CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
NULIDADE DE CLÁUSULA
BOA -FÉ
REDUÇÃO DO NEGÓCIO
APÓLICE DE SEGURO
INVALIDEZ
INCAPACIDADE
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
FACTO CONSTITUTIVO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
Sumário


I – A nulidade de uma cláusula contratual geral por violação do princípio da boa fé pode ser objeto de redução do negócio jurídico, nos termos do art. 292º do CC, se disser respeito apenas a parte do que nela é estipulado.
II – A previsão de invalidez absoluta e definitiva, constante de uma apólice de seguro, é suscetível de ser entendida por um declaratário normal como uma situação em que a pessoa afetada se encontra num estado que a deixa totalmente (completamente, sem restrição) incapaz, para o resto da vida, de exercer a sua atividade, designadamente laboral, em termos de obtenção de meios de subsistência.
III – A situação em que o segurado não pode continuar a desempenhar a atividade profissional anterior, mas pode desempenhar funções de natureza idêntica dentro da sua área de formação técnico profissional, desde que com menor intensidade e exigindo menor esforço físico, é conciliável com uma situação de incapacidade parcial.
IV – Sendo a situação de invalidez absoluta e definitiva o facto constitutivo do direito exercido, cabe ao segurado o ónus de demonstrar que a sua atual e subsistente capacidade de trabalho não lhe permite a angariação de remuneração.

Texto Integral


ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL


I - AA e sua mulher BB intentaram a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC, Lda., pedindo a condenação desta a pagar à Caixa de........ o valor que no momento da liquidação estiver em dívida no âmbito do contrato de mútuo que celebraram com esta e a pagar-lhes a eles, autores, a quantia a liquidar correspondente aos valores por eles pagos ao ........, no âmbito do mesmo contrato de mútuo, desde 26.02.2015 até efetivo cumprimento da obrigação anterior por parte da Ré.

     Alegaram, em síntese, ter celebrado com a ré um contrato de seguro, na sequência da concessão de um mútuo hipotecário para aquisição de habitação própria e permanente, e o facto de à autora BB ter sido atribuída uma incapacidade permanente parcial de 78%.

Na contestação apresentada a ré pediu a absolvição do pedido, defendendo, em suma, que não ocorreu a invalidez absoluta e definitiva que permitiria o acionamento da apólice.

Estando já designada a audiência final, ao autores apresentaram um articulado superveniente, que foi admitido e no qual alteraram o pedido, que passou a ser o de condenação da ré a pagar, no âmbito do contrato de seguro celebrado, a quantia de € 251.600,39, por haverem vendido o imóvel e pago ao ........ o remanescente do mútuo.

Já na audiência final, que teve lugar em 26.9.2017, a ré apresentou articulado superveniente onde alegou que a autora omitiu as intervenções cirúrgicas a que foi submetida nos anos de 2005 e 2008, anteriores à celebração do contrato de seguro, pedindo, com base nisso, a anulação deste.

      Veio a ser proferida sentença que absolveu a ré do pedido, por duas ordens de razão:

- a incapacidade da autora demonstrada nos autos não integra os pressupostos da denominada “Invalidez Absoluta e Definitiva” ou “Invalidez Total e Permanente”, sendo sobre os autores que impendia o ónus de prova deste facto, enquanto constitutivo do direito que pretendiam fazer valer nestes autos;

- o contrato de seguro é anulável, nos termos das disposições combinadas dos arts. 24º, nº 1 e 25º, nºs 1 e 3 da Lei do Contrato de Seguro e 297º do C. Civil, pois a autora, antes da sua celebração, omitiu dolosamente à ré, a circunstância de haver sido já submetida a outras duas intervenções cirúrgicas: a hérnia discal e ao colo do útero por lesão CIN II (facto nº 16);

      Contra ela apelaram os autores, tendo a Relação de Évora, em conhecimento do recurso, proferido acórdão que, revogando a sentença, condenou a ré a pagar aos autores a quantia de € 245.254,76.

