CONSUMO DE DROGA
CONSUMO MÉDIO INDIVIDUAL
EXAME LABORATORIAL
Sumário

I- A detenção de droga para consumo próprio em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias constitui a contra-ordenação prevista no art. 2º da Lei nº 30/2000.
II- Para o tribunal poder socorrer-se dos valores da tabela anexa à Portaria nº 94/96, é necessário que se encontre no processo o exame referido no art. 10º deste diploma.

Texto Integral

Acordam, em audiência, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto:

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I- RELATÓRIO
No …º Juízo de Competência Criminal do Tribunal Judicial de Vila do Conde, nos autos de processo comum (Tribunal Singular) nº ……./04.4GFMTS, foi proferida sentença, em 15/11/2005 (fls. 99 a 113), constando do dispositivo, na parte que interessa ao conhecimento do recurso, o seguinte:
“IV. DECISÃO:
Pelo exposto, o tribunal decide:
Absolver o arguido B………………, como autor material, pela prática de um crime tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelo art. 25.º, al. a), da Lei 15/93, de 22/01, de que vinha acusado.
Condenar o arguido B……………., como autor material, pela prática de um cultivo de estupefacientes, previsto e punido pelo art. 40.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, numa pena de dias 20 de multa à taxa diária de 15 €, o que perfaz a quantia de 300 euros.
Condenar o arguido no pagamento das custas do processo, fixando em 2 UC’s a taxa de justiça devida, e em ½ daquele valor a procuradoria, acrescida de 1% para o Fundo de Apoio à Vítima, a qual será considerada receita própria do CGT, nos termos do art. 13.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 423/91, de 30/01
Declarar perdido a favor do Estado o produto estupefaciente apreendido, nos termos do art. 35.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
Determinar a destruição, após trânsito, do produto estupefaciente apreendido, nos termos do art. 39.º, n.º 3, do mesmo diploma legal.
Ordenar, após trânsito, a remessa de certidão da sentença ao Instituto Português da Droga e da Toxicodependência, nos termos do art. 64.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, bem como à Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência competente para o que tiverem por conveniente.
(…)”
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Não se conformando com a dita sentença, o MºPº interpôs recurso dessa decisão (fls. 124 a 127), no prazo a que se refere o artigo 145 nº 5 do CPC (alegando justo impedimento), formulando as seguintes conclusões:
“- O cultivo para consumo, como a detenção para consumo de produtos estupefacientes, quando exceda o valor necessário ao consumo médio de 10 dias, como se deu como provado nos autos, com a entrada em vigor da Lei n° 30/2000 continua a ser punido pelos art°s. 21 °, n° 1, e 25°, alínea a), do Decreto-Lei n° 15/93 e não ao abrigo do artº 40°, n° 1, do mesmo diploma;
- A douta sentença ao absolver o arguido da prática do crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artº 25°, alínea a), do Decreto-Lei n° 15/95, e ao integrar o cultivo e detenção para consumo naquela última norma violou, no caso, o disposto no referido artº 25°, alínea a).”
Termina pedindo a revogação da sentença e a sua substituição pela condenação do arguido como autor material pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25, alínea a), do Decreto-Lei nº 15/93.
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Na 1ª instância, o arguido não respondeu ao recurso interposto pelo MºPº.
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Nesta Relação, o Sr. Procurador-Geral Adjunto limitou-se a apor visto.
Feito o exame preliminar a que se refere o art. 417 nº 3 do CPP e, colhidos os vistos legais, realizou-se a audiência.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
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Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos com relevo para a decisão da causa:
“a) No dia 15 de Setembro de 2004, cerca das 15 horas, agentes do Núcleo de Investigação Criminal da Guarda Nacional Republicana dirigiram-se ao Lugar ………, freguesia de ……., nesta comarca, e verificaram que o arguido possuía:
- Num terreno que cultivava existente próximo da sua residência: dois pés de uma planta de «cannabis», com o peso líquido de 2.715 gramas.
- No pátio da residência: dois vasos localizados em cima de uma mesa, contendo em cada um, três pés de uma planta de «cannabis», com o peso líquido de 7,500 gramas.
- Várias sementes de «cannabis», acondicionadas em caixas metálicas, existentes na cozinha, na sala e no sótão do arguido, com o peso total líquido de 71,60 gramas.
- Sessenta e quatro (64) saquetas de plástico, de cor transparente.
- Dezasseis (16) folhas (secas) de «cannabis», acondicionadas no interior de uma revista, com o peso líquido de 8,290 gramas.
- Um pedaço de «cannabis», transportado pelo arguido no bolso das calças, com o peso líquido de 4,020 gramas.
b) As plantas, sementes e o pedaço de haxixe referidos destinavam-se ao consumo do arguido, que, à data dos factos, consumia diariamente.
c) O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que o cultivo e a detenção estupefacientes, ainda que para seu consumo, mas naquelas quantidades, são proibidos e punidos por lei.
d) O arguido é solteiro, vive com a sua mãe, trabalha na construção civil auferindo 35€/dia e trabalha 5 dias por semana.
e) O arguido tem o 4.º ano de escolaridade.
f) O arguido não tem antecedentes criminais.”

Quanto aos factos dados como não provados consignou-se o seguinte:
“Para além dessa factualidade, com relevo para a decisão, não se provaram quaisquer outros factos e, designadamente, não se provou que:
a) O arguido era referenciado pelas entidades policiais, à data da sua detenção e anteriormente a esta, como indivíduo ligado à venda de produtos de natureza estupefaciente.
b) O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o intuito de, através do cultivo e venda de estupefacientes (haxixe), lograr obter dinheiro que gastava em proveito próprio, bem sabendo que a venda de haxixe, é proibida e punida por lei.
c) As 64 saquetas de plástico apreendidas ao arguido eram por este utilizadas para o acondicionamento do produto estupefaciente.”

Da respectiva motivação da matéria e facto provada e não provada, fez-se constar o seguinte:
“No que diz respeito à factualidade dada como assente e discriminada nas alíneas a) a c) dos factos provados a convicção do tribunal filiou-se nas declarações prestadas pelo próprio arguido, que admitiu cultivar as plantas constantes da acusação num terreno próximo da sua residência, bem como em 2 vasos existentes no pátio da casa onde habita, bem como deter as sementes, as folhas secas encontradas no interior de uma revista e o pedaço de cannabis que trazia consigo, justificando esse cultivo e essa detenção pelo facto de ser consumidor dessa substância, negando possuí-las para venda.
As testemunhas C…………. e D…………… – agentes da G.N.R. que elaboraram o auto de notícia de fls. 3 – confirmaram o teor do auto de notícia, esclarecendo em que locais se encontravam as substâncias apreendidas, tendo referido que o arguido, no momento da apreensão, justificou tal posse pelo facto de ser consumidor.
Tiveram-se, ainda, conta o teor dos documentos juntos a fls. 12, 13 e 32 (auto de apreensão e relatório pericial).
Quanto à situação económica do arguido, e ao seu passado criminal, tiveram-se em conta as suas próprias declarações e o C.R.C. de fls. 68.
O tribunal considerou como não provado que o arguido era referenciado pelas entidades policiais, à data da sua detenção e anteriormente a esta, como indivíduo ligado à venda de produtos de natureza estupefaciente, face aos depoimentos dos senhores agentes da GNR que afirmaram em audiência que o arguido nunca foi referenciado como pessoa ligada à venda de estupefacientes.
Para além disso, em audiência não foi feita qualquer prova de que o arguido vendia cannabis, já que nenhuma testemunha inquirida viu o arguido transaccionar o que quer que fosse, razão pela qual o tribunal considerou essa factualidade como não assente, bem como não considerou como não provado que as 64 saquetas de plástico apreendidas ao arguido eram por este utilizadas para o acondicionamento do produto estupefaciente face à total ausência de prova de que o arguido vendia.
Face, portanto, à prova produzida e às declarações do arguido, o tribunal considerou como provado que as substâncias que o arguido cultivava, bem como as que aquele detinha eram destinadas para seu próprio consumo e não para venda.”
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II- FUNDAMENTAÇÃO
1.1. O objecto e âmbito do recurso, demarcados pelo teor das suas conclusões (art. 412 nº 1 do CPP), incidem sobre a questão de saber se houve erro de interpretação na subsunção dos factos ao direito, uma vez que o recorrente entende que a conduta do arguido integra a prática, em autoria material, do crime de tráfico de menor gravidade previsto no artigo 25º al. a) do DL nº 15/93 de que vinha acusado.
1.2. Antes de mais, pese embora não exista recurso da matéria de facto (nos termos do art. 412 nº 3 do CPP) e não tenha sido alegado qualquer dos vícios previstos no art. 410 nº 2 do CPP, a verdade é que a sindicância da decisão sobre a matéria de facto no âmbito destes vícios é de conhecimento oficioso(1).
Ora, compulsando o exame pericial para o qual remete a fundamentação de facto da sentença sob recurso, logo se verifica a existência de lapso na indicação dos pesos líquidos quer dos 6 pés da planta “cannabis” contidos (três em cada) nos dois vasos, quer dos dois pés da planta “cannabis” existentes no terreno cultivado próximo da residência do arguido.
Para tanto basta consultar o teor do exame pericial constante de fls. 62 a 64 e confrontá-lo com os documentos de remessa de fls. 36 (guia de entrega) e de fls. 50 (ofício dirigido ao Laboratório de Polícia Científica).
E, como sabido, quando é indicado o peso bruto dos produtos submetidos a exame laboratorial há que descontar a tara para encontrar o peso líquido.
Ora visto o exame do LPC de fls. 62 a 64 verifica-se, no que respeita aos pés da dita planta contidos nos vasos, estes correspondem ao material recebido para exame sob os nºs 2 e 3.
Enquanto o material recebido sob o nº 2 tem o peso líquido de 0,385 g., o do nº 3 tem o peso bruto de 7,500g.
Isto significa que no material recebido sob o nº 3 há que descontar a tara indicada no material devolvido sob o mesmo nº 3 (amostra cofre), no valor de 5,860g.
Assim, o peso líquido global dos 6 pés de cannabis plantadas nos ditos vasos (distribuídos três pés em cada vaso) é no total de 2,025g. (=0,385g. + 7,500g. – 5,860g.).
Por outro lado, quanto aos dois pés da planta “cannabis” existentes no terreno cultivado próximo da residência do arguido, compulsado o mesmo exame pericial verificamos que o mesmo corresponde ao material recebido sob o nº 6, o qual tem o peso bruto de 2715,400g.
Portanto, para encontrarmos o seu peso líquido temos que descontar a tara indicada no material devolvido sob o mesmo nº 6 (remanescente), que no caso é no valor de 1032,000g.
Assim, o peso líquido global dos 2 pés da planta “cannabis” existentes no dito terreno de cultivo é no total de 1.683,400g. (=2715,400g. – 1032, 000g.).
O que não se pode é dar por provados, como líquidos, pesos que são indicados como brutos, nem tão pouco, calcular os pesos líquidos apenas com base nos valores indicados nas amostras cofre ou/e no remanescente.
Impõe-se, pois, alterar o teor do ponto a) da matéria de facto dada como provada, nos termos apontados, modificação esta que é possível, atentos os poderes de cognição da Relação e o disposto no art. 431-a) do CPP, visto que do processo constam os respectivos elementos de prova que lhes serviu de base.
Assim, atento o disposto nos arts. 428 nº 1 e 431-a) ambos do CPP, modifica-se a matéria de facto constante do ponto a) dos factos dados como provados na sentença sob recurso, nos seguintes termos:
“a) No dia 15 de Setembro de 2004, cerca das 15 horas, agentes do Núcleo de Investigação Criminal da Guarda Nacional Republicana dirigiram-se ao Lugar ………., freguesia de …………., nesta comarca, e verificaram que o arguido possuía:
- Num terreno que cultivava existente próximo da sua residência: dois pés de uma planta de «cannabis», com o peso líquido de 1.683,400 gramas.
- No pátio da residência: dois vasos localizados em cima de uma mesa, contendo em cada um, três pés de uma planta de «cannabis», com o peso líquido de 2,025 gramas.
- Várias sementes de «cannabis», acondicionadas em caixas metálicas, existentes na cozinha, na sala e no sótão do arguido, com o peso total líquido de 71,60 gramas.
- Sessenta e quatro (64) saquetas de plástico, de cor transparente.
- Dezasseis (16) folhas (secas) de «cannabis», acondicionadas no interior de uma revista, com o peso líquido de 8,290 gramas.
- Um pedaço de «cannabis», transportado pelo arguido no bolso das calças, com o peso líquido de 4,020 gramas.”
Assim, não se vislumbrando outros vícios previstos no art. 410 nº 2 do CPP, nem havendo qualquer nulidade a conhecer oficiosamente, considera-se, com a apontada modificação efectuada, definitivamente fixada a decisão sobre a matéria de facto.
