PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA
PROVIDÊNCIA ANTECIPATÓRIA
FRACÇÃO AUTÓNOMA
INFILTRAÇÕES
PERICULUM IN MORA
Sumário

I.– O art. 362º do Código de Processo Civil permite que, mediante providência cautelar não especificada, se possa alcançar também uma medida com efeitos antecipatórios da decisão definitiva.

II.– Nas situações em que a determinação de providência inibitória, de conteúdo negativo, se baste para satisfazer o direito invocado, torna-se desnecessária a antecipação definitiva da tutela do mesmo direito.

III.– Estando em causa infiltrações oriundas da fracção autónoma imediatamente superior à fracção autónoma da requerente, qualquer justificado receio de que a natural demora na resolução definitiva do litígio cause prejuízo irreparável ou de difícil reparação ou perigo de insatisfação do direito do requerente - periculum in mora – seria demovido pela determinação à requerida no sentido de interromper as infiltrações.

IV.– Da demonstração de que a fracção da requerida não é habitada e que, encontrando-se fechada a torneira de segurança, cessaram as referidas infiltrações, conclui-se que o direito invocado pela requerente (o direito à integridade do imóvel, a não ver agravados os danos causados pelas infiltrações advindas da fracção da requerida) não se encontra em periculum in mora, pois que a requerida interrompeu o acto lesivo.

V.– Os restantes direitos aparentes invocados pela requerente – ambos relacionados ao ressarcimento patrimonial dos danos invocados – não se encontram em periculum in mora, apenas pela circunstância de a requerida alienar a fracção a terceiros, pois que a requerente continuará, a comprovarem-se definitivamente tais prejuízos, a poder usar mão dos meios de tutela definitiva, em acção judicial competente.

VI.– Sendo que o receio de perda de garantia patrimonial é coberto por outra providência – a de arresto -, subordinado a diferentes pressupostos, aqui não invocados.

VII.– O legislador consagrou as garantias necessárias à tutela jurisdicional efectiva em prazo razoável, na previsão legal dos prazos judiciais.

VIII.– A antecipação da tutela, em sede cautelar, vem resolver as situações de periculum in mora relevantes; fora dessas situações, o direito à tutela jurisdicional efectiva em prazo razoável satisfaz-se plenamente com o cumprimento dos prazos judiciais previstos para uma acção judicial – em nada se podendo antever que tais prazos não serão cumpridos

Texto Integral

Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa.

      
I.–Relatório:

A [ Maria …..] intentou os presentes autos de procedimento cautelar comum contra B [ Márcia ….], tendo formulado os seguintes pedidos:
a)- Ser a requerida condenada a reparar as infiltrações e defeitos elencados no artigo 6° deste requerimento, concretamente as canalizações e tubagens que dão origem aos danos refletidos no andar de baixo da requerente;
b)- Ser a requerida condenada a reparar os danos causados pelas referidas infiltrações no apartamento da requerente e elencados no artigo 8° deste requerimento.”

A Requerente alegou, em síntese, que:
– É proprietária da fracção autónoma designada pela letra “L”, do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Avenida Mouzinho de Albuquerque, n.° .., .° direito, na freguesia de Penha de França, 1170- 264 Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o registo n.° 1585, com o artigo matricial 2435; 
– A Requerida é proprietária da fracção áutonoma designada pela letra “O”, do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Avenida Mouzinho de Albuquerque, n.° …, 4° direito, na freguesia de Penha de França, 1170- 264 Lisboa;
– ambas as fracções se encontram devolutas, sendo que a fracção da Requerente sofreu infiltrações resultantes da canalização da fracção da Requerida, cuja reparação importará no montante de 870€;
– a Requerida pretende vender a sua fracção, pelo que a Requerente - que também pretende vender a dela - receia que a primeira não pague a reparação e que as infiltrações prejudiquem a venda da sua própria fracção.
A Requerida não deduziu oposição.
Na sequência, foi proferida decisão final, com o seguinte conteúdo:
Por todo o exposto, declaro verificada a excepção de erro na forma de processo, absolvo a Requerida da instância cautelar e julgo prejudicada a possibilidade de conhecimento do pedido de inversão de contencioso.
*

