ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
DUPLA CONFORME
PRIVAÇÃO DO USO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Sumário


I. A dupla conforme está afastada, quando o acórdão recorrido não confirmou a sentença proferida na 1.ª instância e condenou em indemnização de valor inferior.
II. O dano, pela privação do uso, resulta do facto ilícito e culposo, e, enquanto esse facto subsistir, há sempre dano.
III. Na fixação da indemnização sob o critério da equidade, a intervenção corretiva do Supremo Tribunal de Justiça justifica-se apenas em caso da indemnização ter sido fixada fora da margem de discricionariedade consentida.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




I – RELATÓRIO


AA - Construções, Representações e Gestão Imobiliária, Lda, instaurou em 30 de janeiro de 2015, na então Instância Local de …, Comarca de Lisboa Oeste, contra Município de BB, União de Freguesias de … e … e CC - Engenharia e Construção, Lda., ação declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que os Réus fossem condenadas a remover a vedação dos lotes, proceder à limpeza do terreno e a desocupá-lo, deixando-o livre de pessoas e bens, a pagar-lhe a quantia correspondente ao valor locativo por m2, do espaço ocupado nos seus lotes, entre 3 de maio de 2010 e a data da restituição dos lotes, acrescida dos juros moratórios por cada mês de ocupação dos lotes.

Para tanto, alegou, em síntese ser proprietária dos lotes 2, 5 e 7 para construção sitos no terreno conhecido por Bairro …, em …, e cuja área remanescente à dos seus lotes é propriedade do R.; em 8 de junho de 2010, para dar apoio a uma obra do R., a R. União de Freguesias “cedeu” à R. CC parte do referido terreno, para a instalação de um estaleiro de obra, com a duração de 900 dias, a partir de 3 de maio de 2010; a R. CC, instalando o estaleiro, procedeu à vedação em malha de arame de uma grande parte da área do terreno, com um portão fechado a cadeado, de acordo com instruções da R. União de Freguesias e com a aprovação do R.; os seus lotes estão situados dentro do espaço vedado, encontrando-se, desde 3 de maio de 2010, desapossado dos mesmos; por ação dos RR., encontra-se privada do seu uso, fruição e disposição; e se tivesse podido colocar no mercado de arrendamento os lotes, para serventia de estaleiro de obra, embolsaria um valor locativo mensal. 

Contestaram os dois primeiros RR., por impugnação, alegando designadamente não existir demarcação física dos lotes e concluindo pela improcedência da ação.

Contestou também a R. CC, por exceção, invocando a prescrição do direito à indemnização, e por impugnação, alegando nomeadamente que atuou sob a orientação da outra R., convicta de que o terreno, dominado por mato e sem condições de ser rentabilizado sem a sua intervenção e limpeza, pertencia àquela R., e concluindo pela improcedência da ação.

Fixado o valor da ação em € 857 740,00, o Tribunal declarou-se incompetente, em razão do valor, sendo o processo remetido à então Instância Central Cível.

Depois da resposta da A. à matéria de exceção, foi proferido o despacho saneador, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 8 de junho de 2018, sentença, que, julgando a ação parcialmente procedente, condenou apenas a R. União de Freguesias … e … a restituir à Autora os lotes 5 e 7, correspondentes aos imóveis descritos, sob os n.º s 6…6/20111118 e 6…7/20111118, na Conservatória do Registo Predial de …, desocupando-os, e removendo a vedação e o portão e entregando-os livres e desocupados de pessoas e bens; condenou também a mesma R. a pagar à A. a quantia de € 120 000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento, bem como como a quantia mensal de € 1 800,00, desde a data da sentença até à efetiva restituição.


Inconformadas, a Autora e a Ré União de Freguesias de … e … apelaram para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 4 de abril de 2019, julgou improcedente o recurso da Autora e, dando apenas procedência parcial ao recurso da Ré União de Freguesias de … e …, condenou esta a pagar à Autora apenas a quantia de € 53 750,00, acrescida de juros de mora considerados na sentença, bem como a quantia mensal de € 1 250,00, desde a sentença até à efetiva restituição ordenada.