1.3. Posto isto, passemos então a apreciar a questão colocada no recurso em apreço.
Perante os factos dados como provados o tribunal da 1ª instância distinguiu duas situações, a saber:
1º- o cultivo pelo arguido da planta cannabis, destinado ao seu consumo;
2º- a posse pelo arguido das restantes substâncias estupefacientes (canabis) destinadas também ao seu consumo.
Quanto à primeira situação indicada, o tribunal a quo, considerou que a mesma integrava a prática de um crime p. e p. no art. 40 nº 1 do DL nº 15/93 de 22/1 (por tal dispositivo se encontrar em vigor quanto ao cultivo de plantas estupefacientes para consumo) com referência à tabela I-C anexa ao cit. DL nº 15/93, por a quantidade de plantas cultivadas pelo arguido não ultrapassar o peso líquido global de 7,500g. e, quanto à segunda situação indicada, não obstante a quantidade global de canabis que o arguido possuía para o seu consumo ser superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, integrou-a na contra-ordenação p. e p. no art. 2 da Lei nº 30/2000, com referência à mesma tabela I-C, explicando, na fundamentação jurídica, as razões do enquadramento jurídico-penal que fez.
Alega o recorrente que o tribunal a quo fez uma errada qualificação jurídica dos factos dados como provados na decisão sob recurso, na medida em que os factos apurados integram o crime de tráfico de menor gravidade de que o arguido vinha acusado.
Sem distinguir as duas referidas situações, invoca, em resumo, que a detenção de plantas e substâncias estupefacientes, mesmo para consumo, quando a sua quantidade excede o valor previsto da conjugação do art. 2 nº 2 da Lei nº 30/2000 com a tabela anexa à Portaria nº 94/96 de 26/3, integra o tipo fundamental previsto no artigo 21 do cit. DL nº 15/93, funcionando o art. 24 do mesmo diploma como agravante, do mesmo modo que o art. 25 funcionará como atenuante daquele tipo de crime.
Entende, ainda, que não obstante o legislador ter reconhecido a toxicodependência como uma doença, a inovação legislativa contida na Lei nº 30/2000 “traduziu um avanço tímido quanto aos seus objectivos, sobretudo no que concerne à despenalização do consumo de estupefacientes”, não consentindo a letra da lei o enquadramento feito pelo tribunal a quo.
Pois bem.
Dispõe o art. 21 nº1 do DL nº 15/93 de 22/1, conforme declaração de rectificação nº 20/93 de 20/2(2):
Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no art. 40, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.
Por seu turno, estipula o art. 25-a) do cit. DL(3):
Se nos casos dos artigos 21 e 22, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI.
E, segundo o art. 26 nº 1 do mesmo diploma legal(4):
Quando, pela prática de algum dos factos referidos no art. 21, o agente tiver por finalidade exclusiva conseguir plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal, a pena é de prisão até 3 anos ou multa, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III ou de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.
O nº 3 do mesmo artigo 26 acrescenta:
Não é aplicável o disposto no nº 1 quando o agente detiver plantas, substâncias ou preparações em quantidade que exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de cinco dias.
O artigo 40 (consumo) do DL nº 15/93 de 22/1 tem a seguinte a redacção:
1. Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas Tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias.
2. Se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias(5), a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias.
3. No caso do nº 1, se o agente for consumidor ocasional, pode ser dispensado de pena.
Dispõe o art. 71 (Diagnóstico e quantificação de substâncias) nº 1-c) e nº 3 do mesmo diploma legal:
1. Os Ministros da Justiça e da Saúde, ouvido o Conselho Superior de Medicina Legal, determinam, mediante portaria:
(…)
c) Os limites quantitativos mínimos de princípio activo para cada dose média individual diária das substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV, de consumo mais frequente.
(…)
3. O valor probatório dos exames periciais e dos limites referidos no número 1 é apreciado nos termos do artigo 163 do Código de Processo Penal.
A canabis está incluída na tabela I-C anexa ao referido diploma legal.
Entretanto, foi publicada a Portaria nº 94/96 de 26/3 (ainda em vigor), que define os procedimentos de diagnóstico e dos exames periciais necessários à caracterização do estado de toxicodependência.
O art. 9 da Portaria nº 94/96, de 26 de Março, veio estabelecer que «os limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I e IV, anexas ao DL nº 15/93, de 22 de Janeiro, de consumo mais frequente, são os referidos no mapa anexo à presente portaria, da qual faz parte integrante».
Por sua vez, o art. 10 nº 1 da mesma Portaria dispõe:
Na realização do exame laboratorial referido nos nºs 1 e 2 do art. 62 do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro, o perito identifica e quantifica a planta, substância ou preparação examinada, bem como o respectivo princípio activo ou substância de referência.
O mapa anexo a essa Portaria estipula como limite quantitativo máximo, para cada dose diária de canabis (folhas e sumidades floridas ou frutificadas), 2,5 gramas.
A questão da aplicação, para efeitos do disposto no nº 3 do artigo 26 do DL nº 15/93 cit., dos valores constantes do mapa anexo à Portaria nº 94/96 de 26/3 (face ao disposto no seu artigo 9 e art. 71 nº 1 do DL nº 15/93) (6) foi discutida no Tribunal Constitucional, designadamente no acórdão nº 534/98 (7), proferido no proc. nº 545/98 da 3ª Secção, datado de 7/8/98, relatado por Maria dos Prazeres Pizarro Beleza.
Com efeito, decidiu-se nesse acórdão “interpretar a norma constante da alínea c) do nº1 do artigo 71 do DL nº 15/93 no sentido de que, ao remeter para a portaria nela referida, a definição dos limites quantitativos máximos do princípio activo para cada dose média individual diária das substâncias ou preparações constantes da tabela I a IV, de consumo mais frequente, anexas ao mesmo diploma, o faz com o valor de prova pericial”.
Na respectiva fundamentação esclarece-se que “os limites fixados na portaria [refere-se à Portaria nº 94/96], tendo meramente um valor de meio de prova, a apreciar nos termos da prova pericial, não constituem verdadeiramente, dentro do espírito e da letra do art. 71 do DL nº 15/93, uma delimitação negativa da norma penal que prevê o tipo de crime privilegiado” [refere-se ao art. 26 do DL nº 15/93], assim, devendo entender-se que faz “a remissão para valores indicativos, cujo afastamento pelo tribunal é possível, embora acompanhada da devida fundamentação”, concluindo, desse modo, que não é violado “o princípio da legalidade da lei penal incriminadora, consagrado no nº 1 do art. 29 (…) da CRP”.
Eduardo Maia Costa (8), em comentário a essa decisão do Tribunal Constitucional, refere que “a degradação dos quantitativos máximos (9) de elemento típico (dos crimes citados (10)) em simples valor indiciário tem inegável importância, pois permite que, nos termos do artigo 163 do Código Processo Penal, o arguido (e obviamente o Ministério Público) impugnem esses dados, que até agora têm sido aplicados automaticamente, sem admissibilidade de contestação”.
E, compreende-se que, mesmo quando existam os exames aludidos no artigo 10 nº 1 da Portaria nº 94/96, seja ainda possível (através da produção da respectiva prova) contrariar os valores indicativos (criados com base em dados estatísticos) para a “dose média individual diária” da mesma Portaria, porque, por um lado, tudo depende da “capacidade” aditiva de cada consumidor em concreto e, por outro, sempre são distintos os conceitos de “dose média individual diária” (indicado na Portaria) e de “quantidade necessária para o consumo médio individual” durante determinado período de tempo (indicado v.g. no artigo 26 nº 3 do cit. DL nº 15/93)(11).
Entretanto, foi publicada a Lei nº 30/2000 de 29/11(12), que define o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica.
Estabelece o nº 1 do art. 2 da citada Lei nº 30/2000: O consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV anexas ao DL nº 15/93 de 22/1, constituem contra-ordenação.
E, pelo nº 2 do mesmo art. 2: Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
Por seu turno, consignou-se no art. 28 (Normas revogadas) da mesma Lei nº 30/2000:
São revogados o artigo 40, excepto quanto ao cultivo, e o artigo 41 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, bem como as demais disposições que se mostrem incompatíveis com o presente regime.
A expressa revogação das normas indicadas no art. 28 da cit. Lei nº 30/2000 (entre elas, a do crime p. e p. no art. 40 do DL nº 15/93, excepto quanto ao cultivo) entrou em vigor em 1/7/2001 (art. 29 da citada Lei nº 30/2000 de 29/11).
Como diz Faria Costa (13), «a evolução da própria compreensão social do problema do consumo de drogas», aliada aos «compromissos internacionais a que o Estado português permanecia e permanece vinculado parecem impor que aquela conduta [refere-se ao consumo de drogas] continue a ser considerada juridicamente desvaliosa e, por isso, sancionada», daí a opção do legislador português «pela despenalização, deixando claro não ser o direito penal clássico o ramo do direito adequado à intervenção necessária mas antes um outro ramo do chamado “direito penal global”: vale por dizer, operava, neste sentido, uma degradação do campo do ilícito».
Foi o que aconteceu com opção de, através da Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro, o consumo de droga ter sido degradado (de crime) a contra-ordenação (cf. art. 2 nº 1).
Face à configuração da contra-ordenação prevista no nº 1 do art. 2 da Lei nº 30/2000, em contraponto com o teor do seu nº 2, por causa da revogação do art. 40 do DL nº 15/93 (excepto quanto ao cultivo), passou a colocar-se a questão de saber como qualificar a conduta do agente “que é encontrado com uma quantidade de droga superior à necessária para o consumo médio individual durante dez dias, demonstrando-se, todavia, que o agente não tem qualquer intenção de traficar” (14).
Particularmente, quanto à definição da “quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias” (cf. nº 2 do art. 2 da Lei nº 30/2000, norma que pune o consumo como contra-ordenação), coloca-se a questão de saber se o tribunal pode socorrer-se dos valores indicativos constantes do mapa anexo à Portaria nº 94/96, visto que a mesma, como consta do respectivo preâmbulo, apenas se reporta aos arts. 26 nº 3 e 40 nº 2 do DL nº 15/93 de 22/1.
Recorde-se que, os factos aqui em apreciação reportam-se a 15/9/2004, portanto, ocorreram em plena vigência da Lei nº 30/2000.
Como dizíamos, tem-se discutido se as considerações feitas no citado Ac. do TC nº 534/98 (15), relativas ao recurso aos valores indicativos da “dose média individual diária” constantes do mapa anexo à Portaria nº 94/96 para integrar o conceito de “consumo médio individual” durante determinados dias (usados nos arts. 26º nº 3 e 40º - este último no que respeita ao cultivo - ambos do DL nº 15/93) poderão também aqui ser aplicadas, tendo em vista o disposto no art. 2 nº 2 da Lei nº 30/2000.
Propendemos para responder afirmativamente sob pena de se poder considerado violado o dito princípio da legalidade, consagrado no nº 1 do art. 29 da CRP, em princípio também aplicável ao direito de mera ordenação social (art. 3 do regime do ilícito de mera ordenação social: cf. DL nº 433/82 de 27/10 e respectivas alterações).
Assim sendo, os ditos valores indicativos (estatísticos) contidos no mapa anexo à Portaria nº 94/96,” tendo meramente um valor de meio de prova, a apreciar nos termos da prova pericial”, não são de aplicação automática, podendo ser impugnados e afastados pelo tribunal, “embora acompanhados da devida fundamentação”.
Porém, para que tais valores possam ser considerados é necessário que dos autos conste o exame laboratorial a que se refere o artigo 10 nº 1 da mesma Portaria.
É que tanto o exame laboratorial a que se refere o art. 10 nº 1 da Portaria nº 94/96, bem como o mapa anexo a essa Portaria, referem-se à percentagem do princípio activo e, na sua maior parte (como sucede no caso destes autos, embora aqui sem relevância face à natureza e quantidade das substâncias analisadas, ressalvado o pedaço de canabis apreendido em poder do arguido), os exames aos produtos apreendidos, efectuados pelo LPC, não o quantificam (isto é, não indicam a percentagem do princípio activo), antes indicando o peso líquido do produto que contém o estupefaciente examinado, sem identificarem os respectivos componentes (o que leva a desconhecer-se o grau de pureza da substância estupefaciente identificada no produto examinado, no caso concreto, apenas relativamente ao pedaço de canabis apreendido em poder do arguido).
Como diz João Conde Correia (16) (sabido que os produtos aprendidos têm produtos de corte, não sendo puros), nesses casos (em que não é observado o disposto no art. 10 nº 1 da dita Portaria nº 94/96), “os valores constantes da portaria continuam sem aplicação, porque os exames do LPC limitam-se a identificar o princípio activo e a pesar o produto sem o depurarem (…). Não há quantificação do princípio activo.”
O mesmo Autor (17) esclarece: “Uma coisa é o teor estupefaciente da substância composta analisada, outra o peso global desse composto. A pesagem do produto apreendido não interessa para nada, excepto se estiver no estado puro”.
Portanto, se em exame do LPC não tiver sido quantificada a percentagem do princípio activo, nem tão pouco identificados os componentes das substâncias presentes nos produtos submetidos ao dito exame laboratorial, não faz sentido fazer uso dos valores indicativos constantes do mapa anexo à Portaria nº 94/96 porque esse exame não foi efectuado nos termos do artigo 10 da mesma portaria.
