EMBARGOS DE EXECUTADO
LEGITIMIDADE
EXEQUENTE
TRANSMISSÃO ENTRE VIVOS DA COISA OU DIREITO LITIGIOSO
HABILITAÇÃO DE CESSIONÁRIO
Sumário

I – A transmissão, por ato entre vivos, da coisa ou direito litigioso, não retira legitimidade ao transmitente, ainda que estejamos em sede de ação executiva.
II – Essa legitimidade só será perdida se e quando houver habilitação do cessionário.
III – Não é pelo facto de a citação dos executados ocorrer depois da transmissão do crédito que o transmitente passa a ser parte ilegítima, quando essa transmissão é posterior à instauração da ação executiva.

Texto Integral

Sumário (da responsabilidade do relator):
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PROCESSO 18281/16.6T8PRT-A.P1

Relator: José Eusébio Almeida;
Adjuntos: Carlos Gil e Carlos Querido.

Recorrente – B…, SA.
Recorridos – C…, Lda., D… e outros.

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

I – O processo na 1.ª instância
1 – C…, Lda., D…, E…, F… e G… deduziram embargos de executado contra B…, SA, cumulando-os com oposição à penhora, e pediram que se (1) julgue a execução improcedente por ilegitimidade ativa do exequente e do próprio título e, caso assim se não entenda, a suspensão da execução até à decisão em definitivo da legitimidade ativa; (2) que seja declarada a nulidade da citação e consequentemente das penhoras por erro na forma do processo, (3) que os juros vencidos e vincendos sejam considerados nulos por não se mostrarem líquidos e exigíveis, uma vez que os executados desconhecem os seus valores, taxas de juros aplicadas, e nunca receberam qualquer extrato a informar os valores em divida, nem estes estão documentados, (4) que seja ordenado o cancelamento de todas as penhoras constituídas sobre os imóveis na execução por serem ilegais, uma vez que, registadas a favor de quem não é titular das responsabilidades que lhe servem de garantia.

2 – “Sem prescindir e assim não entendendo”, pretendem que (5) seja promovido o levantamento da penhora relativamente ao prédio descrito sob o n.º …. da freguesia … do concelho da Póvoa de Varzim, porquanto a penhora é excessiva, sendo de valor suficiente para garantia da quantia exequenda os restantes imóveis penhorados, (6) ser a execução suspensa até decisão dos embargos quanto ao imóvel casa morada de família da executada/avalista, E…, por se tratar de habitação própria e permanente da executada.

3 – Fundamentando a sua oposição, invocaram a ilegitimidade da exequente por, em janeiro de 2017, lhes ter sido comunicado que cedera os créditos reclamados à H…, SA. Dizem também e que a execução enferma de erro na forma do processo por os títulos dados à execução serem duas livranças devendo os autos terem sido interpostos sob a forma ordinária. Alegam ainda que a executada E… está a cumprir pontualmente para com a exequente o crédito à habitação constituído junto deste e garantido pelas hipotecas inscritas sobre o prédio descrito com o n.º …. da Freguesia … pelas Aps. 2 de 2008/07/10, 3 de 2008/07/10 e 22 de 2008/02/22 e que os valores peticionados não se encontram discriminados, pelo que não sabem o que está em divida, a titulo de capital, juros e mais despesas e não há qualquer extrato demonstrativo dos pagamentos realizados.

4 - Na oposição à penhora dizem que a hipoteca inscrita sobre o prédio n.º …., sob a Ap. 485, de 2013/04/19, que garantia o Contrato de Abertura de Conta Corrente foi transferida para a H…, SA em 22.02.2017 e é ilegal, já que constituída a favor de quem não é titular dos créditos. Em relação à penhora das frações F, J, K e L do prédio n.º …. da Freguesia da ... dizem que a mesma apenas visa garantir a cobrança do crédito decorrente do contrato de empréstimo, no valor de 98.319,98€, do que resulta a sua excessividade, devendo reduzir-se a essas frações F, J, K e L e levantada a penhora do prédio n.º …..