  A ré trouxe a este tribunal recurso de revista, tendo apresentado alegações onde, pedindo a revogação do acórdão recorrido e a sua absolvição do pedido, formula as conclusões que passamos a transcrever:

A. ÂMBITO DA COBERTURA DA APÓLICE DOS AUTOS

I. O tribunal recorrido confirmou a exclusão da disposição contratual de "invalidez absoluta e definitiva" que fazia depender tal garantia da necessidade de assistência por terceira pessoa para os actos da vida corrente.

II. Mas mais do que isso, o tribunal recorrido decidiu que a cláusula de garantia da apólice deveria ser excluída por inteiro, incluindo a parte que determinava que: "ocorria invalidez absoluta e definitiva quando a pessoa segura se encontrar totalmente incapaz para o exercício de qualquer actividade lucrativa".

III. Contudo, expurgando-se a cláusula da sua segunda parte por contrariar as regras da boa fé nos termos do DL 446/85 de 25/10, não podia no entanto deixar de se aproveitar (por não ser contrária a tais regras) a referida primeira parte da disposição.

IV. Nestes termos, deveria o tribunal recorrido ter concluído pela sobrevivência da primeira parte da cláusula contratual, assim decidindo que a garantia da apólice se aplicava aos casos em que a pessoa segura se encontrar totalmente incapaz para o exercício de qualquer actividade lucrativa.

V. Mas ainda que assim se não entenda, sempre haverá que considerar que nos, termos da jurisprudência unânime da Relação e deste Venerando Supremo Tribunal de Justiça, o sentido que um declaratário normal atribui à cláusula de "invalidez absoluta e definitiva" neste tipo de contrato de seguro de vida é o de que o pagamento antecipado do Capital seguro é devido no caso de a Pessoa Segura se encontrar totalmente incapaz para o exercício de qualquer actividade lucrativa.

VI. Conforme deflui da matéria de facto provada, e se conclui na sentença da Primeira Instância, a Autora não se encontra nesta situação.

VII. Não podia pois o meritíssimo tribunal recorrido ter concluído que a situação clínica concreta da Autora preenchia os requisitos de cobertura da apólice de seguro de vida dos autos.

VIII.   Termos em que, ao decidir como decidiu, o acórdão recorrido interpretou e aplicou incorrectamente os artigos 12°, 13° e 14° do DL 446/85 de 25/10, e os artigos 236° e 292° do Código Civil, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que declare que a incapacidade sofrida pela Autora não se encontra coberta pelo contrato de seguro dos autos, assim absolvendo a Recorrente BB do pedido.

B. DA NULIDADE DO CONTRATO DE SEGURO DOS AUTOS

B.1. Da violação de caso julgado formal pelo acórdão recorrido

IX. Nos seus despachos de 20.10.2017 e 26.9.2017, o tribunal de Primeira Instância admitiu, por tempestivo, o articulado superveniente da Ré em que esta deduziu a nulidade do contrato de seguro por omissão de declarações relevantes para a apreciação do risco.

X. A decisão contida nos referidos despachos era susceptível de recurso imediato nos termos da alínea d) do n° 2 do artigo 644° do CPC, que contudo não foi interposto pelos Autores, formando-se assim caso julgado formal.

XI. Ao se ter debruçado sobre a questão da tempestividade do articulado superveniente apresentado pela Ré, quando já se encontrava formado caso julgado sobre o mencionado despacho que decidiu a sua admissibilidade, o acórdão recorrido violou a lei de processo aplicável, nomeadamente os artigos 620° e 644° n° 2 alínea d) do Código de Processo Civil.

XII. Nesses termos, deve ser declarada nula, por excesso de pronúncia decisão recorrida, nos termos do artigo 674°, n° 1, alínea c) do Código de Processo Civil ou, para assim não se entenda, nos termos do artigo 674°, n° 1, alínea b) do Código de Processo Civil.

B.2 A natureza dolosa da omissão de informação

XIII. O Tribunal Recorrido julgou incorrectamente ao concluir que não se verificam factos que permitam afirmar a omissão dolosa na subscrição da proposta de seguro.

