I - Nos presentes autos, em que é arguido X, por acórdão de 14-6-2018 foi decidido condenar o mesmo pela prática, em autoria material, «na forma consumada, e em concurso real de:
- um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1 e 2, do CP, na pena 3 (três) anos de prisão;
- um crime de violação, p. e p. pelo art. 164.º, n.º 2, al. a), do CP, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
- quatro crimes de violação, p. e p. pelo art. 164.º, n.º 1, al. a), do CP, cada um deles na pena de 5 (cinco) anos de prisão;
- um crime de violação, p. e p. pelo art. 164.º, n.º 1, al. a), do CP, na pena de 4 (quatro) anos de prisão;
b) Efectuando o cúmulo jurídico das penas supra, aplicar-lhe a pena única de 11 (onze) anos de prisão, e na sanção acessória de proibição do contacto com a assistente, nomeadamente de afastamento da sua residência e do seu local de trabalho, durante 5 (cinco) anos.
c)Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado, e em conformidade condenar o arguido a proceder ao pagamento à assistente da quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros), acrescido de juros legais desde a data da prolação da decisão até integral pagamento, a título de indemnização civil.»
II - O Tribunal da Relação de Lisboa, por força de interposição de recurso do arguido, por acórdão de 06-12-2018, decidiu: «Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido/recorrente e, em consequência, alterando o acórdão recorrido, condenam o arguido como autor material de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. a), do CP, e punido nos termos do crime de violação, previsto no art. 164.º, n.º 1, al. a), do CP, na pena de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão.» mantendo, no mais, o decidido no acórdão recorrido.
III - Novamente inconformado, recorreu o arguido agora para este STJ, invocando a nulidade da decisão, os vícios da decisão e a medida da pena, que em seu entender nunca deverá superior a 5 anos de prisão, suspensa na sua execução.
IV - A Relação todavia entendeu que o recorrente não cumpriu o ónus imposto pela al. b) do n.º 3 do art. 412.º do CPP e que, por isso, lhe estava vedada a alteração da matéria de facto.
O n.º 3 do art. 417.º do CPP tem em vista a motivação:
- com conclusões onde falhem, total ou parcialmente, as indicações previstas nos n.ºs. 2 a 5 do art. 412.º; ou.
- apresentada sem conclusões.
Verificadas tais falhas, o relator convida o recorrente a «completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afetada.» ou, no caso de a motivação não ter conclusões, convida o a «apresentá las em 10 dias sob pena de o recurso ser rejeitado» (itálico nosso).
E, de acordo com o n.º 4, o aperfeiçoamento previsto no número antecedente não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação.
Donde resulta que a falha ou deficiência na motivação, como acontece no caso presente, não tenha o mesmo significado, nem a mesma consequência, da falha ou deficiência nas conclusões (cfr. anotações n.º 2 e 3 ao art. 412.º e n.º 3 ao art. 414.º). Aspecto que resulta vincado na redacção do n.º 3 proveniente da L 20/2013.
Bem andou a decisão em crise.
Não se verifica omissão de pronúncia quando o Tribunal conhece da questão que lhe é colocada, mesmo que não aprecie todos os argumentos invocados pela parte em apoio da sua pretensão. A omissão de pronúncia, conforme jurisprudência consolidada, só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo se por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidos pelas partes na defesa das teses em presença.
Ora o Tribunal recorrido pronunciou-se sobre a questão da impugnação da matéria de facto, não existindo qualquer omissão de pronúncia.
V - Constitui jurisprudência uniforme do STJ a de que o recurso da matéria de facto, ainda que circunscrito à arguição dos vícios previstos nas als. a) a c) do n.º 2 do art. 410.º, do CPP, tem de ser dirigido ao Tribunal da Relação e que da decisão desta instância de recurso, quanto a tal aspecto, não é admissível recurso para o STJ. É que o conhecimento daqueles vícios, constituindo actividade relacionada com a matéria de facto, excede os poderes de cognição do STJ, enquanto tribunal de revista, ao qual apenas compete, salvo caso expressamente previsto na lei, conhecer da matéria de direito, só conhecendo aqueles vícios, por sua iniciativa própria, nos circunscritos casos em que a sua ocorrência tome impossível a decisão da causa, assim evitando uma decisão de direito alicerçada em matéria de facto manifestamente insuficiente, visivelmente contraditória ou viciada por erro notório de apreciação.
VI - Não merece igualmente censura o aresto em crise relativamente à medida da pena (8 anos e 6 meses de prisão).
Na verdade, o mesmo atentou na elevada ilicitude, no dolo directo.