5 – Os embargos foram legalmente recebidos e o exequente notificado para os contestar, o que fez. Contestando, o exequente aceita ter cedido o crédito aqui em causa, pugna pela improcedência da invocada ilegitimidade ativa, apelando ao princípio da estabilidade da instância. Mais sustenta a improcedência quanto ao alegado erro na forma do processo por estarmos perante obrigação pecuniária vencida, garantida por hipoteca. Relativamente à oposição à penhora, concluiu pela regularidade desta e sustenta que não há qualquer excessividade, uma vez que se desconhece o valor fixado para a venda dos bens penhorados.

6. Os autos prosseguiram os seus termos, com a realização da Audiência prévia e suspensão da instância. De seguida foi proferida sentença, que decidiu:
“- se julgam procedentes os embargos de executado e, em consequência, se declara extinta a execução;
- se julga improcedente oposição à penhora.
Custas pela embargada.
- Face ao anteriormente decidido fica prejudicado o conhecimento do pedido de suspensão da execução com fundamento no disposto no art. 733 n.º 5 do CPC”.

II – Do recurso
7 - Inconformado com a decisão, o exequente recorreu. Pretende que, com o provimento do recurso, seja “revogada a decisão recorrida e substituída por uma outra que julgue os embargos totalmente improcedentes”.

8 – Formulou as seguintes Conclusões:
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9 – O recorridos não responderam ao recurso.

10 – O recurso foi recebido nos termos legais (“Por tempestivo e legal admito o recurso interposto, que é de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo”).

11 – Foi mantido, nesta Relação, o sentido do despacho que admitiu a apelação e, com a concordância dos Desembargadores Adjuntos, nos termos do disposto no artigo 657, n.º 4 do Código de Processo Civil (CPC) foram dispensados os Vistos. Nada obsta, que se constate, ao conhecimento do mérito do recurso.

12 – O objeto do recurso, atentas as conclusões do apelante, consiste em saber se a sentença apelada violou, na interpretação que deles fez, o preceito nos artigos 10.º, n.º 5, 53, n.º 1, 54, n.º 1, 259, n.º 2, 260, 262, al. a), 263, n.º 1 e n.º 3, e 356, todos do CPC, ou, mais concretamente, se o exequente, tendo transmitido o crédito em data posterior à instauração da execução mas anterior à citação dos executados não é, ou deixou de ser, parte legítima.