Inconformada, a requerente interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1– Ao considerar que a providência cautelar interposta traduz-se num erro na forma do processo, o meritíssimo juiz a quo violou o insíto no art.362ºCPC;
2– A decisão recorrida não respeita o estipulado no art.2º n.2 CPC,na medida em que nega o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão que aprecie a pretensão regularmente deduzida em juízo;
3– A sentença ora em crise, desrespeita assim, o direito à tutela jurisdicional efectiva consagrado no art.20-n.4 CRP, porquanto recusa a decisão em prazo razoável.
*

O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente nos autos e com efeito suspensivo.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.
*

II.–Objecto e delimitação do recurso

Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece, sob pena de indeferimento do recurso.

Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
1.–Da possibilidade de dedução de pedido antecipatório da decisão definitiva, em sede de procedimento cautelar.
2.–Os requisitos gerais de determinação da providência e sua verificação no caso sob recurso.
*

III.–Os factos

Os factos alegados no requerimento inicial foram considerados confessados, no despacho sob recurso – sendo que tal decisão não constitui objecto do mesmo.

Assim sendo, recebem-se da 1ª instância os seguintes factos provados:
a)-A Requerente é legitima possuidora e proprietária da fracção autónoma designada pela letra “L”, do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Avenida Mouzinho de Albuquerque, n.° …, 3° direito, na freguesia de Penha de França, 1170- 264 Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o registo n.° 1585, com o respectivo artigo matricial 2435.
b)-A Requerida é legitima possuidora e proprietária da fracção autónoma designada pela letra “O”, do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Avenida Mouzinho de Albuquerque, n.° …., 4° direito, na freguesia de Penha de França, 1170- 264 Lisboa.
c)-A Requerente não habita o imóvel na morada supra identificada.
d)-O imóvel da requerida na morada supra identificada, encontra-se devoluto de pessoas e bens.
e)-A Requerente detectou várias infiltrações no imóvel supra descrito.
f)-As infiltrações têm origem na fracção superior, ou seja, no imóvel da requerida, na sua canalização, que esta se limitou a fechar com a torneira de segurança, que pode ser reaberta a qualquer momento, ao invés de proceder à reparação das canalizações.
g)-A fracção da Requerente, sofreu danos no tecto e paredes da sala, nomeadamente pintura amarelada e com bolhas nos dois locais, queda de estuque na casa de banho e tampo de móvel inferior da mesma, assim como nas paredes e tectos da cozinha que ficaram com a pintura amarelada e com bolhas.
h)-Danos estes provocados pelas infiltrações provenientes da fracção da Requerida.
i)-A Requerida tem conhecimento destas infiltrações e dos danos causados no imóvel da Requerente, pelo menos desde Outubro de 2018.
j)-A Requerente, confrontada com os danos no imóvel, solicitou à seguradora que segura a sua fracção, uma vistoria a fim de apurar os danos causados e a sua proveniência.
k)-O relatório técnico da vistoria concluiu: “Feita a vistoria à fracção segura, foi verificado danos na fracção provocados por uma infiltração com origem na fracção superior.”
l)-O referido relatório, concluiu ainda: “Após realização de pesquisas e testes não foi detectada nenhuma anomalia na canalização de água ou esgotos da sua fracção (da requerente)”.
m)-A reparação dos danos causados no imóvel da requerente, foi orçamentada em €870,00.
n)-A Requerida prontificou-se a custear esta reparação, tendo inclusive comunicado em novembro de 2018 por SMS com a requerente que “o valor foi por correio”.
o)-Que nunca chegou.
p)-Sucede, que apesar de interpelada várias vezes para efectuar o pagamento da reparação, tal não aconteceu.
q)-A Requerida limitou-se a desligar o abastecimento de água no seu imóvel.
r)-Neste momento, o imóvel da requerida encontra-se para venda.
s)-Também a Requerente pretende vender o seu imóvel.
*

