MÚTUO BANCÁRIO
MORTE DO MUTUÁRIO
FIADOR
EXECUÇÃO
ABUSO DO DIREITO
Sumário

– Age em abuso do direito, por violação manifestamente excessiva do princípio da boa - fé, o banco que, num contrato de mútuo para habitação, garantido com seguro de vida do mutuário a seu favor, hipoteca, fiança e seguro do imóvel, sendo informado da morte do devedor, move execução contra os fiadores, invocando falta de pagamento das prestações, sem accionar previamente o seguro.

Texto Integral

Acordam na 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

                  
I–RELATÓRIO:


A [ VICENTE …………………..] e B [ ROSANA …….]  deduziram oposição à execução que lhes move e a OUTROS C [ BANCO …. SA.]

Alegam que celebraram, na qualidade de fiadores, com a exequente, o contrato de mútuo dado à execução, no âmbito do qual o mutuário subscreveu um seguro de vida com uma sociedade comercial pertencente ao grupo económico do exequente que garantia à exequente o pagamento do capital em dívida em caso de morte.

O mutuário faleceu em 6 de Março de 2005, sem que tivessem sido interpelados os ora opoentes para o pagamento de qualquer valor em dívida, nem que lhes tivesse sido dado conhecimento da decisão de recusa de pagamento dessa apólice.

Só após 4 anos volvidos sobre a data do falecimento do mutuário, foi instaurada a presente execução para na qualidade de fiadores procederem ao pagamento das quantias devidas a título de capital, juros, comissões, etc., referentes ao aludido contrato.

Não tendo existido por parte da exequente qualquer interpelação para pagamento das quantias em dívida, nem tendo existido por parte da exequente qualquer comunicação aos executados/fiadores a dar-lhes conhecimento da recusa da seguradora em liquidar o seguro contratado, entenderam estes que não lhes podia ser exigido o pagamento de quaisquer juros de mora ate à data de interpelação para cumprimento.

Aliás, não podia o exequente instaurar a acção contra os aqui executados,mas sim contra a seguradora, uma vez que as responsabilidades do executado devedor-principal, derivadas do contrato de mútuo, em caso de morte, foram transferidas para a seguradora, age assim, in casu, o exequente de forma ilegítima, por abuso de direito.

Pugnam, a final, pela procedência da oposição.

A oposição foi indeferida liminarmente (fls. 22), tendo sido ordenado o seu recebimento através de acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido por esta mesma secção, em 23-05-2013. (fls. 84).

Recebida a oposição (fls.91), veio o exequente apresentar contestação (fls.94a 96), impugnando os factos alegados pelos executados.

Mais alega que a apólice referente ao contrato de seguro associado ao contrato de mútuo já havia sido denunciada por falta de pagamento, em Janeiro de 2004.

Pede, por conseguinte, que a oposição seja julgada improcedente.

Foi pedida a condenação do exequente como litigante de má – fé (cfr. Fls. 106 a 110), tendo o exequente se pronunciado a fls. 113 a 115.

Decorridos todos os trâmites legais, foi realizado o julgamento e proferida sentença que julgou procedente a oposição à execução e em consequência determinou a extinção da execução quanto aos executados/opoentes.