III – Fundamentação
III.I Fundamentação de facto
13 - A 1.ª instância deu como assente a seguinte matéria de facto, que não foi objeto de impugnação:
13. 1 – Em 12.09.2016, o B…, SA, invocando a deliberação do Banco de Portugal de 19.12.2015 que procedeu à resolução do I…, SA e em resultado da qual foram para si transferidos créditos da titularidade desta instituição de crédito, instaurou a presente ação executiva para cobrança da quantia de 536.475,69€, dando à execução duas livranças, com data de vencimento de 7.08.2015, uma no valor de 412.464,39€, com data de emissão de 19.04.2013 e outra no valor de 98.319,98€ com data de emissão de 21.08.2014.
13.2 – Consta como beneficiário das referidas livranças o I…, SA, tendo a primeira sido entregue para garantia do contrato de abertura de crédito em conta corrente caucionada celebrado entre o I… e a C…, Lda. em 19.04.2013 e a segunda do contrato de empréstimo celebrado em 21.08.2014.
13.3 – Em 2.09.2011, na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde, foi celebrado um contrato denominado de mútuo com hipoteca nos termos do qual “Para garantia do bom cumprimento de todas e quaisquer obrigações ou responsabilidades em nome da sociedade “C…, LDA”, emergentes ou resultantes de operações de crédito concedidas ou a conceder pelo I…, SA, por contratos de empréstimo ou de abertura de crédito, por contratos de conta gestão de tesouraria (...), por financiamento por livranças, por desconto de papel comercial, por crédito por assinatura, por descoberto em conta de depósitos à ordem, por créditos documentários de importação, por financiamentos externos, por contratos de leasing ou de factoring e acordo de gestão de pagamento a fornecedores, na sua vigência inicial ou nas sua prorrogações ou renovações de prazo, ou ainda, nas suas reformas por inteiro, e/ou parciais, até à sua completa liquidação, incluindo o pagamento do capital, até ao valor limite de TREZENTOS E CINQUENTA MIL EUROS, dos correspondentes juros compensatórios, calculados ...” a C… constituiu a favor do I…, SA, hipoteca sobre os imóveis descritos na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob os n.ºs 3793 e 3794 da Freguesia … – Doc. de fls. 21 a 31 dos autos de execução.
13.4 – As referidas descrições …. e … deram origem à descrição n.º …. da Freguesia …, mostrando-se a hipoteca atrás referida inscrita sob a AP. 2749 de 2011/09/02, sendo o valor máximo garantido de 490.546,00€.
13.5 – Em 19.04.2013 foi celebrado o contrato denominado de abertura de crédito em conta corrente caucionada, cuja cópia se mostra junta de fls. 52 a 62, nos termos do qual o I… se obrigou a conceder à C… crédito até ao montante máximo de 400.000,00€ para apoio de tesouraria a ser utilizado por valores iguais ou múltiplos de 5.000,00€ pelo prazo de 2 anos.
13.6 – Em garantia do referido contrato foi constituída hipoteca sobre o prédio descrito sob o n.º … da Freguesia … e entregue a Livrança n.º ………………, subscrita pela C… e avalizada pelos embargantes D…, E…, F… e G… – Doc. de fls. 76 a 81.
13.7 - A hipoteca atrás referida está inscrita sob a AP. 485 de 2013/04/19 sendo o valor máximo garantido de 596.000,00€.
13.8 – Sobre o imóvel referido em 6 pendem ainda as seguintes inscrições hipotecárias:
- Ap. 2 de 2008/07/10 sendo o valor máximo garantido de 438.582,30€;
- Ap. 3 de 2008/07/10 sendo o valor máximo garantido de 73.893,70€ por força da ampliação operada pela inscrição da AP 22 de 2008/08/26.
13.9 – Em 21.08.2014 foi celebrado o contrato denominado de Contrato de empréstimo, cuja cópia se mostra junta de fls. 63 a 75, nos termos do qual o I… emprestou à C… a quantia de 100.000,00€, para apoio de tesouraria, pelo prazo de 10 anos, devendo ser reembolsado em 120 prestações de capital e juros.
13.10 - Em garantia do referido contrato foi entregue a Livrança n.º ………………, subscrita pela C… e avalizada pelos embargantes D…, E…, F… e G….
13.11 – Em 12.08.2015 foram enviadas aos executados as cartas juntas de fls. 88 a 98 dos autos de execução dando-lhes conta do incumprimento de vários contratos, entre eles os referidos em 5 e 8.
13.12 – Em 12.12.2016 a exequente vendeu à H…, S.A. o crédito exequendo.
13.13 – Em 9.01.2017 a J…, SA, enviou aos embargantes as comunicações juntas de fls. 16 a 25 dos autos, dando-lhes conta da celebração do contrato de compra e venda de créditos celebrado entre o B…, SA e a H…, S.A. e a consequente transferência para esta do crédito exequendo e referidas garantias, nomeadamente “o direito de obter o cumprimento judicial ou extrajudicial das obrigações” mais os alertando que “a partir da data acima referida, 12.12.2016, todas as importâncias devidas a título de pagamento do(s) crédito(s) identificado(s) em referência deverão ser pagas ao Cessionário ...”.
13.14 – Em 5.12.2016 foi inscrita a favor do B…, SA, pela Ap. 3165 a transmissão do crédito a que respeita a hipoteca referida em 7 e em 22.02.2017 foi inscrita a favor da H…, SA, pelo AP. 1086 a transmissão do mesmo crédito e hipoteca.
13.15 – A embargante E… foi citada para os termos da execução em 5.04.2018; os embargantes D…, F… e C…, Lda. foram citados para os termos da execução em 6.04.2018 e a embargante G… foi citada para os termos da execução em 14.05.2018.
13.16 – Foram penhorados nos autos de execução as frações H, F, I, J e K do prédio descrito sob o n.º …. da Freguesia … e o prédio urbano descrito sob o n.º …. da Freguesia …, concelho da Póvoa de Varzim.
13.17 – O valor patrimonial da fração F, determinado no ano de 2015, é de 208.920,00€, o da fração I, determinado no mesmo ano, é de 90.650,00€, o da fração J é de 91.490,00€ e o da fração K é de 90.640,00€.
13.18 – O valor patrimonial do prédio descrito sob o n.º 1488 é de 446.365,55€.
13.19 – A execução foi declarada suspensa quanto à fração H por sobre a mesma existir penhora com registo anterior a favor da Autoridade Tributária e para garantia de pagamento da quantia de 2.713,56€.
13.20 - A execução mostra-se suspensa quanto às frações J e K em virtude da dedução de embargos de terceiro.

