, ou em si mesma, não perigosa. 35. Ora, no caso em concreto, ficou amplamente demonstrado que, aquando do sinistro, as vigas encontravam-se a ser descarregadas de um camião grua, propriedade da 3ª Ré, manobra que era efetuada por um seu trabalhador (factos provados 10 e 11). 36. As vigas eram presas à lança do camião grua, através de cadeias, para posteriormente serem elevadas e depois colocadas, com o auxílio do pai da A. e de um outro trabalhador, J. L., na estrutura de ferro sobre a qual ia ser posteriormente executada uma laje (facto provado 12). 37. Ficou também demonstrado que no momento do acidente, as cadeias transportavam cerca de cinco ou seis vigas (facto provado 14). 38. Ficou ainda demonstrado que o sinistrado se encontrava a cerca de 6 metros de altura e que se preparava para posicionar as vigas (facto provado 8), ou seja, estava em plena atividade de construção civil (artigo 3º, alínea b), da Lei n.º 41/2015, de 03/06), apesar do Tribunal “a quo” ter decidido que não tinha iniciado os trabalhos de construção propriamente ditos. 39. Mais ficou provado que, aquando do acidente, na obra não estavam instalados os meios de proteção coletiva, nomeadamente guarda corpos, os quais também não existiam naquela estrutura em ferro, nem estavam a ser utilizados meios de proteção individual, designadamente, linhas de vida e arnês contra risco de queda em altura (factos provados 17 e 18). 40. Ficou ainda provado que o Plano de Segurança e Saúde não contemplava a intervenção de subempreiteiros na obra, nem a movimentação de cargas e as medidas específicas de segurança nos trabalhos a realizar em altura, (facto provado 20). 41. De facto, o Plano de Segurança e Saúde devia contemplar os equipamentos de trabalho de elevação de cargas, designadamente, a sua solidez e estabilidade durante a utilização, a sua instalação de modo a reduzir o risco de as cargas balancearem e colidirem com os trabalhadores, bem como o equipamento que estes trabalhadores deveriam usar para prevenir o risco de queda em altura. 42. Ora, uma obra de construção civil, como aquela sobre que versam os presentes autos, que implicou trabalhos de uma grua para movimentar cargas pesadas, como são as vigas de betão armado destinadas a construir a laje de cobertura a cerca de 6 metros de altura, terá necessariamente de se considerar, “pela natureza dos meios utilizados”, como o exercício de atividade perigosa (neste sentido vide Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 2121/11.5TBVCT.G1, de 05-12-2013 e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 173/2003-7, de 18-03-2003, ambos in www.dgsi.pt). 43. Assim, a movimentação de carga pesada por grua em obra de construção civil, como atividade perigosa que é, implica uma presunção de culpa sobre quem exerce essa atividade, relativamente à morte ocorrida por trabalhador que participe na execução dessa obra. 44. Esta responsabilidade aplica-se, quer os danos tenham ocorrido sobre um trabalhador dependente, mas também sobre subempreiteiro que participe na execução da mesma obra, como era o caso do sinistrado. 45. De facto, competia à empreiteira (1ª R.) e ao dono da obra (2º R.), aqui Apelados, assegurar a coordenação da utilização da grua em matéria de segurança. 46. Para ilidir a presunção de culpa que recai sobre eles, os ditos Apelados teriam que provar que empregaram todas as providências exigidas pelas circunstâncias, nomeadamente, elaborar o Plano de Segurança e Saúde, no que se refere à intervenção de subempreiteiros na obra, à movimentação de cargas e às medidas específicas nos trabalhos a realizar em altura, que, como ficou provado, não estavam a ser cumpridos pela 1ª R (cfr. facto provado 20). 47. Também o 2º R. não cumpriu as providências exigidas pelas referidas circunstâncias, na medida em que não nomeou coordenador de segurança e saúde, na fase de execução da obra, nem aprovou o desenvolvimento do mesmo plano que implicava a manobra de movimentação de carga pesada por grua (cfr. factos provados 21 e 24). 48. Assim, como já foi referido, dada a natureza dos meios utilizados na obra, estamos perante o exercício de atividade perigosa, para efeitos do disposto no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil, pelo que incumbia aos 1º e 2º RR., aqui Apelados, fazer a prova de que empregaram todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos e isso não aconteceu, antes pelo contrário, ficou provado que estes não cumpriram as regras de segurança e saúde a que se encontravam legalmente obrigados. 49. Pelo exposto, mesmo que não se tivesse demonstrado que o sinistrado caiu em consequência do embate das vigas nas suas pernas, a verdade é que, pelas regras da experiência e senso comum, se pode concluir que tal queda se deveu à falta dos meios de segurança destinados a prevenir o risco de queda em altura. 50. De facto, se no local da obra onde o sinistrado se encontrava a trabalhar existissem guarda corpos e linhas de vida às quais os trabalhadores estivessem presos pelos arneses, a queda que causou a morte ao pai da Apelante nunca teria ocorrido, pois este sempre ficaria pendurado pelo arnês, conclusão que resulta claramente das regras de experiência e do senso comum. 51. Assim, o Tribunal “a quo”, salvo o devido respeito por opinião diversa, violou as diretrizes constantes do artigo 3º, alínea b), da Lei n.º 41/2015, de 03/06 e artigos 493º, n.º 2 e 562º, ambos do Código Civil. 52. É certo que ficou também demonstrado que o próprio sinistrado violou as regras de segurança e saúde, a que estava contratualmente obrigado (facto provado 7), porém, isso não afasta a responsabilidade dos 1º e 2º RR. pelo não cumprimento das mesmas regras a que estavam legalmente obrigados. 53. Em decorrência do acima alegado, a ação teria que ser julgada totalmente procedente. “.
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O RR. vieram apresentar contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
Foi o recurso admitido, como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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II-FUNDAMENTAÇÃO.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil
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As questões a decidir são as seguintes:
A) Impugnação da decisão da matéria de facto, pontos 8 e 13 dos factos provados e 1, 6, 7 e 9 dos factos não provados.
B) Preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e consequente condenação dos RR..
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OS FACTOS
A sentença ora em crise deu como provada e não provada a seguinte factualidade.
“I. Factos Provados:
1. O A. G. nasceu no dia .. de Novembro de 1958 – cfr. certidão de nascimento de fls.22 verso. 2. A A. nasceu a .. de Julho de 1985 e é a única filha de A. G., falecido em .. de Novembro de 2015, no estado de divorciado – cfr. certidão de fls.10 e seg. e certidão de fls.11 verso e de fls.22 verso e seg. 3. O mencionado A. G. era um empresário em nome individual, que se dedicava à actividade de construção civil, fazendo disso profissão com carácter regular e intuito lucrativo. 4. A 1ª R. é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à construção de edifícios. 5. Entre os aqui 1º e 2º Réus foi celebrado um contrato de empreitada para executar trabalhos de construção civil na habitação deste último, sita na Rua …, freguesia de …, concelho de V. N. Famalicão – cfr. documento de fls.116 e seg., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. 6. Por sua vez, a 1ª Ré celebrou um contrato de subempreitada com o pai da aqui A., A. G., na modalidade de mão-de-obra – cfr. documento junto a fls.117 verso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido. 7. Nesse contrato ficou expressamente estipulado na cláusula 6ª, sob o título “Segurança”: a) “O 2º Outorgante compromete-se a cumprir e fazer cumprir pelo seu pessoal e subempreiteiros e trabalhadores independentes por si contratados, as regras constantes do Plano de Segurança e de Saúde que lhe foi entregue pelo 1º Outorgante e todas as regras de segurança e saúde exigidas por lei. b) O 2º Outorgante compromete-se a velar pela colocação e manutenção de todas as protecções de segurança que, sendo necessárias se encontrem na obra, em particular as protecções contra a queda de pessoas e materiais. c) Ao 2º Outorgante incumbe garantir ao seu pessoal empregado na execução da empreitada os necessários e adequados equipamentos de protecção individual e colectiva. (…)”. 8. No dia 28 de Setembro de 2015, o pai da A. encontrava-se a cerca de 6 metros de altura e preparava-se para posicionar vigas de betão no 1º andar da referida habitação, quando sofreu uma queda. 9. A qual acabou por lhe causar a morte. 10. As vigas encontravam-se a ser descarregadas de um camião grua, propriedade da 3ª R., que na altura era conduzido e manobrado por um seu trabalhador, de nome J. F.. 11. O referido trabalhador exercia as suas funções sob a ordem e direcção efectiva da 3ª R.. 12. As vigas eram presas à lança do camião grua, através de cadeias, para posteriormente serem elevadas e depois colocadas, com o auxílio do pai da A. e de um outro trabalhador, J. L., na estrutura de ferro sobre a qual ia ser posteriormente executada uma laje. 13. O pai da A. e um outro trabalhador, J. L., iriam soltar e posicionar as vigas nessa estrutura de ferro. 14. No momento do acidente, as cadeias transportavam cerca de cinco ou seis vigas. 15. O manobrador do camião grua seguia ordens e instruções do J. L., subindo ou baixando a lança, consoante as instruções que lhe eram dadas por este. 16. Uma vez que o manobrador não tinha visibilidade total para o local onde eram descarregadas as vigas. 17. Na altura do acidente, na obra não estavam instalados de meios de protecção colectiva, nomeadamente guarda corpos, os quais também não existiam naquela estrutura em ferro. 18. Nem estavam a ser utilizados meios de protecção individual, designadamente, linhas de vida e arnês contra risco de queda em altura. 