ACOMPANHAMENTO DE MAIORES
CRITÉRIOS DE DECISÃO
DESIGNAÇÃO DA PESSOA DO ACOMPANHANTE
ANULAÇÃO DA DECISÃO
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário

I - A medida de acompanhamento de uma pessoa maior só se justifica quando esta revelar uma inaptidão básica para autogovernar e autodeterminar a sua vida, tanto pessoal, como patrimonial, existindo factores que, de um modo global ou particular, reduzem ou eliminam a voluntariedade e consciência dos seus actos, em função dos seus juízos de capacidade, os quais devem ser aferidos em concreto e não em abstracto.
II - Para o efeito o tribunal deve partir de um critério realista da capacidade natural na formação da livre vontade da pessoa que vier a beneficiar das medidas de apoio, mormente da sua capacidade mental e da heterogeneidade desta, mas não de critérios abstratos e ficcionados a partir de modelos estanques, como são aqueles que resultam de modelos exclusivamente médicos.
III - Estando em causa a aptidão funcional da capacidade jurídica e mental de uma pessoa, essa avaliação deverá estar centrada nessa mesma pessoa, o que passa pelo seguinte: (a) realizar uma listagem das suas necessidades básicas, destrinçando aquelas para as quais está apta a realizar, daquelas outras que denota algumas limitações; (b) estabelecer as prioridades de intervenção; (c) elencar os recursos pessoais e patrimoniais disponíveis; (d) avaliar as alternativas de intervenção não jurisdicionais existentes; (e) respeitar os desejos e vontades manifestados pela pessoa a ser acompanhada.
IV - A designação judicial do(s) acompanhante(s) deve estar igualmente centrada na pessoa maior que em concreto, e não em abstracto, vai ser legalmente acompanhada, concluindo-se que aquela está em melhor posição para assumir as funções de acompanhamento legal, o que passa por: (i) assegurar as medidas de apoio que foram determinadas pelo tribunal; (ii) prestar-lhe os cuidados devidos, atento o respectivo contexto pessoal, social e ambiental; (iii) participar juridicamente na representação legal determinada pelo tribunal; (iv) assegurar em todos os domínios a vontade e os desejos da pessoa acompanhada, tanto a nível pessoal, como patrimonial, que não foram judicialmente reservados ou restringidas.

Texto Integral

Recurso n.º 13569/17.1T8PRT.P1
Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjuntos; António Paulo Vasconcelos, Filipe Caroço

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
1.1. No processo n.º 13569/17.1T8PRT do Juízo Local Cível do Porto, J5, da Comarca do Porto, em que são:

Recorrente/Demandante: B…

Recorrida/Demandado: C…

foi proferida sentença em 10/jul./2019 que decretou o seguinte:
“a) Decide-se aplicar à beneficiária C… a medida de representação geral, nos termos do artigo 145º, nº 2, alínea a) do Código Civil;
b) Decide-se nomear como acompanhante o seu neto, D…, que dispõe de poderes de representação geral da Beneficiária; as filhas da Beneficiária, E… e F…, integram o Conselho de Família;
c) Declara-se que esta medida de acompanhamento se tornou conveniente a partir de 2017 (artigo 900º, nº 1 do Código Civil);
d) Consigna-se que, para os efeitos do disposto no artigo 2189º, alínea b) do Código Civil, a beneficiária é incapaz de testar.

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Registe e notifique.
A presente medida será revista daqui a cinco anos, caso nada sobrevenha, nos termos do disposto no artigo 155º do Código Civil”
1.2. O A. interpôs a presente ação em 21/jun./2017 contra a R., invocando ser filho desta última, tendo a mesma 82 anos de idade e sofrendo de patologias não identificadas, mas apresentando profundas deficiências das faculdades mentais, tendo uma pensão de € 500 mês e outros rendimentos depositados em contas bancárias, de que resta um pequeno saldo em depósito, revelando-se incapaz de gerir a sua pessoa e bens, terminando pedindo que seja decretada a sua interdição, sendo nomeado o Conselho de Família e o demandante tutor.
1.3. No auto de citação da Requerida de 10/jul./2017 consta que a mesma “mostrou capacidade e entendimento perfeito para a presente citação, ...”.
1.4. A Requerida contestou em 18/set./2017, afirmando que entregou ao Requerente imenso dinheiro, deixando o mesmo e a sua família residir na sua casa, estando agora impedida de entrar na mesma pelo primeiro, sustentando ainda que está na plenitude das suas capacidades mentais, conseguindo gerir a sua vida financeira, pugnando pela improcedência da ação, juntando uma declaração de um médico psiquiatra onde consta, entre outras coisas, que “A minha paciente não apresenta quaisquer défices cognitivos dignos de registo para a sua idade, apresentando-se orientada no tempo, espaço e situação; ...”
1.5. No Auto de Interrogatório realizado em 30/nov./2017 a Requerida respondeu a todas as perguntas de forma clara, concisa e convincente.
1.6. No Relatório de Avaliação Psicológica de Forense de 19/jan./2018 foram apresentadas as seguintes conclusões:
“1. A examinada apresenta evidência de declínio cognitivo que em alguns domínios apresenta níveis patológicos.