XIV. A questão contida no questionário médico: "foi submetido a qualquer intervenção cirúrgica?" é clara e não confere margem para dúvidas.

XV. À qual contudo a Autora deu uma resposta curta ("Sim. Apêndice").

XVI. Ao responder de forma curta ("Sim. Apêndice") a Autora induziu a Ré a considerar que a única operação que fez foi ao apêndice quando, na verdade, tinha sido submetida a pelo menos outras duas intervenções cirúrgicas.

XVII. Ao deixar de indicar as duas outras intervenções a que foi sujeita e que eram circunstâncias conhecidas relevantes, agiu a Autora de má-fé e, logo, de forma dolosa.

XVIII. No questionário médico, no local onde é perguntado se terá sofrido hérnia ou a ter tido qualquer doença ginecológica ou outras alterações do aparelho genital (fls.296), a Autora deu a resposta de "NÃO".

XIX. Embora a Autora soubesse perfeitamente que sofria de hérnias e doenças ginecológicas, negou essa informação respondendo precisamente o contrário da realidade que conhecia.

XX. Ao considerar que os factos dos autos não permitem afirmar a omissão dolosa na subscrição da proposta de seguro, o acórdão recorrido violou os princípios de apreciação e valoração da prova e o preceituado nos artigos 253° do Código Civil, 24° e 25° da Lei do Contrato de Seguro, pelo que deve revogado e substituído por outro que absolva a Recorrente CC do pedido.

Foram apresentadas contra-alegações onde os autores sustentam a improcedência do recurso, formulando nas alegações que apresentaram as seguintes conclusões:

a. A cláusula IAD (incapacidade absoluta e definitiva) não se aplica ao presente contrato por o seu conteúdo não ter sido comunicado pela seguradora à Recorrida, sendo sua obrigação demonstrar o oposto [art. 8º, a) Dec. Lei 446/85].

b. Afastada a cláusula IAD o contrato vale com o sentido que o mesmo tiver para um declaratário normal.

c. Quem celebra um contrato para prevenir o risco de ficar incapaz de trabalhar de forma permanente (facto provado n.º 8), está a pensar na situação em que deixa de poder exercer o seu trabalho, ou seja, a sua própria profissão, e não nenhuma outra, sendo este, portanto, o sentido normal do presente contrato.

d. Independentemente disto, resulta da prova que a Recorrida está total e irreversivelmente incapaz para o exercício de qualquer profissão.

e. Está incapaz para o exercício da sua profissão, e de todas as que não estão dentro da sua área de formação técnico profissional (factos provados n.º 30 e 31, este a contrario).

f.        Está incapaz para o exercício de qualquer profissão da sua área de formação técnico profissional, uma vez que está total e irreversivelmente incapacitada para ser “funcionária administrativa” (factos provados n.ºs 1, 30 e 31).

g. O direito de a seguradora anular o contrato de seguro estava caducado quando a Recorrente apresentou o seu articulado superveniente de fls. 315, em 26/9/17, nos termos do art. 287º, n.º 1 do Cód. Civil, pelo que já não podia anular o contrato, seja ou não tempestivo tal articulado.

h. Só na sentença foi decidida a admissibilidade do articulado superveniente de fls. 315, e não no despacho de 20/10/17, pelo que o recurso da sentença foi o momento processual próprio para reagir contra tal admissão.

i. Saber se se verificam, no caso, os elementos subjetivos do dolo é uma questão de facto, que, por isso mesmo, está excluída do âmbito do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, pelo que o recurso deve, nesta parte, ser rejeitado.

j. Em qualquer caso, o dolo não foi alegado pela Recorrente, apesar de ser um elemento integrante da sua causa de pedir, e também não foi provado, como resulta dos autos, motivo pelo qual não se pode concluir que a Recorrida tenha agido dolosamente.

      Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo questões sujeitas à nossa apreciação as enunciadas nas conclusões, a cujo resumo abaixo se procederá, visto serem estas, como se sabe, que delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso.