IV.–O Direito

1.–Da possibilidade de dedução de pedido antecipatório da decisão definitiva, em sede de procedimento cautelar.
A primeira questão que cumpre apreciar consiste na possibilidade de dedução de pedido antecipatório da decisão definitiva, em sede de procedimento cautelar.
A resposta dada pela Exma. Juíza a quo foi negativa, pois que a mesma escreveu:
(…) os pedidos deduzidos não visam propriamente uma tutela provisória até à definição do direito, mas, sim, a própria definição do direito, em termos definitivos.
(…)
A referida desarmonia, o referido juízo de desconformidade, entre o meio processual e o efeito jurídico pretendido, não podem deixar de ser qualificadas como inadequação do meio processual utilizado.
Concluiu, assim, a Exma. Juíza, que o caso dos autos tem, pois, que ser qualificado como um erro na forma de processo, tal como definido no art. 193º do Código de Processo Civil.
Alguma jurisprudência dos tribunais superiores sufraga esta tese. Por todos, veja-se o Ac. da Relação do Porto de 29/6/2017 (Paulo Dias da Silva), disponível em www.dgsi.pt:
I– Formulando os requerentes pedidos característicos da que seria a acção principal e não do procedimento cautelar esquecem a instrumentalidade e a provisoriedade do procedimento cautelar.
II–Tais pedidos só poderiam ser apreciados e decididos em processo declarativo comum e não em procedimento cautelar, não sendo consentâneos com tal meio processual, pelo que estamos perante a nulidade do erro na forma de processo.
*

Com todo o respeito por opinião contrária, não é o nosso caso.

Desde logo, o art. 362º, nº1 do Cód. Proc. Civil permite a antecipação da tutela definitiva do direito ameaçado,  como já permitia o anterior e correspondente art. 381º, nº1 do Cód. Proc. Civil, na redacção dada pelo Dec.-Lei nº 329-A/95, de 12/12, ultrapassando-se assim a redacção menos explícita do art. 399º, na versão de 1961.

Ainda assim e ao abrigo daquele art. 399º, vozes autorizadas aceitavam tal antecipação definitiva, em caso justificados.

Veja-se, por todos, Palma Carlos, Procedimentos Cautelares Antecipatórios, O Direito, Ano 105º, pgs. 236 e segs.

Também Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo P. C., Lex, pgs. 227/228, defende que a composição provisória visada através das providências cautelares pode prosseguir uma de três finalidades: necessidade de garantir um direito, de definir uma regulação provisória ou de antecipar a tutela pretendida ou requerida. No primeiro caso, tomam-se providências que garantem a utilidade da composição definitiva; no segundo, as providências definem uma situação provisória ou transitória; no terceiro, atribuem o mesmo que se pode obter na composição definitiva.

As providências cautelares têm também a característica da instrumentalidade, porque a tutela processual é instrumental perante as situações jurídicas decorrentes do direito substantivo, dado que o direito processual é o meio de tutela dessas situações, o que se torna claro quando a providencia visa garantir um direito ou regular provisoriamente uma situação, porquanto, distinta do exercício judicial de um direito é a solicitação de uma garantia ou de uma regulação transitória até à sua apreciação definitiva. Mas essa distinção também se justifica quando a providência cautelar antecipa a tutela jurisdicional: neste caso, o objecto da providência não é a situação cuja tutela se antecipa, mas a própria antecipação da tutela para essa situação. É por isso que mesmo nessa situação, o decretamento da providência não retira o interesse processual na solicitação da tutela definitiva e não há qualquer contradição (artº 383º nº 4) entre a concessão daquela antecipação através do decretamento da providência e a recusa da tutela definitiva na acção principal. (ob. cit., p. 229)

Refere Teixeira de Sousa, que pode utilizar-se esta providência cautelar para mandar tomar as medidas que obstem a infiltrações provocadas num prédio vizinho pela falta de reboco de uma parede (ob. cit. p. 244)