2. No entanto apresenta em alguns domínios cognitivos desempenhos situados na média (funções executivas – visuo espacial, linguagem) e a sua personalidade aparenta integridade. Na prova aplicada, solicitada a redigir uma frase escreveu sem hesitações ou erros e com uma caligrafia clara e delicada “eu gosto muito dos meus filhos”
3. Revelou afeto confiança na filha com quem está a viver e vontade de permanecer na sua residência e apoiada por ela.
4. Detetou-se um corte de relações entre a atual cuidadora da examinada, sua filha Eugénia, e o seu filho.”
1.7. No Relatório de Exame Médico-Legal Psiquiátrico datado de 22/jan./2018 foram apresentadas as seguintes conclusões:
“1.A Interditanda mostrou à observação sintomatologia compatível com o diagnóstico de demência senil, de etologia predominantemente neurodegenerativa, no estádio inicial;
2. Por força desta afeção, que é insidiosa, progressiva e irreversível, e cuja cura está para além das possibilidades da medicina actual, está a Requerida incapaz de administrar convenientemente o seu património pelo que deve ser inabilitada;
3. Estima-se que o início da incapacidade se tenha dado há não menos de 1 (um) ano;
4. O défice encontrado não é tão acentuado que não autorize levar em conta a sua escolha de Curador, o que aqui se recomenda; todavia, dado o carácter progressivo da doença, a prudência aconselha que seja realizada nova avaliação dentro de 2 (dois) anos.”
1.8. A Requerida vem em 12/fev./2018 afirmar que de modo algum se considera incapaz, no entanto caso assim se entenda que seja sua curadora a sua filha E…, com quem vive desde 2013.
1.9. Na diligência realizada em 06/set./2018 e instada sobre quem poderia desempenhar o papel de Curador indicou que preferia a sua filha E…, mas que também gosta do seu neto D…, tendo nessa ocasião sido solicitado Relatório Social à Segurança Social.
1.10. No Relatório Social elaborado em 15/out./2018 concluiu-se do seguinte modo:
“Da avaliação realizada, somos do parecer que existem fortes/graves conflitos familiares entre os irmãos, colocando em causa o bem-estar da Sr.ª D. C…, sendo esta exposta a situações de conflito e constrangimento, quando se apercebe do corte relacional de ambos. A inexistência de laços de afetividade, provocam na idosa tristeza, referindo que nunca imaginaria estar na situação familiar em que se encontra”.
1.11. No Relatório Social junto em 10/jan./2019 foi prestada informação social sobre F…
1.12. Por despacho proferido em 27/fev./2019 e na sequência da entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14/ago. foi determinado, entre outras coisas, que se notificasse as partes para estas pronunciarem-se sobre as medidas de acompanhamento.
1.13. O demandante pronunciou-se em 18/mar./2019 expondo, entre outras coisas, o seguinte:
“Reputa-se que, as medidas de acompanhamento que considera adequadas são a representação geral, a administração total de bens e intervenções de outro tipo, ou seja, marcações de consultas médicas, idas com a Requerida a consultas médicas, a realização de exames médicos, a sessões de fisioterapia e demais actos de natureza médica ou medicamentosa”.
1.14. No Auto de Interrogatório realizado em 28/mai./2019 a Requerida respondeu a às perguntas de forma clara, concisa e convincente, não respondendo a outras.
2. O demandante insurgiu-se contra aquela sentença, tendo interposto recurso da mesma em 29/jul./2019 pugnando que a mesma seja declarada nula por omissão do designado no artigo 900.º, n.º 3 CPC e no mais deverá ser revogada e, em consequência, ser designada como acompanhante F…, apresentando essencialmente as seguintes conclusões:
1.ª) A factualidade provada não permite a designação de D… como acompanhante da demandada, não se entendo as razões que motivaram tal escolha, não tendo sido realizadas quaisquer diligências para aferir a credibilidade deste;
2.ª) Desconhece-se onde o mesmo reside, o seu agregado familiar, a atividade profissional, que tipo de relacionamento tem com a Beneficiária
3.ª) A indicada F… filha da beneficiária e que foi alvo de Relatório Social reúne as condições para o exercício das funções de acompanhante
4.ª) O tribunal não podia ter dado como provado o item 7.º dos factos provados, face aos interrogatórios realizados à demandada
5.ª) A sentença é nula por não ter feito referência à existência de testamento vital e de procuração de cuidados de saúde e acautelar o respeito pela vontade antecipadamente expressa pelo acompanhado, como impõe o artigo 900.º, n.º 3 do Código de Processo Civil;
6.ª) Em razão deverá a mesma ser declarada nula nos termos do artigo 615.º, n.º 1 al. e) I parte Código de Processo Civil – certamente queria referir-se à alínea d) do mesmo segmento normativo.
3. Admitido o recurso e apesar de ter sido suscitada a nulidade da sentença, o tribunal recorrido não se pronunciou a propósito, sendo o mesmo remetido a esta Relação onde foi autuado em 04/set./2019.
4. Não existem questões prévias ou incidentais que cumpra conhecer.
5. As questões suscitadas em recurso reconduzem-se ao reexame da matéria de facto (a), a nulidade da sentença (b) e a nomeação do acompanhante (c).
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II. FUNDAMENTAÇÃO
1. A sentença recorrida
1. A Beneficiária C… nasceu a 19JAN1935, na freguesia …, Porto e é viúva.
2. A Beneficiária apresenta sintomatologia compatível com o diagnostico de demência senil, de etiologia predominantemente neurodegenerativa, no estádio inicial.