          II – Vêm descritos como provados os seguintes factos:

1. A A. foi gerente de sociedade entre os anos de 2009 a 2012, foi chefe de serviços entre 2013 e 2014 e escriturária de segunda a partir dos anos de 2015 e 2016.

2. No ano de 2005 a A. foi sujeita a intervenção cirúrgica a hérnia discal cervical.

3. No ano de 2008 a A. foi sujeita a intervenção cirúrgica ao colo do útero com conização cervical por displasia grave (CIN II).
4. No dia 26.11.2009 os AA. celebraram com a Caixa Económica ........ um contrato de mútuo, através do qual se confessaram devedores a esta do montante de € 275.000, acrescido dos respetivos juros remuneratórios, destinado à aquisi...... descrito na Conservatória do Registo Predial de L..... sob o n.º........
5. Para garantia do pagamento da referida importância, os AA. constituíram hipoteca sobre o referido imóvel a favor da Caixa Económica .........
6. E obrigaram-se a subscrever um seguro cuja finalidade era a amortização do capital em dívida logo que ocorresse morte ou uma situação de invalidez coberta.
7. Os AA. celebraram com a Ré um contrato de seguro de vida, titulado pela apólice n.º 00000, com início em 26.11.2009, denominado “.............”, no qual são segurados os AA. e beneficiária a Caixa Económica .........
8. O objetivo dos AA. ao celebrar o contrato de seguro foi ter coberto o risco de uma incapacidade para o trabalho, de modo permanente.
9. Por intermédio do contrato de seguro, sujeito às condições gerais, juntas a fls. 15/16, a Ré obrigou-se ao pagamento da importância segura, cujo capital inicial era no montante de € 245.254,76, caso ocorresse algum dos riscos contratualmente previstos, concretamente morte ou invalidez absoluta e definitiva, ou invalidez total e permanente se a pessoa segura fosse trabalhador da Caixa Económica ........ e enquanto mantivesse essa condição.
10. Considerou-se ocorrer invalidez absoluta e definitiva quando a pessoa segura se encontrar totalmente incapaz para o exercício de qualquer atividade lucrativa e necessite de recurso à assistência sistemática e definitiva de uma terceira pessoa para os atos ordinários da vida humana e uma situação de invalidez total e permanente quando a pessoa segura, em consequência de doença ou acidente, se encontrar definitivamente incapacitada de exercer a sua profissão ou qualquer outra atividade lucrativa correspondente aos seus conhecimentos e capacidades.
11. Este contrato foi celebrado ao balcão da Caixa Económica ........, agência de Loulé, através da elaboração da proposta de subscrição, datada de 000000 subscrita pelos AA..
12. Da proposta de subscrição fazia parte o documento “Plano de Protecção ao Crédito à Habitação – Informações Pré-Contratuais”, onde, em resposta à pergunta “Qual a garantia da apólice?”, se afirmava o seguinte: “Sempre que de uma situação de DOENÇA ou ACIDENTE, resulte a Morte ou a Invalidez Absoluta e Definitiva, a Seguradora pagará ao beneficiário designado o Capital Seguro à data do acontecimento. Existe invalidez absoluta e definitiva sempre que a Pessoa Segura tenha a necessidade permanente de recorrer à assistência de uma terceira pessoa para poder efectuar os actos ordinários da vida corrente, não sendo possível qualquer melhora de saúde, de acordo com os conhecimentos médicos à data da invalidez absoluta e definitiva. A atribuição desta invalidez terá sempre em conta o grau de incapacidade permanente de que a Pessoa Segura era portadora à data do início do Seguro”.
13. Previamente à elaboração dessa proposta de subscrição, os AA. preencheram um questionário clínico, realizaram análises clínicas e sujeitaram-se a um exame clínico por médico escolhido pela Seguradora.
14. Os questionários clínicos foram assinados pelos AA., constando dos mesmos as respostas por estes fornecidas às questões ali colocadas.
15. Aquando da elaboração da proposta de subscrição, os AA. foram informados da cláusula de exclusão da responsabilidade constante das condições particulares, nos termos da qual apenas os trabalhadores da Caixa Económica ........ têm a cobertura de invalidez total e permanente.
16. As intervenções cirúrgicas a que a A. foi sujeita mencionadas em 2. e 3. não foram, em momento prévio à subscrição do contrato de seguro, informadas à Ré.
17. A Ré teve conhecimento da intervenção cirúrgica à hérnia discal cervical referida em 2., em data anterior a 23.04.2015.
18. A Ré teve conhecimento da intervenção cirúrgica ao colo do útero referida em 3., em 12.09.2016.
19. Em 18.02.2015 foi emitido atestado médico de incapacidade multiuso, nos termos do qual foi atribuída à A. uma incapacidade permanente global de 78%, com carácter permanente desde 2014.
20. Por carta datada de 12.03.2015 a A. participou à Ré a situação de incapacidade de que ficou a padecer para efeitos de acionamento do seguro.
21. A Ré, por carta datada de 07.04.2015, solicitou à A. o envio de diversa documentação.
22. Por carta datada de 20.04.2015 a A. informou a Ré da operação realizada no ano de 2005.
23. Por carta datada de 23.04.2015 a Ré solicitou à A. o envio de diversa documentação.
24. Por carta datada de 17.09.2015 a Ré informou a A. que a situação clínica analisada não se enquadra no art. 2 ponto 1 da Condição Especial da Apólice, que refutava qualquer responsabilidade e não procederia ao pagamento da indemnização.
25. Em 26.02.2015 os AA. tinham em dívida à Caixa Económica ........ a título de capital a quantia de € 243.811,93.
26. Por documento particular datado de 06.10.2016 os AA. declararam vender o imóvel que adquiriram com recurso ao empréstimo contraído junto da Caixa Económica .........
27. Entre 26.02.2015 e 05.10.2016 os AA. pagaram à referida instituição bancária as prestações que se foram vencendo relativas ao contrato de mútuo, no valor de € 15.915,72.
28. No dia 06.10.2016 os AA. pagaram à mesma instituição bancária o valor remanescente em dívida do contrato de mútuo, no valor de € 235.684,67.
29. Por força do que a Ré considerou anulada a respetiva apólice de seguro.
30. A A. apresenta sequelas incompatíveis com o exercício da atividade habitual de funcionária administrativa com carácter irreversível.
31. Mas compatíveis com outras atividades dentro da sua área de formação técnico profissional desde que com carácter parcial e que não exijam esforços físicos significativos.
32. A incapacidade permanente parcial resultante das doenças crónicas que apresenta desde 2005 e com evolução até 2015 é fixável em 66,6422%.