19. A 1ª Ré elaborou plano de segurança e saúde (PSS) para aquele estaleiro. 20. Esse PPS, no que se refere à intervenção de subempreiteiros na obra, à movimentação de cargas e às medidas específicas de segurança nos trabalhos a realizar em altura, não estava a ser cumprido pela 1ª Ré, na qualidade de entidade executante da obra. 21. Não foi nomeado coordenador de segurança e saúde na fase de execução da obra. 22. No PSS constava como responsável pela segurança V. J., sócio-gerente da 1ª Ré. 23. A 1ª Ré não assegurou a aplicação do PSS por parte do subempreiteiro, não tomou as medidas necessárias para uma adequada organização e gestão do estaleiro, nem tinha um registo actualizado dos subempreiteiros e trabalhadores independentes por si contratados com actividade no estaleiro. 24. O 2º Réu não nomeou coordenadores de segurança e saúde na fase de execução da obra, não aprovou o desenvolvimento e as alterações do plano de segurança e saúde para a execução da obra, nem assegurou o cumprimento das regras de gestão e organização geral do estaleiro. 25. Em consequência da queda, o pai da A. ficou ferido, tendo sido internado no Hospital de Braga, na Unidade de Cuidados Intermédios de neurocríticos, como politraumatizado com TCE (trauma crânioencefálico) grave, desde o dia do acidente até 24 de Novembro de 2015, data em que foi transferido para o Hospital de Vila Nova de Famalicão. 26. Devido ao TCE e às múltiplas fracturas sofridas, o pai da A. teve de ser submetido a várias intervenções neurocirúrgicas, a saber: craniotomia em 28 de Setembro de 2015, trepanos em 24 de Outubro de 2015 por higroma e cranioplastia em 29 de Outubro de 2015. 27. O pai da A. sofreu ainda um trauma vertebral com instabilidade da plataforma vertebral superior à esquerda de D2, com extensão ao pedículo esquerdo e ambas as lâminas, apófises transversas esquerdas de L1, L2 e L3; trauma torácico nos arcos costais de D12 bilateralmente e de D11 à esquerda; e insuficiência ventilatória e acumulação de secreções, tendo sido colocada uma PEG (gastrostomia endoscópica percutânea), para sua alimentação. 28. Em consequência directa e necessária das lesões sofridas com a mencionada queda em altura, o pai da A. acabou por falecer a 29 de Novembro de 2015. 29. O sinistrado gozava de boa saúde, tinha uma esperança de vida longa, era activo, trabalhador e com alegria de viver. 30. Era um bom pai de família e apegado à sua filha. 31. Era também merecedor de amor, estima e consideração por parte da sua filha. 32. A A. mantinha com o seu falecido pai um relacionamento e um sentimento fortes que os unia, tanto que viviam juntos. 33. Com o sucedido, a A. sentiu angústia, tristeza, falta de apoio, de carinho, orientação, assistência e companhia que jamais irá recuperar. 34. Ao longo dos dois meses que decorreram entre a queda e a morte, o A. G. experimentou sofrimento, agravado pela angústia com a previsão da própria morte.
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II. Factos não provados:
1. O pai da Autora encontrava-se a posicionar vigas de betão no 1º andar da referida habitação, quando sofreu uma queda. 2. A corrente que prendia as vigas ficou presa na cofragem da laje. 3. O A. G. transmitia ordens ao manobrador do camião. 4. O mencionado trabalhador J. L. solicitou ao condutor/manobrador do camião grua para levantar a lança. 5. A fim de colocar um calço de madeira debaixo das vigas e, assim, soltar o cadeado. 6. Quando o condutor/manobrador do camião grua moveu a lança da grua, as correntes “deram um esticão” e as vigas balançaram. 7. Indo embater nas pernas do A. G. e causando a queda referida em I.8. 8. Na queda, o pai da A. embateu primeiro na laje do rés-do-chão e de seguida no solo. 9. A queda do pai da A. deveu-se ao embate das vigas nas pernas do mesmo e à falta dos meios de segurança contra risco de queda em altura. 10. O referido em I.23 e I.24 contribuiu para a queda do pai da A.. 11. O condutor e manobrador do camião grua não agiu com o cuidado devido para que, ao manobrar a grua, evitasse que as vigas fossem embater no pai da A.. 12. O condutor do camião grua limitou-se a realizar uma operação que lhe foi ordenada pelo J. L.. 13. As vigas não embateram na perna do sinistrado. 14. O sinistrado caiu por se ter aproximado da beira da estrutura em ferro, sem tomar as devidas precauções para evitar a queda, designadamente, mantendo-se afastado do seu limite externo. 15. Aquando da celebração do contrato com o subempreiteiro, a 1ª Ré entregou na obra material de implementação das medidas de segurança, nomeadamente, guarda corpos, linhas de vida e arneses. 16. Sempre que o legal representante da 1ª Ré se deslocava à obra exigia junto do subempreiteiro, falecido pai da A. o cumprimento do PSS entregue.”.
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O DIREITO.
A) Da impugnação da matéria de facto – pontos 8 e 13 dos factos provados e 1, 6, 7 e 9 dos factos não provados. Realidade que se reporta às circunstâncias e modo em que terá ocorrido a queda do pai da apelante.
Dispõe o artigo 640.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, com a epígrafe, “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, o seguinte:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. (…)“.
A Doutrina tem vindo a expor, de modo repetido e claro, quais os requisitos que o recurso de apelação, na sua vertente de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, terá de preencher para que possa ocorrer uma nova decisão de matéria de facto.
Nesta sede, releva ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, in Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5.ª Ed., em anotação à norma supratranscrita. Vejamos.
a) Em primeiro lugar, deve o recorrente obrigatoriamente indicar “os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões”;
b) Em segundo lugar, tem o recorrente que indicar “os concretos meios probatórios” constantes dos autos que impõe sobre aqueles factos (alínea a)) decisão distinta da recorrida;
c) Em terceiro lugar, em caso de prova gravada, terá de fazer expressa menção das passagens da gravação relevantes;
d) Por fim, recai o ónus sobre o recorrente de indicar a decisão que, no seu entender, deveria ter sido proferida sobre as questões de factos impugnadas (alínea a)).
Com a imposição destes requisitos o legislador faz recair sobre o recorrente o ónus de alegação, de modo reforçado, para que a instância de recurso não se torne aleatória e imprevista, ie, que os recursos possam ter natureza genérica e inconsequente (neste sentido o autor citado, in ob. cit., pág. 166).
Assim, será caso de rejeição total ou parcial do recurso da impugnação da decisão da matéria de facto, nos seguintes casos:
a) Ocorrer a falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto – artigos 635.º, n.º 4 e 641.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil.
b) Ocorrer a falta de indicação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados – artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil.
c) Ocorrer a falta de indicação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes dos autos, designadamente, documentos, relatórios periciais, ou registados, designadamente, depoimentos antecipadamente prestados, ou nele gravados, com expressa indicação das passagens da gravação que funda diversa decisão.
d) E por fim, ocorrer a falta de indicação expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido por cada segmento da impugnação.
Como refere, ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, in ob. cit, 5.ª Ed., pág. 169, em anotação ao artigo supratranscrito, a apreciação rigorosa destes requisitos deve ocorrer sempre, pois só assim se dá efectiva validade ao princípio da auto-responsabilidade das partes. Com efeito, são as partes e não o Tribunal que fixam o objecto do recurso através das conclusões. O Tribunal de 2.ª instancia deste modo poderá proceder a um verdadeiro novo julgamento da matéria de facto, tendo como baliza a fixação do tema a decidir, os concretos pontos de facto.
Ponderando e apreciando a instância de recurso quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, a recorrente preenche claramente os apontados requisitos, pelo que se impõe o seu conhecimento.
Em sede de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, a Relação tem, efectivamente, poderes de reapreciação da matéria de facto, procedendo a julgamento sobre a factualidade, assim garantindo um verdadeiro duplo grau de jurisdição.
Quanto ao âmbito da intervenção deste Tribunal, tal matéria encontra-se regulada no artigo 662.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “modificabilidade da decisão de facto”, que preceitua no seu n.º 1 que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
“No âmbito dessa apreciação, incumbe ao Tribunal da Relação formar a seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em 1.ª instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC, em ordem a verificar a ocorrência do invocado erro de julgamento. Não se ignora o papel relevante da imediação na formação da convicção do julgador e que essa imediação está mais presente no tribunal da 1.ª instância. Todavia, ainda assim, o resultado dessa imediação deve ser objetivado em argumento probatório, suscetível de discussão racional, além do mais, para evitar os riscos da arbitrariedade.“, in Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 02.11.2017, relatado pelo Cons. Tomé Gomes, in dgsi.pt.
Por isso, passa-se a reapreciar a matéria de facto impugnada.
ponto 8 dos factos provados. 8. No dia 28 de Setembro de 2015, o pai da A. encontrava-se a cerca de 6 metros de altura e preparava-se para posicionar vigas de betão no 1º andar da referida habitação, quando sofreu uma queda.
Ponto 13 dos factos provados. 13. O pai da A. e um outro trabalhador, J. L., iriam soltar e posicionar as vigas nessa estrutura de ferro.
Ponto 1 dos factos não provados. 1. O pai da Autora encontrava-se a posicionar vigas de betão no 1º andar da referida habitação, quando sofreu uma queda.