Na jurisprudência dos tribunais superiores, vejam-se, sem pretensões exaustivas, os seguintes Acórdãos:
-Ac. da Relação de Lisboa, de 19/5/1994, in CJ, tomo III, pg. 94,     que considerou admissível a providência cautelar de intimação do requerido a reparar um dos dois elevadores de um prédio de 8 andares, como medida tutelar do direito de personalidade dos inquilinos do prédio.
-Ac. da Relação de Coimbra, de 2/5/1984, in BMJ 337, 420, que considerou procedente a medida de intimação do senhorio a efectuar reparações imediatas no locado.
-Ac. da Relação de Évora, de 3/7/1980, in CJ, tomo IV, pg. 250, onde se vinculou o requerido a adoptar medidas tendentes a impedir a infiltração de águas num prédio.
-Ac. da Relação de Lisboa, de 11/1/1996, in CJ, tomo I, pg. 82, que admitiu que a requerida fosse obrigada a proceder à imediata ligação à rede, antecipando, desde logo, efeitos práticos que, em princípio, apenas poderiam alcançar-se através da decisão definitiva.
-No Ac. da Relação do Porto, de 12/10/2010, disponível em www.dgsi.pt, decidiu-se que É claro que tal instrumentalidade pode passar pela antecipação dos resultados da acção principal – mas esse é um dos riscos da procedência do procedimento cautelar com o qual se deve conviver sem receios, não apenas porque se explica pela necessidade de evitar o agravamento do dano, como também porque a lei estabeleceu as formas de restabelecer, tanto quanto possível, o “statu quo ante”, no caso de improcedência da acção.

Aliás, o efeito concomitante do acautelar do efeito útil da acção principal é necessariamente o da antecipação de certos efeitos jurídicos próprios do julgamento definitivo – “a decisão cautelar produz certos efeitos, quanto à realização do direito, que se assumem como definitivos” (Ac. também da Relação do Porto, de 03/02/2005, in www.dgsi.pt).

Por fim, revisite-se Abrantes Geraldes, Temas da Reforma de Processo Civil, vol. III, pg. 93: Não está afastada a possibilidade de através de providências cautelares não especificadas se poder alcançar também uma medida com efeitos antecipatórios da decisão definitiva, uma vez que o art. 381º prevê expressamente essa possibilidade.
Através da expressa remissão que é feita no art. 395º para situações que envolvam esbulho não violento da posse, verificados que sejam os requisitos gerais do art. 381º, admite-se claramente a antecipação da tutela, através da restituição imediata da posse, a qual se manterá até que a questão seja definitivamente apreciada na acção principal.
Efeitos antecipatórios são ainda visíveis quando se defere uma providência tendente a suspender a emissão de ruídos nocturnos, que impedem o descanso, ou quando se proíbe a realização de um espectáculo marcado para determinada data, por nãos e encontrarem  salvaguardados os direitos de autor.
*

Fazendo nosso este entendimento, resulta evidente a conclusão de que não nos encontramos face a um erro na forma do processo, isto na medida em que inexiste incompatibilidade entre o meio processual utilizado – o procedimento cautelar comum – e o efeito jurídico pretendido – a antecipação da tutela definitiva.

Assim nos afastamos da decisão a quo, por entendermos que a mesma viola, desde logo, o preceituado no art. 362º, nº1 do Cód. Proc. Civil.

Daí que, nesta fase, será de concluir pela procedência da apelação,  não se podendo manter a decisão recorrida, que deverá, pois, ser revogada.
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Contudo, o art. 665º, nº2 do Cód. Proc. Civil vincula este Tribunal da Relação a conhecer do mérito da pretensão da requerente, no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, dispondo-se de todos os elementos necessários e nada obstando a tal apreciação, o que será o caso do presente.