III.II – O Direito
14 - No presente recurso não há qualquer divergência sobre a factualidade que foi dada como assente na 1.ª instância e também não estão em causa, além do objeto recursório definido em 12, outras questões suscitadas pelos executados nos seus Embargos e Oposição, porquanto estes não impugnaram a decisão na parte que, conhecida pelo tribunal recorrido, lhes foi desfavorável, nem se verifica, ainda que venha a proceder a apelação, alguma prejudicialidade que, nesta sede, cumpra apreciar[1].

15 – Está em causa saber se o recorrente/exequente não tem legitimidade ativa por ter transmitido a terceiro o seu crédito antes da citação dos executados, ainda que depois da instauração da execução.

16 – O tribunal recorrido entende que o exequente não tem legitimidade, em razão da aludida transmissão, notificada aos executados antes destes terem sido citados para a execução.

17 – O exequente entende que a legitimidade se afere ao momento da instauração da execução, não sendo obstáculo a que seja – e continue a ser – parte legítima a circunstância de, antes da citação dos executados, o crédito haver sido transmitido a terceiro e desta transmissão terem sido notificados os devedores.

18 – Em síntese, o entendimento do tribunal recorrido mostra-se fundamentado nos seguintes termos:
“Como resulta do disposto nos arts. 10 n.º 5 e 53 n.º. 1 do CPC o título determina “o fim e os limites da ação executiva”, devendo a mesma ser promovida pela pessoa que no título figure como credor e interposta contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor. Sendo esta a regra geral, prevê a lei desvios, entre eles o do art. 54, n.º1 (...) Dispõe o art. 259. n.º 2 do CPC que a propositura de qualquer ação ou procedimento judicial só opera efeitos em relação ao réu (ou executado) a partir da sua citação. Conjugando o regime legal com a situação dos autos temos que, constituindo-se os embargantes devedores do I… - SA, antes da interposição da presente execução e em resultado da deliberação do Banco de Portugal foram os créditos transferidos para o B…, SA (...) Assim (...) aquando da interposição da execução, a exequente era parte legítima (...).
Ocorre que, após a interposição da execução e antes da citação dos executados para os termos da presente execução, a exequente cedeu os créditos dos autos e os executados foram notificados da referida cessão (...) a cessão de créditos opera independentemente do consentimento do devedor e por mero efeito do contrato (...) sendo a sua notificação ou a aceitação mera condição de eficácia externa em relação ao devedor”, entendimento que se retira do disposto no art. 583 n.º 1 do CC (...) do que resulta que, após a notificação, aceitação ou conhecimento da sua existência o devedor apenas se desobriga se efetuar ao cessionário a sua prestação, regime a que a cessionária H… faz apelo nas notificações que faz aos embargantes. E se a cessão de créditos ganha eficácia com a notificação ao devedor – cfr. art. 583 do CC -, por força do disposto no art. 259 n.º 2 do CPC, e nas palavras de Lebre de Freitas, (anotação ao art. 267 do CPC/61) só com a citação “o ato de propositura da ação ganha eficácia em face do réu, que com ela fica constituído como parte, e a instância estabilizada nos seus elementos subjetivos e objetivos”.
Temos assim que, quando citados para os termos da execução, jáos executados estavam, por força da notificação da cessão de créditos que lhes foi efetuada em janeiro de 2017, obrigados a proceder ao pagamento dos mesmos à H… e não ao B…, SA. Ou seja, a partir de janeiro de 2017 a exigibilidade dos créditos dos autos passou para a H…, SA do que resulta que, aquando da citação dos executados para os termos da execução, já́ o crédito dos autos não podia ser exigido pelo B…, SA, já́ o mesmo não era, mesmo no confronto com o executados, titular de qualquer crédito suscetível de fundar a relação jurídica processual configurada no requerimento executivo. Do que tem que concluir-se pela procedência da invocada exceção de ilegitimidade ativa e consequente procedência dos embargos.”