Inconformada ainda, a Autora recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou essencialmente as conclusões:


a) A Presidente da Junta teve consciência de estar a ocupar terrenos alheios, da Recorrente, designadamente a partir da citação.

b) A Recorrida agiu com dolo.

c) O prejuízo verifica-se desde o início da ocupação, em junho de 2010.

d) O valor indemnizatório fixado é arbitrário.

e) Tomando em consideração o valor de € 4,50/m2, a partir dos factos relatados pelos Peritos, bem como a área ocupada e o tempo de ocupação, o valor locativo mensal, por m2, passará a ser de € 2 352,83 e a indemnização, pela ocupação de 8 de junho de 2010 a 8 de junho de 2018, o valor de € 225 871,68 e, após a última data, o valor mensal de € 1 800,00.

f) No acórdão recorrido, foram violados os artigos 4.º, 494.º e 566.º, n.º 3, do Código Civil, e 607.º, n.º 4, do CPC.


Com a revista, a Recorrente pretende a revogação do acórdão na parte em que fixou o quantum indemnizatório pela privação do uso.


Contra-alegou a Ré União de Freguesias de … e …, no sentido da improcedência do recurso contrário, para além de considerar inadmissível o recurso por efeito da dupla conforme e do disposto no n.º 3 do art. 674.º do CPC.


Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


Neste recurso, para além da inadmissibilidade do recurso, está essencialmente em discussão o valor da indemnização pelo privação do uso de terrenos.



II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. No acórdão recorrido, foram dados como provados os seguintes factos:


1. A A. é proprietária de três lotes de terreno para construção, que se situam na Avenida …, tornejando para a Avenida …, em …, …, inseridos num terreno de área maior, que é conhecido como Bairro …, e que, na área remanescente aos lotes pertencentes à A., são propriedade do R.

2. Esses lotes estão identificados no registo como lote 2, lote 5 e lote7.

3. O lote 2 encontra-se descrito, na Conservatória de Registo Predial de …, sob o n.º 645, Freguesia de …, e situa-se na Avenida …, tendo a área de 252 m2.

4. O lote 5 encontra-se descrito, na Conservatória de Registo Predial de …, sob o n.º 646, Freguesia de …, e situa-se na Avenida …, tendo a área de 270,85 m2.

5. O lote 7 encontra-se descrito, na Conservatória de Registo Predial de …, sob o n.º 647, freguesia de …, e situa-se na Avenida …, tendo a área de 252 m2.

6. A formação dos lotes referidos em 3, 4 e 5 resultou da aprovação de um projeto de loteamento camarário, que incluía a constituição de 16 lotes (alterado pela Relação).

7. A localização dos 3 lotes da A., embora não delimitados fisicamente no terreno, têm a configuração constante da planta de fls. 11 e que faz parte do processo de loteamento (alterado pela Relação).

8. Em 8 de junho de 2010, a Presidente da Junta de Freguesia de …, DD, emitiu a declaração constante de fls. 12, da qual resulta que “no âmbito da empreitada «Remodelação da Rede de Abastecimento de Água em …», da responsabilidade do SMAS de …, declaramos ter cedido à empresa CC, S.A. (…), parte do terreno «Bairro …», para a instalação do estaleiro para a referida empreitada, a partir do dia 3 de maio de 2010 e pelo prazo de 900 dias”.

9. Ao abrigo de tal declaração e contemporaneamente à mesma, a R. CC instalou no referido terreno um estaleiro de materiais de obras.

10. Para materializar a instalação do estaleiro, a R. CC procedeu à vedação em malha de arame de uma grande parte da área total do terreno.

11. Os limites da vedação são os que constam assinalados a traço branco na fotografia aérea de fls. 13v.

12. Os referidos lotes 5 e 7 estão inseridos dentro da área maior que, na sequência da instalação do estaleiro, foi vedada pela R. CC (alterado pela Relação).