III – Abordemos, então, as questões de que nos cabe conhecer.
Mas, previamente, tem todo o interesse atentar nos argumentos e raciocínio que estiveram subjacentes à decisão emitida no acórdão recorrido.
Podem ser resumidos do seguinte modo:
- Ao contrato de seguro aqui em causa é aplicável o regime legal das cláusulas contratuais gerais, nomeadamente as regras relativas aos deveres de informação e comunicação e à proibição de cláusulas contrárias ao princípio da boa fé;
- Por ser violadora do princípio da boa fé é afastada a cláusula contratual que fazia depender a verificação do sinistro de invalidez absoluta e definitiva, da necessidade de assistência por terceira pessoa para os atos ordinários da vida corrente;
- Por a seguradora não ter provado que comunicou aos autores a definição de invalidez absoluta e definitiva constante da cláusula 2.ª das condições especiais da apólice – nomeadamente, na parte em que exige a incapacidade para o exercício, não só da sua profissão, mas ainda de qualquer atividade lucrativa – é tal cláusula considerada excluída;
- Recorrendo-se ao critério interpretativo constante do nº 1 do art. 236º do CC, entende-se que uma invalidez absoluta e definitiva é, para um declaratário normal, um estado da pessoa que a deixa totalmente (completamente, sem restrição) incapaz, para o resto da vida, de exercer a sua atividade, designadamente laboral, em termos de obtenção de meios de subsistência;
- Apesar de a IPP de 66,6422% não corresponder, apenas por si, a uma incapacidade absoluta e definitiva, a autora foi considerada incapaz para o exercício da sua profissão habitual de funcionária administrativa, com a consequente impossibilidade de exercício da atividade profissional que desenvolvia antes daquelas doenças terem assumido a gravidade descrita nos autos e determinado a correspetiva perda de remunerações;