19 – O recorrente entende que assim não deve ser e, em síntese, sustenta:
“o artigo 263 do CPC, no seu n.º 1, preceitua que “No caso de transmissão, por ato entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substitui-lo”, ou seja, a partir da transmissão, o transmitente, que já́ não é titular da situação jurídica transmitida, substitui processualmente o adquirente, seu atual titular, litigando em nome próprio, mas em prossecução dum interesse que só indiretamente é seu (...) Assim, crê que, se o B era, à data da instauração da ação executiva, parte legítima, do lado ativo, enquanto exequente, essa legitimidade manter-se-á, desde ab initio até final, até que a adquirente, in casu H… seja, por meio de habilitação, admitida a substitui-lo”.

20 – Apreciando a questão relevante que a apelação suscita, comecemos por citar os preceitos cuja interpretação merece crítica do exequente.

21 – Nos termos do disposto no artigo 10.º, n.º 5 do CPC, “Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva”.

22 - O acertamento “é o ponto de partida da ação executiva”, uma vez que esta pressupõe uma prévia definição dos elementos – subjetivos e objetivos – da “relação jurídica de que ela é objeto”. É o título que contém esse acertamento e, por isso, é por ele, pelo título executivo, que se determinam o fim e os limites da execução, ou seja, “o tipo de ação e o seu objeto, assim como a legitimidade, ativa e passiva”[2].

23 – De acordo com o disposto no artigo 53, n.º 1 do CPC, “A execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor”.

24 – Na ação executiva, diferentemente do que acontece na ação declarativa, onde a legitimidade se afere em função da relação material controvertida, prevalece o “princípio da legitimidade formal ou da coincidência”, de acordo com o qual, e ressalvadas as exceções que a própria lei prevê, “o exequente e/ou o executado serão partes ilegítimas se não figurarem como credor e/ou devedor no título executivo que serve de base à execução”[3].

25 – Conforme dispõe o artigo 54, n.º 1 do CPC, “Tendo havido sucessão no direito ou na obrigação, deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda; no próprio requerimento para a execução o exequente deduz os factos constitutivos da sucessão”.

26 – A regra geral expressa no artigo 53 do CPC, comporta exceções, “integrando vicissitudes dos títulos executivos que, manifestando-se desde logo no direito material, não podiam ser ignorados pelo direito adjetivo”. É o que sucede, nomeadamente, “quando ocorre um fenómeno sucessório, inter vivos ou mortis causa, do credor ou do devedor”[4].

27 – Nos termos do disposto no artigo 259, n.º 1 e n.º 2 do CPC, “A instância inicia-se pela propositura da ação e esta considera-se proposta, intentada ou pendente logo que seja recebida na secretaria a respetiva petição inicial[5], sem prejuízo do disposto no artigo 144.º[6]. Porém, o ato da propositura não produz efeitos em relação ao réu senão a partir do momento da citação, salvo disposição legal em contrário”.

28 – A apresentação da petição inicial em juízo é (o ato) que dá início à ação, momento determinante “que marca o início da instância”[7]. No entanto, em relação ao réu, só a partir da citação a ação produz efeitos. Trata-se de um princípio “importante, nomeadamente, para os efeitos a que se refere o artigo 564.º do NCPC”, do qual decorrem três consequências relevantes: “a) Cessa a boa-fé do possuidor (...). b) Os elementos essenciais da causa ficam estáveis, nos termos do artigo 260.º, no sentido de que a instância se mantém a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir” e “c) O réu fica inibido de propor nova ação contra o autor para apreciar a mesma questão jurídica, podendo, no entanto, formular pedido reconvencional”[8]. Pode dizer-se que a citação produz efeitos processuais e efeitos materiais, sendo estes – além do referido na alínea a) do artigo 564 do CPC (cessação da boa-fé do possuidor) -, essencialmente, a interrupção do prazo prescricional que estiver em curso e a constituição do devedor em mora[9].