Atendeu também, além do mais, à humilhação infligida à assistente durante anos, à sua confissão parcial.
Levou em conta, igualmente, as necessidades de prevenção, nomeadamente a prevenção especial «decorrentes do facto de o arguido não ter interiorizado o valor ou erro do seu procedimento».
I. - RELATÓRIO
1. Nos presentes autos (Proc. 150/17.4JASTB) do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa—Juízo Central de ..., por acórdão de 14/6/2018, foi o arguido AA condenado nos seguintes termos (transcrição):
«IV - Decisão
Pelo exposto o tribunal colectivo decide:
a) Julgar procedente a acusação deduzida contra o arguido condenando, em conformidade, como autor material, na forma consumada, e em concurso real de:
- um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1 e 2,do Código Penal, na pena 3 (três) anos de prisão;
- um crime de violação, p. e p. pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
- quatro crimes de violação, p. e p. pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, cada um deles na pena de 5 (cinco) anos de prisão;
- um crime de violação, p. e p. pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão;
b) Efectuando o cúmulo jurídico das penas supra, aplicar-lhe a pena única de 11 (onze) anos de prisão, e na sanção acessória de proibição do contacto com a assistente, nomeadamente de afastamento da sua residência e do seu local de trabalho, durante 5 (cinco) anos.
c) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado, e em conformidade condenar o arguido a proceder ao pagamento à assistente da quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros),acrescido de juros legais desde a data da prolação da decisão até integral pagamento, a título de indemnização civil.»
Recurso do arguido
A) Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido/recorrente e, em consequência, alterando o acórdão recorrido, condenam o arguido como autor material de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº1, al. a) do Código Penal, e punido nos termos do crime de violação, previsto no artigo 164º, nº1, al. a) do C.Penal, na pena de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão.
B) Manter, no mais, o decidido no acórdão recorrido.»
3. Novamente inconformado, recorre o arguido agora para este Supremo Tribunal de Justiça (fls. 686-698) nos seguintes moldes (conclusões): «
1 - Nos presentes autos o recurso de apelação interposto pelo Arguido foi parcialmente procedente, condenado o Arguido, em concurso aparente, pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º do Código Penal, com a pena aplicável ao crime de violação, previsto no artigo 164º, n.º 1 do mesmo diploma legal, aplicando a pena de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão efectiva.
2 - Todavia, a douta decisão de que ora se recorre é nula por omissão de pronúncia quanto à reapreciação da prova produzida em audiência de julgamento, não podendo o Arguido aceitar que a decisão recorrida não tenha em qualquer consideração as exigências de prevenção especial que se encontram asseguradas nos autos, procedendo a uma errada aplicação da medida da pena.
DA NULIDADE DO ACÓRDÃO
3 - Contrariamente ao entendimento do douto Tribunal, o Recorrente procedeu à indicação expressa dos meios de prova que imporiam uma decisão diferente à proferida nos autos, tendo procedido à transcrição dos depoimentos das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento.
4 - Impunha-se ao douto Tribunal que procedesse a uma reapreciação da prova gravada, tendo em conta os depoimentos transcritos e indicados pelo Recorrente que denotavam elementos e características da Assistente que, de acordo com as regras da experiência, teriam de resultar numa decisão distinta, nomeadamente no grau de culpabilidade do Arguido.
5 - O douto Tribunal deveria ter procedido à reapreciação da prova produzida nos autos, analisando as incongruências dos testemunhos indicados pelo Recorrente e que foram totalmente ignoradas em sede de primeira instância.
6 - Por tal facto, todas as declarações do Arguido foram desvalorizadas em total violação pelos mais elementares direitos de defesa que lhe assistem, invertendo-se o princípio do in dubio pro reo.
7 - Pelo que o douto acórdão padece de nulidade por omissão de pronúncia sobre as questões que lhe foram submetidas dada a correcta impugnação da matéria de facto apresentada pelo Recorrente, devendo o acórdão condenatório ser nulo nos termos do artigo 379º, n.º 1, alínea c), primeira parte do Código de Processo Penal.
DOS VÍCIOS DA DECISÃO
8 - O douto Tribunal a quo não fundamentou a ausência de vícios de conhecimento oficioso, confirmando genericamente a decisão proferida pela primeira instância, devendo o acórdão ser anulado por forma a assegurar o duplo grau de jurisdição em matéria de facto, determinando-se a baixa do processo.
9 - Ao douto Tribunal era imposto que analisasse a decisão recorrida o que permitira constatar não ter sido analisados todos os elementos da prova testemunhal dos autos que não permitem sustentar a decisão de direito proferida nos autos ou sequer a matéria de facto dada como provada.