13. Para rematar a vedação, a mesma R. implantou um portão em ferro e arame, fechado a cadeado, através do qual se fazia o trânsito de pessoas e veículos, bem como o transporte de materiais.

14. Desde aquela data e enquanto durou a obra que o terreno vedado, incluindo os lotes da A., passou a ser utilizado pela R. CC, como estaleiro para depósito de materiais de construção, restos de obra e aparcamento de máquinas.

15. Após o termo da obra, a utilização daquele espaço por terceiros manteve-se.

16. Em janeiro de 2015, encontrava-se no terreno uma placa derrubada, identificativa da R. CC, materiais e uma máquina aparcada, estes últimos não pertencentes àquela R.

17. Bem como se mantinha a vedação e o portão em ferro e arame fechado a cadeado.

18. A utilização dos lotes da A. foi feita à sua revelia e sem a sua autorização.

19. Não dispondo a A. de chave do cadeado do portão por forma a aceder aos seus lotes.

20. Em 13 de novembro de 2014, a A. enviou à R. Oliveiras a carta de fls. 107v. e 108, com o seguinte teor, na parte relevante, “ (…) a nossa cliente, supra identificada, é proprietária de 3 lotes de terreno para construção, designados por lotes 2, 5 e 7, conforme se mostram em planta que se junta. (...) Estes lotes de terreno para construção estão implantados num terreno de área maior em que a área sobrante é propriedade da Câmara Municipal de … . Sucede que há cerca de 4 anos a V. empresa procedeu à vedação, em malha de arame, de uma grande parte da área total do terreno, abrangendo nessa vedação, todos os lotes de terreno de que a nossa constituinte é proprietária. A vossa empresa construiu e implantou no local um portão em ferro e arame, através do qual é feito o trânsito de pessoas e veículos, entre o interior e o exterior do espaço vedado. Desde aquela altura que o terreno vem sendo utilizado pela vossa empresa como estaleiro, para depósito de matérias de construção e restos de obra e para estacionamento de máquinas. Sucede que a nossa cliente não deu autorização, nem para a vedação, nem para a utilização do espaço correspondente aos lotes de terreno de que é proprietária. Pretende a nossa constituinte que V. Exas. mandem proceder à remoção da vedação instalada e à limpeza do local. Parece-nos que um prazo de 30 dias é razoável para o poderem fazer. Aguardaremos por isso pelo transcurso deste prazo para que o terreno fique limpo e livre da vedação. A nossa constituinte pretende, também, que V. Exas. a compensem pelo tempo durante o qual estiveram a usar indevidamente, e com proveito, os seus lotes de terreno. Pensamos que o mesmo prazo de 30 dias é, igualmente, suficiente para nos fazerem chegar uma proposta de pagamento de um valor suficientemente compensatório. Por isso, ficaremos a aguardar, durante esse prazo, pelo recebimento da referida proposta (…). Uma vez que a situação referida contende, de algum modo, com interesses da Câmara Municipal de …, tomamos a liberdade de lhe remeter, nesta data, cópia da presente correspondência (...) ”.

21. A esta carta respondeu a R. CC com a missiva de fls. 12v e 13, datada de 25 de novembro de 2014, que se reproduz nas partes relevantes: “ (…) recebida a vossa carta (…), cumpre-nos esclarecer e informar o seguinte: No âmbito da execução de obra pública acima referida, feita para os SMAS de …, em …, a junta de freguesia de … cedeu-nos um terreno seu, para a instalação de estaleiro de materiais de obra – ver doc. 1 em anexo. A montagem da vedação do terreno foi efetuada de acordo com as instruções prestadas pela Junta de Freguesia e mereceu a aprovação do dono da obra, os SMAS de … – ver doc. 2 em anexo. No final dos trabalhos da empreitada, setembro de 2012, entregámos o referido terreno à Junta de Freguesia, nos termos em que as fotos constantes do doc. 3 documentam, isto é, isento de resíduos ou detritos de obra (…). Por solicitação da Junta de Freguesia, deixou-se ficar a vedação e portão munido de cadeado sendo as chaves entregues à junta de freguesia. A CC, S.A., desconhece a utilização que agora é feita do espaço acima referido e assinalado na planta anexa; É abusiva a conclusão que retiram e que registam na vossa carta quando afirmam que “...o terreno vem sendo utilizado pela vossa empresa como estaleiro...” pois isso é falso e não pode ser comprovado. Face ao exposto, conforme documentado, deve essa sociedade de advogados dirigir-se à Junta de Freguesia a fim de obter os esclarecimentos que pretende (…) ”.