29 – Dispõe o CPC, no seu artigo 260, que, “Citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei”.

30 – O “ato fundamental de comunicação entre o tribunal e o réu” com as finalidades de “transmissão de conhecimento, de convite para a defesa e de constituição do réu como parte, é a citação”. Um dos seus efeitos é que, agora, o ato de propositura da ação, estende ao réu “a sua eficácia” e a instância estabiliza-se, “ficando, em princípio, definida quanto aos sujeitos e ao objeto do processo”. A instância acarreta consigo, a partir da citação, “a ideia da relação, por natureza dinâmica, existente entre cada uma das partes e o tribunal, bem como entre as próprias partes, na pendência da causa”[10]. Ainda que a citação do réu tenha como efeito processual essencial a estabilização da instância, admite a lei diversos desvios “que resultam dos incidentes de intervenção de terceiros, do incidente de habilitação de sucessores e do regime de alteração do objeto do processo, nos termos assinalados nos arts. 261.º e ss.”[11].

31 – Prevê-se na alínea a) do artigo 262 do CPC a possibilidade de a instância ser modificada quanto às pessoas “Em consequência da substituição de alguma das partes, quer por sucessão, quer por ato entre vivos, na relação substantiva em litígio”.

32 - E, a este propósito, dispõe o artigo 263 do CPC, nos seus n.ºs 1 e 3: “No caso de transmissão, por ato entre vivos, de coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa, enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo” e “A sentença produz efeitos em relação ao adquirente, ainda que este não intervenha no processo, exceto no caso de a ação estar sujeita a registo e o adquirente registar a transmissão antes de feito o registo da ação”.

33 – Como decorre dos preceitos antes citados, se é certo que a instância se pode modificar em consequência da substituição de alguma das partes, tal substituição, concretamente nos casos de transmissão da coisa ou direito litigioso, não é automática, e o transmitente continua a ter legitimidade para a causa.

34 - Com efeito, e como se sumaria no acórdão da Relação de Coimbra de 22.01.2008 (Relator, Hélder Roque, Proc. n.º 3007/03.2TBAGD.C1, dgsi), “A habilitação tem por objetivo colocar o sucessor no lugar que o falecido ou transmitente ocupava no processo pendente, e certificar que determinada pessoa sucedeu a outra na posição jurídica em que esta se encontrava” e, “No caso de transmissão, por ato entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa, até ao final do pleito, ainda que já não tenha interesse na ação, passando, então, à categoria de substituto processual do adquirente ou do cessionário, enquanto estes não forem, por meio de habilitação, com carácter facultativo, admitidos a substitui-lo, a qual não susta o andamento da causa principal e da instância, ao invés do que acontece nas situações de transmissão mortis causa”.

35 – Dispõe o artigo 356 do CPC, no seu n.º 1, que “A habilitação do adquirente ou cessionário da coisa ou direito em litígio, para com ele seguir a causa, faz-se nos termos seguintes: Lavrado no processo o termo de cessão ou junto ao requerimento de habilitação, que é autuado por apenso, o título da aquisição ou da cessão, é notificada a parte contrária para contestar; na contestação pode o notificado impugnar a validade do ato ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo; b) Se houver contestação, o requerente pode responder-lhe e, em seguida, produzidas as provas necessárias, é proferida decisão; na falta de contestação verifica-se se o documento prova a aquisição ou a cessão e, no caso afirmativo, declara-se habilitado o adquirente ou cessionário”.

36 - Acrescenta o n.º 2 do mesmo normativo que “A habilitação pode ser promovida pelo transmitente ou cedente, pelo adquirente ou cessionário, ou pela parte contrária; neste caso aplica-se o disposto no número anterior, com as adaptações necessárias”.