E, percebe-se que assim seja uma vez que os valores referidos no dito mapa anexo indicam a quantificação do princípio activo da substância em questão.
Mas, ainda que o LPC efectue o exame a que se refere o art. 10 nº 1 da Portaria nº 94/96 e o resultado vier a ser superior ao indicado no respectivo mapa anexo, nem por isso o tribunal fica vinculado aos valores indicados nesse mesmo mapa: é que tais dados sempre podem ser contestados e impugnados, por se tratarem de valores indicativos (estatísticos) e, nessa medida, produzida prova nesse sentido, podem ser afastados pelo tribunal, embora, claro, acompanhados da devida fundamentação.
Por isso, para o tribunal se socorrer dos valores indicados na tabela anexa à dita Portaria nº 94/96, terá que constar do processo o exame do LPC a que essa portaria se refere (artigo 10), sendo certo que, ainda assim, tais valores podem ser impugnados nos moldes supra indicados.
De qualquer modo, no caso dos autos nem era necessário realizar esse exame previsto na Portaria nº 94/96, atenta a quantidade da maior parte (plantas, sementes e folhas de canabis) das substâncias apreendidas, que o arguido possuía e destinava ao seu consumo.
Tudo isto para esclarecer que o apelo aos valores indicados no mapa anexo à dita Portaria nº 94/96 não pode ser feito de forma automática, definitiva, como o faz o recorrente e, também, o próprio tribunal de 1ª instância.
1.3.1. Relativamente à actuação do arguido quanto ao cultivo de plantas cannabis destinadas ao seu consumo, além das considerações de direito que fez, sustentou o tribunal recorrido o seguinte:
“Vem o arguido acusado da prática de um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido no art. 25.º, al. a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01 rectificado por declaração inserta no suplemento do DR n.º 43, série I-A, de 20 de Fevereiro de 1993.
(…)
Resulta da matéria dada como provada que o arguido cultivava num terreno existente próximo da sua residência, dois pés de uma planta de «cannabis» e que, no pátio da sua residência, tinha dois vasos localizados em cima de uma mesa, contendo em cada um, três pés de uma planta de «cannabis».
Ora, dispõe o art. 40.º, n.º 1, do Dec. -Lei n.º 15/93, de 22/01, que «quem consumir ou, para seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou pena de multa até 30 dias», sendo que, por força do n.º 2 do citado preceito legal, «se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias, a pena aplicável é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias».
Em primeiro lugar, cumpre salientar que, não obstante, por força do art. 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29/11, ter sido revogado o art. 40.º do Dec. -Lei n.º 15/93, a verdade é que essa revogação não abrangeu o cultivo, pelo que essas situações continuam a ser subsumíveis ao art. 40.º.
Com efeito, o referido art. 28.º prevê que «são revogados o artigo 40.º, excepto quanto ao cultivo, e o artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, bem como as demais disposições que se mostrem incompatíveis com o presente regime».
Assim sendo, a conduta do arguido de cultivar cannabis no terreno existente junto à sua residência e nos vasos existentes no pátio da sua casa, continuam a ser abrangidos por esta previsão legal.
Por outro lado, há que salientar que as plantas de «cannabis» integram-se na tabela IC anexa ao Dec.-Lei n.º 15/93.
Por último, há que ter em conta que essas plantas cultivadas tinham o peso líquido global de 7,500 gramas.
Ora, de acordo com tabela anexa à portaria 93/96, de 26/03, o limite quantitativo máximo para cada dose individual diária para sumidades de cannabis é de 2,5, pelo que o consumo médio individual para 3 dias é de 7,5 grs.
Assim sendo, concluímos que a quantidade de plantas cultivada pelo arguido era equivalente à necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias, pelo que a sua conduta integra a prática do n.º 1 do art. 40.º do Dec.-Lei n.º 15/93 e não no art. 25.º do mesmo diploma.”
Ou seja, entendeu o tribunal a quo que as plantas de cannabis cultivadas pelo arguido, destinadas ao seu consumo, tinham o peso líquido global de 7,500 gramas, concluindo integrar tal conduta o crime p. e p. no art. 40 nº 1 do cit. DL nº 15/93, por a sua quantidade não exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias.
Porém, tal raciocínio não é correcto (18) desde logo porque o Tribunal não teve em atenção o peso das plantas cultivadas pelo arguido no terreno existente próximo da sua residência.
Com efeito, provou-se que a quantidade global das plantas cultivadas era o correspondente à soma de 1683,400 gramas (correspondente ao peso líquido total dos dois pés da planta cannabis cultivadas no terreno existente próximo da sua residência) com 2,025 gramas (peso líquido total das seis pés da planta cannabis cultivadas nos dois vasos localizados em cima de uma mesa no pátio da residência que o arguido possuía) ou seja, o total de 1685,425 gramas.
Ora, como resulta das mais elementares regras da experiência comum, o peso total de 1685,425 gramas de planta cannabis cultivada para consumo próprio, excede claramente a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias e, mesmo para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, para quem fizer apelo à unidade do sistema e à derrogação parcial do citado art. 40 do DL nº 15/93, por força da entrada em vigor da Lei nº 30/2000.
Assim, essa conduta do arguido apenas pode integrar a prática em autoria material de um crime de consumo p. e p. no art. 40 nº 2 do DL nº 15/93 de 22/1, por referência à tabela I-C anexa ao mesmo diploma legal, crime este que, quanto ao cultivo, continua em vigor.
E, nesta matéria, não assiste qualquer razão ao recorrente porque mesmo que não existisse a Lei nº 30/2000, outra não podia ser a solução jurídica nessa parte da decisão (ressalvado, claro, que o crime é o previsto no nº 2 e não no nº 1 do citado art. 40).
É que resulta dos factos dados como provados que as plantas, sementes e o pedaço de haxixe referidos, que o arguido possuía se destinavam ao seu consumo, tendo o mesmo agido com o propósito de destinar o estupefaciente que lhe foi apreendido ao seu consumo (ver pontos a) a c) dos factos dados como provados e conferir pontos a) a c) dos factos dados como não provados).
E, por outro lado, não se provou, consoante o alegado na peça acusatória que:
a) O arguido era referenciado (19) pelas entidades policiais, à data da sua detenção e anteriormente a esta, como indivíduo ligado à venda de produtos de natureza estupefaciente.
b) O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o intuito de, através do cultivo e venda de estupefacientes (haxixe), lograr obter dinheiro que gastava em proveito próprio, bem sabendo que a venda de haxixe, é proibida e punida por lei. (20)
c) As 64 saquetas de plástico apreendidas ao arguido eram por este utilizadas para o acondicionamento do produto estupefaciente.”
Aliás, conjugando o que consta dos factos dados como provados com o teor dos factos dados como não provados, é evidente que a matéria em apreciação nesta parte relativa ao cultivo de cannabis para consumo nunca integraria o crime de tráfico de estupefacientes (nem o do art. 21, nem o do art. 25 do cit. DL nº 15/93), como pretende o recorrente.
Assim, nesta matéria, improcede a argumentação do recorrente.
De notar que, não obstante o diferente enquadramento jurídico-penal feito por esta Relação (a conduta acima descrita, quanto ao cultivo de cannabis para consumo, integra a prática de um crime p. e p. no art. 40 nº 2 do DL nº 15/93, cuja moldura abstracta é mais grave do que a apontada pelo tribunal a quo, que a integrou no nº 1 do mesmo artigo 40), uma vez que o recorrente não coloca tal questão em sede de recurso, não podemos modificar (agravar) a pena que foi imposta ao arguido.
1.3.4. Atenta a factualidade apurada, importa agora apreciar a restante conduta do arguido, isto é, a relativa à detenção dos demais produtos da mesma substância (canabis) igualmente destinados ao seu consumo.
Quanto à restante matéria de facto apurado que o tribunal a quo considerou integrar a prática pelo arguido de uma contra-ordenação p. e p. no art. 2 nº 1 e 2 da Lei nº 30/2000 de 29/11 (razão pela qual ordenou a remessa, após trânsito, de certidão da sentença à Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência (21)), respeita a mesma à posse pelo arguido de sementes de canabis com o peso total líquido de 71,60g., folhas secas de canabis com o peso líquido de 8,290g. e pedaço de canabis com o peso líquido de 4,020g.
Também, nesta parte se deu como provado que tais substâncias que o arguido possuía se destinavam ao seu consumo, tendo o mesmo agido com o propósito de destinar o estupefaciente que lhe foi apreendido ao seu consumo (ver pontos a a c) dos factos dados como provados e conferir pontos a) a c) dos factos dados como não provados).
O tribunal a quo, quando procedeu ao enquadramento jurídico-penal destes factos apurados, além de fazer uma exposição jurídica sobre as quatro soluções jurisprudenciais existentes nesta matéria, explicou as razões pelas quais entendeu que, não obstante os estupefacientes em questão (“várias sementes de «cannabis», com o peso total líquido de 71,600 gramas, 16 folhas secas de «cannabis», acondicionadas interior de uma revista, com o peso líquido de 8,290 gramas e um pedaço de «cannabis», transportado no bolso das calças, com o peso líquido de 4,020 gramas”), serem em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias(22), tal conduta do arguido integrava uma contra-ordenação p. e p. no art. 2 nº 1 e 2 da cit. Lei nº 30/2000.
Por isso, concluiu que “provado que o cannabis apreendido se destinava a consumo do arguido outra solução não resta ao tribunal senão a sua absolvição do crime de tráfico de menor gravidade que lhe vem imputado, devendo, após trânsito, ser remetida certidão da presente sentença à comissão para a Dissuasão da Toxicodependência por ser esta a entidade que tem competência para o processamento das contra-ordenações, de acordo com o disposto no art. 5.º, n.º 1, da citada Lei 30/2000.”
Nesta particular situação, podemos desde já adiantar que, face ao factualismo apurado, quanto ao enquadramento jurídico-penal efectuado, estamos de acordo com o tribunal da 1ª instância.
No caso dos autos, não se tendo apurado a quantidade de “haxixe” que o arguido consumia diariamente, há que fazer apelo às regras da experiência comum, tendo em atenção, v.g. as circunstâncias do caso concreto, os valores indicativos estatísticos existentes (mas sem qualquer carácter automático) e a natureza e quantidade do estupefaciente em questão (canabis).
E, tem vindo a ser comummente aceite, dentro das balizas e critérios seguidos pela jurisprudência, que o consumo médio individual diário do consumidor de canabis é de 2,5 gramas.
Assim, fazendo apelo aos critérios supra indicados, podemos concluir, sem margem para dúvidas, que as quantidades de canabis em questão (sementes de canabis com o peso total líquido de 71,60g., folhas secas de canabis com o peso líquido de 8,290g. e o pedaço de canabis com o peso líquido de 4,020g., tudo ascendendo a 83,910g.), que o arguido possuía e destinava ao seu consumo (tendo agido com esse propósito), excedem a quantidade necessária para o seu consumo médio individual durante 10 dias.
A apreciação do presente recurso, tal como foi colocada pelo recorrente, impõe que se tome posição quanto à questão de saber como qualificar a conduta daquele que detém, para consumo, uma quantidade de estupefaciente superior à necessária para o consumo médio individual durante 10 dias (isto face à aparente ou real “lacuna” resultante da revogação do art. 40 do DL nº 15/93 pela citada Lei nº 30/2000 em contraponto com o disposto no art. 2 nº 2 desta última lei).
Resumindo as quatro posições para a resolução da referida questão, escreve João Conde Correia (23):
“A primeira (24) diz que esses factos pura e simplesmente não são punidos. A quantidade ultrapassa o limite formal previsto no art. 2 nº 2 da Lei nº 30/2000 de 29 de Novembro e o art. 40 do DL nº 15/93 de 22 de Janeiro foi revogado (art. 28 da Lei nº 30/2000), pelo que não há nenhuma norma vigente que preveja e puna aquela conduta. (…)
A segunda (25) diz que o agente que detiver mais do que o necessário para o consumo durante 10 dias, deve ser punido como autor de um crime de tráfico em qualquer das suas formas. (…) Aquela quantidade seria então a fronteira entre um crime de tráfico e a contra-ordenação. O ac. do Tribunal Constitucional de 12 de Junho de 2003, DR II Série de 23 de Janeiro de 2004 (…) defende que este entendimento não seria inconstitucional.
A terceira (26) diz que a norma revogatória (art. 28 da Lei nº 30/2000) deve ser interpretada restritivamente, não abrangendo a aquisição ou detenção para consumo de uma quantidade superior à necessária para 10 dias. Nessa parte o art. 40 do DL nº 15/93 de 22/1 continuaria em vigor. (…) A quantidade necessária para o consumo durante 10 dias seria, portanto, a fronteira entre o consumo contra-ordenação e o consumo crime.
A quarta tese (27) (…) diz que os factos, apesar da ultrapassagem daquele limite (ainda assim é necessário conhecê-lo) continuam a ser punidos como contra-ordenação. (…)”.