22. Nunca foi feito qualquer pedido de uso dos lotes à A., bem como não lhe foi dado conhecimento da situação, da mesma forma que a A. não deu autorização quer para a colocação da vedação, quer para a utilização dos lotes.

23. No local onde se situam os lotes não existem terrenos disponíveis para ocupação temporária destinada a estaleiro de obras.

24. O arrendamento de armazéns na zona dos lotes ronda os € 5,00/m2.

25. A obra de «Remodelação da Rede de Abastecimento de Água em …» foi coordenada pelos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de … .

26. Para execução de tal obra, e considerando que a sede da R. CC é na …, esta solicitou ao Município de BB que indicasse se tinha algum imóvel onde pudesse instalar o estaleiro de obra ou algum conhecimento ou contacto que referenciasse.

27. Neste contexto, o R. sugeriu-lhe que entrasse em contacto com a R. União de Freguesias, a fim de a mesma disponibilizar um espaço que servisse de apoio à obra.

28. Após contacto estabelecido entre a R. CC e a Presidente da Junta de Freguesia, foi-lhe indicado parte do imóvel designado por “Bairro …(alterado pela Relação).

29. A mesma R. muniu-se de declaração escrita emitida pela então Junta de Freguesia de … .

30. As contrapartidas pela utilização do terreno seriam que o mesmo fosse entregue após o termo das obras e que fosse deixado limpo.

31. Na altura em que a R. CC instalou o estaleiro o terreno estava cheio de mato e silvas.

32. Não obstante a receção da obra ter ocorrido em novembro de 2013, a mesma R. terminou os trabalhos em setembro de 2012.

33. Quando o imóvel estava em condições de ser entregue, um empreiteiro que trabalhava para a Junta de Freguesia aconselhou a Presidente a pedir à R. CC para deixar ficar a vedação e portão.

34. Ao que a Presidente da Junta de Freguesia de … acedeu.

35. A R. CC, em conformidade, procedeu à limpeza integral do espaço que lhe esteve cedido e entregou as chaves do cadeado do portão.

36. À data da instalação do referido estaleiro, o terreno não estava em condições de ser rentabilizado, a não ser para o uso como estaleiro.

37. Desde que a R. CC deu a obra por concluída nunca mais utilizou o estaleiro.

38. Em outubro de 2014, a A. recebeu da CMS um ofício sujeito à “proposta de alteração ao fracionamento camarário do terreno em … constituído pela declaração de 30 de julho de 1990” (aditado pela Relação).

39.  Em resposta a esse ofício, a A., em novembro de 2014, enviou à CM… carta registada com AR, referindo que em virtude das vicissitudes sofridas no âmbito do processo administrativo, por ação e omissão do Município, a A. não havia dado aos lotes “o destino para que haviam sido comprados: construir e vender”, o que lhe causa prejuízos, não se podendo essa situação manter, intentando a A. instaurar contra a CM… ação de indemnização, apresentar junto dos serviços da CM… projeto de construção e proceder no terreno à demarcação física dos lotes – tudo isto se a CM…, no prazo de 60 dias, não resolvesse a situação e não indemnizasse a A. dos prejuízos sofridos (aditado pela Relação).



***



2.2. Delimitada a matéria de facto, alterada pela Relação e expurgada de redundâncias, importa conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, nomeadamente da quantificação da indemnização, pela privação do uso de terrenos.