3. O início do descrito em 3) terá ocorrido em 2017.
4. Da sua união com G… resultou o nascimento do ora requerente B…, em 5JUN1960, E…, em 4DEZ1962 e de F…, em 10DEZ1965.
5. A Beneficiária aufere pensão de reforma no valor de € 500.
6. A Beneficiária apresentou queixa crime, em NOV2016, desistindo da mesma poucos dias depois.
7. A Beneficiária referiu que emprestou quantia em dinheiro não concretamente apurada aos filhos B…, sendo que este estima em cerca de € 40.000 o valor em dívida, e a F….
8. O Requerente encontra-se a habitar a antiga residência da Beneficiária.
9. A Beneficiária encontra-se a residir na habitação da filha E…, com esta e com o genro.
10. O Requerente foi declarado insolvente por sentença proferida em 19FEV2010, já transitada em julgado, tendo sido decretado o encerramento desse processo, após liquidação de ativo, em 15JAN2015.
11. E… foi declarada insolvente por sentença proferida em 21AGO2012, já transitada em julgado, tendo sido decretado o encerramento desse processo, após liquidação do ativo, em 2016.
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Para assim decidir, o Tribunal considerou os assentos de nascimento de folhas 12 e 13 (do Requerente), de folhas 14 e 15 (da Beneficiária), de folhas 16 e 17 (de F...), a declaração médica de folhas 43 e 43 verso, o teor do interrogatório de folhas 79 a 81, a certidão da sentença que decretou a insolvência de E… de olhas 115 a 117 verso, o relatório médico-legal de folhas 118 a 131, a ata de audição da Beneficiária em 6SET2018, de folhas 154 e 155, a informação social relativa ao Requerente, de folhas 162 a 164, relativa à Beneficiária, de folhas 165 a 167 e a relativa a F…, de folhas 182 a 183 e, por fim, o resultado da audição da Beneficiária em 25MAI2019 (vide a respetiva ata, de folhas 262 a 269) serviram de prova aos factos acima elencados, habilitando assim o Tribunal a conhecer o historial clínico da Beneficiária e a sua condição médica atual, bem como factos relativos à sua personalidade, com o pano de fundo das regras da experiência comum.
Mais se consigna que, na ausência de resposta cabal ao nosso despacho de folhas 112 (datado de 22FEV2018) e para evitar mais delongas, tratando-se de processo de natureza urgente, se consultou, hoje mesmo, o histórico do processo de insolvência relativo a E… (processo nº 1358/12.4TJPRT – J8), assim se obtendo a informação do seu encerramento, após liquidação, sem prejuízo de se mostrar ainda em curso o prazo de exoneração do passivo.
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Cabe aqui salientar que é possível concluir dos autos que há muito que as relações afetivas entre o Requerente e as suas irmãs e a Beneficiária estão degradadas.
O Tribunal cingiu-se aos factos que, objetivamente, relevam nesta sede, sendo certo que, como acima se referiu, a questão a decidir nestes autos prende-se apenas com a determinação da(s) concreta(s) medidas de acompanhamento a aplicar à requerida Beneficiária.
E, nessa medida, a factualidade que resultou apurada no ponto 2), conjugada com a idade da Beneficiária [ponto 1) dos factos provados] e a data a que se refere o ponto 3) dos factos provados, basta para concluir no sentido da procedência da ação, nos termos que se vão expor a seguir.
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2. Fundamentos do recurso
a) Reexame da matéria de facto
O Novo Código de Processo Civil (NCPC) estabelece no seu artigo 640.º, n.º 1 que “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”. Acrescenta-se no seu n.º 2 que “No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes”. Nesta conformidade e para se proceder ao reexame da factualidade apurada em julgamento, deve o recorrente: (i) indicar os factos impugnados; (ii) a prova de que se pretende fazer valer; (iii) identificar o vício do julgamento de facto, o qual se encontra expresso na motivação probatória. Nesta última vertente assume particular relevância afastar a prova ou o sentido conferido pelo tribunal recorrido, demonstrando que o julgamento dos factos foi errado, devendo o mesmo ser substituído por outros juízos, alicerçados pela prova indicada pelo recorrente.
Como se pode constatar o recurso dirigido à matéria de facto incide sobre acontecimentos ou circunstâncias da realidade, decorrentes da conduta humana, como de ocorrências da natureza ou resultantes de qualquer outra origem (v. g. robótica) – Ac. TRP de 10/jan./2019, acessível em www.dgsi.pt. Este tem sido de resto o posicionamento predominante da jurisprudência, sendo de relembrar o Ac. do STJ de 07/nov./1969 (BMJ 191/219), segundo o qual factos são “fenómenos da natureza ou manifestações concretas dos seres vivos”. Mas no que concerne à conduta humana, esta pode revestir-se de actos ou omissões, os quais são aparentes (vertente objectiva), resultando normalmente da consciência e vontade do seu agente (vertente subjectiva).
Deste modo, os factos integram essencialmente descrições da realidade e não valorações, como seja juízos ou conclusões, e muitos menos referências jurídicas, mediante simples transposições enunciativas contidas na lei. Existem, no entanto, os designados factos institucionais, os quais incorporam ou reproduzem a configuração de padrões sociais comuns de designação da realidade, ainda que com conotações jurídicas, que a jurisprudência tem assinalado como expressões de uso corrente, “ligados à concretização de certos factos” (Ac. STJ 02/dez./1982, BMJ 322/308) – tal sucede, por exemplo, com a palavra “emprestar”, como se referiu neste último acórdão, ou “renda” no âmbito de um contrato de arrendamento, para designar a contraprestação monetária a cargo do arrendado. Porém, quando essa descrição institucional reproduz simplesmente a referência legal contida na norma jurídica não pode a mesma ser considerada como uma descrição factual, porquanto contém a apreciação jurídica dos factos que constituem o thema decidendum. Para o efeito, a jurisprudência do STJ tem sido muito clara e firme ao considerar que “As afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do acervo factual a considerar, se integrarem o thema decidendum, e, quando isso não suceda e o tribunal se pronuncie sobre as mesmas, deve tal pronúncia ter-se por não escrita” (STJ 15/dez./2011, Cons. Pinto Hespanhol, www.dgsi.pt).