Assim:
Discordamos da indicada 1ª posição uma vez que, como já se referiu, a opção do legislador foi a da despenalização, tendo havido uma degradação (ou desagravação) do crime de consumo (revogado art. 40 do DL nº 15/93, excepto quanto ao cultivo) para a contra-ordenação prevista no art. 2 da Lei nº 30/2000.
Como diz Faria Costa (28), «o legislador pretendeu continuar a sancionar, ainda que não com uma pena, o consumo de quantidades inferiores, não pretendeu certamente liberalizar estas situações exteriores ao regime contra-ordenacional. (…) O legislador despenalizou, portanto, todo o consumo. Mas não liberalizou, certamente o consumo de quantidades superiores de droga.”
Também acompanhando João Conde Correia (29), diremos que a solução apontada pela referida 1ª posição “é inaceitável, porque pune (com a contra-ordenação) quem detém o suficiente para o consumo individual durante 10 dias e deixa impune quem detém o necessário para o consumo durante 11 ou mais dias”.
E, ainda, seguindo Eduardo Maia Costa (30), diríamos que essa primeira posição era “(…) completamente ilógica, por punir o menos, despenalizando o mais grave, contrariaria evidentemente todos os propósitos de política criminal enunciados pelo legislador com a consagração do novo regime legal (…)”.
Também nos demarcamos da indicada 2ª posição uma vez que, «o que o legislador teve em mente foi que a detenção de quantidades maiores de droga indicia que esta pode destinar-se ao tráfico» (31) mas, tudo depende da recolha, durante o inquérito “de indícios suficientes para fundar a acusação por tráfico”; se esses indícios suficientes não forem recolhidos, “então o processo deve ser apreciado por quem deve conhecer as situações de consumo: as Comissões de Dissuasão da Toxicodependência” (32).
Não faria sentido, como diz Inês Bonina (33), «entender que condutas que, anteriormente, se enquadravam no crime de consumo de estupefacientes passaram a constituir um crime de tráfico de menor gravidade, [seria] subverter o sistema e as opções tomadas. É que tal significará punir mais severamente (e penalmente) os consumidores com a lei nova, que assume a toxicodependência como uma doença (…)».
Por isso, compreendemos Rui Pereira (34) quando afirma: “O logro que conduz à aplicação, no caso descrito, do art. 25 do DL nº 15/93 resulta do entendimento (implícito) de que as fronteiras da tipicidade do crime de tráfico são fixadas pelo art. 2 nº 2 da Lei nº 30/2000. Na verdade, a norma apenas traça a fronteira do ilícito de mera ordenação social, não podendo valer como elemento do tipo de crime de tráfico, contra o que resulta do próprio artigo 25 do DL nº 15/93. (…) De facto, a equiparação do tráfico à posse de determinadas quantidades de droga para consumo também não é aceitável constitucionalmente nesta última perspectiva”.
E, com efeito, não cabe no tipo do art. 25 do DL nº 15/93 a detenção de estupefacientes para consumo próprio exclusivo (35).
De resto, tal entendimento é hoje reforçado com a regulamentação existente, nesta área, a nível comunitário: cf., por exemplo, a Decisão-Quadro 2004/757/JAI do Conselho de 25/10/2004 (36), que adopta regras mínimas quanto aos elementos constitutivos das infracções penais e às sanções aplicáveis no domínio do tráfico ilícito de droga.
Por sua vez, a indicada terceira posição é de rejeitar por violar claramente o princípio da legalidade (art. 29 nº 1 da CRP e art. 1 nº 1 do CP revisto), quando pretende represtinar, através de uma interpretação “correctiva” do art. 28 da Lei nº 30/2000, o art. 40 do DL nº 15/93 (que por aquela lei foi expressamente revogado, “excepto quanto ao cultivo”).
A Lei nº 30/2000 não permite essa interpretação e solução (já que é bem clara ao revogar expressamente o art. 40 do DL nº 15/93, ressalvando o cultivo para consumo pessoal), podendo até dizer-se, com João Conde Correia (37), “que nos termos do art. 1 nº 3 do Código Penal «não é permitido o recurso à analogia para qualificar um facto como crime» e que esta interpretação restritiva da norma revogatória não é mais do que um expediente habilidoso para integrar uma lacuna».
O legislador até agora (passados que já foram 6 anos sobre a publicação da Lei nº 30/2000) não se preocupou em alterar tal diploma legal (mesmo considerando as diferentes interpretações seguidas pela jurisprudência, cujas soluções acarretam um tratamento desigual para infractores em situações idênticas), não obstante a ambiguidade da redacção do artigo 2º da citada Lei nº 30/2000.
Todavia, continua a ser clara a vontade do legislador (que já era subjacente à Lei nº 30/2000) no sentido de tratar a toxicodependência como uma “doença”, de acordo com os objectivos da política criminal nesta área.
O consumidor de estupefacientes deixou de ser encarado como um “criminoso” para passar a ser considerado como um “doente”.
Este tratamento do toxicodependente como um doente, por aplicação do princípio humanista, foi salientado na discussão conjunta, na generalidade, dos projectos de lei nº 113/VIII, 119/VIII, 120/VIII e 210/VIII, em Reunião Plenária de 21/6/2000 da Assembleia da República (38), como uma “viragem histórica” e como a forma mais eficaz de alcançar a recuperação e a ressocialização dos toxicodependentes, evitando “o estigma social provocado pelo contacto com o sistema judicial” (v.g. p. 46 a 49), para além de vir ao encontro do princípio da intervenção mínima do direito penal.
O que, aliás, estava de acordo com a proposta constante do relatório final da Comissão para a Estratégia Nacional de Combate à Droga (que veio a ser aprovada pelo governo na Resolução do Conselho de Ministros nº 46/99, DR 1ª Série de 26/5/99), a qual (entre outros especialistas), teve em conta o parecer jurídico de Faria Costa quando indica que “a única alternativa à criminalização da detenção para consumo que pode ser considerada compatível com as convenções internacionais é, justamente, a sua proibição por meio do ilícito de mera ordenação social” (39).
“A estratégia nacional de luta contra a droga [optou] pela descriminação [no sentido de despenalização] do consumo de drogas e pela sua proibição como ilícito de mera ordenação social, com a consequente alteração do artigo 40º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro. Essa opção respeita não apenas ao consumo propriamente dito mas também à detenção (posse) e aquisição para esse consumo. Já o cultivo para consumo, porque se alia perigosamente ao tráfico, justifica a manutenção de uma sanção de tipo criminal.” (40)
Por isso aquela Comissão concluiu “pela desproporção que representa a tipificação como ilícito criminal do simples consumo de drogas, bem como da detenção e aquisição de drogas para o consumo”, acrescentando que “a opção pelo ilícito de mera ordenação social potencia, pela sua própria natureza, uma mais profunda utilização de certas manifestações do princípio da oportunidade, permitindo introduzir um sistema sancionatório mais flexível com vista a um melhor tratamento processual do caso concreto”.(41)
Este anúncio governativo, também considerado na discussão na Assembleia da República dos projectos de lei sobre esta matéria, permite reconstituir a “mens legislatoris”, tendo sobretudo em conta, como determina o nº 1 do artigo 9 do CC, “a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”.
Assim, abandonada a via do recurso a sanções penais (desde logo face à referida despenalização), a necessária intervenção na luta contra o consumo de estupefacientes passou a ser alcançada através de programas de prevenção e de tratamento.
O Estado assumiu a incumbência de proporcionar tais meios com vista ao tratamento e cessação do consumo de estupefacientes, o que se enquadra no âmbito da protecção da saúde pública (42).
No mesmo sentido vai a política comunitária nesta área: a título exemplificativo ver, na altura, a Acção Comum 96/750/JAI de 17/12/1996 (43) e a Decisão nº 102/97/CE(44) e, recentemente, a Estratégia da União Europeia de Luta contra a Droga 2005-2012, o Plano de Acção adoptado pela Comissão das Comunidades Europeias em matéria de luta contra a Droga para o período de 2005-2008 (45) e a proposta alterada da Decisão do Parlamento Europeu e do Conselho que estabelece o programa específico para o período de 2007 a 2013 “Informação e prevenção em matéria de droga”, no âmbito do programa geral «Direitos fundamentais e justiça», apresentada pela Comissão, Bruxelas, 24/5/2006, COM (2006) 230 final(46).
Chegados aqui, é fácil adivinhar que, acompanhamos a indicada quarta posição que consiste em qualificar como contra-ordenação a conduta daquele que detém, para consumo exclusivo, uma quantidade de estupefaciente superior à necessária para o consumo médio individual durante 10 dias.
Com efeito, para além de entendermos que se deve distinguir, em cada conduta, o propósito do agente (consoante o mesmo actue com “dolo de consumo” ou com “dolo de tráfico”), temos ainda presente a intenção do legislador que, com a Lei nº 30/2000 “despenalizou todo o consumo mas não o liberalizou”, apenas tendo operado a dita “degradação do ilícito” (47) (de crime para contra-ordenação).
Também nós não encontramos qualquer “razão que tivesse levado o legislador a querer continuar a punir como crime, em função de um critério puramente quantitativo, uma conduta que, com fundamentos vários, decidiu despenalizar” (48).
Por outro lado, entendemos que o elemento contido no art. 2 nº 2 da Lei nº 30/2003 no sentido de que “a aquisição e a detenção de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV anexas ao DL nº 15/93, não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”, não se traduz «num valor-limite» mas, tão só, «indicia que esta pode destinar-se ao tráfico» (49), o que pode ser ilidido pelas provas que vierem a ser recolhidas no processo, consoante a respectiva fase em que o mesmo se encontre.
Esta interpretação teleológica tem em atenção a própria ratio essendi da norma em questão, atendendo ao seu efeito útil, no âmbito da estratégia de “luta contra a droga”, o que exige uma compreensão racional do argumento histórico e mesmo do literal.
E, apelando ao artigo 9 do CC, esta interpretação encontra ainda correspondência na letra da lei, atendendo às circunstâncias em que a mesma foi elaborada, ao contexto em que deverá ser aplicada, estando de acordo com o princípio da legalidade, com “o fim almejado pela norma”, considerando o espírito do legislador e a unidade do sistema jurídico, mostrando-se, assim, “funcionalmente justificada”.
Acrescente-se, citando mais uma vez Faria Costa (50), que «continuamos a poder deparar-nos com situações de tráfico apesar de o agente ser encontrado com menos droga do que as 10 doses diárias (as associações criminosas recorrem, de resto, cada vez mais, a distribuidores finais que nunca têm consigo mais do que aquela quantidade, fazendo várias curtas “viagens de abastecimento”), e com situações de mero consumo em que o agente tem consigo mais do que as 10 doses.”
Rui Pereira (51), não obstante entender que o art. 2 nº 2 da Lei nº 30/2000 «está redigido de forma ambígua», conclui que esta quarta posição, faltando essa cominação penal, ao proceder «a um alargamento contra legem do ilícito corresponde ainda a uma violação do princípio da legalidade (“menos grave”, é certo, do que no âmbito penal, uma vez que tal princípio não está explicitado, em matéria de direito de mera ordenação social, na Constituição, mas apenas no artigo 2 do DL nº 433/82, de 27 de Outubro – e ainda assim sem aparecer associado à expressa proibição da analogia, que constitui seu corolário)».
Cremos, porém, que não lhe assiste razão pelos motivos já acima indicados.
Acrescentaríamos, como diz Lourenço Martins (52), que «o consumo, a aquisição e detenção para consumo de quantidade superior à necessária para 10 doses médias individuais, é punível como contra-ordenação, graduada também em função de tal quantidade. Contra-ordenação nunca poderia deixar de ser, nesta perspectiva, já que o indivíduo sempre detinha (pelo menos) 10 doses médias individuais.»
De resto, face ao teor do art. 2 nº 1 da citada Lei nº 30/2000 apenas se pode concluir que a especificação contida no nº 2 do mesmo dispositivo legal, que o complementa, tem apenas uma função orientadora, no sentido de ser necessário, nesses casos, averiguar, em sede própria, se é caso de tráfico ou de consumo de estupefacientes.
O que não faz sentido - como desde logo resulta da ratio legis (v.g. arts. 2 nº1 e 28 da Lei nº 30/2000) - é tratar o toxicodependente, ora como criminoso, ora como doente, consoante o nº de doses médias individuais de estupefacientes que detenha, para consumo.
Esse critério não serve para qualificar a conduta em questão como de natureza criminosa ou de natureza contra-ordenacional.
Tanto mais que a opção do legislador – recurso ao direito penal ou recurso ao direito de mera ordenação social - foi feita anteriormente, sendo imanente à própria elaboração da Lei nº 30/2000, tendo sido assegurada a unidade do sistema jurídico com a revogação do art. 40 do DL nº 15/93, com excepção do cultivo.