A audição da recorrente, prevista no nº 3 do citado preceito, resultaria inútil, já que a mesma, quer em sede de requerimento inicial quer em sede de alegações de recurso, se pronunciou à exaustão sobre tal questão.
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2.– Os requisitos gerais de determinação da providência e sua verificação no caso sob recurso.

Admitindo-se, em tese, a antecipação dos efeitos definitivos, em sede cautelar, vejamos, agora, se se justifica a mesma no caso concreto.

Estabelece o art. 368º do Código Proc. Civil, que a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundamentado o receio da sua lesão.

Para o decretamento da providência basta que sumariamente - summaria cognitio - se conclua pela séria probabilidade da existência do direito invocado ou aparência do direito - fummus bonus juris - e pelo justificado receio de que a natural demora na resolução definitiva do litígio cause prejuízo irreparável ou de difícil reparação, ou perigo de insatisfação desse direito - periculum in mora.

No mesmo sentido veja-se Alberto dos Reis, CPC anotado, vol.I, 620; Acórdão da Relação de Évora de 16/5/1991, CJ III, 287 e Acórdão do STJ de 23/1/1986, BMJ 353, 376.

No caso em apreço temos a particularidade – supra discutida – de a requerente pretender, afinal, a antecipação da protecção definitiva do seu direito.

Nestas situações, haverá que ponderar os interesses em presença, entre as exigências de tutela segura do requerido e a premência e urgência da situação invocada pelo requerente.

Citando Abrantes Geraldes, ob. cit., pg. 94:
Nos procedimentos cautelares, o risco de decisões injustas, porque dissociadas da realidade substancial, é sempre maior do que em sede de procedimentos definitivos. Ora, esse risco aumenta exponencialmente quando se está perante medidas cautelares de carácter antecipatório.
Apesar disso, as consequências foram assumidas pelo legislador, depois de ter ponderado os diversos interesses em confronto: por uma lado, o interesse da segurança jurídica, que apela à restrição dos efeitos das medidas cautelares à função de mera garantia da utilidade da decisão definitiva e através da qual se previnem os prejuízos irrecuperáveis que, porventura, possam ser provocados na esfera jurídica do requerido; por outro lado, o interesse da celeridade e da eficácia das decisões judiciais, a fim de conferir ao interessado, tanto quanto possível, a mesma tutela que conseguiria se não houvesse a necessidade de recorrer aos meios de tutela jurisdicional.

Exemplos dados por este Ilustre Juiz Conselheiro serão os seguintes:
a)-Quando se constata uma situação de flagrante necessidade (v.g. alimentos provisórios ou arbitramento de indemnização provisória);
b)-Nas situações em que se pondera a tranquilidade e ordem pública (v.g. restituição provisória da posse violentamente esbulhada);
c)-Quando se dá prevalência a critérios de racionalidade económica (v.g. entrega de coisa móvel locada financeiramente e cancelamento do registo);
d)-Ou quando se pretende a eficaz tutela dos direitos de personalidade (v.g. proibição de ruído ou de actividades poluidoras em determinados períodos de tempo ou em certas condições  - ob. cit., pg. 95.

Mais adiante, o mesmo Ilustre Juiz Conselheiro, acrescenta os seguintes exemplos:
–A intimação do senhorio a reparar elevadores de um prédio, de modo a obstar a que o requerente tenha de subir as escadas, até ao 8º andar, com uma criança ao colo.
–Efectivação de obras tendentes a obviar a uma infiltração de águas provocada por obras de construção verificadas no prédio vizinho;
–Intimação da empresa que explora o serviço telefónico a proceder à imediata ligação do telefone a mantê-la enquanto o requerente efectuar o pagamento dos consumos;
–Intimação dos promitentes cessionários das quotas de uma sociedade a abrirem mão do hotel cuja gerência assumiram, depois de denunciado o contrato;
–Notificação do senhorio para a efectivação imediata das obras de reparação do locado;
–Notificação da depositária de acções para emitir uma declaração comprovativa do depósito.
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A nosso ver, importantes na ponderação dos interesses em conflito na tutela antecipatória, será o limite da providência inibitória, de conteúdo negativo.