No caso, impugnação do recorrente incide sobre o seguinte item:
“7. A Beneficiária referiu que emprestou quantia em dinheiro não concretamente apurada aos filhos B…, sendo que este estima em cerca de € 40.000 o valor em dívida, e a F….”
Muito embora possa ser discutível se estamos perante uma descrição factual, mas perante um meio de prova, que são as declarações da demandada, não deixa de ser um facto que a mesma prestou essas declarações no decurso do seu interrogatório. E quanto às capacidades cognitivas da mesma o Relatório de Avaliação Psicológica Forense de 19/jan./2018, muito embora constatando a “evidência de declínio cognitivo”, não deixa de mencionar que a mesma “apresenta em alguns domínios cognitivos desempenhos situados na média (funções executivas – visuo espacial, linguagem) e a sua personalidade aparenta integridade”. No mesmo sentido vai o Relatório de Exame Médico-Legal Psiquiátrico datado de 22/jan./2018, porquanto conclui que a mesma apresenta uma “etologia predominantemente neurodegenerativa, no estádio inicial”, não deixa de referir que “O défice encontrado não é tão acentuado que não autorize levar em conta a sua escolha de Curador, o que aqui se recomenda”.
Nesta conformidade, será de concluir que o item 7 e considerando que o mesmo tem alguma aparência factual, que pode ser relevante para aferir a confiança que a demandada tem no requerente, manter-se-á como provado.
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b) Nulidade da sentença
O NCPC enumera no seu artigo 615.º n.º 1 os casos de nulidade da sentença, sendo de convocar, face ao recurso aqui em causa, a sua alínea d), onde se diz que tal vício ocorre quando “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões que não podia tomar conhecimento”. A propósito, o NCPC com as alterações introduzidas pela Lei n.º 49/2018, de 14/ago. (DR I, n.º 156, pp. 4072-4086), passou a estabelecer no seu artigo 900.º, n.º 3 que “A sentença que decretar as medidas de acompanhamento deverá referir expressamente a existência de testamento vital e de procuração para cuidados de saúde e acautelar o respeito pela vontade antecipadamente expressa pelo acompanhado” – sendo nosso o negrito.
Como se pode constatar a exigência legal vai no sentido de ser referido a existência de tais diretivas antecipadas de vontade e não a sua inexistência. Ora o tribunal recorrido nesta parte e muito embora não tenha feito a propósito qualquer referência na motivação da sua convicção probatória, teve o cuidado de indagar junto do RENTEV a existência de tais documentos, bastando para o efeito constatar o seu despacho de 19/jun./2019, tendo obtido resposta do ACES – Porto Ocidental por ofício do mesmo datado de 21/jun./2019 e registado em 05/jul./2019, onde se diz que a propósito da demandada que “a utente não possui testamento vital e/ou outorgou procuração para cuidados de saúde, nesta ACeS”
Nesta conformidade, improcede este segmento de recurso.
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c) A nomeação do acompanhante
O Código Civil através do seu artigo 130.º estabelece que “Aquele que perfizer dezoito anos de idade adquire plena capacidade de exercício de direitos, ficando habilitado a reger a sua pessoa e a dispor dos seus bens”, podendo agora essa capacidade ser restringida através do regime do maior acompanhado instituído pela Lei n.º 49/2018, de 14/ago. (DR I, n.º 156, pp. 4072/4086), o qual veio substituir os anteriores institutos da interdição e inabilitação do Código Civil, que correspondiam a autênticos modelos de substituição. Assim, no que concerne à nomeação do acompanhante passou a estar regulado através do seu artigo 143.º, n.º 1 que “O acompanhante, maior e no pleno exercício dos seus direitos, é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, sendo designado judicialmente”, acrescentando no seu n.º 2 que “Na falta de escolha, o acompanhamento é deferido, no respetivo processo, à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário, designadamente:”, seguindo-se uma lista de potenciais acompanhantes – sendo nosso o negrito. De acordo com o subsequente n.º 3 “Podem ser designados vários acompanhantes com diferentes funções, especificando -se as atribuições de cada um, com observância dos números anteriores”.
No entanto e densificando esse “interesse imperioso do beneficiário”, a pessoa a nomear como acompanhante deverá estar em condições de exercer as funções que lhe estão legalmente atribuídas, sendo por isso mais um assistente legal do que um mero acompanhante. E nestas sobressai o dever de cuidado e diligência imposto pelo artigo 146.º do Código Civil, estipulando-se no n.º 1 que “No exercício da sua função, o acompanhante privilegia o bem-estar e a recuperação do acompanhado, com a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação considerada”, aditando-se no n.º 2 que “O acompanhante mantém um contacto permanente com o acompanhado, devendo visitá-lo, no mínimo, com uma periodicidade mensal, ou outra periodicidade que o tribunal considere adequada”. Mais acresce que seguindo a representação legal o regime da tutela, tal como decorre do artigo 145.º, n.º 4 do Código Civil, estão impedidos de ser nomeados os que constam no elenco do artigo 1933.º do Código Civil, mediante a epígrafe “Quem não pode ser tutor”.