37 - A habilitação do adquirente ou cessionário está conexionada com a alínea a) do artigo 262 do CPC, já citada, uma vez que tem em mente a modificação da instância quanto às pessoas “em consequência da substituição por ato entre vivos”. É uma “substituição facultativa” e o “transmitente, alienada a coisa objeto do litígio, embora já sem interesse na ação, por ter deixado de ser o sujeito ativo da relação substantiva, continua a ter legitimidade ad causam, até ao seu termo”[12].

38 – Feitas as considerações (e citações normativas) que precedem, reflitamos com outro detalhe no concreto objeto do recurso, o qual, salvo melhor saber, se prende indelevelmente – atenta a decisão recorrida e os fundamentos da mesma – nos efeitos da citação dos executados sobre a legitimidade do exequente.

39 – Efetivamente, se esquecermos essa concreta questão, não vemos outro reparo que possa fazer-se – e que o apelante haja feito – à sentença proferida na 1.ª instância, a qual começa por dizer, desde logo e relevantemente, que o exequente (mesmo não tendo sido original credor) é, no momento em que a execução foi instaurada, parte legítima na ação executiva.

40 – Simplesmente – sustenta a 1.ª instância – essa legitimidade ativa desaparece, pois o apelante deixou de ser o credor, porque, antes da citação dos executados, transmitiu o seu crédito a terceiro. Deduz-se da argumentação evidenciada na tónica que a decisão apelada coloca na citação dos devedores que a transmissão não obstaculizaria a manutenção da legitimidade ativa, se ocorrida após a citação (o que aliás, da simples leitura do n.º 1 do artigo 263 do CPC resultará manifesto).

41 - E que assim é o sentido do decidido vê-se no que ora transcrevemos e sublinhamos: “Ocorre que, após a interposição da execução e antes da citação dos executados para os termos da execução, a exequente cedeu os créditos dos autos e os executados foram notificados da referida cessão (...) do que resulta que, após a notificação, aceitação ou conhecimento da sua existência o devedor apenas se desobriga se efetuar ao cessionário a sua prestação. E se a cessão de créditos ganha eficácia com a notificação ao devedor – cfr. art. 583 do CC -, por força do disposto no art. 259 n.º 2 do CPC, e nas palavras de Lebre de Freitas, (anotação ao art. 267 do CPC/61) só com a citação “o ato de propositura da ação ganha eficácia em face do réu, que com ela fica constituído como parte, e a instância estabilizada nos seus elementos subjetivos e objetivos”.

42 – Assim, o apelante era parte legítima quando instaurou a execução. Também o eram os executados. A transmissão do crédito, de per si, pendente que esteja a causa – leia-se, a execução -, não afasta a legitimidade do transmitente. Pode ter a citação, porque posterior à transmissão do crédito o efeito de deslegitimação que lhe dá a sentença recorrida?

43 – Os efeitos da citação são típicos e, salvo o devido respeito por melhor saber, não vemos que possam ter esse efeito deslegitimador. A legitimidade, já se disse anteriormente, afere-se à ocasião em que a ação é proposta e a instância inicia-se com a propositura da ação.

44 - É certo que a propositura da ação só produz efeitos em relação ao réu/executado a partir do momento em que este é citado. Simplesmente, daí não resulta que o autor/exequente passe a ser parte ilegítima em razão de uma transmissão que, ocorrida na pendência da causa, continuava a permitir-lhe ter legitimidade. Não é a citação que define ou carateriza a pendência da causa, é o início da instância.

45 – Dito de outro modo, o preceituado no artigo 259, n.º 2 do CPC, em nada interfere com a (já adquirida) legitimidade ativa do exequente. Assim, uma vez instaurada a ação, verifica-se se o exequente é ou não parte legítima; se o é (e aqui era-o, como declara expressamente o tribunal da 1.ª instância) a propositura da ação terá efeitos relativamente aos executados (apenas) quando estes forem citados e, a partir daí, a instância deve manter-se a mesma, mas a instância que se iniciou com a propositura da ação executiva e que se estabiliza com a aludida citação dos réus, mesmo assim, sem prejuízo das possibilidades legais de modificar tal estabilização.