10 - A douta decisão recorreu ao sentimento de paixão e expectativa de mudança no comportamento por parte da Assistente para fundamentar a prática dos principais factos imputados ao Arguido, ignorando por completo que tais argumentos não se verificaram nos factos praticados no decurso do ano de 2017.
11 - Acresce que todas as características, decisões e circunstâncias relativas à Assistente foi totalmente ignoradas na douta decisão, na qual se impunha que se procedesse a uma análise pormenorizada a todos os factores que, de acordo com as regras da experiência, sempre determinariam uma decisão distinta, pelo menos quanto ao grau de culpabilidade do Arguido.
12 - Verificando-se inexistir qualquer fragilidade ou dependência da Assistente ao Arguido, deveria o douto Tribunal contextualizar a relação conjugal e a personalidade da Assistente por forma a assegurar a suficiência da matéria de facto dada como provada.
13 - Pelo que a decisão ora recorrida não teve em consideração todos os elementos constantes dos autos, nomeadamente nos depoimentos prestados em audiência de julgamento, bem como as suas incongruências, dúvidas e descontextualizações que resultaria numa decisão de direito diferente, determinando a insuficiência da matéria de facto provada, devendo os autos serem reenviados para novo julgamento nos termos do disposto no artigo 426º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Penal.
DA MEDIDA DA PENA
14 - A douta decisão recorrida não teve em consideração nenhuma atenuante da pena, o que se impunha dada a presença de elevadas exigências de prevenção especial.
15 - Em desrespeito pelo disposto no artigo 71º, n.º 2 do Código Penal, o douto Tribunal desconsiderou as circunstâncias pessoais do Arguido, a sua total inserção profissional e a ausência de qualquer registo criminal que lhe permitira atestar que o Arguido sempre agiu de acordo com as normas legais vigentes.
16 - A douta decisão procedeu a uma condenação excessiva face a outras condenações semelhantes no nosso ordenamento jurídico, condenado o Arguido por erros cometidos e pelos quais lamenta, e eliminando qualquer oportunidade concedida ao Arguido para a sua ressocialização, violando qualquer finalidade das penas.
17 - O douto Tribunal ignorou ainda que o Arguido preenche todas as exigências de prevenção especial por forma a ser reintegrado na sociedade, o que não sucederá perante a aplicação de uma pena que faz prevalecer as exigências de prevenção geral em total oposição e desconsideração pelas circunstâncias próprias do Arguido e pela possibilidade de manutenção de uma vida dentro dos limites legais.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. certamente suprirão, deve o douto Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que determine a aplicação de uma pena próxima dos limites mínimos e nunca superior a 5 anos de prisão, a qual deverá ser suspensa na sua execução, por ser adequada e proporcional aos factos, nos termos ora peticionados.»
Resposta do MP na Relação de Lisboa
4. O Ex.mo Magistrado do MP (Procurador-Geral Adjunto) na Relação de Lisboa respondeu ao recurso em 5/2/2019 (fls. 703-712 do 3.º vol.), pronunciando-se pela sua improcedência, nos seguintes termos:
«O recorrente suscita no seu recurso três questões:
-nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, nos termos nos termos do art.379 n°1 al. c) primeira parte do C.P.P;
-vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do art. 410 n° 2 al. a) do C.P.P.;
-medida da pena, a qual considera excessiva e pretende ver reduzida e suspensa na sua execução.
A nossa opinião é a de que lhe não assiste razão em qualquer uma das questões que suscita.
Senão vejamos.
No que respeita à primeira questão, relativa à nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, o recorrente refere que o tribunal a quo andou mal quando não se pronunciou sobre a impugnação da matéria de facto que foi colocada à sua apreciação. Argumenta ainda que procedeu à indicação expressa dos meios de prova que imporiam uma decisão diferente com transcrição de depoimentos, que se impunha que procedesse a uma reapreciação da prova tendo em conta os depoimentos transcritos que denotavam características da assistente a resultar numa decisão distinta e que deveria ter analisado as incongruências dos testemunhos indicados.
Ora, conforme o recorrente bem refere, através do douto acórdão do S.T.J. de 9/2/2012, "a nulidade resultante da omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar... só ocorrendo quando o tribunal deixa de pronunciar-se sobre a própria questão ou questões que lhe são colocadas ou tem o dever de oficiosamente apreciar..."
Melhor definida assim a questão, vejamos o que se refere no acórdão a este propósito, ou se a questão colocada é efectivamente ali omissa.