Como se pode constatar a nomeação de acompanhante por parte do tribunal não tem um carácter arbitrário, aleatório, abstratizante ou então automático, como seja seguir por ordem decrescente a lista exemplificativa constante no enunciado legal (143.º, n.º 2 Código Civil), como sucedia anteriormente com o instituto da interdição – no pretérito artigo 143.º, n.º 1 dizia-se que “A tutela é deferida pela ordem seguinte: ...”. Assim, a designação judicial de acompanhante deve ser ponderada em concreto, dando-se primazia à pessoa escolhida previamente pela beneficiária (1) respeitando-se a sua vontade e desejos, e só tal não acontecendo é que deve optar-se por aquela que esteja em condições de assegurar os interesses da beneficiária (2), que são mais uma vez a sua vontade e desejos manifestados ao longo do processo (i), estando a mesma em condições de prestar os devidos deveres de cuidado e diligência (ii). E essa ponderação deve estar devidamente fundamentada na sentença, por exigências constitucionais (20.º, n.º 4 e 205.º n.º 1 Constituição) e legais (24.º, n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26/ago. – LOSJ, DR I, n.º 163, pp. 5114-5145; 154.º; 607.º, n.º 3 e 4; 615.º, n.º 1, alínea b), estes do NCPC), mormente em casos de manifesto conflito familiar, como sucede nesta ação.
Mas a questão suscitada em recurso da nomeação de quem será acompanhante coloca previamente a ponderação das medidas de acompanhamento decretadas à beneficiária, porquanto só tem sentido avaliar essa nomeação se a mesma vai de encontro às finalidades dessas medidas e às necessidades da beneficiária, mais uma vez em concreto e não em abstracto. De tal modo que se possa sustentar que o acompanhante é a pessoa conveniente e capaz para desempenhar as funções que legalmente lhe estão acometidas e que o tribunal em concreto determinou. Tal implica um excurso breve sobre quem está legalmente sujeito a acompanhamento, porquanto estamos no início deste novo regime jurídico do maior acompanhado. No entanto e para o efeito não podemos estar exclusivamente focados no regime do maior acompanhado estabelecido no Código Civil, porquanto está em causa a tutela multinível da pessoa acompanhada, que não é apenas legal, mas sobretudo constitucional e a nível dos direitos humanos.
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A Constituição estabelece no seu artigo 26.º, n.º 1 que “A todos são reconhecidos os direitos ..., ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, ... e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.”, acrescentando-se no seu n.º 4 que “A privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efectuar-se nos casos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos”. Este direito fundamental à capacidade civil está relacionado com a aptidão de uma pessoa para ser sujeito de direitos e deveres, de modo a estabelecer relações jurídicas. A capacidade civil, tal como está constitucionalmente configurada, acaba por ser a medida jurídica de uma pessoa.
A capacidade civil está, no entanto, sujeita a restrições, tal como prevê o citado n.º 4 daquele artigo 26.º, mas as mesmas estão desde logo constitucionalmente condicionadas pela reserva de lei (“só podem efectuar-se nos casos e termos previstos na lei), excluindo-se qualquer “fundamento [por] motivos políticos”. Mas também existem outras condicionantes constitucionais à restrição legal da capacidade civil, como seja a salvaguarda da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º), da igualdade (artigo 13.º, n.º 1 e 2), mormente a proibição do arbítrio e de práticas discriminatórias, assim como o respeito pela intervenção mínima restringente (artigo 18.º, n.º 2), preservando-se o núcleo essencial do direito fundamental à capacidade civil (artigo 18.º, n.º 3). Estas últimas vertentes, também conhecidas, respectivamente, como proibição do excesso e limite dos limites, devem ser concretamente aferidas mediante um critério de proporcionalidade, assente na necessidade (i), adequação (ii), justa medida dessa restrição (iii) e de modo a salvaguardar um interesse legítimo (iv), preservando-se o núcleo essencial da capacidade jurídica (v). Daí que a jurisprudência constitucional exclua uma automaticidade de perda da capacidade civil, mediante mero efeito de uma inabilidade comercial, ainda que judicialmente reconhecida, como sucedeu com os administradores das sociedades comerciais falidas ou insolventes (TC Acs. 570/2008; 571/2008; 584/2008; 585/2008 e 253/2009).
A Constituição relativamente a certas pessoas vulneráveis ainda estabelece um específico reforço da tutela jurídica da sua específica condição, seja através do artigo 71.º, n.º 1 ao enunciar que “Os cidadãos portadores de deficiência física ou mental gozam plenamente dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição, com ressalva do exercício ou do cumprimento daqueles para os quais se encontrem incapacitados”, seja mediante o subsequente artigo 72.º, n.º 1, ao consagrar que “As pessoas idosas têm direito à segurança económica e a condições de habitação e convívio familiar e comunitário que respeitem a sua autonomia pessoal e evitem e superem o isolamento ou a marginalização social” – sendo nosso o negrito, assim como os posteriores que fiquem assinalados.