Inconformada com esta decisão, a Exequente interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
I–O ora Apelante não se conforma com a douta sentença a quo, considerando que a mesma fez uma incorrecta apreciação e julgamento da matéria de facto, designadamente, quando julgou não provados os factos a) e b).
II–Consequentemente, incorre o douto tribunal a quo em erro de julgamento quando julgou procedente a presente oposição e determinou a extinção da execução quanto aos Opoentes e ora Recorridos.
III–Contrariamente ao doutamente decidido em Primeira Instância, resulta da prova documental junta aos autos e da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento que, à data do óbito do executado e mutuário, o contrato de seguro de vida inicial, associado ao contrato referido em 1), “já havia sido denunciado por falta de pagamento do prémio anual vencido em Janeiro de 2004” – cfr., entre outros, documento junto aos autos em 10/10/2018, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e efeitos legais e dos depoimentos das testemunhas Pedro ….. e Rita ….., prestados na audiência de discussão e julgamento que teve lugar em 18/09/2018.
IV–Resultou ainda cabalmente demonstrado que o Apelante enviou aos Recorridos as cartas datadas de 23/01/2008 para as suas moradas, nada fazendo presumir que as mesmas não foram, por aqueles recebidas, desde logo porque enviadas para as suas moradas e porque nunca foram devolvidas ao remetente. O envio daquelas cartas foi ainda confirmado pelo depoimento da testemunha Pedro ….., prestado na audiência de discussão e julgamento que teve lugar em 18/09/2018. Acresce que o artigo 224º, n.º 2, do Código Civil prescreve que “é também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida”, o que terá sido certamente o caso.
V–Os factos não provados sob as alíneas a) e b) deveriam, por conseguinte, ter tido diferente julgamento pelo douto tribunal a quo, figurando no elenco de factos considerados Provados.
VI–Incorre ainda o douto tribunal a quo em erro de julgamento quando entendeu que, antes de exigir o pagamento aos Executados, impendia sobre o Apelante a obrigação prévia de accionar o seguro associado ao contrato de mútuo do qual emerge o seu crédito.
VII–O ora Apelante não é parte no contrato de seguro, sendo apenas e tão só o beneficiário do mesmo, pelo que qualquer accionamento do seguro cabia ao segurado ou, no limite, aos herdeiros deste, atento o óbito daquele.
VIII–Acresce que, ainda que estivesse válido e plenamente em vigor – o que por mera hipótese se admite -, tal contrato não exoneraria, ainda assim, os Recorridos do pagamento da quantia exequenda devida ao ora Apelante.
IX–O contrato de seguro consubstancia um verdadeiro contrato a favor de terceiro com natureza comercial – cfr., artigo 100º do Código Comercial -, pelo que a responsabilidade dos Apelados pelo pagamento da dívida sempre seria solidária, nos termos do disposto no artigo 519º do Código Civil.
X–Está, por conseguinte, o Apelante absolutamente legitimado a exigir dos fiadores – como fez – o pagamento da dívida exequenda.
XI–Consequentemente, deverá a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por douto Acórdão que julgue improcedente a presente Oposição à Execução e determine o prosseguimento da acção executiva contra os Apelados.

Nestes termos,
Deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a douta decisão recorrida.

Os Apelados apresentaram contra alegações nas quais se pronunciaram pela improcedência do recurso, devendo a sentença recorrida ser confirmada.

Colhidos os vistos legais cumpre apreciar e decidir:

II–OS FACTOS

Na primeira instância foram dados como provados os seguintes factos:
No exercício da sua actividade, a exequente celebrou, em 11 de Maio de 1999, com os executados o contrato de mútuo, cuja cópia se encontra junta a fls.6 a 20 dos autos de execução e o teor se dá integralmente por reproduzido, nos termos do qual, para além do mais, os aqui executados constituíram-se fiadores.
2.–Nos termos da cláusula vigésima quinta do documento complementar à escritura de compra e venda, resulta que: “O mutuário fica ainda obrigado a efectuar seguro de vida, o qual deverá cobrir morte, invalidez absoluta e definitiva por doença e invalidez total e permanente por acidente, sendo o beneficiário o “BIC”, na qualidade de credor hipotecário privilegiado, pelo valor mínimo do montante do empréstimo, devendo constar que a clausula relativa ao credor hipotecário privilegiado é irrevogável, sendo necessário o prévio acordo do “BIC” para o exercício de qualquer direito ou facilidade de modificar as condições contratuais que tenham incidência sobre os direitos do beneficiário.” cuja cópia se encontra junta a fls.20 dos autos de execução e o teor se dá integralmente por reproduzido.
Para garantia do capital mutuado, respectivos juros e despesas, foi constituída hipoteca a favor da exequente sobre a fracção autónoma designada pelas letras “AC”, correspondente ao sexto andar ….., letra .. do prédio urbano sito no Casal de São Marcos, Agualva Cacem,freguesia da Agualva Cacém, Concelho de Sintra.

4.–A referida hipoteca encontra-se inscrita sob o n.º C-1.

5.–As prestações relativas ao contrato referido em 1 deixaram de ser pagas em Janeiro de 2006.

6.–O executado (mutuário) Jorge ….. faleceu em 6 de Março de 2005.

7.–O executado (mutuário) Jorge ….. subscreveu um seguro de vida junto da Companhia de Seguros Tranquilidade, com a apólice nº 53-209747, para o contrato de mútuo e hipoteca e fiança designado multifunção.

8.–A apólice nº 53-209747 encontra-se anulada desde o ano de 2005, em virtude do capital ter sido regularizado à entidade C, de acordo com as condições Gerais do Seguro Vida.

9.–O executado (mutuário) Jorge ….. subscreveu um seguro de vida junto da Companhia de Seguros Tranquilidade, com a apólice nº 188354, para o contrato de mútuo referido em 1).