- Admitindo o relatório pericial que a autora poderia exercer outras atividades dentro da sua área de formação técnico profissional, desde que com caráter parcial e sem esforços físicos significativos, não está demonstrado que tais atividades possam ser remuneradas ou que garantam o nível de remuneração que minimamente lhe permitiria satisfazer as responsabilidades financeiras decorrentes do mútuo contratado com o Banco;
- E, considerando o facto provado nº 8, entende-se que está verificada a situação de invalidez absoluta e definitiva;

- É irrelevante a falta de comunicação, por parte da autora, da intervenção cirúrgica feita em 2005 porque, sendo a mesma já do conhecimento da ré à data da contestação, é intempestiva a invocação da mesma pela ré feita, não neste articulado, mas apenas no articulado superveniente;
- Quanto à intervenção cirúrgica feita em 2008, que a ré conheceu desde 12.9.2016, deveria a ré tê-la invocado nos 10 dias posteriores à notificação, feita por comunicação eletrónica em 10.7.2017, da data designada para a audiência, pelo que a sua invocação apenas no articulado superveniente foi também intempestiva;
- Aliás, a lesão do colo do útero não provocou aquela invalidez, apenas tendo contribuído em 3,706425% para o coeficiente global de incapacidade;
- Não havendo factos reveladores de dolo na falta de comunicação da intervenção cirúrgica ao colo do útero, e não havendo nexo causal entre esta omissão e a divergência entre o risco previsto e o risco real, não pode essa omissão fundar a recusa de cobertura do sinistro;

- Sendo os autores terceiros interessados no cumprimento da prestação garantida pela ré, na medida em que assim se desoneravam do mútuo contraído perante o ........, ficaram, face ao nº 1 do art. 592º do CC, sub-rogados nos direitos do Banco, quer relativos às prestações vencidas após a reclamação do sinistro (€ 15.915,72), quer ao remanescente em dívida na data em que venderam o seu imóvel (€ 235.684,67).

E as críticas que a recorrente tece a esta decisão têm subjacente a seguinte argumentação:
I – Ao afirmar a nulidade da cláusula por violação do princípio da boa fé, devido ao segmento que fazia depender a invalidez absoluta e definitiva da “necessidade de assistência por terceira pessoa para os actos da vida corrente”, deveria ter-se deixado subsistir a parte da mesma cláusula que define essa invalidez como ocorrendo quando “a pessoa segura se encontrar totalmente incapaz para o exercício de qualquer actividade lucrativa" – conclusões 1ª a 4ª;
II – Conforme jurisprudência unânime da Relação e do STJ, o sentido atribuído por um declaratário normal à expressão “invalidez absoluta e definitiva” é o de que o “pagamento antecipado do Capital seguro é devido no caso de a Pessoa Segura se encontrar totalmente incapaz para o exercício de qualquer actividade lucrativa.” – conclusões 5ª a 8ª;
III – Tendo o articulado superveniente sido admitido como tempestivo pelos despachos de 20.10 e 26.9.2017, a não interposição imediata de recurso fez formar-se caso julgado formal, pelo que a tomada de posição do acórdão quanto à sua intempestividade envolve nulidade por excesso de pronúncia, nos termos das als. b) ou c) do nº 1 do art. 674º do CPC – conclusões 9ª a 12ª;
IV – Ao dizer não ser possível afirmar ter sido dolosa a omissão de informação das intervenções cirúrgicas na subscrição da proposta de seguro, o acórdão recorrido violou os princípios de apreciação e valoração da prova e o preceituado no art. 253º do CC e nos arts. 24º e 25º da Lei do Contrato de Seguro – conclusões 13ª a 20ª.