Efectivamente, em tal tipo de providência pretende-se a intimação do requerido para que se abstenha de certa conduta, visando-se situações em que se pretende obviar à persistência de determinados comportamentos susceptíveis de afectar, em termos de causalidade adequada, direitos situados na esfera jurídica do requerente.

Nas situações em que a determinação de providência inibitória, de conteúdo negativo, se baste para satisfazer o direito invocado, torna-se desnecessária a antecipação definitiva da tutela do mesmo direito.

A defesa dos direitos de personalidade contra comportamentos lesivos da saúde, do sossego, do bem-estar ou da qualidade de vida – garantidos no art. 70º do Código Civil – constitui o campo de eleição do procedimento cautelar comum inibitório.

Como será o caso em análise: qualquer justificado receio de que a natural demora na resolução definitiva do litígio cause prejuízo irreparável ou de difícil reparação, ou perigo de insatisfação do direito do requerente - periculum in mora – será demovido pela determinação à requerida no sentido de interromper as infiltrações.

Sucede que tal não é necessário, pois, como declara a própria requerente, a fracção da requerida não é habitada e, encontrando-se fechada a torneira de segurança, pararam as referidas infiltrações.

Ou seja, o direito invocado pela requerente – o direito à integridade do imóvel, a não ver agravados os danos causados pelas infiltrações advindas da fracção da requerida – não se encontra em perigo de insatisfação ou de sofrer prejuízo irreparável ou de difícil reparação, pois que a requerida interrompeu o acto lesivo.

Invoca, em acréscimo, a requerente outros direitos aparentes: i) direito à indemnização no ressarcimento dos danos já verificados e, ii) direito à transferência para a requerida do prejuízo emergente da desvalorização do imóvel, que pretende vender.

Alega a requerente que esses direitos se encontram em perigo de satisfação, em virtude da requerida também pretender alienar a sua fracção a terceiros, endossando posteriormente a responsabilidade para estes com todas as delongas inerentes a esse processo (art. 26º do requerimento inicial) bem como que vendendo a requerida o seu imóvel deixará o prédio e os contactos e as garantias serão ainda menores (art. 27º do mesmo).

Ora, estes direitos aparentes que invoca – ambos relacionados ao ressarcimento patrimonial dos danos invocados – não se encontram em perigo de insatisfação ou de impossível ou difícil reparação, apenas pela circunstância de a requerida alienar a fracção a terceiros.

A requerente continuará, a comprovarem-se definitivamente tais prejuízos emergentes da reparação dos danos sofridos na sua fracção e da desvalorização da mesma, a poder usar mão dos meios de tutela definitiva, em acção judicial competente.
Sendo que o receio de perda de garantia patrimonial é coberto por outra providência – a de arresto -, subordinado a outros pressupostos, aqui não invocados.

Recorde-se que estabelecem os arts. 619º, nº1 do Cód. Civil e 391º, nº1 do Cód. Proc. Civil que O credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor.

Acrescenta o art. 392º, nº1 do citado Código de processo que O requerente deduz os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado, relacionando os bens que devam ser apreendidos, com todas as indicações necessárias à realização da diligência.

Assim, requisitos de procedência da providência de arresto são a demonstração da probabilidade da existência de um crédito e o justo receio de perda da garantia patrimonial.

Salta à vista que a argumentação da requerente não consubstancia aquele pressuposto de justo receio de perda da garantia patrimonial, motivo pelo qual não requereu o arresto de bens da requerida.
*

Por fim, não se acompanha a invocação pela requerente, do direito à tutela jurisdicional efectiva em prazo razoável, emergente dos arts. 20º, nº4 da Constituição da República e 2º, nº1 do Código de Processo Civil.