10.–Os executados não receberam comunicação por parte do exequente a informar que o mutuário havia faltado ao pagamento do mútuo.

Não provados:
a)- À data do óbito do executado, o contrato de seguro de vida-inicialmente celebrado e associado ao contrato referido em 1., já havia sido denunciado, por falta de pagamento do premio anual vencido em Janeiro de 2004.
b)- Os executados receberam as cartas cujas cópias se encontram juntas a fls.97 e 98 em 23 de Janeiro de 2008.

III–O DIREITO

Tendo em conta as conclusões de recurso formuladas que delimitam o respectivo âmbito de cognição deste Tribunal, as questões a apreciar são as seguintes:

1-Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
2-Responsabilidade dos fiadores /embargantes, ora apelados pela dívida exequenda.
A Apelante entende que a sentença a quo fez uma incorrecta apreciação e julgamento da matéria de facto, designadamente, quando julgou não provados os factos a) e b).

Quanto ao facto referido na alínea):
Como meios de prova susceptíveis de por em causa a decisão proferida, indica a prova documental junta aos autos e o depoimento das testemunhas apresentadas pela Apelante: Pedro …. e Rita …...

Quanto às testemunhas, ouvido o respectivo depoimento e lidos os excertos transcritos pela Apelante, chegamos à mesma conclusão a que chegou o Tribunal a quo, ou seja:
“As testemunhas Pedro …… e Rita ……, bancários, a exercer funções na Madeira no Novo Banco, S.A. afirmaram não conhecer o mutuário, tendo apenas conhecimento que existe um incumprimento do mútuo por falta de pagamento, e que como consta no sistema informático do banco exequente, o contrato de seguro celebrado estava anulado, por falta de pagamento.”
Na verdade, o depoimento das testemunhas ouvidas centrou-se num conhecimento genérico, baseado naquilo que são os procedimentos habituais do Banco e indirecto, baseado nas informações constantes do sistema informático, mas não demonstrando conhecimento específico da situação concreta. Nestas condições, o depoimento das testemunhas não se nos afiguram idóneos para fundamentar uma convicção diferente daquela que formou o Tribunal a quo.
Como também se refere na motivação da 1.ª Instância “Estas testemunhas revelaram não ter qualquer conhecimento directo dos factos a que prestaram depoimento, não tendo conseguido explicar o motivo pelo qual o incumprimento ocorreu, como afirmaram no ano de 2005 /2006 e apenas no ano de 2009 é instaurada a presente execução”.
Quanto aos documentos, vejamos o que consta da informação prestada pelo GNB- Seguros Vida/ Grupo Novo Banco ao Tribunal, datada de 8 de Outubro de 2018:
“(…) Em relação à apólice n.º 53/188354 esta encontra-se anulada desde Abril de 2004, por falta de pagamento do recibo anual emitida em Janeiro de 2004.
Tendo esta informação sido transmitida ao segurado através do envio de uma comunicação registada, conforme documento que se junta em anexo”.

E em anexo o que se encontra junto é uma cópia de um aviso de recepção não assinado pelo destinatário, dirigido para uma morada sita no Funchal, sendo certo que não há conhecimento de que o mutuário tenha tido residência no Funchal.

Também se encontra junto um envelope, apresentando manuscrita a expressão “registo simples” e constando a data aposta pelos correios de 09-10-2018. Ou seja, é óbvio que tal envelope não diz respeito à cópia do aviso de recepção referido.
E também não consta o teor da alegada “comunicação”.
Nestas condições, é mais do que óbvio que não está minimamente indiciado sequer o envio de qualquer carta a comunicar a alegada anulação do contrato por falta de pagamento.
Não existe, por conseguinte, a nosso ver, o alegado erro de julgamento. Pelo contrário, entendemos que a decisão de dar como “não provado” o facto em apreço, espelha uma criteriosa apreciação da prova que foi produzida, devendo, pois, manter-se.
Quanto ao facto referido na alínea b):
Os documentos de fls. 97 e 98 constituem cópias de cartas alegadamente remetidas aos ora Embargantes, datadas de 23-01-2008, informando o incumprimento do contrato. Nenhuma prova existe de que as mesmas tenham realmente sido remetidas e muito menos recebidas pelos destinatários.
Por sua vez, testemunha Pedro …. confirma apenas que as cópias das cartas em análise correspondem ao tipo de carta que normalmente é enviado para os devedores. Mais uma vez, o depoimento da testemunha é indirecto e genérico não sendo idóneo a contribuir para alterar a convicção espelhada na decisão recorrida.
Mantém-se pois inalterada a decisão de dar como “não provado” o facto constante da alínea b) do elenco dos factos “não provados”.
2– Importa agora apreciar a questão de saber se antes de exigir o pagamento aos Executados, impendia sobre a Apelante a obrigação prévia de accionar o seguro associado ao contrato de mútuo do qual emerge o seu crédito, tal como resulta da argumentação da decisão recorrida.
À primeira vista, poderia fazer sentido a argumentação da Apelante no sentido de que a existência do contrato de seguro em nada afecta as obrigações, quer do mutuário, quer dos fiadores. Assim, no caso de morte do mutuário, apesar de ficar ao dispor do Banco o montante objecto do seguro, isso não prejudicaria a possibilidade de acionar quer os sucessores do mutuário quer os fiadores.
Porém, à semelhança do que já foi verificado pelo Supremo Tribunal de Justiça[1], ao decidir um caso semelhante àquele ora que nos ocupa “cremos que que uma análise mais profunda das relações entre todos conduz a solução diferenciada (…)” E essa análise mais profunda tem a ver com a intervenção do princípio da boa-fé que neste caso concreto se impõe com especial acuidade, como bem resulta da sentença recorrida que também seguiu de perto a decisão constante do acórdão supra citado.