          Passaremos a tratar, sucessivamente, estas questões.

          Da afirmada nulidade da cláusula contratual geral:

A violação do princípio da boa fé na formação de uma cláusula contratual geral, gera a nulidade desta, por força da proibição resultante das disposições combinadas dos arts. 15º e 12º do  Dec. Lei nº 446/85, de 31.8.
      Defende a recorrente que a cláusula constante do nº 1 do art. 2º do Plano de Protecção ao Crédito à Habitação, cujo conteúdo se acha descrito no facto provado nº 10, só é afetada na sua validade quanto ao segmento onde se exige, para que haja invalidez absoluta e definitiva, a necessidade de recurso à assistência sistemática e definitiva de terceira pessoa para os atos ordinários da vida humana, pois só essa passagem – e já não aquela que menciona a incapacidade total para o exercício de qualquer atividade lucrativa – viola o referido princípio; assim, estoutra passagem, na tese da recorrente, é válida e aplicável ao caso.
Reconhecemos que este argumento da recorrente tem bom suporte na lei, atenta a sua conformidade com o princípio da redução do negócio jurídico quando este é viciado por nulidade parcial, como estabelece o art. 292º do Código Civil, no seu segmento inicial.
Todavia, esta nossa concordância já não abrange a conclusão que extrai no sentido da aplicabilidade do trecho da cláusula que define a invalidez absoluta e definitiva como sendo a que decorre de incapacidade total para o exercício de qualquer atividade lucrativa.
E isto porque o acórdão recorrido, para além de ter constatado a acima referida causa de nulidade, considerou também que todo o art. 2º do Plano de Protecção devia ter-se como excluído por a ré não ter demonstrado que comunicou aos autores o seu conteúdo, isto por força dos arts. 8º, al. a) e 5º do mesmo DL.
Este entendimento, que, aliás, nenhuma reação mereceu à recorrente, é de manter.


Dos riscos cobertos:

Em vista do que acaba de expor-se, apenas se pode considerar, na decisão a proferir, o que consta do facto provado nº 9: os riscos contratualmente previstos eram a morte ou a invalidez absoluta e definitiva, ou a invalidez total e permanente se a pessoa segura fosse trabalhador da Caixa Económica ........ e enquanto mantivesse essa condição.
A solução passa, pois, pela determinação, por via interpretativa, do conteúdo e sentido da expressão “invalidez absoluta e definitiva”.
         
Vejamos, então.
    Estamos perante uma cláusula predisposta pelo proponente – a seguradora – e à qual aderiram os autores, na sua qualidade de segurados.
Nos termos do art. 10º do DL nº 446/85, valem na interpretação das cláusulas com esta natureza as regras relativas à interpretação do negócio jurídico, mas sempre dentro do contexto do contrato singular em que se inserem.
Releva, pois, segundo a regra do nº 1 do art. 236º do Código Civil, o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real – o aderente – possa deduzir do comportamento do declarante – o proponente –, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
A previsão de invalidez absoluta e definitiva, tal como foi convencionada, é suscetível de ser entendida por um declaratário normal, que estivesse na situação dos reais declaratários, aqui autores, como uma situação em que a pessoa afetada se encontra num estado que a deixa totalmente (completamente, sem restrição) incapaz, para o resto da vida, de exercer a sua atividade, designadamente laboral, em termos de obtenção de meios de subsistência.
Assim o entendeu este STJ no seu acórdão de 29.03.2011[1] e, mais recentemente, no acórdão de 19.06.2018[2], lendo-se no sumário deste último, além do mais, o seguinte:
I - Uma incapacidade absoluta e definitiva – enquanto risco coberto por contrato de seguro de vida, individual, celebrado entre a autora, como tomador e pessoa segura, e a ré, como seguradora, em que ficou designado beneficiário irrevogável, o banco, com quem aquela e o marido haviam celebrado contrato de mútuo para aquisição de imóvel – refere-se, segundo um declaratário normal, a uma incapacidade para todo e qualquer trabalho e para o resto da vida, ao que não se equipara uma IPP de 80%.(…)”
Na mesma linha, também no acórdão do STJ de 22.01.2009[3] – citado no anterior –, a propósito da “invalidez absoluta definitiva”, enquanto risco coberto por contrato de seguro, se afirma “(…)à luz dum declaratário médio e medianamente sagaz – art. 236º do CC – não pode deixar de ser entendido como incapacidade absoluta e permanente para qualquer actividade e não apenas para o trabalho habitual da A., pois, doutro modo, ter-se-ia explicitado tal restrição.
Ou, ainda, como se escreveu no acórdão deste mesmo tribunal, proferido em 7.10.2010[4], é uma situação que não permite a quem dela se mostra afetado, a angariação, pelo trabalho, de meios de subsistência, por apresentar “(…) estado em que ficou impossibilitado de exercer qualquer actividade remunerada, assim ficando em situação idêntica, no fundo, quanto a tal valia, à que da morte lhe resultaria.”