Antes, porém, interessa conhecer da questão prévia da inadmissibilidade do recurso, suscitada pela Recorrida.

Para o efeito, a Recorrente alega a situação de dupla conforme, nos termos do art. 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), e o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não poder ser objeto de revista (art. 674.º, n.º 3, do CPC).

Desde logo, a dupla conforme está claramente afastada, porquanto o acórdão recorrido não confirmou a sentença proferida na 1.ª instância, tendo condenado numa indemnização de valor inferior, quando a dupla conforme, para além do mais, exige a confirmação da sentença.

O caso do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de maio de 2014, citado pela Recorrida em favor da alegada inadmissibilidade do recurso, é, porém, diverso do dos presentes autos, porquanto naquele caso a Relação alterou para mais o valor da indemnização atribuída na sentença, enquanto, no caso vertente, a alteração da indemnização foi para um valor menor. Na verdade, no acórdão recorrido, o valor da indemnização até à sentença foi fixado na quantia de € 53 750.00, enquanto o valor da indemnização respeitante ao período posterior foi determinado na quantia mensal de € 1 250,00. Ao invés, a sentença proferida na 1.ª instância fixou tais valores em € 120 000,00 e € 1 800,00, respetivamente.

Por isso, não se verificando a situação de dupla conforme, a revista é admissível, nos termos do disposto no art. 671.º, n.º 1, do CPC.


Por outro lado, quanto à circunstância do objeto do recurso incluir o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, tal determina, sobretudo, a improcedência do recurso nesse âmbito específico, nomeadamente à luz do disposto na 1.ª parte do n.º 3 do art. 674.º do CPC.

Com efeito, conhecendo o Supremo Tribunal de Justiça de direito, a revista tem de ter, sempre, como objeto uma questão de direito, possibilitando a sua admissibilidade.

Baseando-se a revista também em questões de direito, a inadmissibilidade da revista, arguida pela Recorrida, carece de fundamento.

Nestes termos, improcede, manifestamente, a questão prévia, nada obstando à admissibilidade da revista e ao conhecimento do seu objeto. 

   

2.3. O acórdão recorrido, divergindo da sentença proferida na 1.ª instância, que fixara a indemnização, pela privação do uso dos lotes de terreno, na quantia de € 120 000,00, até à data da sentença, e na quantia mensal de € 1 800,00, para depois da sentença, condenou a Recorrida no pagamento da indemnização de € 53 750,00 e € 1 250,00, respetivamente.

A Recorrente, porém, pretende que a indemnização seja fixada nos correspondentes valores de € 225 871,68 e € 1 800,00.

Descrita sumariamente a controvérsia, interessa então ponderar o quantum da indemnização pela privação do uso de dois lotes de terreno, ilicitamente ocupados pela Recorrida, a qual, por sua vez, se conformou com a indemnização fixada pelo acórdão recorrido.


O princípio geral da obrigação de indemnização encontra-se definido no art. 562.º do Código Civil (CC), nos termos do qual “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.

Por efeito desta norma legal, que não é absoluta, está consagrada a chamada teoria da diferença, nos termos da qual a situação patrimonial do lesado deve ser reconstituída como se não se tivesse ocorrido o evento, de modo a reparar, integralmente, o prejuízo sofrido.

A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição não for possível, não repare integralmente os danos ou, ainda, for excessivamente onerosa para o devedor (art. 566.º, n.º 1, do CC).

A lei aponta, de forma clara, no sentido da indemnização ser feita, prioritariamente, pela reconstituição natural, constituindo o meio ideal de reparação ou compensação dos danos sofridos pelo lesado.

No entanto, a reconstituição natural pode não ser possível, suficiente ou idónea. Nestas circunstâncias, a indemnização é fixada em dinheiro, constituindo uma das chamadas dívidas de valor (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, I, 10.ª edição, 2004, págs. 905 e 906, e M. J. ALMEIDA COSTA, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 134.º, 2002, pág. 297).