Por sua vez, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – CDPD (DR, I, n.º 146, de 30/jul./2009, pp. 4906-4929) veio instituir no seu artigo 12.º o reconhecimento igual perante a lei, tanto da personalidade jurídica, como da capacidade jurídica das pessoas com discapacidade. Mediante a primeira reafirmam que estas “têm o direito ao reconhecimento perante a lei da sua personalidade jurídica em qualquer lugar” (n.º 1), enquanto através da segunda reconhecem que as mesmas “têm capacidade jurídica, em condições de igualdade com as outras, em todos os aspectos da vida” (n.º 2). Tratam-se de normas de direito internacional autossuficientes, que valem por si, tanto sob o ponto de vista formal, como substancial, pois os Estados Partes desde logo reafirmam ou reconhecem tais direitos, mostrando-se as mesmas suficientemente claras, integrais e completas, não necessitando, por isso, de qualquer intermediação legislativa doméstica, sendo imediatamente aplicáveis no ordenamento jurídico nacional.
Para o efeito, os Estados Partes devem tomar as “medidas apropriadas para providenciar acesso às pessoas com deficiência ao apoio que possam necessitar no exercício da sua capacidade jurídica” (artigo 12.º, n.º 3), de modo a assegurar que “todas as medidas que se relacionem com o exercício da capacidade jurídica fornecem as garantias apropriadas e efectivas para prevenir o abuso de acordo com o direito internacional dos direitos humanos” (artigo 12.º, n.º 4, I parte). Ainda se acrescentou que “Tais garantias asseguram que as medidas relacionadas com o exercício da capacidade jurídica em relação aos direitos, vontade e preferências da pessoa ..., são proporcionais e adaptadas às circunstâncias da pessoa, ...” (artigo 12.º, n.º 4, II parte).
No que concerne a este artigo 12.º, n.º 4, II parte, como podemos constatar no quadro adiante, existe um ostensivo e incompreensível erro na tradução do legislador nacional. E isto porque, não corresponde a uma tradução fiel do texto original em inglês, em virtude da palavra respect (“respeitam”) ter sido simplesmente eliminada, ao ser traduzida por “relação”. Perante esta desconformidade e ao abrigo do artigo 33.º, n.º 1 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 (DR n.º 181, de 07/ago./2003, pp. 4662-4703), iremos seguir a tradução adiante referenciada, como “Texto a seguir” – naquele artigo 33.º, n.º 1 estipula-se que “Quando um tratado for autenticado em duas ou mais línguas, o seu texto faz fé em cada uma dessas línguas, salvo se o tratado dispuser ou as Partes acordarem que, em caso de divergência, prevalecerá um determinado texto”.

A leitura deste artigo 12.º deve ainda ser complementada ou integrada com outros normativos da CDPD, como seja os seus artigos 5.º, relativamente à igualdade e não discriminação, e 13.º, respeitante ao acesso à justiça, não apenas sob um ponto de vista formal, mas também substancial. Na sequência daquele artigo 12.º da CDPD, o Comité DPD elaborou o Comentário Geral n.º 1 (2014), chamando a atenção para se diferenciar entre capacidade jurídica (i), que seria a aptidão para se ser titular de direitos e obrigações, assim como para os exercer, e a capacidade mental (ii), que representaria a habilidade para uma pessoa tomar as suas decisões, sendo a mesma variável de pessoa para pessoa, dependendo ainda de diversos factores (§ 13) (https://www.ohchr.org/en/hrbodies/crpd/pages/gc.aspx). Mas também se manifestou no sentido de ser abandonado o critério do “melhor interesse” (best interests), substituindo-o pelo critério da “vontade e preferência” e, quando tal não seja possível, pela sua “melhor interpretação possível” (§ 21), renovando a necessidade de passar-se de um modelo de substituição (tutela plena, interdição judicial, tutela parcial) para um modelo de apoio (§ 26, 27).
A nível do ordenamento jurídico nacional convém ter igualmente em atenção outros registos normativos para além do Código Civil, mormente aqueles que regulam outras formas de assistência ou de prestação de cuidados ou acolhimento. Tal ocorre com a assistência pessoal no âmbito do Modelo de Apoio à Vida Independente (Decreto-Lei n.º 129/2017, de 09/out.; DR I, n.º 194, pp. 5608-5618) – no seu artigo 5.º, n.º 1 consagra-se que “A assistência pessoal constitui-se como um serviço especializado de apoio à vida independente, através do qual é disponibilizado apoio à pessoa com deficiência ou incapacidade para a realização de atividades que, em razão das limitações decorrentes da sua interação com as condições do meio, esta não possa realizar por si própria.”. E agora através do cuidador informal, que passou a ter o seu estatuto legal através da Lei n.º 100/2019, de 06/set. (DR I, n.º 171, pp. 03-16) – a propósito e de acordo com o seu artigo 3.º considera-se pessoa cuidada, “quem necessite de cuidados permanentes, por se encontrar em situação de dependência, e seja titular de uma das seguintes prestações sociais: a) Complemento por dependência de 2.º grau; b) Subsídio por assistência de terceira pessoa”. Poder-se-á ainda referenciar a possibilidade de acolhimento familiar regulado pelo Decreto-Lei n.º 391/91, de 10/out. (DR I-A, n.º 233, pp. 5277-5281), tratando-se de “uma medida de política social que consiste em integrar, temporária ou permanentemente, em famílias consideradas idóneas pessoas idosas ou pessoas com deficiência, a partir da idade adulta” (artigo 1.º, n.º 1), mediante a qual se visa “garantir à pessoa acolhida um ambiente sócio-familiar e afectivo propício à satisfação das suas necessidades básicas e ao respeito pela sua identidade, personalidade e privacidade (artigo 2.º), na falta de respostas sociais eficazes e de não existir ambiente familiar adequado (artigo 3.º, n.º 1).