E, a opção estratégica prévia que foi feita, recurso ao direito de mera ordenação social é, neste caso concreto (em que está em causa a toxicodependência), incompatível e inconciliável com o recurso ao direito penal (manutenção do art. 40 do DL nº 15/93 – ressalvado o cultivo – contra a vontade expressa do legislador consignada no artigo 28 da Lei nº 30/2000), porque subjacente ao pensamento do legislador sempre esteve a ideia do tratamento do toxicodependente (doente e não criminoso), da sua integração e reinserção social.
Portanto, no caso dos autos, a mencionada actuação do arguido (quanto à detenção das sementes, folhas e pedaço de canabis destinadas ao seu consumo, não obstante exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias) integra apenas a prática da contra-ordenação prevista no citado art. 2 da Lei nº 30/2000.
Assim, improcede a argumentação do recorrente.
*
III- DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo-se a sentença recorrida.
*
Sem custas por delas estar isento o MºPº.
*
(Processado em computador e revisto pela 1ª signatária – art. 94 nº 2 do CPP)
*

Porto, 31 de Janeiro de 2007
Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva Dias (relatora por vencimento)
António Augusto de Carvalho
Maria Leonor de Campos Vasconcelos Esteves (vencida conforme declaração de voto que junto)
José Manuel Baião Papão (Presidente da 1ª Secção Criminal do TRP) (vencido conforme declaração de voto que junto)
_________
(1) De acordo, aliás, com jurisprudência fixada pelo STJ no acórdão nº 7/95, publicado no DR I-A de 28/12/1995, com a qual se concorda.
(2) Como sabido, o crime de tráfico de estupefacientes, em qualquer das suas modalidades, é um crime exaurido ou crime executido (também chamado delito de empreendimento no direito alemão) visto que fica perfeito com a comissão de um só acto gerador do resultado típico, admitindo uma aplicação unitária e unificadora da sua previsão aos diferentes actos múltiplos da mesma natureza praticados pelo agente, em virtude de tal previsão respeitar a um conceito genérico e abstracto. Relativamente a estes crimes, os diversos actos constitutivos de infracções independentes e potencialmente autónomas podem, em diversas circunstâncias, ser tratadas como se constituíssem um só crime, por forma a que aqueles actos individuais fiquem consumidos e absorvidos por uma só realidade criminal. Cada actuação do agente traduz-se na comissão do tipo criminal, mas o conjunto das múltiplas actuações do mesmo agente reconduz-se à comissão do mesmo tipo de crime e é tratada unificadamente pela lei e pela jurisprudência como correspondente a um só crime.
(3) Tipo legal fundamental (ou tipo matricial) previsto no citado DL nº 15/93, é, entre outros, no que aqui importa analisar, o crime de tráfico de estupefacientes previsto no art. 21. E é a partir desse tipo fundamental que a lei, por um lado, edifica as circunstâncias agravantes (qualificando o tipo, nos casos indicados no artigo 24) e, por outro lado, «privilegia» o tipo fundamental, quando concebe «o preceito do art. 25 como um mecanismo que funciona como “válvula de segurança” do sistema», com o fim de acautelar que «situações efectivas de menor gravidade não sejam tratadas com penas desproporcionadas ou que, ao invés, se force ou use indevidamente uma atenuante especial». No que respeita ao artigo 25 do cit. DL, prevê-se uma ilicitude do facto consideravelmente diminuída, «por referência à ilicitude pressuposta no art. 21, exemplificando aquela norma circunstâncias factuais com susceptibilidade de influírem no preenchimento valorativo da cláusula geral aí formulada. Esse artigo 25, tem na sua base o reconhecimento de que a intensidade das circunstâncias pertinentes à ilicitude do facto não encontra na moldura penal normal do art. 21 nº 1, pela sua gravidade diminuta, acolhimento justo, equitativo, proporcional» (Assim, entre outros, Ac. STJ de 12/7/2000, BMJ nº 499/117 ss. e Ac. STJ de 23/3/2006, CJ Ac. do STJ 2006, I, 219 e 220).
(4) Também o STJ tem entendido que, «a conduta prevista no artigo 26 citado, embora envolvendo tráfico, refere-se, antes de tudo, à personalidade do agente e às suas motivações, o que justifica a epígrafe dirigida exactamente ao agente (traficante-consumidor) e não ao tráfico» (Ver parecer de Simas Santos, no proc. nº 167/98 da 4ª Vara Criminal do Porto, onde cita acórdãos de 7/12/95, proc. nº 48295 e de 19/3/98, proc. nº 1403/98). Defende Simas Santos, que «o nº 3 do cit. Artigo 26, não vem definir positivamente o tipo em função da quantidade da substância em causa, mas estabelecer um limite para o tratamento dado, no caso, ao agente. Pretende o legislador, que o aprovisionamento de estupefacientes por parte do traficante-consumidor não ultrapasse uma determinada quantidade: a necessária para o consumo individual durante o período de 5 dias, obviamente no mesmo momento estatisticamente considerado». Após a publicação da Lei nº 30/2000, Simas Santos (já na qualidade de Conselheiro), relatando o Ac. do STJ de 17/2/2005, proferido no processo nº 456/05 (consultado no mesmo site do ITIJ), defende que: “«Por coerência do sistema (n.º 2 do art. 7.º do CC), deve entender-se que o n.º 3 do art. 26.º do DL nº 15/93, passou a referir-se ao período de 10 dias, só a partir daí sendo configurável uma situação de tráfico normal, pelo que se verifica uma derrogação parcial do mencionado n.º 3 v. art. 41.º da Lei n.º 30/2000, de 29-11» - Ac. do STJ de 20.3.02, CJ Ac. do STJ 2002, 1, 243”.
(5) A. G. Lourenço Martins, “Droga – Nova política legislativa”, in RPCC ano 11, fasc. 3º, Julho-Setembro 2001, p. 447, defende que face à entrada em vigor da Lei nº 30/2000, o segmento contido no art. 40 do cit. DL nº 15/93 (quanto ao cultivo de plantas para consumo, que não foi revogado), relativo ao “consumo médio individual que não exceda o período de três dias” deve agora entender-se como referido ao “consumo médio individual que não exceda o período de dez dias”.
(6) Nesse aspecto, da aplicação, para efeitos do disposto no nº 3 do artigo 26 do DL nº 15/93 cit, dos valores constantes do mapa anexo à Portaria nº 94/96 de 26/3, por força do seu artigo 9, a jurisprudência do STJ estava dividida: a título exemplificativo vejam-se, por um lado, v.g. o Ac. do STJ de 06/02/1997, proferido no proc. nº 1457/96 (defendendo que, de acordo com a Portaria nº 94/96, de 26/3, o limite máximo para cada dose média individual diária, para a cocaína, é de 0,2 gr) aceitando a aplicação da dita Portaria e, em sentido contrário, por exp. o Ac. do STJ de 29/10/1998, proferido no proc. nº 1434/97 (defendendo que, quantidades como 5,795 gramas de heroína e 0,785 de cocaína - pesos líquidos - destinados à venda a terceiros, com a finalidade exclusiva de obter droga para o seu consumo pessoal, não excedem a "necessária para o consumo médio individual durante o período de cinco dias", conclusão que não é prejudicada pela interpretação dada pelo Tribunal Constitucional à norma constante da al. c), do n.º 1 do art. 71 do DL nº 15/93 (…), já que não incidindo o exame feito nos autos sobre os princípio activos, a remissão para os "valores indicativos da Portaria 94/96", não tem qualquer eficácia, por não ter sido efectuada tendo em conta os seus parâmetros), não aplicando a referida Portaria – acórdãos esses que, em seu tempo, foram consultados no endereço http://www.cidadevirtual.pt/stj.
(7) Ver acórdão do TC nº 534/98 na RMP, ano 19, Julho/Setembro 1998, nº 75, pp.173-178. No mesmo sentido ver ainda o Acórdão nº 559/01, consultado no site do Tribunal Constitucional (www.tribunalconstitucional.pt).
(8) Eduardo Maia Costa, na cit. RMP nº 75, p. 179. Defende o mesmo Autor que a solução encontrada na decisão do Tribunal Constitucional nº 534/98 estava igualmente ferida de inconstitucionalidade orgânica. Porém, nesse aspecto, o Tribunal Constitucional, no citado acórdão nº 559/01 voltou a afastar a invocada inconstitucionalidade orgânica.
(9) Aqui refere-se aos valores indicados em anexo à dita Portaria nº 94/96.
(10) Refere-se aos crimes previstos nos artigos 26 e 40 do cit. DL nº 15/93.
(11) João Conde Correia, “Droga: Exame laboratorial às substâncias apreendidas e Diagnóstico da Toxicodependência e das suas consequências”, in Revista do CEJ, 2004, nº 1, pp. 87 a 91, embora reportando-se ao art. 26 do DL nº 15/93, refere que “não existe identidade material entre o conceito de «quantidade» e o conceito de «dose média individual». O primeiro (quantidade) é um conceito indeterminado. O segundo (dose média individual diária), como vimos, convoca o chamado princípio activo das substâncias ou preparações e está tabelado em termos objectivo-quantitativo mitigados pela Portaria (…)”.
(12) Sobre sucessão de leis que degradam crimes em contra-ordenações, como sucedeu com a Lei nº 30/2000, ver Ac. do TC nº 464/2001, DR II de 28/11/2001.
(13) José Faria Costa, “Algumas breves notas sobre o regime jurídico do consumo e do tráfico de droga”, RLJ ano 134º, 1/1/2002, nº 3930, p. 275.
(14) Assim, Faria Costa, artigo citado, p. 277.
(15) Ver, também, mencionado Ac. do TC nº 559/01. Igualmente Rui Pereira, “A discriminação do consumo de droga”, in AAVV, Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, p. 1178, não vê qualquer obstáculo (aceitando os juízos feitos nos Ac. do TC nº 534/98 e nº 559/01) à “aplicação das regras científico-técnicas da portaria ao caso do nº 2 do art. 2 da Lei nº 30/2000”. João Conde Correia, “Droga: Exame laboratorial às substâncias apreendidas e Diagnóstico da Toxicodependência e das suas consequências”, pp. 87 a 91, sem prescindir da questão da “conformidade constitucional” e “da controvertida legalidade” da dita Portaria nº 94/96, salienta que “segundo o próprio preâmbulo daquela Portaria, os limites quantitativos fixados apenas se aplicam ao art. 26 e, hoje, ao que parece, também ao art. 2 nº 2 da Lei nº 30/2000 de 29/11”. Mais longe vai Patrícia Naré Agostinho, “Posse de estupefacientes em quantidade que exceda o necessário para o consumo médio individual durante dez dias”, in RMP ano 25, Jan/Mar, 2004, nº 97, p. 142, quando afirma que «não só pelo facto de o mapa [refere-se ao mapa anexo à dita Portaria nº 94/96 e aos termos do preâmbulo, em que os limites ali definidos “são somente aplicáveis ao art. 26 nº 3 e ao nº 2 do artigo 40”] se aplicar somente àqueles tipos de crime (sendo que, aliás, o artigo 40 se encontra revogado, excepto quanto ao cultivo), mas também porque em parte alguma da Lei nº 30/2000 se refere a aplicabilidade da referida Portaria, é que entendemos que os valores aí definidos não são aplicáveis à Lei nº 30/2000».
(16) João Conde Correia, “Aspectos jurídico-penais da lei da droga: as fontes, muita jurisprudência e alguma doutrina”, Lusíada, Revista de Ciência e Cultura, Série de Direito, nºs 1 e 2, 2002, p. 120.
(17) João Conde Correia, “Validade dos exames periciais normalmente efectuados pelo Laboratório de Polícia Científica – Constitucionalidade, legalidade e interpretação dos quantitativos fixados na Portaria nº 94/96, de 12/6, in Decisões de Tribunais de Primeira Instância, 1998-1999, p. 96.
(18) Nomeadamente quanto ao peso líquido dos pés de cannabis plantados nos dois vasos, conforme já adiantamos quando modificamos o ponto a) dos factos dados como provados.
(19) Nesta parte relativa a “referências” trata-se, como é claro, de matéria perfeitamente inócua, que não chega a constituir facto a provar, não se compreendendo como a mesma consta da acusação.
(20) Estranhamente na peça acusatória a referência à venda de estupefacientes é feita apenas em termos de dolo (quanto ao tipo subjectivo do crime em questão) e não é alegada em termos objectivos (quanto ao tipo objectivo) como se impunha.
(21) Remessa que, incluindo cópia do exame pericial, deverá ser feito com referência aos artigos 2 e 5 da Lei nº 30/2000 de 29/11.
(22) Quanto ao recurso dos valores indicados na Portaria nº 94/96 mantemos aqui o que já acima referimos, pelo que nada mais há a acrescentar.
(23) João Conde Correia, “Droga: Exame laboratorial às substâncias apreendidas e Diagnóstico da Toxicodependência e das suas consequências”, p. 83, nota 13. Ver, também, a abundante bibliografia aí indicada, para cada uma das referidas posições.