A indemnização pecuniária é medida pela diferença entre a situação patrimonial (real) em que ficou o lesado e a situação patrimonial (hipotética) em que se encontraria se não tivesse existido o dano (art. 566.º, n.º 2, do CC).

Desta formulação, sobre a avaliação pecuniária, emerge também a consagração da teoria da diferença.


Já se salientou que a questão essencial desde autos é a determinação do valor da indemnização pela ocupação ilícita dos lotes de terreno, quer pela extensão temporal da ocupação, quer pelo valor locativo dos lotes de terreno.

Com efeito, a ilicitude e culpa da ocupação está assente, sendo indiferente que tenha sido resultado de ação dolosa ou negligente. A questão da culpa não influiu, como em abstrato podia ter sido, nos termos do disposto no art. 494.º do CC, na fixação da indemnização constante do acórdão recorrido, nomeadamente em montante inferior ao valor correspondente aos danos causados, ao contrário do que sucedera na sentença. Não obstante o acórdão tivesse qualificado a conduta da Recorrida como sendo de “mera culpa”, não retirou consequências no âmbito do referido art. 494.º do CC, limitando a indemnização. Por isso, e uma vez que a discussão concreta da indemnização é alheia a essa circunstância, a questão da modalidade da culpa, trazida aos autos pela Recorrente, acaba por se revestir como irrelevante, neste caso, para a determinação da indemnização.


Por outro lado, também não está em causa a indemnização pela privação do uso dos lotes de terreno resultante da sua ocupação ilícita e culposa, reconhecida por ambas as instâncias, embora quantitativamente diferenciada.

A diferenciação começa, desde logo, quanto à extensão temporal do dano. Na verdade, o acórdão recorrido considerou o dano, pela privação do uso, a partir de dezembro de 2014, dado ter sido a partir dessa ocasião que a Recorrente se “empenhou” no destino dos terrenos e na remoção da ocupação. A sentença, por sua vez, reportara o dano a maio de 2010, correspondente ao momento do início da ocupação.

A Recorrente, no recurso, pugna pelo entendimento seguido na sentença.

O dano, pela privação do uso, resulta do facto ilícito e culposo, de modo que, enquanto subsiste aquele facto, há sempre dano, porquanto quem, com legitimidade, vinha fruindo a coisa, está impedido de o fazer, nomeadamente por efeito do facto ilícito. O dano equivale à privação ilícita do uso da coisa, sendo indiferente, nesta especificidade, o momento do conhecimento do facto ilícito pelo titular do direito real violado. O desconhecimento por esse titular do direito do facto ilícito não obsta ao dano pela privação do uso.

De outro modo, estar-se-ia a contrariar, frontalmente e sem justificação válida, o princípio geral da obrigação de indemnização, para o qual, como se viu, releva o evento que obriga à reparação do dano (art. 562.º do CC).

Resulta da materialidade apurada que a ocupação dos lotes 5 e 7 pertencentes à Recorrente, para a instalação do estaleiro de obra, ocorreu a partir de 8 de junho de 2010 (factos n.º s 8 e 9), o que também difere do sentido seguido na sentença. Embora a declaração escrita de 8 de junho de 2010, imputada à Presidente da Junta de …, especifique a data de 3 de maio de 2010, o certo é que a instalação do estaleiro, que consumou a ocupação dos lotes de terreno, ocorreu contemporaneamente com tal declaração, como emerge do facto descrito sob o n.º 9.

Nestas circunstâncias, o dano pela privação do uso dos lotes de terreno, decorrente da instalação do estaleiro de obra, verifica-se a partir de 8 de junho de 2010, devendo a indemnização ser fixada nessa conformidade.


A outra questão suscitada no recurso prende-se com a avaliação do dano da privação do uso dos lotes de terreno.

Enquanto o acórdão recorrido e a sentença fixaram, por metro quadrado, o valor locativo de € 3,00 e € 3,75, respetivamente, a Recorrente apontou, na alegação, para a quantia de € 4,52/m2.