Ainda no âmbito da legislação ordinária assume neste âmbito uma particular relevância a Lei n.º 46/2006, de 28/ago. (DR I, n.º 165, pp. 6210 – 6213), que proíbe e pune a discriminação em razão da deficiência e da existência de risco agravado para a saúde, mormente de “actos que se traduzam na violação de quaisquer direitos fundamentais, ou na recusa ou condicionamento do exercício de quaisquer direitos económicos, sociais, culturais ou outros, por quaisquer pessoas, em razão de uma qualquer deficiência” (artigo 1.º n.º 1) e como já referimos a capacidade civil é um direito fundamental. A propósito o seu artigo 3.º estabelece os seguintes conceitos: a) «Discriminação directa» a que ocorre sempre que uma pessoa com deficiência seja objecto de um tratamento menos favorável que aquele que é, tenha sido ou venha a ser dado a outra pessoa em situação comparável; b) «Discriminação indirecta» a que ocorre sempre que uma disposição, critério ou prática aparentemente neutra seja susceptível de colocar pessoas com deficiência numa posição de desvantagem comparativamente com outras pessoas, a não ser que essa disposição, critério ou prática seja objectivamente justificado por um fim legítimo e que os meios utilizados para o alcançar sejam adequados e necessários; c) «Pessoas com risco agravado de saúde» pessoas que sofrem de toda e qualquer patologia que determine uma alteração orgânica ou funcional irreversível, de longa duração, evolutiva, potencialmente incapacitante, em perspectiva de remissão completa e que altere a qualidade de vida do portador a nível físico, mental, emocional, social e económico e seja causa potencial de invalidez precoce ou de significativa redução de esperança de vida;”
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Na sequência deste quadro normativo, das suas múltiplas e distintas fontes constitucionais e legislativas, o decretamento de qualquer medida de acompanhamento deve ter como referência a existência de um padrão constitucional de capacidade civil, preservando-se a dignidade da pessoa humana, não só no sentido desta não ser reduzida a um meio, sendo antes um fim em si mesmo, mas também de preservarem-se e alavancarem-se as suas capacidades humanas (artigo 1.º Constituição). Mas também assegurando-se o princípio da igualdade, proibindo-se qualquer prática discriminatória no âmbito da capacidade civil (artigos 13.º, n.º 1 e 2; 26.º, n.º 1 Constituição), mormente em relação às pessoas em situação de vulnerabilidade (artigos 71.º, n.º 1 e 72.º, n.º 1 Constituição), designadamente em razão da deficiência ou da discapacidade, bem como de qualquer patologia susceptível de originar um risco agravado do seu estado de saúde (artigo 1.º, n.º 1 da Lei 46/2006) – a existência de uma discapacidade mental ou de uma doença neurológica só por si não é fundamento de acompanhamento legal. Mas o tribunal também deve ter presente o actual paradigma dos direitos humanos da personalidade e capacidade jurídica, mormente o seu reconhecimento em qualquer lugar e em igualdade com as demais pessoas, concedendo-se ainda primazia às medidas de apoio em detrimento das medidas de substituição (12.º CDPD).
Tal implica que o decretamento de uma medida de acompanhamento decorra de uma impossibilidade suficientemente forte e não meramente indiciária de uma pessoa maior encontrar-se de modo pleno, pessoal e consciente impedida de exercer os seus direitos e cumprir os seus deveres no âmbito da sua capacidade jurídica e relativamente aos seus interesses pessoais (130.º; 138.º Código Civil). Para o efeito, o tribunal deve partir da presunção de que toda a pessoa adulta está habilitada a governar a sua pessoa e os seus bens, tendo as medidas de acompanhamento um carácter excepcional, de acordo com o princípio da intervenção mínima no âmbito da restrição dos direitos fundamentais (18.º, n.º 2 Constituição). Deste modo, uma medida de acompanhamento de uma pessoa maior só se justifica quando esta revelar uma inaptidão básica para autogovernar e autodeterminar a sua vida, tanto pessoal, como patrimonial, existindo factores que, de um modo global ou particular, reduzem ou eliminam a voluntariedade e consciência dos seus actos, em função dos seus juízos de capacidade, os quais devem ser aferidos em concreto e não em abstracto. Assim, sempre que uma pessoa tenha a capacidade mental mínima para tomar decisões racionais e desempenhar tarefas como um agente racional, não se justifica qualquer medida limitadora da sua capacidade jurídica, podendo até serem implementadas outras medidas de apoio, mas fora do âmbito do acompanhamento legal, como a assistência pessoal, os cuidados informais ou o acolhimento familiar.
Por outro lado, as medidas de acompanhamento devem ser sujeitas a um teste de proporcionalidade, determinando-se em concreto o que é necessário, adequado e na justa medida para preservar os interesses legítimos da pessoa acompanhada e não de qualquer outra (145.º, n.º 1 Código Civil) – como sejam os interesses patrimoniais de terceiros, inclusivamente de familiares. Para que tal ocorra, o tribunal deve partir de um critério realista da capacidade natural na formação da livre vontade da pessoa que vier a beneficiar das medidas de apoio, mormente da sua capacidade mental e da heterogeneidade desta, mas não de critérios abstratos e ficcionados a partir de modelos estanques, como são aqueles que partem de uma leitura exclusivamente médica. Para o efeito, será de ponderar todas as circunstâncias endógenas e exógenas que em termos funcionais reduzem ou eliminam as suas aptidões mentais de autonomia pessoal (capacidade básica de autogoverno e autodeterminação) para dirigir a sua pessoa, administrar os seus bens e celebrar actos jurídicos em geral.