(24) Ver, por exp., Rui Pereira, “A discriminação do consumo de droga”, pp. 1159-1184, também indicado por João Conde Correia no último artigo citado. Sem por em causa a legitimidade da técnica utilizada pelo legislador para delimitar a contra-ordenação prevista no art. 2 nº 2 da Lei nº 30/2000 e não obstante “a forma ambígua” como está redigida, defende Rui Pereira (artigo citado, p. 1170), atentos os princípios subjacentes aos arts. 18º nº 2 e 2º da CRP que «deve aceitar-se a introdução de uma cláusula de “exigência mínima” que afaste a punibilidade (por exclusão da tipicidade), quando a defesa conseguir provar que está completamente fora de causa a possibilidade de transmissão da droga a terceiros”, concluindo pelo reconhecimento “de que há um vazio sancionatório”. No mesmo sentido, ver voto de vencido de Ângelo Morais, em Ac. do TRP de 8/11/2006, proferido no proc. nº 061439 (consultado no site ITIJ – Bases Jurídicas Documentais)
(25) Ver, por exp., Ac. do TRP de 22/10/2003, recurso nº 2387/03 (consultado no mesmo site do ITIJ) e Ac. do TRP de 7/12/2005, CJ 2005, 225 ss. (ambos relatados por António Gama), entendendo que “as situações de detenção para consumo, cuja quantidade exceda o consumo médio individual durante 10 dias, são puníveis como tráfico de menor gravidade”, posição que o TC no seu Ac. nº 295/2003, DR II de 23/1/2004, não considera inconstitucional. No mesmo sentido, Ac. do TRP de 22/11/2006, proferido no proc. nº 0614400 (relatado por Élia São Pedro), consultado no mesmo site do ITIJ. Contra esta posição, ver, por exp., o voto de vencido de Fernanda Palma, no dito Ac. do TC nº 295/2003, da mesma Autora, “Consumo e tráfico de estupefacientes e Constituição: absorção do “Direito Penal de Justiça” pelo Direito Penal Secundário?”, in RMP ano 24, Out/Dez 2003, nº 96, p. 21 ss., Eduardo Maia Costa, “Detenção de estupefacientes, finalidade da detenção, dever de investigação pelo tribunal, comentando Ac. STJ de 14/5/2003, no proc. nº 871/2003, RMP ano 24, Jul/Set 2003, nº 95, pp. 130 e 131, João Conde Correia, “Aspectos jurídico-penais da lei da droga: as fontes, muita jurisprudência e alguma doutrina”, p. 123 e 124, Rui Pereira, “A discriminação do consumo de droga”, pp. 1171-1174, e Faria Costa, artigo citado, p. 278.
(26) Ver, por exp., Ac. do TRL de 25/2/2003, CJ 2003, I, p. 141ss., Ac. do TRP de 11/2/2004, CJ 2004, I, 215 ss., Ac. do TRP de 16/11/2005, CJ 2005, V, 221 ss., ac. do TRC de 16/6/2004 e de 17/6/2004, CJ 2004, III, 49, 50 e 52 a 54, ac. do TRL de 4/4/2006, CJ 2006, I, 131 e 132 e Ac. do STJ de 25-06-2003, no Proc. n.º 4089/02 - 3.ª Secção: todos fazendo a dita interpretação restritiva do art. 28 da Lei nº 30/2000, punindo tal conduta como crime de consumo previsto no anterior art. 40 da Lei nº 15/93.
(27) Ver, por exp., Ac. do TRG de 10/3/2003, CJ 2003, II, 287 ss., Ac do TRG de 8/3/2004, CJ 2004, II, 290, Ac. do STJ de 28/9/2005, no proc. nº 1831/05 (relator: Henriques Gaspar), CJ Ac. do STJ 2005, III, p.170 ss., Acs. do TRP de 10/5/2006 proferido no proc. nº 0547038, relatado por Isabel Pais Martins, de 10/1/2007 proferido no proc. nº 0646649, relatado por Artur Oliveira (consultados no site do ITIJ – Bases Jurídicas Documentais) e, também de 10/1/2007, proferido no processo nº 4954/06-1, por nós relatado: todos no sentido de que após a entrada em vigor da Lei nº 30/2000, a detenção de estupefacientes para consumo próprio, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante 10 dias constitui a contra-ordenação prevista no art. 2 da citada Lei nº 30/2000.
(28) Faria Costa, ob. cit., pp. 277 e 278.
(29) João Conde Correia, “Aspectos jurídico-penais da lei da droga: as fontes, muita jurisprudência e alguma doutrina”, p. 123.
(30) Eduardo Maia Costa, “Breve nota sobre o novo regime punitivo do consumo de estupefacientes”, RMP ano 22, Jul/Set 2001, nº 87, p. 150 (também citado por João Conde Correia, no artigo mencionado na nota de rodapé nº 35).
(31) Faria Costa, ob. cit., p. 278.
(32) Faria Costa, ob. cit., p. 278. Acrescenta que “[deve] continuar a considerar-se que a qualificação de uma conduta como contra-ordenação de consumo ou como crime de tráfico tem de depender do propósito do agente de destinar ou não a droga ao seu próprio uso”. No mesmo sentido, Eduardo Maia Costa, RMP nº 95 citada, p. 131, quando escreve: “Permanece, é certo, o facto aparentemente inelutável de a lei impor um critério de 10 doses diárias como limite do consumo. Mas, (…) parece poder adoptar-se aqui uma interpretação que faça respeitar o espírito profundo da lei, remetendo esse dispositivo para uma função meramente indicativa ou orientadora para o aplicador na distinção entre o tráfico e o consumo. Ou seja, o tecto das 10 doses diárias terá uma função indiciária para distinguir traficantes de consumidores, sobretudo a nível da primeira abordagem por parte da entidade investigadora, mas não vinculando de forma alguma o julgador nem o Ministério Público.” Igualmente, Inês Bonina, “Descriminalização do consumo de estupefacientes – Detenção de quantidade superior a dez doses diárias”, in RMP ano 23, Jan/Mar 2002, nº 89, p. 187, entende “que o nº 2 do art. 2 da Lei nº 30/2000 deverá ser interpretado no sentido de que, ao se estabelecer uma plataforma de dez doses médias diárias para o consumo de estupefacientes, pretendeu-se fornecer um critério legal, meramente orientador, de distinção entre o consumo e o tráfico de estupefacientes”.
(33) Inês Bonina, ob. cit., p. 187.
(34) Rui Pereira, ob. cit., pp. 1172-1174. Discorda do Ac. do TC nº 295/03 e concorda com a declaração de voto de Fernanda Palma, “por entender que a interpretação do art. 25 do DL nº 15/93 que estava em crise é efectivamente inconstitucional por violar o princípio da legalidade penal – artigo 29 nºs 1 e 3 da Constituição – e também a exigência de proporcionalidade entre o crime e a pena, que resulta dos artigos 13 nº 1 e 18 nº 2 da Constituição”. Igualmente Fernanda Palma, RMP nº 96 citada, p. 36, referindo-se ao mesmo Ac. do TC nº 295/03, salienta que «[no] essencial, o Tribunal Constitucional admitiu que a mera posse para consumo de quantidade elevada de estupefacientes poderia, legitimamente, sem violação de qualquer princípio constitucional do Direito Penal, ser considerada crime de tráfico. A prova efectivamente realizada pelo tribunal a quo de que o agente não traficaria e de que não existiria qualquer dolo de tráfico foi considerada irrelevante pelo Tribunal Constitucional que (…) admitiria uma “presunção juris et de jure” de tráfico ou, mais do que isso, um crime pela detenção de estupefacientes em certa quantidade sem qualquer possibilidade de perigo efectivo para os bens protegidos pelo crime de tráfico. (…) Também a evidente desproporcionalidade do sancionamento como tráfico da mera detenção para consumo não sensibilizou o Tribunal Constitucional, o qual, no fundo, veio a admitir que consumidores toxicodependentes sejam punidos mais gravosamente do que os próprios traficantes consumidores (artigo 26º) pelo simples facto de deterem droga em quantidades elevadas para consumo». Ainda, como diz João Conde Correia, “Aspectos jurídico-penais da lei da droga: as fontes, muita jurisprudência e alguma doutrina”, p. 124, «a quantidade de droga não serve para delimitar a fronteira entre o consumidor e o traficante».
(35) Também neste sentido - embora depois optando por uma interpretação restritiva do art. 28 da Lei nº 30/2000 - Baião Papão, na declaração de voto junta no ac. do TRP de 22/11/2006, acima mencionado.
(36) Decisão-Quadro 2004/757/JAI do Conselho de 25/10/2004, publicada no JO L 335 de 11/11/2004, pp. 8 a 11, onde no seu art. 2 nº 2 exclui os actos “praticados exclusivamente para consumo dos seus autores, tal como definido na legislação nacional”.
(37) João Conde Correia, ob. ult. cit., p. 125. No mesmo sentido, Inês Bonina, ob. cit., p. 186, afirmando que “imputar a prática de um ilícito a alguém com base na interpretação restritiva de norma revogatória, parece-nos, no mínimo, atentatória da segurança jurídica, da justiça material e dos direitos de defesa do arguido”.
(38) Ver Diário da Assembleia da República (DAR) 1ª Série de 23/6/2000 (1ª sessão legislativa da oitava legislatura). Cf., ainda, sobre a mesma matéria, o DAR 1ª Série de 20/10/2000 (2ª sessão legislativa da oitava legislatura) relativa à Reunião Plenária de 19/10/2000.
(39) Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga, edição da Presidência do Conselho de Ministros, 1999, p. 64 ss. As mencionadas convenções internacionais a que Portugal se encontra vinculado são, entre outras, as das Nações Unidas (a Convenção Única de 1961 sobre Estupefacientes, modificada pelo Protocolo de 1972, a Convenção Sobre Estupefacientes de 1971 e a Convenção contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas de 1988).
(40) Ibidem, p. 74. Acrescenta-se, na mesma Resolução do Conselho de Ministro nº 46/99, que “a criminalização e a consequente mobilização do aparelho judicial devem estar, sobretudo, ao serviço do combate ao tráfico ilícito de drogas e ao branqueamento de capitais”.
(41) Ibidem, p. 76.
(42) Neste sentido, entre outros, a mencionada Resolução do Conselho de Ministros nº 46/99, o Plano Nacional Contra a Droga e as Toxicodependências - 2005-2012, o Plano de Acção contra a Droga e as Toxicodependências – Horizonte 2008, aprovados no Conselho de Ministros de 24 de Agosto de 2006, DR I Série de 18/9/2006 e Declaração de rectificação nº 79/2006, DR I Série de 17/11/2006, DL nº 183/2001 de 21/6 (Aprova o regime geral das políticas de prevenção e redução de riscos e minimização de danos provocados pela toxicodependência) e Portaria nº 1089/2006 de 11/10 (Regulamento do Programa de Intervenção Focalizada).
(43) Acção Comum 96/750/JAI de 17/12/1996, relativa à aproximação das legislações e das práticas nos Estados-Membros da União Europeia tendo em vista a luta contra a toxicodependência e a prevenção e o combate ao tráfico ilícito de droga, publicada no JO L 342 de 31/12/1996.
(44) Decisão nº 102/97/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de Dezembro de 1996, que adopta um programa de acção comunitária de prevenção da toxicodependência no âmbito da acção no domínio da saúde pública (1996-2000), JO L 19 de 22/1/1997, pp. 25 a 31.
(45) COM (2005) 45 de 14/12/2005.
(46) No âmbito da política comunitária ver, entre outros, a Recomendação do Conselho, de 18/6/2003 (relativa à prevenção e redução dos efeitos nocivos da toxicodependência para a saúde), publicada no JO L 165 de 3/7/2003, pp. 31 a 33 e a Recomendação do Parlamento Europeu sobre uma proposta de recomendação ao Conselho e ao Conselho Europeu sobre a Estratégia europeia em matéria de luta contra a droga (2005-2012) (2004/2221) (INI), publicada no JO C 226E de 15/9/2005, pp. 233 a 238.
(47) Acompanhamos a posição de Faria Costa, ob. cit., pp. 275 e 278.
(48) Faria Costa, ob. cit., p. 278. No mesmo sentido, Ac. do STJ de 28/9/2005 supra citado.
(49) Faria Costa, ob. cit., p. 278.
(50) Ibidem.
(51) Rui Pereira, ob. cit., pp. 1175 e 1176.
(52) A. G. Lourenço Martins, “Droga – Nova política legislativa”, p. 450 (nota 27), também citado por João Conde Correia, ob. ult. cit., p. 125.
*
Declaração de voto:

Como relatora designada neste recurso, elaborei projecto no sentido de conceder provimento ao recurso interposto pelo MºPº, revogando a decisão recorrida na parte respeitante à qualificação jurídica da matéria de facto provada, e decidindo julgar o arguido incurso na prática de um crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pela al. a) do art. 25º do DL nº 15/93 de 22/1, 72º e 73º nºs 1 als. a) e b) e 2 do C. Penal, pelo qual iria condenado na pena de 100 dias de prisão, substituídos por igual tempo de multa, à taxa diária de 8 €, o que perfaz 800 €, mantendo-se no mais a decisão recorrida, excepto no que respeita à extracção de certidão da mesma e à sua remessa à Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência competente, que face ao entendimento seguido, se deixava de justificar.