Ponto 6 dos factos não provados. 6. Quando o condutor/manobrador do camião grua moveu a lança da grua, as correntes “deram um esticão” e as vigas balançaram.
Ponto 7 dos factos não provados. 7. Indo embater nas pernas do A. G. e causando a queda referida em I.8.
Ponto 9 dos factos não provados. 9. A queda do pai da A. deveu-se ao embate das vigas nas pernas do mesmo e à falta dos meios de segurança contra risco de queda em altura.
Sustenta a recorrente que com base em outros meios de prova, documental, relatório da ACT, de onde consta as declarações prestadas pelo falecido J. L., e o depoimento da testemunha A. M., inspectora da ACT, e não apenas nos depoimentos das testemunhas A. V. e J. F., deveria o Tribunal a quo ter respondido de modo distinto.
“Assim, com a reapreciação da matéria de facto, o que se pretende é que o Venerando Tribunal da Relação, proceda, com base no relatório da ACT e do depoimento da testemunha A. M., inspetora da ACT, à alteração da matéria dada como assente. Com efeito, dos referidos relatório e depoimento, facilmente se pode concluir que o sinistrado A. G. caiu do teto do 1º andar da obra, onde se encontrava a executar trabalhos de construção civil, em consequência das vigas lhe terem embatido nas pernas. “, reprodução da fundamentação do requerimento de interposição de recurso da apelante.
Mais adiante acrescenta: “ (…) os trabalhos de construção civil para o “vigamento” na estrutura onde iria ser executada a laje de cobertura do edifício, não se limita apenas às tarefas de soltar e posicionar as vigas nessa estrutura. De facto, todos os trabalhos preparatórios, designadamente, o posicionamento dos trabalhadores na estrutura onde seria executada a laje de cobertura a cerca de 6 metros de altura, para receber e posicionar as vigas, já constituem em si trabalhos de construção civil. “
A apelante acaba por concluir por a redacção dos pontos de factos em questão deverá ser a seguinte:
“8. No dia 28 de Setembro de 2015, o pai da Autora encontrava-se a cerca de 6 metros de altura, a posicionar vigas de betão no 1º andar da referida habitação, quando sofreu uma queda. 13. O pai da Autora e um outro trabalhador, J. L., encontravam-se a soltar e a posicionar as vigas de betão.
Além disso, aos factos dados como provados deverão ser adicionados os seguintes:
- Quando o condutor/manobrador do camião grua moveu a lança da grua, as correntes “deram um esticão” e as vigas balançaram. - Indo embater nas pernas do A. G. e causando a queda. - A queda do pai da A. deveu-se ao embate das vigas nas pernas do mesmo e à falta dos meios de segurança contra risco de queda em altura. -Na altura em que se deu a queda, o pai da A, encontrava-se a executar trabalhos de construção civil. Consequentemente, deverão ser eliminados dos factos dados como não provados os números 1, 6, 7 e 9.“
A sentença em crise, quanto à factualidade em questão, sustentou a sua decisão da matéria de facto nos seguintes termos:
“Relativamente às circunstâncias em que se deu a queda do A. G. e se mesma, foi ou não, resultado de uma qualquer manobra protagonizada pela grua, não foi possível ao julgador firmar uma segura convicção em face da prova produzida. Com efeito, neste particular temos de salientar que os depoimentos das testemunhas A. V. e J. F. (os quais, não há dúvida, se encontravam na obra aquando do sucedido) se revelaram bastante divergentes em várias das circunstâncias ocorridas nos momentos que precederam a queda, nomeadamente, quanto ao número de cargas que chegaram a ser efectuadas e completadas, quanto ao concreto local da obra em que o A. V. se encontrava e, bem assim, quanto à pessoa que procedeu à amarração das correntes que envolviam as vigas e até quanto à manobra concretamente efectuada com a grua. Por outro lado, o depoimento da testemunha A. V. também não é coincidente com as declarações tomadas ao entretanto falecido J. L. no âmbito do inquérito do ACT a fls.135 verso dos autos, nomeadamente no que tange à zona do corpo em que, supostamente, as vigas embateram no A. G.. Ademais, aquele A. V. também não confirmou que, em algum momento, a corrente que envolvia as vigas se tenha prendido na cofragem, o que dá força ao depoimento da testemunha J. F. na parte em que este afirmou, de modo assertivo e sereno, que as correntes nunca deram qualquer esticão, o qual, vistas as regras da experiência, teria de ser sentido pelo dito manobrador e, além disso, só poderia ter origem naquele alegado prendimento das correntes à cofragem. De resto, a testemunha A. V. depôs de modo pouco escorreito e até inconsistente, a merecer pouca fiabilidade, sendo certo que, quando confrontado com alguma pormenorização relativamente ao sucedido, mostrou dificuldades óbvias em manter um relato coerente e em responder ao que lhe foi perguntado, refugiando-se no largo tempo já decorrido desde o evento e verbalizando a intenção de responder com vagos “não sei” a novos esclarecimentos solicitados por um dos Ilustres Mandatários dos Réus. Efectivamente, esta testemunha começou por dizer que foi o A. G. que deu indicações ao manobrador para baixar as vigas (não confirmando, portanto, o relato descrito na douta petição inicial), que as vigas andaram “à volta” para depois dizer que o contrário (ou seja, que não deram a volta), mas sem concretização do concreto lado para o qual as vigas balançaram, nem mesmo para que lado caiu o A. G.. E, inicialmente, disse que nas duas primeiras cargas estava “cá em baixo”, para depois afirmar que ao segundo molhe de vigas é que foi para cima, para junto do A. G., estando a cerca de 2 metros dele. E também mostrou contradições nas várias vezes em que se referiu à forma como o A. G. bateu, ou não, na laje do rés-do-chão que já estava betonada. Por outro lado, o relato da testemunha, na parte em que se refere à tentativa do A. G. de se segurar ao tarugo (posicionado em altura inferior à viga de ferro de onde caiu), levantando os dois braços, a imitar o gesto feito por aquele nesse momento, é harmonizável com uma queda praticamente na vertical e com o corpo a direito (com os pés em zona inferior à cabeça), mas de todo incompatível, atenta a normalidade do acontecer, com uma queda em resultado de um desequilíbrio ou de uma projecção causada pelo embate nas vigas (seja nas pernas, seja na zona do abdómen) que, necessariamente, posicionariam o desamparado corpo em diferente posição. Em face do expendido e não havendo dados objectivos capazes de corroborar qualquer uma dessas versões, não podiam ser outras as decisões referidas em I.8 dos factos provados II.1 a II.14 dos factos não provados dado não se terem apurado as concretas circunstâncias da queda do falecido, nem mesmo que o mesmo já tivesse posicionado anteriormente outras duas cargas de vigas içadas (antes inculcando os registos fotográficos de fls.17 verso e 18 precisamente o contrário, dado não serem aí visíveis quaisquer vigas depositadas).“
Importa ter presente que a prova produzida deve ser conjugada, harmonizada e ponderada no seu conjunto enquanto base da convicção formulada pelo Tribunal, não sendo legítimo valorizar meios probatórios isolados em relação a outros, sopesando os critérios de valoração, numa perspectiva racional, de harmonia com as regras de normalidade e verosimilhança, mas sempre com referência às pessoas em concreto e à especificidade dos factos em apreciação.
Quanto à ponderação dos meios probatórios produzido em audiência final, mormente a prova testemunhal, a actividade dos juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter, necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso, a actividade judicatória, na valoração dos depoimentos, há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sociocultural, a linguagem gestual (inclusive, os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a mesma estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente.
Isto é, a percepção dos depoimentos só é perfeitamente conseguida com a imediação das provas, sendo certo que, não raras vezes, o julgamento da matéria de facto não tem correspondência directa nos depoimentos concretos, resultando antes da conjugação lógica de outros elementos probatórios, que tenham merecido a confiança do tribunal.
“As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos”, isto nos diz o nº 1 do artigo 341.º do Código Civil. Em princípio, “a realidade dos factos invocados precisa (…) de ser demonstrada por aqueles que os invocam”, daí que “fazer prova de” seja “sinónimo de actividade persuasiva da veracidade de certos juízos de facto, pretendendo referir-se às diligências efetuadas com o fim de demonstrar a realidade de determinados factos”. Deste modo, “a prova visa (…), de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto”.
Com vista a este Tribunal ficar habilitado a conhecer dos factos em discussão, e deste modo formar a sua convicção autónoma, própria e fundamentada, teve de analisar todos os meios de prova produzidos em 1.ª instância.
Assim, este Tribunal ponderou a prova documental junta aos autos e citada na sentença em crise e que aqui se dá por reproduzido.
De seguida, procedeu-se à audição integral e completa das gravações do depoimento das testemunhas A. M., inspectora da ACT, esta devidamente conjugado com o relatório da ACT. Foi também ouvido na integra o depoimento das testemunhas A. V. e J. F.. As demais testemunhas por nada saberem do que está aqui em causa não serão ponderadas, embora se tenha procedido à sua audição.
Como se referiu, ouvida toda a prova produzida em sede de audiência final, é de concluir por a prova ter sido exemplarmente apreciada pelo Tribunal a quo. O processo de formação da convicção e a sua expressão na decisão está devidamente fundamentado, na medida em que permite seguir racionalmente o respectivo raciocínio e a inerente motivação. Todos os factos se encontram devidamente fundamentados e em termos que qualquer pessoa consegue alcançar.