Não se discute que a indemnização pelo dano da privação do uso dos lotes de terreno, ocupados pela instalação do estaleiro, deve corresponder ao valor locativo de tais lotes de terreno, na ausência de qualquer outro destino.

Apesar da argumentação despendida pela Recorrente, deve manter-se o valor fixado pela Relação.

Desde logo, a fixação do valor locativo do terreno consubstancia mais uma questão de facto do que de direito, cuja última palavra, quanto àquela, compete à Relação. Por outro lado, quando possa corresponder ao resultado de um mero juízo de equidade, por efeito do disposto no art. 566.º, n.º 3, do CC, deve o Supremo Tribunal de Justiça respeitar o valor fixado pela Relação porque o juízo com base no critério da equidade assenta numa ponderação prudencial das circunstâncias concretas do caso, justificando-se a intervenção corretiva apenas em caso da indemnização ter sido fixada fora da margem de discricionariedade consentida (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de fevereiro de 2017 (5 808/12.1TBALM.L1.S1), acessível em www.dgsi.pt).

Não é esse, no entanto, o caso dos autos, porquanto o valor locativo apurado, a partir da perícia coletiva realizada, é de € 5,00/m2 (fls. 471v.), com referência a armazéns localizados na zona (facto n.º 24). Naturalmente, ainda que na zona não existam terrenos disponíveis para estaleiros de obras, o terreno dos lotes encontrava-se, então, cheio de mato e silvas. Neste estado, de ostensivo abandono, é evidente que o valor locativo não pode equivaler, ainda que aproximadamente, ao valor locativo dos armazéns da zona, que pressupõe investimento na construção das edificações e na sua manutenção, o qual não se verificou.

Nestas circunstâncias, o valor locativo de € 3,00/m2, aceite pela Relação, afigura-se adequado, estando dentro dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o juízo de equidade, nos termos do art. 566.º, n.º 3, do CC, e, como tal, não carece de qualquer modificação, justificando-se a fixação da indemnização pela privação do uso dos lotes de terreno, no valor mensal de € 1 250,00.

Deste modo, e considerando ainda a privação do uso a partir de 8 de junho de 2010 e a data da sentença (8 de junho de 2018), a indemnização referente a tal período temporal deve ser fixada em € 120 000,00, quantia coincidente com o valor da sentença, mas com base em pressupostos diversos.


Nesta conformidade, procedendo parcialmente as conclusões da revista, justifica-se a alteração do acórdão recorrido, nomeadamente no sentido enunciado.

  

2.4. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

 

I. A dupla conforme está afastada, quando o acórdão recorrido não confirmou a sentença proferida na 1.ª instância e condenou em indemnização de valor inferior.

II. O dano, pela privação do uso, resulta do facto ilícito e culposo, e, enquanto esse facto subsistir, há sempre dano.

III. Na fixação da indemnização sob o critério da equidade, a intervenção corretiva do Supremo Tribunal de Justiça justifica-se apenas em caso da indemnização ter sido fixada fora da margem de discricionariedade consentida.


2.5. A Recorrida e a Recorrente, ao ficarem vencidas por decaimento, são responsáveis pelo pagamento das respetivas custas, nas diversas instâncias, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC.



III – DECISÃO


Pelo exposto, decide-se:


1) Conceder a revista parcial, alterando o acórdão recorrido, no sentido da condenação da Ré União de Freguesias de … e … pagar à Autora a quantia de € 120 000,00 (cento e vinte mil euros), a título de indemnização pela privação do uso dos lotes de terreno, desde 8 de junho de 2010 a 8 de junho de 2018, e confirmando no demais.


2) Condenar a Recorrida (Ré) e a Recorrente (Autora) no pagamento das respetivas custas, nas diversas instâncias.


Lisboa, 17 de outubro de 2019


Olindo dos Santos Geraldes (Relator)

Maria do Rosário Morgado

Oliveira Abreu