No ordenamento jurídico português vigente, o direito de acesso à justiça em prazo razoável constitui uma garantia inerente ao direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva (art.s 20º n.s 4 e 5 e 268º n.s 4 e 5 da Constituição da República) e que a infracção a tal direito, que é extensível a qualquer tipo de processo (cível, penal, administrativo, tributário, laboral, etc.), constitui o Estado em responsabilidade civil extracontratual (art.s 22º da Constituição e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem).

Neste ponto diga-se “(…) na medida em que o art. 8.º, n.º 2 da CRP consagra uma cláusula geral de recepção plena do direito internacional convencional, a CEDH aplica-se na ordem jurídica interna desde o momento que se realizou a sua regular ratificação ou aprovação e desde que foi publicada. E no plano do direito interno, as normas da Convenção, inclusive as garantias do art. 6.º, § 1, obrigam todas as entidades aplicadoras de direito ao seu cumprimento com a mesma força que as normas nacionais, após a sua publicação e enquanto vincularem no plano internacional o Estado português.
O direito de acesso à justiça em prazo razoável, com o conteúdo e o sentido que lhe decorre do art. 6.º da CEDH, aplica-se, portanto, na ordem jurídica portuguesa e, ainda que a sua autoridade não seja igual às normas da Constituição, pelo menos tem um valor supra legal, prevalecendo sobre as leis internas posteriores ou anteriores. O facto de o direito de acesso à justiça em prazo razoável ter esta natureza de direito internacional não impede que na ordem jurídica portuguesa seja considerado como direito fundamental (art. 16.º, n.º 1 da CRP) e que possa beneficiar de um particular regime jurídico (art. 17.º) – isto se tal direito não tivesse consagração constitucional no direito interno português.

Mas tem previsão autónoma no art. 20.º, n.º 4 da CRP, desde 1997. (…) ” – citando  Isabel Fonseca, “Do Novo Contencioso Administrativo e do Direito à Justiça em Prazo Razoável”, Estudos em Comemoração do 10.º Aniversário da Licenciatura em Direito da Universidade do Minho, pág. 353.

Contudo, o legislador consagrou as garantias necessárias à tutela jurisdicional efectiva em prazo razoável, na previsão legal dos prazos judiciais – não se vendo como «adivinhar» que tais prazos serão violados ou que a decisão definitiva ocorra com atraso relevante.

A antecipação da tutela, em sede cautelar, vem resolver as situações de periculum in mora relevantes – o justificado receio de que a natural demora na resolução definitiva do litígio cause prejuízo irreparável ou de difícil reparação ou perigo de insatisfação desse direito.

Fora dessas situações de periculum in mora, o direito à tutela jurisdicional efectiva em prazo razoável satisfaz-se plenamente com o cumprimento dos prazos judiciais previstos para uma acção judicial – em nada se podendo antever que tais prazos não serão cumpridos.

Daí a improcedência desta alegação da recorrente: a hipotética delonga da tutela definitiva dos direitos patrimoniais invocados não justifica por si só a sua tutela em sede cautelar, mediante antecipação daquela tutela definitiva, na medida em que não se pode antever que tais prazos não serão cumpridos.

E o cumprimento dos prazos legais para a duração de um processo judicial satisfaz, em toda a sua plenitude, o direito à tutela jurisdicional efectiva em prazo razoável.

Daí a necessária improcedência do presente procedimento cautelar, com consequente absolvição, da requerida, dos pedidos formulados – não se preenchendo o necessário requisito de justificado receio de que a natural demora na resolução definitiva do litígio cause prejuízo irreparável ou de difícil reparação ou perigo de insatisfação dos direitos invocados pela requerente.
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V.–Decisão                                 
Pelo exposto, decide-se, na improcedência da apelação, em:
a)- Revogar a decisão recorrida bem como,
b)- Em substituição do Tribunal recorrido, julgar improcedente o presente procedimento cautelar e absolver a requerida dos pedidos formulados pela requerente.
Custas, quer da primeira instância, quer da apelação, pela requerente/apelante.
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Lisboa, 24 de Outubro de 2019



Nuno Lopes Ribeiro
Gabriela de Fátima Marques
Adeodato Brotas