Efectivamente, do depoimento da testemunha A. V., resulta estava na obra aquando do acidente aqui relatado. Do seu depoimento é de realçar as inconsistências e, por vezes, mesmo, contradições, reais e aparentes, quanto à dinâmica da queda do falecido A. G., falecido pai da apelante. Tais inconsistências e falta de coerência do próprio depoimento, são manifestas quando o mesmo é sucessivamente confrontado com questões mais precisas e concretas. Tal como ficou devidamente anotado pelo M.mo Juiz, esta testemunha quando confrontado com tais inconsistências e falta de lógica, refugiou-se no “não sei”, “não me lembro”, “passou muito tempo”. É significativo o modo como o mesmo responde quando questionado se a queda do falecido se passou de modo rápido ou de modo lento, quando afirma que não sabe e ou não se lembra. De modo assertivo o M.mo. Juiz tenta por várias vezes ultrapassar as inconsistências do seu depoimento, mas que não se lograram ultrapassar. Deste modo, tal como afirma a decisão em crise, desta testemunha não se pode concluir, de modo certo e preciso, qual o modo como ocorreu a queda do falecido pai da A..
Constata-se entre este depoimento, A. V. e a pessoa que consta do relatório do ACT como testemunha, folhas 166, ocorrem evidentes contradições. Quem estava onde, fazia o quê e o local onde o falecido estava antes da sua queda. Aqui é de notar, que contrariamente ao que possa decorrer deste documento, no momento da queda não estava apenas uma testemunha, facto que também transparece do depoimento de A. M., inspectora do ACT.
Importa precisar, contrariamente ao defendido pela recorrente, a ponderação que haja de fazer do que J. L. afirmou perante o ACT e constante de folhas 166, terá que ser feita com bastantes cuidados. Pois, caso contrário, estaremos a admitir um meio de prova que é ilegal. Com efeito, a versão que consta de folhas 166, não foi ela mesma objecto de qualquer contraditório. Isto é, o teor do que aí é reproduzido não foi sujeito a qualquer contraditório, princípio fundamental no nosso Código de Processo Civil. Com efeito, as provas “têm por função a demonstração da realidade dos factos” – artigo 341.º do Código Civil. Para que atinjam tal desiderato não podem ser produzidas “sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas”, artigo 415.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. Estamos perante o princípio da audiência contraditória. No caso não estamos perante a hipótese legal de depoimento apresentado por escrito, nos termos do artigo 518.º do Código de Processo Civil.
O depoimento de A. M., inspectora do ACT, veio apresentar um relato daquilo que a mesma pode constatar em momento bem posterior à data do acidente – data do acidente 28.09.2015 e data da sua visita à obra 24.06.2016. Como flui do seu depoimento, o que consta do relatório em causa, folhas 131 e seguintes, apenas tem como sustentação os vários elementos documentais aí mencionados e o que lhe foi relatado por J. L.. Relativamente ao modo como foram prestadas as declarações deste J. L., esta testemunha nada de relevante veio trazer.
Certamente, foi esta a razão de ser de tais declarações terem sido valoradas de modo muito mitigado em sede da sentença recorrida. Pode-se concluir, que o constante de tais declarações, serviram como corroborante ou não, de depoimentos de testemunhas produzidos em audiência final, e de acordo com as regras processuais relativas à aquisição da prova. Voltamos a reproduzir o explanado em sede de decisão final em crise, para realçar o que afirmamos: “Por outro lado, o depoimento da testemunha A. V. também não é coincidente com as declarações tomadas ao entretanto falecido J. L. no âmbito do inquérito do ACT a fls.135 verso dos autos, nomeadamente no que tange à zona do corpo em que, supostamente, as vigas embateram no A. G..“ E acrescentamos nós, que tal é completamente contraditório quanto ao número de pessoas que estavam presentes no local da queda.
Já a testemunha ouvida em audiência final J. F. relata que estava presente à data do acidente e aquando da colocação das vigas na laje. Esta testemunha contrariamente ao afirmado pela testemunha A. V., referiu de modo espontâneo que estava sozinho quando realizava a manobra de colocação das vigas. Era ele o manobrador. Reafirmou, por mais do que uma vez, que estava sozinho quando realizava o seu trabalho. Sabe que na laje, na parte de cima, estavam duas pessoas, uma a dar indicações e outra fora do seu campo de visão. Para o local onde ocorreu a queda, esta testemunha não tinha qualquer visão. Que ficou a saber da queda pela reacção de um senhor, a pedir para baixar, não tendo notado nada de anormal na grua que lhe permitisse concluir de algo de anormal ter ocorrido. Estava a realizar manobra de baixar as vigas de modo lento, não tendo sentido nada de anormal, designadamente, que as vigas ou as correias tenham embatido ou ficado presas em algum objecto. Mais, referiu que era a primeira manobra de colocação de vigas na laje. Esta afirmação é consistente com as fotografias de folhas 17 e 18, de onde se pode ver que não existem vigas em tal local. Esta testemunha apresenta relato escorreito, calmo e lógico, sem que do mesmo possa transparecer qualquer falta de sinceridade, face ao modo espontâneo como respondia às perguntas. Este depoimento não padece das inconsistências que foram apontadas à testemunha A. V.. Merece, assim, pela nossa parte, tal como o foi por parte da 1.ª instância, maior credibilidade o relato apresentado por esta testemunha do que de outras. De igual modo, face à consistência deste depoimento, não poderá ser atribuído maior valor probatório às declarações do atrás mencionado J. L..
Deste modo, acompanhando a primeira instância, também aqui foram valorados os mesmos precisos meios de prova, testemunhas, A. V. e J. F., relatório do ACT e depoimento de A. M. que o elaborou, fazendo parte deste relatório as declarações de J. L., já falecido.
E a conclusão factual terá que ser a mesma. Não decorre dos meios de prova atrás citados certeza do modo concreto como se terá passado a queda do falecido pai da A., apelante.
Pelo que atrás vem explanado, soçobra a pretensão da recorrente nesta parte – de impugnação da matéria de facto.
*
B) A apreciação jurídica
Acompanhando a decisão da 1.ª instância, a presente demanda tem sustentação da responsabilidade civil extracontratual de todos os RR.. É neste âmbito que a demanda terá que ser decidida.
Face à decisão proferida em primeira instância e aos termos do recurso – seu objecto – a questão jurídica a decidir diz directamente respeito à determinação se estamos perante um caso de actividade perigosa.
Efectivamente, tendo a recorrente decaído, como vimos, na sua pretensão de se dar como provado que a queda do seu falecido pai foi consequência do embate nas pernas, e portanto que a sua pretensão fosse procedente com base na provada actuação culposa dos 1.º e 2.º RR., permanece a questão de determinar se estamos perante uma actividade perigosa face à natureza dos trabalhos levados a cabo pela 3.ª R., operadora da grua, ou pela 1.ª R., empreiteira da obra, ou pelo 2.º R., dono da obra.
Sustenta a recorrente o seguinte, nas conclusões de recurso:
“48. Assim, como já foi referido, dada a natureza dos meios utilizados na obra, estamos perante o exercício de atividade perigosa, para efeitos do disposto no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil, pelo que incumbia aos 1º e 2º RR., aqui Apelados, fazer a prova de que empregaram todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos e isso não aconteceu, antes pelo contrário, ficou provado que estes não cumpriram as regras de segurança e saúde a que se encontravam legalmente obrigados. 49. Pelo exposto, mesmo que não se tivesse demonstrado que o sinistrado caiu em consequência do embate das vigas nas suas pernas, a verdade é que, pelas regras da experiência e senso comum, se pode concluir que tal queda se deveu à falta dos meios de segurança destinados a prevenir o risco de queda em altura. 50. De facto, se no local da obra onde o sinistrado se encontrava a trabalhar existissem guarda corpos e linhas de vida às quais os trabalhadores estivessem presos pelos arneses, a queda que causou a morte ao pai da Apelante nunca teria ocorrido, pois este sempre ficaria pendurado pelo arnês, conclusão que resulta claramente das regras de experiência e do senso comum. “.
A recorrente argumenta que a actividade levada a cabo pela 3.ª R., subempreiteira, de movimentação de carga pesada por grua em obra de construção de moradia, é uma actividade perigosa, de modo a concluir por a morte do pai da apelante poder ser imputável às RR.. À 1.ª R., empreiteira e ao 1.º R., dono da obra, imputável por lhes competir “assegurar a coordenação da utilização da grua em matéria de segurança“, não tendo as mesmas ilidido a presunção de culpa que sobre si recai – o terem empregue todas as providências e cuidados de modo a evitar o resultado ocorrido. “De facto, se no local da obra onde o sinistrado se encontrava a trabalhar existissem guarda corpos e linhas de vida às quais os trabalhadores estivessem presos pelos arneses, a queda que causou a morte ao pai da Apelante nunca teria ocorrido, pois este sempre ficaria pendurado pelo arnês, conclusão que resulta claramente das regras de experiência e do senso comum. “. Por fim, sustenta, a apelante que a vítima, seu pai, violou as regras de segurança e saúde a que estava contratualmente obrigado
Conclui por as RR. serem responsáveis civilmente pelos danos decorrentes da queda do falecido pai da recorrente.
Vejamos então se procede a pretensão recursiva.
A responsabilidade por factos ilícitos, com base na culpa, é a regra, pois só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei – artigo 483.º, n.º 2 do Código Civil.
Aqui é ao lesado que incumbe provar todos os pressupostos fixados no n.º 1 do artigo 483.º, designadamente a culpa, salvo quando haja presunção legal de culpa – artigo 487.º, n.º 1 – pois, é sabido que quem tem a seu favor presunção legal, escusa de provar o facto a que ela conduz – artigo 350.º, n.º 1 do Código Civil.