46 – Desconsiderando-se o sentido dado à citação dos executados pelo tribunal da 1.ª instância e sendo factualmente inequívoco que a transmissão do crédito do exequente ocorreu já depois da instauração da presente ação executiva, parece-nos de concluir que o apelante tinha (e tem) legitimidade ativa, e apenas a perderá se e quando houver habilitação do cessionário.

47 – Daí a procedência do presente recurso de apelação e a revogação, em conformidade, da decisão que declarou a ilegitimidade do apelante, devendo a execução, por isso, prosseguir os seus termos.

48 – Atento o decaimento (artigo 527, n.º 1 do CPC), as custas do recurso são a cargo dos executados.

Tudo visto,

IV. Dispositivo
Pelas razões ditas, acorda-se na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente a presente apelação em que é recorrente o B…, SA e recorridos C…, Lda., D… e outros e, em conformidade, revoga-se a decisão que declarou a ilegitimidade ativa do apelante/exequente e, considerando o mesmo parte legítima, determina-se o prosseguimento da ação executiva.

Custas pelos apelados.

Porto, 7.10.2019
José Eusébio Almeida
Carlos Gil
Carlos Querido
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[1] Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 665 do CPC, ainda que a Relação declare nula a decisão “que põe termo ao processo”, deverá “conhecer do objeto da apelação” e, de acordo com o disposto no n.º 2 do mesmo normativo, “Se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários”. Ora, no caso presente, e como se afirmou, o tribunal recorrido conheceu as diversas questões suscitadas pelos executados nos embargos e a única questão que considerou prejudicada, em sede de oposição à penhora, refere-se à aplicação do disposto no artigo 733, n.º 5 do CPC, que só tem cabimento antes da decisão dos embargos em 1.ª instância. Em conformidade, e qualquer que seja a decisão do recurso, não há lugar à aplicação da “regra de substituição ao tribunal recorrido”.
[2] José Lebre de Freitas, A Ação Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 7.ª Edição, Coimbra, GestLegal, 2017, pág. 45.
[3] Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Executivo, Almedina, 2016, págs. 162/163.
[4] António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, pág. 86.
[5] Sem embargo, de acordo com o disposto no artigo 724, n.º 6 do CPC, o requerimento executivo apenas se considera apresentado quando do pagamento da quantia inicialmente devida ao agente de execução ou da comprovação da concessão do benefício do apoio judiciário.
[6] “Apresentação a juízo dos atos processuais”.
[7] Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 152.
[8] José António de França Pitão/ Gustavo França Pitão, Código de Processo Civil Anotado, Tomo I, Quid Juris, 2016, págs. 314/315 e 615.
[9] António Júlio Cunha, Direito Processual Civil Declarativo, 2.ª Edição, Quid Juris, Lisboa, 2015, págs. 231/234.
[10] José Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum à luz do Código de Processo Civil de 2013, 4.ª Edição, Coimbra, GestLegal, 2017, págs. 75 e 88.
[11] António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, Código... cit., pág. 295.
[12] Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 6.ª Edição, Almedina, 2013, pág. 217. Acrescenta o autor (a págs. 218/219): “Discutiu-se outrora, na doutrina e na jurisprudência, se o incidente de habilitação em análise era ou não suscetível de funcionar no âmbito da ação executiva. Certo é que o n.º 3 do artigo 263.º, ao referir que a sentença produz efeitos de caso julgado em relação ao adquirente, ainda que ele não intervenha no processo, exceto no caso de a ação estar sujeita a registo e o adquirente registar a transmissão antes de feito o registo da ação, pressupõe que a aquisição em causa ocorreu na pendência de uma ação declarativa. Considerando, porém, o disposto nos n.ºs 1 e 2 do mesmo artigo e no artigo 551, n.º 1, no caso de se tratar de transmissão de direito de crédito exequendo, a admissibilidade desta espécie de incidente não se revela incompatível com a estrutura da ação executiva”.