     A situação em que a autora se encontra acha-se descrita nos factos julgados como provados nºs 30 a 32, cujo teor, relembre-se, é o seguinte:

- A A. apresenta sequelas incompatíveis com o exercício da actividade habitual de funcionária administrativa com carácter irreversível.

- Mas compatíveis com outras actividades dentro da sua área de formação técnico profissional desde que com carácter parcial e que não exijam esforços físicos significativos.

- A incapacidade permanente parcial resultante das doenças crónicas que apresenta desde 2005 e com evolução até 2015 é fixável em 66,6422%.
Está, pois, adquirido que a autora não pode continuar a desempenhar a atividade profissional anterior; mas está ao seu alcance o desempenho de funções de natureza idêntica – dentro da sua área de formação técnico profissional -, desde que com menor intensidade e exigindo menor esforço físico, o que é conciliável com uma situação de incapacidade parcial.

      Diz-se no acórdão recorrido: “(…) admitindo o relatório pericial que a A. poderia exercer outras actividades dentro da sua área de formação técnico profissional, desde que com carácter parcial e sem esforços físicos significativos, não está demonstrado que tais actividades possam ser remuneradas ou que garantam o nível de remuneração que minimamente lhe permitiriam satisfazer as responsabilidades financeiras decorrentes do mútuo contratado com o Banco.”

      É ideia que não acompanhamos, pois, a nosso ver e na linha do que considerou a 1ª instância, era à autora que cabia o ónus de demonstrar que a sua atual e subsistente capacidade de trabalho não lhe permite a angariação de remuneração, já que a situação de invalidez absoluta e definitiva é facto constitutivo do direito que aqui pretende fazer valer – art. 342º, nº 1 do CC.

       Sendo assim, não pode ter-se como verificada a situação de invalidez absoluta e definitiva que faria nascer o direito da autora a exigir da seguradora o pagamento da cobertura garantida pelo seguro.

       Alcançada esta conclusão, torna-se desnecessário apreciar as demais questões suscitadas pela recorrente que acima deixámos resenhadas.

IV – Pelo exposto, julgando-se a revista procedente, revoga-se o acórdão recorrido, subsistindo a absolvição do pedido decretada na 1ª instância.

         

Custas a cargo dos autores aqui e nas instâncias.

         

Lisboa, 17 de Outubro de 2019

Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho (Relatora)

Catarina Serra

Bernardo Domingos

_________________________


[1] proferido na revista nº 313/07.0TBSJM.P1.S1, relator Cons. Alves Velho, disponível em www.dgsi.pt
[2] revista nº 2300/15, relator Cons. Paulo Sá, acessível em www.dgsi.pt
[3] CJ STJ, Ano 2009, Tomo I, pág. 78-81, relator Cons. Custódio Montes  
[4] Revista nº 1583/06.7TBPRD.L1.S1, relator Cons. Serra Baptista, disponível em www.dgsi.pt