De acordo com o decidido em 1.ª instância (que a recorrente não discorda) está verificado o requisito da ilicitude: “Ora, no caso em apreço, provou-se que, na altura do acidente, não estavam instalados de meios de protecção colectiva na obra, nomeadamente guarda corpos, os quais também não existiam na estrutura em ferro onde se encontrava o falecido, mais se tendo provado que não estavam a ser utilizados meios de protecção individual, designadamente, linhas de vida e arnês contra risco de queda em altura. Mais se apurou que o plano de segurança e saúde (PSS) elaborado pela 1ª Ré para aquele estaleiro não estava a ser cumprido, no que se refere à intervenção de subempreiteiros na obra, à movimentação de cargas e às medidas específicas de segurança nos trabalhos a realizar em altura. Ademais, não foi nomeado coordenador de segurança e saúde na fase de execução da obra, sendo certo que a 1ª Ré não assegurou a aplicação desse plano de segurança por parte do subempreiteiro, não tomou as medidas necessárias para uma adequada organização e gestão do estaleiro, nem tinha um registo actualizado dos subempreiteiros e trabalhadores independentes por si contratados com actividade no estaleiro. Por fim, provou-se também que o 2º Réu, enquanto dono da obra, não nomeou coordenadores de segurança e saúde na fase de execução da obra, não aprovou o desenvolvimento e as alterações do plano de segurança e saúde para a execução da obra, nem assegurou o cumprimento das regras de gestão e organização geral do estaleiro. Temos assim amplamente demonstrado o incumprimento, pelas entidades legalmente responsáveis (ou seja, os 1º e 2º Réus) e contratualmente responsável (o falecido pai da Autora), das regras de segurança em obra e de segurança de trabalhos realizados em altura. Com efeito, resultam violados, para além do estipulado no 37º do DL 50/2005, de 25 de Fevereiro, os normativos constantes dos artigos 17º/ d)., h). e i). do DL 273/3003, de 29 de Outubro (no caso do dono da obra, aqui 2º Réu) e dos artigos 20º/ d)., e)., f)., g)., h). j)., 21º e 22º/1 a). e c). do DL 273/3003, de 29 de Outubro (no caso da 1ª Ré, enquanto entidade executante). “
Procedemos à transcrição deste excerto da decisão, pois que a nosso ver, nada há acrescentar ou a dizer.
Há culpa sempre que a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito.
Trata-se de um juízo que assenta no nexo existente o facto e a vontade do agente, podendo revestir duas formas distintas: o dolo e a negligência (ou mera culpa).
No dolo, o juízo de censura funda-se na imputação do facto ilícito à vontade do agente.
Verifica-se quando este, representando a realização de um facto e tendo consciência da sua ilicitude:
- age com intenção de o realizar (dolo directo);
- age independentemente da sua realização, embora sabendo que esta é consequência necessária da sua conduta (dolo necessário);
- age conformando-se com a sua realização, que representa como consequência meramente hipotética da sua conduta (dolo eventual).
Na negligência ou mera culpa, o juízo de censura funda-se na omissão de um dever de diligência ou de cuidado por parte do agente.
Verifica-se quando este, por não proceder com a diligência a que está obrigado e que, em face das circunstâncias do caso, seria exigível a um bom pai de família – artigo 487.º, n.º 2 do Código Civil:
- representa como possível a realização do facto ilícito, mas actua sem com ela se conformar (negligência consciente);
- não chega sequer a representar a possibilidade da realização do facto (negligência inconsciente).
Na primeira instância, considerou-se, e bem, o seguinte: “ (…) no caso, face às circunstâncias em que eram realizados os trabalhos de construção civil, incumbia ao dono da obra elaborar, ou mandar elaborar, um plano de segurança da obra, a ser desenvolvido e especificado pelo empreiteiro (ou entidade executante). Por outro lado, ao empreiteiro incumbia comunicar, de modo adequado, aos trabalhadores independentes por si contratados, o plano de segurança e saúde ou as fichas de procedimento de segurança, e fazer cumprir as suas especificações. (…)
Ora, no caso em apreço, provou-se que, na altura do acidente, não estavam instalados de meios de protecção colectiva na obra, nomeadamente guarda corpos, os quais também não existiam na estrutura em ferro onde se encontrava o falecido, mais se tendo provado que não estavam a ser utilizados meios de protecção individual, designadamente, linhas de vida e arnês contra risco de queda em altura. Mais se apurou que o plano de segurança e saúde (PSS) elaborado pela 1ª Ré para aquele estaleiro não estava a ser cumprido, no que se refere à intervenção de subempreiteiros na obra, à movimentação de cargas e às medidas específicas de segurança nos trabalhos a realizar em altura. Ademais, não foi nomeado coordenador de segurança e saúde na fase de execução da obra, sendo certo que a 1ª Ré não assegurou a aplicação desse plano de segurança por parte do subempreiteiro, não tomou as medidas necessárias para uma adequada organização e gestão do estaleiro, nem tinha um registo actualizado dos subempreiteiros e trabalhadores independentes por si contratados com actividade no estaleiro. Por fim, provou-se também que o 2º Réu, enquanto dono da obra, não nomeou coordenadores de segurança e saúde na fase de execução da obra, não aprovou o desenvolvimento e as alterações do plano de segurança e saúde para a execução da obra, nem assegurou o cumprimento das regras de gestão e organização geral do estaleiro. Temos assim amplamente demonstrado o incumprimento, pelas entidades legalmente responsáveis (ou seja, os 1º e 2º Réus) e contratualmente responsável (o falecido pai da Autora), das regras de segurança em obra e de segurança de trabalhos realizados em altura. “
Caso se possa considerar por estarmos perante um evento ocorrido no âmbito de actividade perigosa, bastará a factualidade dada com provada, para poder concluir por recair sobre as RR. o dever de indemnizar a apelante?
O M.mo Juiz na sentença em crise decidiu que não. Vejamos se lhe assiste razão, ou se porventura procederá a pretensão recursiva.
A factualidade dada como provada não nos conta como ocorreu a queda do pai da apelante, qual a sua causa, o modo, e quais as medidas de segurança que não foram observadas e que poderiam evitar tal queda.
Ocorrerá nos presentes autos alguma causa que exclua a obrigação de indemnizar por parte dos RR.?
Dispõe o normativo inserto no artigo 493º.º, n.º 2 do Código Civil: “Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir “.
Entendeu o M.mo Juiz, no caso em apreço, que não se está perante caso de presunção de culpa, por via do artigo 493.º, n.º 2 do Código Civil, “posto que a construção civil é “uma actividade intrinsecamente, ou em si mesma, não perigosa” (assim, Ac. STJ 13.11.2012, proc. nº. 777/05.7TBTVD.L1.S1; no mesmo sentido Ac. RC 20.04.2010, proc. nº. 1674/03.6TBFIG.C1; Ac. STJ 8.03.2018, proc. nº. 3310/11.6TBALM.L1.S1 e Ac. RG 17.12.2018, proc. nº. 1398/11.0TBBGC.G1). Ademais, a matéria de facto atinente às circunstâncias da queda nada revela sobre a forma concreta como o falecido pai da Autora se aprestava para executar o trabalho na obra no momento em que ocorreu a queda, nem mesmo de que forma o mesmo caiu e em que concretas circunstâncias. Acresce que a queda nem sequer ocorre na execução de trabalhos de construção civil propriamente ditos, mas sim quando o lesado se preparava para posicionar vigas de betão no 1º andar da referida habitação, ou seja, imediatamente antes da operação de descarga dessas vigas.“
A questão foi correctamente decidida, neste segmento – da aplicação do regime decorrente do artigo 493.º, n.º 2 do Código Civil.
As presunções, como nos diz o artigo 349.º do Código Civil, “são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”, de modo a, no caso das presunções legais, facilitar a prova deste mesmo facto desconhecido.
A presunção consagrada no artigo 493.º, n.º 2, é uma presunção legal de culpa, porque implica uma inversão do ónus da prova (artigo 350.º, n.º 1, do Código Civil). E é uma presunção iuris tantum, na medida em que admite a ilisão por prova em contrário (artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil).
Em casos como o do n.º 2 do artigo 493.º, a presença de uma presunção legal de culpa faz com que, ao invés de competir ao lesado o ónus da prova da culpa do lesante na produção do dano, conforme estabelece a regra geral prevista no n.º 1 do artigo 487.º do Código Civil, passe a ser o lesante a ter o ónus de provar que não teve culpa e, desta forma ilidir a presunção que sobre si recai.
O disposto no artigo 493.º, n.º 2 do Código Civil, representa um dos exemplos de responsabilidade civil subjectiva, com presunção de culpa.
Como refere SINDE MONTEIRO, in Responsabilidade Civil, Separata da Revista de Direito e Economia, n.º 2, Coimbra, 1978 pág 319, na vida em sociedade, muitas vezes, sucede que a actividade de alguém ocasione danos a terceiros. Por conseguinte, a questão que interessa ao Direito é a de saber quem, em último caso, deve suportar esses danos, pois o princípio fundamental é o de que “o dano é suportado por aquele que o sofre e só pode ser exigido de outrem um ressarcimento quando para tal existe um fundamento jurídico”. Assim, com ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 12.ª Ed., págs. 517 e 518, concluímos que só se verifica a responsabilidade civil “quando uma pessoa deve reparar o dano sofrido por outra”.