Destarte e como está em causa a aptidão funcional da capacidade jurídica e mental, essa avaliação deverá estar centrada na própria pessoa, o que passa pelo seguinte: (a) realizar uma listagem das suas necessidades básicas, destrinçando aquelas para as quais está apta a realizar, daquelas outras que denota algumas limitações; (b) estabelecer as prioridades de intervenção; (c) elencar os recursos pessoais e patrimoniais disponíveis; (d) avaliar as alternativas de intervenção não jurisdicionais existentes; (e) respeitar os desejos e vontades manifestados pela pessoa a ser acompanhada. Deste modo, a designação judicial do(s) acompanhante(s) deve estar igualmente centrada na pessoa maior que em concreto, e não em abstracto, vai ser legalmente acompanhada, concluindo-se que aquela está em melhor posição para assumir as funções de acompanhamento legal, o que passa por: (i) assegurar as medidas de apoio que foram determinadas pelo tribunal; (ii) prestar-lhe os cuidados devidos, atento o respectivo contexto pessoal, social e ambiental; (iii) participar juridicamente na representação legal determinada pelo tribunal; (iv) assegurar em todos os domínios a vontade e os desejos da pessoa acompanhada, tanto a nível pessoal, como patrimonial, que não foram judicialmente reservados ou restringidos.
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Como se pode constatar o tribunal recorrido, certamente devido à fase inicial de implementação do regime do maior acompanhado e na ausência de sugestivas linhas de orientação, não teve em atenção esta metodologia na determinação das medidas de apoio e este critério funcional na nomeação do acompanhante. Aliás, na determinação das medidas de acompanhamento apenas teve preocupações de valência patrimonial, como era característico no anterior regime de interdição, de que é exemplo o facto de ter decretado a incapacidade da acompanhada para realizar qualquer testamento respeitante aos seus bens. Mas pelos vistos, continua a ter a faculdade de realizar o seu testamento vital, como ainda qualquer outro tipo de negócios inter vivos, seja de administração, seja de disposição, com a ressalva dos bens imóveis (145.º, n.º 3 Código Civil), porquanto os mesmos não se encontram expressamente restringidos – face ao preceituado no artigo 147.º, n.º 1 do Código Civil “O exercício pelo acompanhado de direitos pessoais e a celebração de negócios da vida corrente são livres, salvo disposição da lei ou decisão judicial em contrário”. No entanto, não teve preocupações a nível das condições pessoais da pessoa acompanhada, tanto mais que no Relatório de Exame Médico-Legal Psiquiátrico datado de 22/jan./2018, sugeria-se a medida de inabilitação, que na ocasião estava vigente, assim como uma subsequente avaliação no prazo de 2 (dois) anos.
E estas faltas de consideração tanto de facto, como de Direito, não permitem a esta Relação tomar posição quanto ao objecto do recurso relativamente à nomeação do acompanhante. Nestes casos e mesmo oficiosamente a Relação, ao abrigo do artigo 662.º, n.º 2, alíneas c), n.º 3, alínea c), do NCPC, pode anular a decisão proferida em 1.ª instância, de modo a ampliar os factos respeitantes à aptidão funcional da capacidade jurídica e mental da requerida, assim como de quem está em melhores condições para assumir as funções de acompanhamento legal, mormente daquele que foi designado como acompanhante. E no mesmo seguimento deve o tribunal recorrido, agora ao abrigo do artigo 662.º, n.º 2, alíneas d), n.º 3, alínea d), do NCPC, melhor fundamentar a sua decisão, atento os parâmetros agora definidos. Por último e uma vez que esta ação já se prolonga por mais de 2 anos, revestindo-se agora o processo de acompanhamento de pessoa maior de carácter urgente, tendo ainda a natureza de um processo de jurisdição voluntária, designadamente quanto à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes (891.º, n.º 1 e 988.º, n.º 1 e 2, ambos do NCPC), que caso estas ocorram deve o tribunal recorrido ponderar devidamente as mesmas – a propósito, a última parte do n.º 2 do citado artigo 988.º considera supervenientes, “Tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso”.
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As custas deste recurso quanto às questões que não obtiveram provimento ficam a cargo do recorrente, fixando-se as mesmas na proporção de 2/3, sendo o restante 1/3 ponderado a final, sem prejuízo do artigo 4.º, n.º 2, alínea h) do R. C. P. – cfr. artigo 527.º, n.º 1 e 2 NCPC.
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No cumprimento do disposto no artigo 663.º, n.º 7 do NCPC, apresentamos o seguinte sumário:
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III. DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso interposto por B… quanto às duas primeiras questões e no restante anula-se a sentença recorrida, com vista à ampliação da matéria de facto e melhor fundamentação, nos termos anteriormente referenciados

Custas do recurso pelo recorrente, fixando-se a proporção em 2/3, sendo o restante 1/3 ponderado a final, sem prejuízo do artigo 4.º, n.º 2, alínea h) do R. C. P.

Notifique.

Porto, 26 de setembro de 2019
Joaquim Correia Gomes
António Paulo Vasconcelos
Filipe Caroço