Com efeito,  como bem sublinha o Supremo Tribunal de Justiça “ a atividade bancária constitui um capítulo fundamental na atividade económica. Vilipendiada por uns, bem aceite por outros, não deixa de encerrar um ramo do direito em grande evolução. Apresentando áreas diferenciadas, não pode ignorar-se que algumas delas “têm regras especiais de interpretação ou, pelo menos, suscitam no seu âmbito, uma discussão específica sobre o tema, discussão essa que, depois, poderá ter efeitos interpretativos.” Cabe, então, “ao intérprete-aplicador posicionar, dentro do sistema jurídico-bancário, o problema que tenha em mãos…” Em “áreas como as da contratação, está em causa – ou poderá estar – a tutela do consumidor de produtos financeiros” (Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 5.ª ed., p.200). Não surpreende, pois, que o artigo 74.º do Regime Geral das Instituições de Crédito (Decreto Lei n.º 298/92, de 31.12, com sucessivas alterações) disponha que:
“Os administradores e os empregados das instituições de crédito devem proceder, tanto nas relações com os clientes como nas relações com outras instituições, com diligência, neutralidade, lealdade, discrição e respeito consciencioso dos interesses que lhes estão confiados.”
Sendo certo que “o critério de diligência, aparentemente orientado para os administradores e para o pessoal dirigente mas, no fundo, destinado ao próprio banqueiro, enquanto instituição, aponta para a bitola do banqueiro criterioso e ordenado. Trata-se da recuperação, com fins bancários,da figura do bonus pater familias, prudente, ordenado e dedicado” (ob. acabada de citar, 346). (…)

Na verdade, onde impera o dinheiro cede, com frequência, a ética. Cedência que é agudizada pela concorrência entre as próprias empresas de crédito e a inerente imposição de resultados. Além disso, o dinheiro hierarquiza as pessoas. Quem o tem fica, por regra, colocado numa posição de superioridade relativamente a quem dele carece. E é com todo este quadro de envolvência que as partes chegam aos contratos.

Um dos capítulos de extrema relevância na atividade bancária diz respeito aos contratos de mútuo, em especial visando a aquisição de habitação.

A não posição igualitária entre as partes é aqui acentuada. Dum lado está uma instituição bem informada, vocacionada e dimensionada para a efetivação deste tipo de contratos e do outro um particular dependente economicamente do ato bancário, sobre o qual, por regra, pouco sabe.

Neste quadro, o banco dita as regras, surgindo um contrato eivado de domínio bancário com manifestação particular quanto a garantias (referindo Menezes Cordeiro, a páginas 785 da obra citada, que “o zelo dos funcionários bancários leva, por vezes, a um garantismo demencial…” (…)

Merece, pois, pleno acolhimento e atenção o que refere Frederico Faro[2]:
“Como se sabe, no campo do Direito Bancário, desde há muito, já se vem reconhecendo a força da interação dogmática existente entre a efetivação das garantias fixadas em favor dos bancos e o princípio da boa -fé.”

Uma das garantias a que geralmente os bancos lançam mão é a fiança. Com muita frequência acompanhada da dispensa do benefício de excussão prévia.

Fica, assim, o fiador em posição ideal, sob o ponto de vista do credor, para assegurar o pagamento. Já vimos, contudo, que, apesar disso, não perde a sua qualidade, mantendo-se a sua obrigação como acessória por força do artigo 627.º, n.º 2 do Código Civil.