A fim de atenuar a teoria da culpa, de modo a resolver o problema básico do ónus da prova e da justa repartição dos prejuízos que se produzem no contacto social, aparece a teoria do risco. Afirma ALMEIDA COSTA, in ob. cit, pág. 613, que a mesma consubstancia-se na ideia de que “se alguém exerce uma actividade criadora de perigos especiais [pode ou deve] responder pelos danos que ocasione a terceiros”. Pois essa responsabilidade existe como contrapartida das vantagens que se obtém do exercício de certa actividade perigosa. Procurando definir a teoria do risco, ANTUNES VARELA, in Das Obrigações em Geral, I Vol, pág. 633, tem apelado ao brocardo latino ubi commodum, ibi incommodum, ou seja, “quem «cria» ou «mantém» um «risco» em proveito próprio, deve suportar as consequências prejudiciais do seu emprego, já que deles colhe o principal benefício”.
Contudo, o nosso ordenamento jurídico consagrou sem quaisquer dúvidas o princípio da culpa, ie, não há responsabilidade sem culpa – artigo 483.º, n.º 1 e 2 do Código Civil.
Assim, continua a ser requisito essencial a prova da culpa do agente que o mesmo possa ser responsabilizado – n.º 2 do artigo 483.º do Código Civil.
PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA em anotação ao artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil, Código Civil Anotado, pág. 495, referem que o mesmo não trata de nenhuma forma de responsabilidade civil pelo risco ou objectiva, pois “[este] preceito, relativo às actividades perigosas em geral, é dos que mais claramente revelam o carácter excepcional da responsabilidade pelo risco, na medida em que, mesmo quanto às actividades dessa natureza, onde a teoria do risco mais tende a afirmar-se, a lei admite a prova da falta de culpa como causa de exclusão da responsabilidade do agente”.
ANTUNES VARELA, in Das Obrigações em Geral, 5.ª ed., Vol. I, pág. 555, depois de analisar o disposto no artigo 493.º, n.º 2, conclui que, por um lado, nele se estabeleceu uma forma de responsabilidade civil baseada na culpa presumida do agente que exerce a actividade perigosa da qual emergem danos, e que, por outro, só a adopção de “todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir” (artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil) exonera o agente da responsabilidade. Ou seja, “[afasta-se] indirecta, mas concludentemente, a possibilidade de o responsável se eximir à obrigação de indemnizar, com a alegação de que os danos se teriam verificado por uma outra causa, mesmo que ele tivesse adoptado todas aquelas providências”, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado, 4.ª ed., pág. 496.
Dissentindo desta visão clássica quanto ao disposto na norma em causa, artigo 493.º, n.º 2 do Código Civil, outros autores, MENEZES CORDEIRO, põe o foco nos deveres de segurança no tráfego. Estando em causa uma actividade perigosa, que potencialmente é danosa para a sociedade, a pessoa ou entidade que dela tem o domínio tem especiais deveres de prevenção e cuidado – deveres de segurança no tráfego. Deste modo, segundo alguma doutrina, a Lei faz recair sobre estas pessoas ou entidades, beneficiários do perigo, a obrigação de adoptar as devidas precauções, em certos e determinados momentos, e portanto, recai sobre as mesmas o risco dos danos. Neste sentido, MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, Vol. 2, pág. 587. De acordo com ANA MAFALDA BARBOSA, in Liberdade vs. Responsabilidade: A precaução como fundamento da imputação delitual?, Almedina, Coimbra, 2006, a consagração do princípio da prevenção do perigo tem com finalidade impor ao agente o dever geral de prevenir perigos ou de afastá-los, evitando assim a produção de danos. Estando em causa uma actividade perigosa e, por conseguinte, uma actividade potencialmente danosa para a sociedade, a pessoa que a exerça tem especiais deveres de prevenção e cuidado, isto é, deveres de segurança no tráfego. Estes deveres materializar-se-ão em tudo o que se mostre necessário e adequado à prevenção dos danos, pessoais ou materiais, dadas as condições existentes e as melhores técnicas aplicáveis.
Sem prejuízo da divergência doutrinal, é certo que a hipótese do artigo 493.º, n.º 2 do Código Civil, ainda navega nas águas da responsabilidade delitual, fundada na culpa e, portanto, afastada da hipótese de estarmos perante uma situação de responsabilidade objectiva, cfr. ANA MAFALDA BARBOSA, in ob. cit., pág. 373.
Relativamente ao critério de como se poderá aferir do dever imposto ao agente, ALMEIDA COSTA, in ob. cit., pág. 588, sustenta que “[a] expressão «todas as providências» não afasta o critério geral da diligência do homem médio, embora, (…) adaptada aqui (…) ao caso das actividades perigosas, que exigem particulares cautelas”. A jurisprudência maioritária acompanha a posição mais tradicional ou clássica, no sentido de que o nível de diligência imposto pelo n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil para a determinação das providências exigidas para afastar a produção dos danos é definido pelo critério do bom pai de família – padrão de um sujeito ideal, designado pelos romanos de «bonus pater familias», a diligência relevante para efeitos de determinação da culpa é a de um homem normal perante as circunstâncias do caso concreto – adaptado às circunstâncias e particularidades especificas da actividade perigosa. Há, assim sustentação na afirmação que na hipótese do n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil, quer a doutrina, quer a jurisprudência, apontam claramente no sentido de um agravamento da diligência exigida ao agente da actividade perigosa. Entre muitos outros, Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 07.03.2017, relatado pelo Cons. HÉLDER ROQUE, de 03.06.2003, relatado pelo Cons. LOPES PINTO, de 18.09.2012, relatado pelo Cons. GREGÓRIO SILVA JESUS, de 26.11.2002, relatado pelo Cons. VÍTOR MESQUITA, do Tribunal da Relação do Porto de 03-02-2003, relatado pelo Des. FERNANDO SAMÕES, Tribunal da Relação de Guimarães de 10.07.2019, relatado pelo Des. ALCIDES RODRIGUES, todos acessíveis em dgsi.pt.
A concreta actividade levada a cabo pelo 2.º R., dono da obra e pela 1.ª R., empreiteira, ou pela 3.ª R., sub-empreiteira, poderá ser classificada como actividade perigosa?
ANTUNES VARELA, in Das Obrigações em Geral, 5.ª ed., Vol. I, pág. 555 quanto à definição de “actividade perigosa”, que é a causadora dos danos, resulta “ou da própria natureza da actividade (fabrico de explosivos, confecção de peças pirotécnicas, navegação aérea, etc.) ou da natureza dos meios utilizados (tratamento médico com ondas curtas ou com raios X, corte de pepel com guilhotina mecânica, tratamento dentário com broca, etc.)”
Como se afirma no Ac. do Tribunal da Relação Guimarães de 10.07.2019, relatado pelo Des. ALCIDES RODRIGUES, acessível em dgsi.pt,
“A lei não indica um elenco de actividades que devam ser qualificadas como perigosas para efeitos da norma e também não fornece um critério em função da qual se deva afirmar a perigosidade da actividade, esclarecendo apenas que, para o efeito, tanto releva a natureza da própria actividade (geradora dos danos), como a natureza dos meios utilizados pelo agente para a pôr em prática (20). Trata-se, pois, de um conceito relativamente indeterminado, carecido de preenchimento valorativo caso a caso, em função das circunstâncias concretamente provadas (21 - Cfr. Ac. do STJ de 15/10/2011 (relator Nuno Cameira), in www.dgsi.pt.). O Prof. Vaz Serra considera “actividades perigosas” as «que criam para os terceiros um estado de perigo, isto é, a possibilidade ou, ainda mais, a probabilidade de receber dano, uma probabilidade maior do que a normal derivada das outras actividades» (22 - Cfr. Responsabilidade pelos danos causados por coisas ou actividades, separata do BMJ, n.º 85, p. 378.). O Prof. Almeida Costa (23 - Cfr. Direito das Obrigações, 6ª ed., Almedina, p. 493) defende que a atividade perigosa deve tratar-se de atividade que, mercê da sua natureza ou da natureza dos meios utilizados, «tenha ínsita ou envolva uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes actividades em geral». O que significa que a perigosidade de uma atividade deve aferir-se segundo as regras da experiência, pelo que será perigosa uma actividade que, segundo aquelas regras, envolve uma propensão para ocorrência de danos. Note-se que a perigosidade deve ser entendida objetivamente, deixando-se de lado meros temores pessoais de uma potencial vítima (24 - Cfr. Ana Mafalda Castanheira Neves de Miranda Barbosa, Lições de Responsabilidade Civil, Principia, p. 243). O que determinará, assim, a qualificação de uma atividade como perigosa será a sua especial aptidão para produzir danos, aptidão que há-de resultar, como a própria lei o define, da sua própria natureza ou da natureza dos meios utilizados. Ao tratar do exercício das atividades perigosas, o legislador quis (apenas) referir-se àquelas operações profissionais que, pela sua especial perigosidade (como o transporte, o comércio e o armazenamento de combustíveis e inflamáveis, os trabalhos de pirotecnia, o fabrico e uso de explosivos, os tratamentos de raio x, o emprego dos raios Laser, o uso da broca no tratamentos de odontologia, a actividade de produção, transformação, condução e distribuição de energia elétrica, a construção de uma barragem, a condução de água para abastecimento público, etc.) requerem medidas especiais de prevenção (25 - Cfr. Antunes Varela, RLJ, Ano 121, 1988-1989, n.º 3766-3777, p. 51 e Ac. do STJ de 18/01/2000, BMJ, n.º 493, 367/373; em particular, no tocante à actividade de produção, transformação, condução e distribuição de energia elétrica, entre outros, os Acs. do S.T.J. 25/03/04, CJSTJ, T. I, p. 149, de 20/1/2010 CJSTJ, T. I, p. 29, ac. da RL de 17/03/05, CJ, T. II, p. 80, 12/02/2004 (relator Araújo Barros), Ac. do STJ de 8/11/2007 (relator Pires da Rosa), Acs. da RP de 02/07/2013 (relatora Maria João Fontinha Areias Cardoso) e de 21/02/2017 (relator Vieira e Cunha) e Ac. da RL de 9/03/2017 (relatora Maria Teresa Albuquerque), consultáveis in www.dgsi.pt.). O Supremo Tribunal de Justiça tem sublinhado que a actividade de construção civil, quer de obras públicas quer de obras particulares, não constitui, em si mesma, uma actividade perigosa (26 - Cfr. Acórdãos do STJ de 27-1-04, CJSTJ, tomo I, p. 46, de 13-11-12 (relator Gabriel Catarino), de 5-6-98 (relator Oliveira Rocha), de 11-11-03 (relator Lopes Pinto), de 22-4-08 (relator Salvador da Costa), de 9-07-15 (relator Abrantes Geraldes) e de 17/05/2017 (relator António Piçarra), estes in www.dgsi.pt). Todavia, dependendo quer da natureza das obras em execução, quer da natureza ou características dos meios utilizados, nada obsta a que essa actividade seja, em concreto, qualificada como perigosa para efeitos do art. 493º, n.º 2, do CC. “
Diante do non liquet do julgador, o ónus da prova impõe que se decida contra a parte sobre a qual ele recai. Daí que VAZ SERRA afirme que “[decidir] que o ónus da prova incumbe a uma das partes, significa que essa parte, se no processo a prova não for feita [pela parte a quem incumbe o ónus da prova, pela outra parte ou por iniciativa do juiz], verá julgar o pleito contra si, ou (…) sujeitar-se-á ao inconveniente de ser havido como assente o facto contrário”, in “Provas (direito probatório material)”, in Boletim do Ministério da Justiça, nº 110, Novembro de 1961., pág. 113.