Os fundamentos dessa decisão centram-se essencialmente no facto de seguirmos o entendimento de que a detenção de droga para consumo próprio em quantidade que excede a necessária para o consumo médio individual no período de 10 dias cai na previsão do art. 21º ou do art. 25º do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro, entendimento esse perfilhado nomeadamente no Ac. RP de 22/11/06, proc. 0614400, em que intervim como adjunta.
Aqui se transcrevem as considerações que a propósito constam do projecto que elaborei:

Antes da entrada em vigor da Lei nº 30/2000 de 29/11 (diploma que veio definir o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica), o art. 40º contemplava todas as situações de detenção de estupefaciente para consumo pessoal, independentemente da quantidade detida, bastando a afectação da droga ao consumo para afastar a punição como tráfico.
O art. 28º da referida Lei, ao revogar aquele art. 40º, exceptuando apenas o cultivo, criou um aparente vazio legislativo no que respeita à qualificação jurídica da detenção de estupefacientes, para consumo, em quantidade que ultrapasse as dez doses diárias, e que a doutrina e a jurisprudência se têm esforçado por colmatar, estando já há algum tempo bem definidas quatro posições, que a decisão recorrida teve em consideração, e que aqui recordamos:
a) a primeira, que conclui pela impunibilidade de tais condutas, com base na inexistência de normas que as prevejam e punam, atento o limite fixado no nº 2 do art.º 2º da Lei nº 30/2000 e a revogação parcial do art.º 40º, que apenas se mantém em vigora quanto ao cultivo. De acordo com este entendimento, a posse de quantidade suficiente para 10 ou mais dias traçaria a fronteira entre a contra-ordenação e a impunidade(1);
b) a segunda, sustenta que o art.º 40º continua em vigor para as situações de detenção para consumo, cuja quantidade exceda o consumo médio individual durante o período de dez dias, devendo nessa medida a norma revogatória (o art.º 28º da Lei nº 30/2000) ser interpretada restritivamente, de modo a não abranger a aquisição e detenção para consumo de uma quantidade superior à necessária para 10 dias. Assim, provando-se que o estupefaciente se destina ao consumo, a conduta é punível como contra-ordenação ou como crime (nos termos do art. 40º ), consoante a detenção não exceda ou ultrapasse a quantidade necessária para o consumo durante dez dias, respectivamente(2);
c) a terceira defende que a detenção, exclusivamente para consumo privado, mesmo fora dos limites do nº 2 do art. 2º da Lei nº 30/2000 não poderá constituir senão uma contra-ordenação, nos limites sistémicos, valorativos e de política criminal que determinaram o novo regime relativo ao consumo de produtos estupefacientes(3).
d) a quarta entende que, da conjugação dos artºs 21º, 25º e 40º do DL nº 15/93 e dos artºs 2º nºs 1 e 2, e 28 da Lei nº 30/2000, resulta que as situações de detenção para consumo, cuja quantidade exceda o consumo médio individual durante o período de dez dias, é sancionada como um ilícito criminal, seja por via do art.º 21º, seja por via do art.º 25º, seja, se estiver reunido o respectivo condicionalismo, por via do art.º 26º, todos do DL nº 15/93(4).
Quanto à referida em primeiro lugar, é genericamente considera como inaceitável, não só por apenas ter sido intenção do legislador a descriminalização de situações de menor gravidade, que não a legalização do consumo, mas também porque redundaria na incongruência da punição da detenção para consumo de quantidades que não excedam a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, enquanto que a detenção para consumo de quantidades que a excedessem ficaria impune.
As três restantes vêm colhendo mais ou menos apoio por parte da doutrina e da jurisprudência, embora nenhuma delas se mostre isenta de fragilidades.
Apontam-se, sumariamente, alguns dos argumentos invocados a favor e contra cada uma delas.
A favor da referida em segundo lugar: que não sendo razoável pensar que uma lei descriminalizadora, benfazeja para o consumidor, pretenda que uns gramas de droga transformem um «doente» a proteger num autêntico traficante, esquecendo-se de acautelar situações que a velha lei acautelava”, apresenta-se como mais consequente com o espírito do diploma de 2000, com vista a contornar a dificuldade decorrente do aparente vazio legislativo, a interpretação restritiva do texto da norma revogadora, devendo entender-se, onde as palavras parecem apontar para um completo desaparecimento do artº40º (excepto no que diz respeito ao cultivo), que este continua a reger os casos de consumo não convertidos em contra-ordenações(5); contra, que qualquer interpretação restritiva do citado artº 28º da Lei 30/2000, no sentido de se considerar em vigor aquele artº 40º quando se tratar da detenção para consumo de uma quantidade de droga superior à prevista no nº 2 do art. 2º da Lei nº 30/2000, traduz recurso à analogia, forma de integração de lacunas que não é permitida para qualificar um facto como crime, afrontando o princípio geral do direito penal do "nullum crimen, nulla poena sine lege”, não permitindo o princípio da legalidade que, a pretexto de alegada inépcia legislativa, se desconsidere a revogação expressa do art.º 40º nº 2 do DL nº 15/93, pelo art.º 28º da Lei nº 30/2000, e não se vislumbrando fundamento para, num entorse interpretativo evidente, defender a subsistência da incriminação prevista no art.º 40º, depois de expressamente o legislador a ter revogado(6).
A favor da referida em terceiro lugar, nomeadamente, que o sentido da norma do nº 2 do art. 2º da referida Lei, na coordenação possibilitada pelo princípio da legalidade, será o de que o legislador teve em mente que a detenção por consumidor de quantidades maiores de droga pode indiciar a possibilidade de risco de disseminação, dependendo a qualificação, no fim de contas, da prova de que o produto detido se destina exclusivamente a consumo privado próprio(7); contra ela esgrimem-se, essencialmente, os mesmos argumentos indicados para afastar a anteriormente referida.
A favor da referida em 4º lugar, essencialmente, que é aquela que melhor se harmoniza com a letra da lei, sendo também coerente com os valores tutelados, e que existem mecanismos legais para corrigir as distorções que o tratamento do consumo e do tráfico no mesmo plano jurídico-legal poderia acarretar; contra ela, que o legislador não quis alargar a incriminação do tráfico a condutas que anteriormente poderiam ser consideradas consumo e que “os princípios - da legalidade e da consequente proibição da analogia, e da interpretação teleologicamente comandada - apontam, logo e decisivamente, para a impossibilidade estrutural e dogmática de fazer apelo à disciplina típica dos artigos 21º ou 25º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro”(8).
Sopesando os argumentos aduzidos a favor e contra cada das correntes em confronto, e resignando-nos à constatação de que nenhuma delas representa a solução óptima para os problemas jurídicos que o actual quadro legislativo concita, temos para nós que aquela que melhor resiste às objecções formuladas é a referida em último lugar.
Reconhecemos que ela representa a consagração de um desvio aos objectivos gerais traçados para a estratégia da luta nacional contra a droga aprovada na Resolução do Conselho de Ministros nº 46/99, de 26/5/99, no DR nº 122/99, I Série-B(9), (entre eles os de contribuir para uma adequada e eficaz estratégia internacional e europeia face ao problema mundial da droga, nas vertentes da redução da procura e da oferta, de reduzir o consumo de drogas, sobretudo entre os mais jovens, e de reprimir o tráfico ilícito de drogas) a desenvolver, nomeadamente através da descriminalização do consumo de drogas e da sua proibição como ilícito de mera ordenação social, definidas como uma das opções estratégicas fundamentais. No entanto, estamos em crer que as intenções políticas enunciadas naquela Resolução como devendo presidir à definição daquela estratégia não foram levados às suas últimas consequências pelo legislador a quem coube dar-lhes execução, tudo indicando que este recuou na intenção de descriminalizar por completo o consumo de estupefacientes e de o degradar em ilícito de mera ordenação social (repare-se que, volvidos mais de sete anos, também não introduziu alterações à figura do traficante-consumidor, possibilidade admitida como devendo merecer especial consideração). A não ter sido assim, como explicar a restrição introduzida pelo nº 2 do art. 2º da Lei nº 30/2000? A explicação de que o sentido desta norma será o de que legislador teve em mente que a detenção por consumidor de quantidades maiores de droga pode indiciar a possibilidade de risco de disseminação, dependendo a qualificação, no fim de contas, da prova de que o produto detido se destina exclusivamente a consumo privado próprio, não nos convence, pese embora o muito respeito que a categoria intelectual de quem a adiantou e de quem a aceita nos merece, pois nem com grande esforço interpretativo conseguimos coaduná-la com as palavras inequívocas utilizadas pelo legislador: “para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior [ as constantes das tabelas I a IV anexas ao DL nº 15/93 ] não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”
O que nos leva a demarcar-nos das posições expressas sob as als. b) e c) é, pois, fundamentalmente, o facto de elas não encontrarem a mínima correspondência nos textos legais, já que, por um lado, o nº 2 do art. 2º da Lei nº 30/2000 coloca expressamente fora do seu âmbito a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias estupefacientes que excedam a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, e, por outro, o seu art. 28º revoga, também expressamente, o art. 40º do DL nº 15/93 “excepto quanto ao cultivo”.
E, se é certo que “a interpretação da lei não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”, de acordo com a definição acolhida no nº 1 do art. 9º do C. Civil, não é menos certo que “não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” (cfr. nº 2 daquele art. 9º).
Ora, não vislumbramos no elemento literal qualquer apoio, ainda que “imperfeitamente expresso” que possa sustentar aquelas posições. Concedemos que a Lei nº 30/2000 teve como objectivo a despenalização do consumo, com base nas mais recentes tendências de política legislativa que tendem a encarar a toxicodependência, mais do que como um ilícito, como uma doença que afecta em primeira linha quem reúne simultaneamente as qualidades de agente e de vítima, mas da forma como o legislador se expressou, entendemos igualmente que é lícita a interpretação de que a mens legislatoris visou abranger apenas na descriminalização operada a aquisição/detenção para consumo de quantidades menos significativas, tendo até em linha de conta que o grau de perigo (para os bens protegidos pela norma) que delas corre não justifica uma reacção mais severa. A fronteira foi traçada nas 10 doses diárias e pode-se discutir se o critério adoptado pelo legislador foi ou não correcto, de jure condendo; mas o que se tem de aceitar é que, mal ou bem, é esse o critério que efectivamente foi acolhido na lei. Se o legislador não pretendia reconduzir ao “tráfico” (e temos de presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e não podia ignorar que o tipo matricial do art. 21º prevê uma panóplia de acções tão abrangente, entre elas a mera detenção ilícita, que só deixa de fora aquelas que expressamente exclui – e excluindo os casos previstos no art. 40º, se o âmbito deste é restringido, a previsão do 21º necessariamente se alarga cobrindo o que aquele anteriormente subtraía ao seu âmbito) a aquisição/detenção para consumo de quantidades superiores às 10 doses, então como se explica que tenha expressamente afastado do âmbito de aplicação da Lei nº 30/200, e por essa via, arredado da descriminalização, tais condutas? É pergunta para a qual não encontramos resposta satisfatória em nenhuma das posições supra indicadas nas als. b) e c). E nem nos impressiona o argumento de que esta posição leva ao tratamento como tráfico de situações que apenas têm a ver com o consumo; parece-nos que esse argumento confunde tráfico com colocação (ou perigo de colocação) no circuito de distribuição, quando o art. 21º acolhe uma noção de tráfico muito ampla, na qual cabem desde sempre situações perfeitamente distintas, nomeadamente a mera detenção de estupefacientes sem destino específico, e a detenção de quantidades mais expressivas, ainda que intencionalmente destinadas a consumo, não deixa de envolver, também ela, o risco de poder vir a ser afectada a outros fins.
A posição indicada sob a al. d), se bem que não seja isenta de críticas e objecções às quais reconhecemos alguma pertinência, é, não obstante e como já adiantámos, aquela que mais se conforma com os textos legais e não cremos que haja argumentos ponderosos para a excluir dos desígnios que presidiram à alteração legislativa. À objecção de que redunda na aplicação de molduras penais abstractas muito mais gravosas, respondemos com os instrumentos correctivos que a própria lei prevê, desde logo a possibilidade de enquadramento no tráfico de menor gravidade e, também com a possibilidade de atenuação especial, para além da atenuação já resultante do tipo privilegiado, e que o mecanismo acolhido no art. 72º do C. Penal permite(10). Além disso, as objecções à constitucionalidade desta posição já foram afastados pelo Ac. TC nº 250/03, procº nº 776/2002, que concluiu não se mostrar a interpretação da intenção legislativa que lhe subjaz violadora do princípio da proporcionalidade que deve pautar o direito penal e a política criminal.
E assim, enquanto não surge uma alteração legislativa que clarifique o regime aplicável, ou uma decisão que uniformize a jurisprudência ( e que tantas divergências ao nível dos tribunais superiores já justificava ), sufragamos o entendimento de que a aquisição/detenção de estupefacientes em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias tem, a partir da entrada em vigor da Lei nº 30/2000, de se considerar subsumida à previsão dos preceitos relativos ao tráfico.