A acessoriedade, nestes casos, não lhe permite beneficiar da necessidade de excussão dos bens do devedor principal, mas mantém-se, determinando, quanto aos limites do exercício da garantia pelo beneficiário, também o recurso ao princípio da boa- fé (cfr. Januário Gomes, Assunção Fidejussória de Dívida, 116).

A boa-fé, assim como os institutos que com ela caminham interligados, da tutela da confiança e do abuso do direito envolvem necessariamente um esforço jurisprudencial intenso e profundamente ponderado.

Temos os artigos 762.º, n.º2 e 334.º do Código Civil, mas, com eles ou outros que porventura pudessem interessar, a lei não “cai” sobre os factos diretamente com uma das suas interpretações. Há-de o julgador decidir onde está a tolerância assente num clima de liberdade contratual, de aceitação razoável das forças do mercado e dos riscos a estas inerentes e onde se ultrapassou a razoabilidade, demandando a intervenção limitadora do órgão soberano”.

No caso que nos ocupa, tal como naquele que foi analisado no acórdão acabado de citar, o Banco ficou garantido com hipoteca, com fiadores (na qualidade de principais pagadores), com seguro de vida e com seguro do imóvel.

Ora, “os contratos de mútuo para compra de habitação vivem muito dos proventos que vão sendo sucessivamente auferidos pelo mutuário que, assim, vai pagando as prestações. Se este falece na pendência da relação contratual, cessa a entrada daqueles, pondo em causa severamente o cumprimento contratual. Daí que seja frequente o seguro de vida, com a inerente ideia para todos os intervenientes contratuais de que, em caso de morte, tudo fica solucionado com o recurso à realidade securitária. Legitimamente, os fiadores pensarão que, em tal caso, nada serão chamados a pagar”.[3]

Por isso, a normalidade comportamental (a que fundadamente recorre Frederico Faro, no mencionado Estudo, página 411, ainda que para delimitação do campo de incidência da fiança omnibus) apontava, claramente, para que, em caso de falecimento do mutuário, “funcionasse”, em primeira linha, o seguro de vida. No normal das expectativas, o seguro seria sempre acionado e cobriria o que era devido, ficando os demais obrigados libertos.”

Assim sendo, não poderá o Banco argumentar com a falta de pagamento dos prémios de seguro, porque, na verdade, a mesma não se provou.

Dispondo o banco do benefício constante do contrato de seguro não se justifica – sempre atento o princípio da boa - fé consignado no artigo 762.º, n.º2 do Código Civil – que venha junto dos fiadores para obter a satisfação do seu crédito.

Apesar de estes serem principais pagadores, prescindindo do benefício da excussão prévia, “a manutenção da acessoriedade releva no domínio da figura da boa fé. Com a satisfação do crédito mesmo “à mão” o banco vai particularmente longe, invadindo os direitos de quem, apesar de se ter vinculado, não beneficiou do mútuo(…)”. Primeiramente tinha, portanto, que ir junto da seguradora procurar obter aquilo a que tinha direito. Só malograda esta intenção, poderia legitimamente executar os herdeiros do mutuário e os fiadores”. Em vez disso, o Exequente, apesar de já desde 2005 conhecer o facto da morte do mutuário, como resulta do ponto 8 dos factos provados, ainda assim, instaura execução contra os fiadores, em 2009.

Afigura-se-nos, tal como considerou já o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão citado que neste caso a violação do princípio da boa-fé é manifestamente excessiva, preenchendo o exigido pelo art.º 334.º do Código Civil.

Merece assim, a sentença recorrida, a nossa concordância, ao concluir que “o exequente agiu em abuso de direito, por violação manifestamente excessiva do principio da boa-fé”.

[4]Improcedem, assim, as conclusões de recurso.

IV–DECISÃO
Face ao exposto, acordamos neste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso e por consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo Apelante



Lisboa, 24 de Outubro de 2019



Maria de Deus Correia
Maria Teresa Pardal
Anabela Cesariny Calafate
     
    

[1]Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-06-2014,Processo 3220/07.3TBGDM-A.P1.S1 disponível em www.dgsi.pt
[2]Fiança Omnibus no Âmbito Bancário: Validade e Exercício da Garantia à Luz do Princípio da Boa Fé, 407.
[3]Sublinhado nosso.
[4]Também no mesmo sentido decidiu o Supremo tribunal de Justiça no acórdão de 24-11-2016, processo 7531/12.8TBMTS,
disponível em www.dgsi.pt