Ao delimitar o objecto do recurso diz-se a fls. 641 dos autos e 9 do acórdão que, em face das conclusões, as questões são as que se indicam de seguida. Aí consta logo como segunda questão a impugnação da matéria de facto. Mais adiante (fls. 662 e segs.) no desenvolvimento destas questões referem-se os requisitos legais para impugnar a matéria de facto citando-se e transcrevendo o art. 412 n° 3.
Continua-se dizendo que o recorrente deu cumprimento á al. a), mas no que respeita à al. b) "...indicou, quer na motivação quer nas conclusões, de forma global, as passagens das declarações do arguido e dos depoimentos das testemunhas inquiridas, transcrevendo-os, que entende impunham decisão diversa. Mas não indicou, como lhe era exigido, relativamente a cada ponto que entendeu incorrectamente julgado quais os meios de prova que impunham diferente decisão.2". A chamada para a nota de rodapé indica dois acórdãos do S.T.J..
Continua-se depois dizendo que não pode haver lugar ao convite a que alude o art. 417 n° 3 do C.P.P. e ainda que o recorrente não deu cabal cumprimento ao disposto no art. 412 n° 3 e 4 do C.P.P. estando assim vedado ao tribunal qualquer alteração da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida. Isto a menos que a alteração resultasse de qualquer dos vícios do art. 410 n° 2 do C.P.P., após o que se seguiu a analise da decisão em busca de eventuais vícios, que não foram encontrados.
Já se vê assim que não existiu qualquer omissão de pronúncia.
O tribunal ora recorrido identificou a questão e decidiu-a nos termos sobreditos.
Torna-se claro que esta decisão não agrada ao recorrente, mas não se poderá dizer que o tribunal omitiu pronunciar-se sobre a questão que lhe foi colocada.
Improcede assim esta primeira questão.
No que respeita á segunda questão, se é que entendemos a argumentação do recorrente, verifícar-se- á o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada uma vez que o tribunal não analisou todos os elementos de prova dos autos. Em concreto o tribunal ignorou " as decisões e circunstâncias relativas á assistente" pois verifica-se quanto a esta inexistir qualquer fragilidade ou dependência do arguido, não tendo o tribunal contextualizado a relação conjugal e a personalidade desta " por forma a assegurar a suficiência da matéria de facto dada como provada."
Nestas condições estaríamos em face do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a determinar o reenvio do processo para novo julgamento nos termos dos artigos 410 n°2 al a) e 426 n°1.
Ora, conforme já dissemos, também lhe não assiste razão.
Desde logo importa dizer que nem sequer a recorrente pode fundamentar o seu recurso com base na argumentação relativa a vícios da sentença ou acórdão. De facto, tal argumentação faz parte da impugnação da matéria de facto sendo certo que o Supremo conhece apenas de direito. A matéria de facto encontra-se já definitivamente assente. Isto não significa contudo, que existindo vícios o Supremo não os possa conhecer. Pode conhecer deles mas apenas de forma oficiosa, o que é diferente de sustentar um recurso na sua arguição.
Em todo caso dir-se-á que nem o alegado vício existe (pois que a decisão de direito assenta em matéria factual bastante) nem a argumentação da recorrente tem que ver propriamente com o vício em causa. Afigura-se antes que tal argumentação se situa antes no terreno do " erro de julgamento" na medida em que o tribunal não teria analisado devidamente os elementos de prova produzidos em audiência. A própria recorrente transcreve passagens da prova que considera não foram objecto de ponderação que pretendia e donde pretendia que o tribunal tivesse retirado as conclusões que ela entende em matéria de facto.
Ora, se por um lado se não verifica o vício com o qual não pode fundamentar o seu recurso, por outro, também é certo que se não verifica o erro de julgamento e, de igual forma, não pode sustentar com ele o recurso para o Supremo, conforme aliás já dissemos, a matéria de facto encontra-se definitivamente assente.
Improcede assim também esta segunda questão suscitada pela recorrente e arguida nos autos.
No que respeita á medida da pena sustenta a recorrente que não foi tida em consideração nenhuma atenuante e que foram desconsideradas asa suas circunstâncias pessoais, nomeadamente a inserção profissional e ausência de antecedentes. Argumenta ainda que a pena se mostra excessiva em face de "condenações semelhantes" eliminando a oportunidade para a sua ressocialização. Pugna assim por pena que se situe próximo do mínimo legal e que venha a ser suspensa na sua execução.
A nosso ver também lhe não assiste razão quanto a este ponto.
Na verdade, visto o acórdão do tribunal da relação e bem assim o acórdão do tribunal colectivo, todos estes elementos se mostram considerados. Na determinação da pena concreta foi tomada em conta a ilicitude dos factos e a sua diversidade, a gravidade dos mesmos, a intensidade do dolo, os sentimentos manifestados, assim como as condições pessoais do arguido e ausência de antecedentes, assim como a confissão dos factos, de pouco relevo aliás.