Vejamos, agora, os reflexos que a adopção desta posição vai necessariamente ter no caso sub judice.
Ficou provado que o arguido procedia ao cultivo para consumo próprio – ao qual depreendemos destinarem-se as sementes que detinha, com o peso líquido de 71,60 gramas, embora nada a esse respeito se refira na decisão recorrida -, tendo plantados, num terreno, dois pés de uma planta de cannabis, com o peso líquido de 2,715 gramas, e, em dois vasos, outros seis pés de plantas da mesma espécie, com o peso líquido de 7,500 gramas. Provados factos dos quais se retiram os elementos intelectual e volitivo do dolo, e excedendo a quantidade de plantas ( com o peso total de 10,215 gramas ) a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias, por aplicação dos limites fixados no art. 9º da Portaria nº94/96 de 26/3 e constantes do mapa a ela anexo ( limites estes que têm meramente um valor de meio de prova, a apreciar nos termos da prova pericial(11), embora entendamos que, sempre que possível, o exame pericial a que são submetidas as substâncias estupefacientes deve mencionar o grau de pureza destas e, com base nele, indicar o nº de doses a que corresponde a quantidade examinada), a correspondente conduta integra o crime de cultivo para consumo p. e p. pelos nºs 1 e 2 do art. 40º.
Também ficou provado que o arguido detinha, para além das plantas acima aludidas e igualmente para seu consumo, 16 folhas secas de cannabis, com o peso líquido de 8,290 gramas, e um pedaço de cannabis, com o peso líquido de 4,020 gramas. Aplicando os limites acima aludidos, só a detenção daquelas folhas e substâncias já ultrapassa as 10 doses diárias. Nessa medida, a conduta do arguido já cai fora do âmbito da previsão da Lei nº 30/2000, integrando o crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pela al. a) do art. 25º pois, não só a quantidade pouco expressiva como o tipo de estupefaciente em causa, considerado como droga “leve”, apontam inequivocamente para uma ilicitude consideravelmente diminuída (que, nos termos daquele preceito, pode ser indiciada, nomeadamente, pela quantidade ou pela qualidade da droga, pelos meios utilizados, pela modalidade ou as circunstâncias da acção) pressuposta pelo tipo privilegiado.
Temos, assim, que a conduta do arguido é passível de integrar, em concurso, os crimes de cultivo para consumo (que estava e continua excluído da previsão abrangente do art. 21º e, também, da do art. 25º) e de tráfico de menor gravidade.
No entanto, o arguido foi submetido a julgamento acusado, apenas, da prática deste ilícito criminal e, no decurso do julgamento, em momento algum, lhe foi comunicada a alteração ( substancial – cfr. al. f) do art. 1º do C.P.P. ) dos factos; nessa medida, não é já possível efectuá-la, motivo pelo qual o arguido só pode ser punido pela prática do crime de tráfico de menor gravidade.

Na determinação da medida da pena concreta da pena a aplicar ao arguido pela prática de tal ilícito criminal, tendo em conta os critérios legais e as circunstâncias a que alude o art. 71º nº 2 do C. Penal, mormente a ausência de antecedentes criminais, a confissão que, embora sem grande relevo, demonstra que o arguido assumiu o desvalor da sua conduta, e o destino ( consumo próprio ) que ele reservava para as substâncias que detinha, considerou-se justificado o recurso à atenuação especial da pena, por via da qual a pena aplicável ao arguido ficou reduzida nos seus limites para um mês (mínimo) a 3 anos e quatro meses de prisão (máximo). Com base nela, e ponderando ainda as condições económicas do arguido tal como foram apuradas, alcançámos a pena acima mencionada.
Porto, 31/1/07
Maria Leonor de Campos Vasconcelos Esteves
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(1) cfr. Rui Pereira, "A Descriminalização do consumo de droga", in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, 2003, pág. 1171
(2) cfr. Cristina Líbano Monteiro, “O Consumo de Droga na Política e na Técnica Legislativas: Comentário à Lei n.º 30/2000”, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 11, fascículo 1; Maia Costa ( em posição inicial que posteriormente foi revista ), “Breve nota sobre o novo regime punitivo do consumo de estupefacientes”, RMP, nº 87 pág. 147; e Acs. STJ de 3/7/03, proc. nº 03P1799 (com um voto de vencido ) e 7/4/05, proc. nº 446/05-5ª s.; RL de 1/10/02, proc. nº 0022745; 21/11/02, C.J. ano XXVII, t. 5, pág.124; 25/2/03, C.J. ano XXVIII, t. 1, pág. 141; 8/7/03, proc. nº 2725/2003/5; 16/2/05, proc. nº 8446/2004-3; 10/11/05, proc. nº 4732/2005-9; 16/12/05, proc. nº 8446/2004-3; e 4/4/06, proc. nº 846/06-5, C.J. ano XXXI, p. 131; RP de 11/2/04, C.J. ano XXIX, t. 1, pág. 215; 12/1/05, proc. nº 0314384; 9/2/05, proc. nº 0410428 ( com um voto de vencido ); 16/2/05, proc. nº 0414603 ( com um voto de vencido ); 16/11/05, C.J. ano XXX, t. 5, pág. 221; 12/10/05, proc. nº 0416952; 24/5/06, proc. nº 0640988; 8/11/06, proc. nº 0614394; e 22/11/06, proc. nº 0614664 ( com dois votos de vencido ); RC de 14/6/06, proc. 336/06; 16/6/06, C.J. ano XXIX, t. 3, p.49; e 17/6/04, CJ. Ano XXIX, t. 3, pág. 52.
(3) cfr. Lourenço Martins, “Droga. Nova Política Legislativa”, RPCC, ano 11º, 3º 2001, pág. 413, Inês Bonina, “Descriminalização do Consumo de Estupefacientes – Detenção de quantidade superior a dez doses individuais”, RMP 89, 185 e ss., Patrícia Agostinho, “Posse de estupefacientes em quantidade que excede o necessário para o consumo médio individual durante dez dias”, RMP 97º, 139, Maia Costa ( reconsiderando anterior posição ), RMP 95º, 128, Conde Correia, “Droga: exame laboratorial às substâncias apreendidas e diagnóstico da toxicodependência”, Revista do CEJ, 2º Semestre de 2004, pág. 83, Faria Costa, RLJ, 134º, 278; e Acs. RC 15/12/04, proc. 3452/04; e 18/10/06, proc. 210/05.4TAANCDC1; RP 10/5/06, proc. 0547038; RG 23/9/02, proc. nº 381/02-1, 10/3/03, C.J. ano XXVIII, t. 2, pág. 288, 6/3/06, proc. 2538/05-2; 18/10/06, proc. nº 0643527 8 com um voto de vencido ), 10/1/07, proc. nº 0646649, e 10/1/07, proc. nº 0614954 ( com um voto de vencido ); RG 23/9/02, proc. nº 381/02-1; e 6/3/06, proc. nº 2538/05-2; e STJ 14/5/03, proc. 03P871; e 28/9/05, proc. nº 05P1831.
(4) cfr. Artur Pires, “Ainda sobre o novo regime sancionatório da aquisição e detenção de estupefacientes para consumo próprio”, RMP 93º, pág. 115 (6), Manuel José Gonçalves Pereira, “A retenção de estupefacientes em quantidade superior a dez dozes diárias para consumo pessoal”, RMP 97, 127, “M. M. Guedes Valente, Consumo de Drogas”, Almedina 2002, pág. 97 e ss; e Acs. RP 22/10/03, proc. 0342387; 9/12/04, proc. 0415058; 7/12/05, proc. 0442812; e 22/11/06, proc. 4400/06; e RE 14/12/04, proc. 1776/04-1.
(5) cfr. Cristina Líbano Monteiro, no estudo já acima referido.
(6) Ac. RP 7/12/05, acima citado.
(7) cfr. Faria Costa, RLJ, ano 134º, nº 3930, pág. 275 ss.
(8) Ac. STJ 28/9/05, acima mencionado.
(9) Estratégia assente em oito princípios estruturantes, entre eles o princípio humanista, entendido este como “o reconhecimento da plena dignidade humana das pessoas envolvidas no fenómeno das drogas e tem como corolários a compreensão da complexidade e relevância da história individual, familiar e social dessas pessoas, bem como a consideração da toxicodependência como uma doença e a consequente responsabilização do Estado na realização do direito constitucional à saúde por parte dos cidadãos toxicodependentes e no combate à sua exclusão social, sem prejuízo da responsabilidade individual” e do qual, entre outras implicações, decorre a “definição criteriosa do enquadramento legal dos diferentes comportamentos relacionados com o fenómeno das drogas, em obediência aos princípios humanistas que enformam o nosso sistema jurídico, enquanto sistema de um Estado de direito democrático, designadamente os princípios da subsidiariedade ou da ultima ratio do direito penal e da proporcionalidade, com os seus corolários, que são os subprincípios da necessidade, da adequação e da proibição do excesso”.
(10) Neste sentido o Ac. RP 7/12/05, atrás citado.
(11) cfr. Acs. TC nº 534/98, proc. nº 545/98, e nº 559/01, proc. nº 445/01.
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DECLARAÇÃO DE VOTO
(Recurso nº 2204/06-1ª)

O nº 1 do art. 2º da Lei nº 30/2000 elenca três situações relacionadas com o consumo de estupefacientes:
1ª – o acto de consumo propriamente dito;
2ª – a aquisição para consumo próprio; e
3ª – a detenção para consumo próprio, enquanto que o nº 2 desse art. 2º se reporta apenas às duas últimas situações – aquisição e detenção -, estatuindo que “para efeitos da presente lei” quer uma quer outra “não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”.
Por isso que, estando aqui em equação determinar a relação de sentido que a economia da Lei 30/2000 estabelece entre os seus artigos 2º e 28º, se deva à partida concluir que o acto de consumo em si mesmo considerado foi irrestritamente despenalizado.
Já não assim – irrestritamente – no que respeita às situações de aquisição e de detenção, relativamente às quais o nº 2 do art. 2º estabelece um limite máximo “para efeitos” da lei 30/2000, ou seja, defendemos nós, define um quadro de operância no âmbito do qual se produz a degradação do ilícito de crime em contra-ordenação por via do nº 1 desse art. 2º.
Tal significa que não acompanhamos o presente acórdão no ponto em que nele se atribui à delimitação inscrita no nº 2 do art. 2º uma função “orientadora” que se esgota num plano meramente procedimental/adjectivo.
E a consulta aos elementos disponíveis do processo legislativo que conduziu à aprovação da Lei 30/2000 não nos parece que forneça subsídios que favoreçam o entendimento que fez vencimento.
Na verdade, a proposta de Lei (nº 31/VIII) ab initio apresentado pelo governo à Assembleia da Republica compreendida já um artigo 2º cujos nºs 1 e 2 coincidem praticamente com a redacção que veio a ficar inscrita na Lei 30/2000, com a única excepção de que o período-limite de 10 dias era inicialmente de 5 dias.
Senso que no «Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias» de 06.07.2000 se colhe uma leitura de tal proposta de lei que nos parece inculcar que ao limite máximo p. no nº 2 do art. 2º se quis conferir um papel bem mais substantivamente delimitador que o meramente adjectivo atribuído na tese que no presente acórdão veio a preponderar, quando, a dado passo do documento, se escreve: -
“Nos termos do diploma proposto o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas naquelas Tabelas constitui contra-ordenação, sendo que as quantidades detidas ou adquiridas daqueles produtos não podem exceder as necessárias para um consumo médio individual durante o período de cinco dias (nºs 1 e 2 do artigo 2º).”
Daí que entendamos por mais curial, em termos de lógica interpretativa à luz da inserção sistemática dos segmentos da lei 30/2000 que estão em causa, que num primeiro momento se focalize a análise na relação directa entre o nº 2 e o nº 1 do art. 2º e que só num segundo momento a projectemos sobre a norma revogatória do art. 28º, ao invés de começarmos por reportar directamente o nº 1 do art. 2º ao art. 28º prescindindo do nº 2 daquele artigo, que assim fica isolado e é depois secundarizado e remetido para um papel meramente “orientador” numa perspectiva procedimental.
A nosso ver, o art. 2º da lei 30/2000, lido no seu todo, contém a definição do âmbito em que há-de operar o novo regime aí estabelecido no que respeita à problemática do consumo de estupefacientes, pelo que à norma contida no art. 28º não tem porque ser imprimida uma eficácia revogatória que extravase esse âmbito.
Subsiste assim a previsão do crime de consumo constante do art. 40º do Dec. Lei nº 15/93, de 22/Janº., para os casos de aquisição e detenção para consumo próprio que ultrapassem “ a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”.
Sendo estas as razões porque discordamos da tese vencedora, mas porque concordamos inteiramente com a crítica feita no acórdão à tese do recorrente, concederíamos provimento ao recurso por fundamentos diferentes dos aduzidos na motivação apresentada pelo Ministério Público.

Porto, 31 de Janeiro de 2007
José Manuel Baião Papão