Portanto, “as regras sobre o ónus da prova têm como objectivo estabelecer critérios de decisão para os casos em que o juiz se vê perante uma dúvida insanável sobre a matéria de facto trazida ao processo”, RITA LYNCE DE FARIA, A Inversão do Ónus da Prova no Direito Civil Português – Relatório de Mestrado de Direito Processual Civil, LEX, Lisboa, 2001, pág. 18.
Com efeito, em casos como o do n.º 2 do artigo 493.º, a presença de uma presunção legal de culpa faz com que, ao invés de competir ao lesado o ónus da prova da culpa do lesante na produção do dano, conforme estabelece a regra geral prevista no n.º 1 do artigo 487.º do Código Civil, passe a ser o lesante a ter o ónus de provar que não teve culpa e, desta forma ilidir a presunção que sobre si recai - RITA LYNCE DE FARIA, em anotação ao art. 344º do Cód. Civil, em Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Univ. Católica, pág. 817.
Em anotação ao artigo 493.º, n.º 2 do Código Civil, MARIA DA GRAÇA TRIGO e RODRIGO MOREIRA, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em geral, refere que “para afastar a presunção de culpa, não é exigida a demonstração de que não houve culpa da parte do agente na produção dos danos, antes é necessário que este demonstre que «empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir». O significado da expressão tem vindo a ser alvo de interpretações divergentes. Segundo a corrente de opinião tradicional, as diferenças terminológicas não se baseiam em diferentes graus de exigência probatória, bastando ao agente demonstrar a ausência de culpa para afastar a presunção que sobre ele impende, como nos demais casos de presunção de culpa dos preceitos anteriores, sendo a única diferença o facto de que, uma vez que estamos no plano do exercício de actividades perigosas, um bom pai de família deve adotar medidas especialmente adequadas a prevenir os danos (neste sentido, v.g., VAZ SERRA, 1970: 319, SOUSA RIBEIRO, 1979:446-447, e ALMEIDA COSTA, 2009: 588, nt 2), posição esta que é dominante na jurisprudência (ver, por ex., Acs. STJ 28.02.2002, 03.06.2003 e 18.08.2012). segundo uma outra corrente, o n.º 1 faz apelo a um critério de culpa mais exigente do que o critério geral do bom pai de família, do artigo 487.º, n.º 1, co critério de culpa levíssima, i.e., não bastando o grau de diligência exigível ao homem médio colocado em circunstâncias equivalentes, mas sim aquele exigível a uma pessoa extremamente diligente e prudente, situando-se este regime entre a responsabilidade subjectiva e a responsabilidade objectiva (sente sentido MENEZES CORDEIRO, 2016: 320-321, e, na jurisprudência, Acs. STJ 13.03.2007 e RG 29.12.2012).”
Importa afirmar que o conceito de actividade perigosa é um conceito indeterminado, ou seja, traduz uma das frequentes situações em que a lei se limita a uma orientação ampla e vaga, obrigando o intérprete a uma acrescida intervenção na solução in casu – segue-se de perto MARIANA ISABEL VELOSA E FERREIRA, in A presunção de culpa pelos danos causados no exercício de atividades perigosas – entre a responsabilidade civil subjetiva e objectiva, tese de mestrado, Univ. Católica, Lisboa.
VAZ SERRA, definiu “atividades perigosas” como as “«que criam para os terceiros um estado de perigo, isto é, a possibilidade ou, ainda mais, a probabilidade de receber dano, uma probabilidade maior do que a normal derivada das outras actividades»”, VAZ SERRA, “Responsabilidade pelos danos causados por coisas ou actividades”, cit., nota 33, págs. 377 a 378
Para além disso, o autor ressalva que a perigosidade da actividade deve existir no exercício da actividade considerada in abstracto, sem se atender, entenda-se, à inexperiência de quem a exerce, pois, sempre que tal não suceda, a solução invariavelmente passará por aplicar a regra geral do artigo 483.º, nº 1 do Código Civil.
Os tribunais, à semelhança da generalidade da doutrina, têm adoptado a posição de VAZ SERRA. Isto mesmo demonstra a seguinte passagem do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de Maio de 2014, em que se diz que “o conceito de atividades perigosas ínsito na previsão do art.º 493º, n.º 2, do Código Civil, tem que ver, essencialmente, com a sua elevada e especial aptidão para provocar danos, sendo a probabilidade da respetiva ocorrência francamente maior do que a verificada nas restantes atividades em geral”.
Os tribunais têm considerado perigosas, além de outras, as seguintes actividades: a prática de patinagem (Ac. STJ de 11/09/2012, Proc. nº 8937/09.5T2SNT.L1.S1); a prática de equitação (Ac. TRE de 02/06/2011, Proc. nº 141/04.5TBGDL.E1) e as corridas de cavalos a galope (Ac. STJ 18/09/2012, Proc. nº 498/08.9TBSTS.P1.S); as corridas de karting (Ac. STJ 06/06/2002, Proc. nº 02B1620) e a exploração de kartódromos (Ac. TRG de 03/12/2009, Proc. nº 2321/05.7TBVCT.G1); a circulação de motas de água (Ac. TRL de 25/06/2013, Proc. nº 467/11.1TBPNI.L1-7); a exploração de parques aquáticos (Ac. STJ de 17/01/2012, Proc. nº 291/07.6TBLRA.C1.S1 e Ac. TRP de 22/11/2011, Proc. nº 1400/04.2TBAMT.P1) (mas já não a exploração normal de uma piscina, Ac. STJ de 06/05/2010, Proc. nº 864/04.9YCGMR); o abate de árvores (Ac. TRG de 29/11/2012, Proc. nº 863/10.1TBVCT.G1 e Ac. TRC de 13/12/2011, Proc. nº 94/10.0TBSCD.C1); a gestão da infraestruturas de caminhos-de- ferro (Ac. TRC de 07/05/2013, Proc. nº 2582/7.7TBCBR.C1); o transporte e a condução de energia elétrica, em alta tensão (Ac. TRC de 07/05/2013, Proc. nº 2582/7.7TBCBR.C1); o fornecimento de energia elétrica, em geral (Ac. TRG de 26/03/2009, Proc. nº 2426/08-2; Ac. TRL de 28/02/2008, Proc. nº 10832/2007-6; Ac. TRL de 17/03/2005, Proc. nº 332/2005-2 e Ac. TRP de 03/02/2004, Proc. nº 0326588), e a inspeção de instalações eléctricas (Ac. TRP de 23/04/2012, Proc. nº 12/09.9T2AVR.C1.P1); o uso de explosivos (Ac. TRP de 26/05/2009, Proc. nº 97/1998.P1) e o lançamento de foguetes ou de fogo-de-artifício (Ac. TRP de 17/03/2014, Proc. nº 1593/07.7TBPVZ.P1; Ac. TRP de 21/04/2005, Proc. nº 0531936; Ac. STJ de 17/06/2004, Proc. nº 04B1675 e Ac. STJ de 04/11/2003, Proc. nº 03A3038); a utilização de máquinas que, através de fricção e atentas as suas características, provoquem o aquecimento, com ignição, que possa dar origem a incêndios (Ac. TRE de 20/01/2010, Proc. nº 10/08.0TBRDD) e o comércio e armazenamento de inflamáveis (Ac. STJ de 28/02/2002, Proc. nº 01B3472).
Quanto à construção civil, os tribunais têm entendido que, por si só, não constitui uma actividade perigosa (Ac. STJ de 10/10/2007, Proc. nº 07S2089; Ac. STJ de 12/02/2004, Proc. nº 04B025 e Ac. STJ de 27/01/2004, Proc. nº 03A3883). No entanto, a obra de construção civil de prédios urbanos (Ac. TRP de 27/05/2014, Proc. nº 264/12.7TBVLG.P1 e Ac. TRC de 09/12/2003, Proc. nº 3481/03) e, em geral, qualquer obra de construção civil que implique trabalhos de escavação (Ac. STJ de 15/11/2011, Proc. nº 5486/09.5TVLSB.L1.S1 e Ac. TRP de 09/01/2007, Proc. nº 0621929), operações de soldadura (Ac. STJ de 31/10/2006, Proc. nº 06A2388), a remoção de inertes, a utilização de máquinas retroescavadoras (Ac. TRL de 14/01/2010, Proc. nº 967/2001.L1-8), de máquinas escavadoras giratórias, de martelos pneumáticos, de compressores (Ac. STJ de 06/04/1995, Proc. nº 086568), de camiões, de gruas, ou o recurso a explosivos (Ac. TRG de 05/12/2013, Proc. nº 2121/11.5TBVCT.G1), ou que tenha em vista a construção de um armazém num terreno situado numa encosta, em plano mais elevado que outro (Ac. TRP de 20/01/2005, Proc. nº 0433561), tem-se entendido que já preenchem o requisito da “especial” aptidão para a produção de danos, previsto no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil, pelo que são qualificadas como actividades perigosas.
Recuperando a factualidade dada como provada, podemos afirmar de modo claro que a actividade levada a cabo pela 3.ª R., trata-se de actividade perigosa, para efeitos da norma em apreço. Na realidade, a actividade de elevar pesos com recurso a uma grua, e no caso em apreço, com colocação da carga, vigas, em local não visível para o operador da máquina (grua). Esta mesma apreciação é feita pelo M.mo Juiz, que a apelante não dissente. Já a actividade levada a cabo pelo 2.º R. dono da obra e da 1.ª R. empreiteiro, não poderá ser qualificada como perigosa.
Deste modo, e quanto à 1.ª R. e 2.º R., por da factualidade dada como provada não se poder concluir por os mesmos haverem agido com culpa e em consequência de tal comportamento, tenham dado causa à queda do pai da apelante, terá a demanda que soçobrar quanto a estes RR..
Tendo presente o que atrás ficou dito, avivemos os factos atinentes à ocorrência do sinistro.
“8. No dia 28 de Setembro de 2015, o pai da A. encontrava-se a cerca de 6 metros de altura e preparava-se para posicionar vigas de betão no 1º andar da referida habitação, quando sofreu uma queda. 9. A qual acabou por lhe causar a morte. 10. As vigas encontravam-se a ser descarregadas de um camião grua, propriedade da 3ª R., que na altura era conduzido e manobrado por um seu trabalhador, de nome J. F.. 12. As vigas eram presas à lança do camião grua, através de cadeias, para posteriormente serem elevadas e depois colocadas, com o auxílio do pai da A. e de um outro trabalhador, J. L., na estrutura de ferro sobre a qual ia ser posteriormente executada uma laje. 13. O pai da A. e um outro trabalhador, J. L., iriam soltar e posicionar as vigas nessa estrutura de ferro. 14. No momento do acidente, as cadeias transportavam cerca de cinco ou seis vigas. 15. O manobrador do camião grua seguia ordens e instruções do J. L., subindo ou baixando a lança, consoante as instruções que lhe eram dadas por este. 16. Uma vez que o manobrador não tinha visibilidade total para o local onde eram descarregadas as vigas. 17. Na altura do acidente, na obra não estavam instalados de meios de protecção colectiva, nomeadamente guarda corpos, os quais também não existiam naquela estrutura em ferro. 18. Nem estavam a ser utilizados meios de protecção individual, designadamente, linhas de vida e arnês contra risco de queda em altura.“
Embora, nos termos do artigo 493.º, n.º 2 do Código Civil, estejamos perante uma presunção de culpa, a presunção para operar terá que se produzir prova de que a morte do pai da apelante ocorreu em consequência da actividade perigosa levada a cabo pela 3.ª R., de colocação de vigas com recurso a grua.
Como se deixou afirmado, esta prova cabe de todo em todo ao lesado por ser seu o ónus da prova.
Na sentença recorrida o M.mo Juiz sentenciou o seguinte:
“Efectivamente, a actividade de descarga com recurso a gruas ou empilhadores pode ser considerada uma actividade perigosa (contra, cfr. os Ac. RG 7.12.2017, proc. nº. 795/14.4TBVRL.G1; Ac. RP 7837/12.6TBMAI.P1), tendo-o já sido considerada quando existe “movimentação de carga pesada por grua em obra de construção civil” (cfr. Ac. RL 18.03.2003, proc. nº. 173/2003-7) ou no caso de “utilização de uma retroescavadora, adaptada com equipamento de elevação e transporte de cargas (grua), na construção de uma conduta de águas pluviais e de saneamento, através da execução, numa vala, de uma caixa de visita em manilhas de cimento, executada com a participação de uma retroescavadora, adaptada com equipamento de elevação e transporte de cargas (grua)” (cfr. Ac. STJ 17.05.2017, proc. nº 1506/11.1TBOAZ.P1.S1). Contudo, “a presunção de culpa só funciona após a prova de que o evento se ficou a dever a razões relacionadas com a actividade perigosa, ou seja, após demonstração de que a actividade perigosa constituiu a causa jurídica dos prejuízos ou dos danos sofridos, cabendo ao lesado o ónus dessa prova” – Ac. RG 14.02.2019, proc. nº. 17579/15.5T8PRT.G1 (no mesmo sentido, veja-se o Ac. RG 26.04.2018, proc. nº. 3702/16.6T8BRG.G1). Sendo que, na situação sub iudice, não é possível considerar que a mera elevação de carga pesada para uma estrutura em ferro, a uma altura de seis metros, seja causa jurídica adequada a provocar uma queda de um indivíduo aí posicionado, o qual não se provou que tenha, sequer, iniciado sequer qualquer intervenção no concreto desenvolvimento da operação de descarga das vigas e, ademais, quando não foi demonstrado que essas vigas embateram no corpo dessa pessoa (cfr. pontos II.1 e II.7 dos factos não provados). “
Aqui não pode este Tribunal decidir de modo distinto. Na realidade, dos factos dados como provados não se retira que a queda tenha ocorrido em consequência da dita actividade. Os factos afirmam que a queda ocorreu no mesmo momento em que se realizava a actividade de colocação de vigas com recurso a uma grua. Mas os mesmos factos, não dizem que o falecido estivesse a realizar alguma actividade ligada com a colocação das vigas. Não existe a ligação que teria de estar demonstrada entre tal actividade de colocação de vigas e a queda do falecido.
Não está assim estabelecida uma ligação, uma relação causal, entre a colocação das vigas com recurso a grua, sua operacionalidade, e o falecido. Não há nos factos provados, quais fossem as medidas de segurança, e os especiais cuidados que a 3.ª R. teria de ter tomado de modo a evitar a queda do falecido pai da apelante.
Improcede assim, a pretensão recursiva da apelante.
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III DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela A., em face da sua sucumbência (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil).
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Sumário nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil.
I – A responsabilidade por factos ilícitos, com base na culpa, é a regra, pois só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei – artigo 483.º, n.º 2 do Código Civil.
II – A presunção consagrada no artigo 493.º, n.º 2, é uma presunção legal de culpa, porque implica uma inversão do ónus da prova (artigo 350.º, n.º 1, do Código Civil). E é uma presunção iuris tantum, na medida em que admite a ilisão por prova em contrário (artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil).
III – O nível de diligência imposto pelo n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil para a determinação das providências exigidas para afastar a produção dos danos é definido pelo critério do bom pai de família – padrão de um sujeito ideal, designado pelos romanos de «bonus pater familias», a diligência relevante para efeitos de determinação da culpa é a de um homem normal perante as circunstâncias do caso concreto – adaptado às circunstâncias e particularidades especificas da actividade perigosa.
IV – A qualificação de uma actividade como perigosa será a sua especial aptidão para produzir danos, aptidão que há-de resultar, como a própria lei o define, da sua própria natureza ou da natureza dos meios utilizados.
V – O artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil estabelece uma presunção de culpa sobre quem exerce uma actividade perigosa (por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados), com a inerente inversão do ónus da prova, de acordo com o estatuído no artigo 344.º do Código Civil, pois que ao lesante se passa a exigir a demonstração de que adoptou todos os cuidados (regras técnicas e deveres ditados pelas regras da experiência comum) que as concretas circunstâncias exigiam para evitar o dano.
VI – Essa presunção só funciona após a prova de que o evento se ficou a dever a razões relacionadas com a actividade perigosa.
VII – Esse ónus de prova (do facto que serve de base à presunção de culpa) cabe ao lesado (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil).
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Guimarães, 31 de Outubro de 2019
Alberto Eduardo Monteiro de Paiva Taveira
Joaquim Luís Espinheira Baltar
Maria Luísa Meireles C. F. Duarte Ramos
(tem voto de conformidade, que não assina por não estar presente).