Nesta conformidade e tomando em conta também as elevadas necessidades de prevenção geral e especial (também referidas) somos de parecer que não assiste razão ao recorrente também quanto a este ponto.
Em todo o caso, situando-se a pena acima de cinco anos de prisão e a manter-se acima deste limite, como se defende, não se afigura necessária qualquer ponderação relativamente á sua suspensão, atenta a inviabilidade de tal acontecer.
Nestes termos entendemos que o recurso deve improceder na sua totalidade devendo ser confirmada a decisão recorrida.»
Parecer do Ex.mo PGA neste Supremo Tribunal
5. Por seu turno, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal emitiu, em 25 de Março de 2019, douto parecer (fls. 726-733, do 3.º vol.), também a seguir transcrito:
«Acto Recorrido:
─ Acórdão da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa de 6.12.2018, proferido o PCC n.º 150/17.4JASTB, do Juiz... do Juízo Central Criminal de ....
Recorrente:
─ AA, arguido, com os sinais dos autos.
Recorrido:
─ Ministério Público.
Recurso:
─ De acórdão condenatório da 2ª instância em pena superior a 8 anos de prisão, próprio, tempestivo, com legitimidade, com efeito suspensivo do processo e subida imediata nos autos – art.os 399º, 432º n.º 2 b), 400º n.º 1 f), 411º n.º 1, 401º n.º 1 al.ª b), 408º n.º 1 al.ª a), 406º n.º 1 e 407º n.º 2 al.ª a), todos do Código de Processo Penal.
─ A julgar em conferência, por não ter sido requerida audiência – art.os 411º n.º 5 e 419º n.º 3 al.ª c) do Código de Processo Penal;
─ Urgente, por com arguido sujeito a medida de coacção de prisão preventiva.
6. Foi dado cumprimento ao disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP, nada tendo sido requerido.
Não tendo sido requerida a audiência, o processo prossegue através de julgamento em conferência (arts. 411.º, n.º 5 e 419.º, n.º 3, alínea c), ambos do CPP).
Colhidos os vistos, foram os autos presentes à conferência cumprindo agora apreciar e decidir.
II. - FUNDAMENTAÇÃO
1. É a seguinte a matéria de facto provada, bem como a fundamentação de facto e de direito da decisão recorrida:
«Transcreve-se a decisão recorrida:
Acórdão
I – Relatório:
O Ministério Público, em processo comum e com a intervenção de tribunal Colectivo, deduziu acusação contra:
AA, nascido a ....1978, na freguesia da ..., filho de [...], ..., residente na Rua ...; Imputando-lhe a prática, como autor material, em concurso real e efectivo, um crime de violência doméstica, p.p. pelo artigo 152.º, n.os 1, als. a) e b) e 2 do Código Penal e seis crimes de violação, p.p. pelo artigo 164.º, n.os 1, al.a) e b) e 2, al. a) do mesmo diploma legal. Podendo o arguido ainda incorrer nas penas acessórias previstas e punidas pelo disposto no artigo 152.º, n.º 4 a 6, do Código Penal.
Procedeu-se ao julgamento com observância do formalismo legal.
Não se verificam quaisquer outras questões prévias ou incidentais, de que cumpra conhecer, que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
A instância mantém-se válida.
a) Dos factos provados:
Resultou assente que:
1) O arguido AA e BB iniciaram uma relação de namoro no ano de 1996, tendo começado a viver na mesma casa, como marido e mulher, no ano de 2001 e contraído matrimónio em ....2015.
2) Dessa relação nasceram dois filhos, AA, nascido a ....2007 e a BB, nascida a ....2013.
3) Desde data não concretamente apurada e até ....2017, o arguido e BB residiram na Rua ...
4) Desde o início do namoro o arguido foi apresentando um comportamento ciumento e possessivo, sentindo-se incomodado quando BB falava com outros homens e saia com amigos sem que o mesmo a acompanhasse.
5) Quando começaram a viver juntos, o arguido também dizia-lhe que “não prestava para nada, que não sabia arrumar a casa, que não sabia fazer de comer” ou que “era uma merda” e apelidava-a de “estúpida”, “oferecida” e “puta”.
6) O arguido, por diversas vezes, pelo menos uma vez por ano durante o período em que estiveram juntos e até a assistente engravidar, em 2006, ao mesmo tempo que a enxovalhava, desferia-lhe palmadas na face, puxava-lhe o cabelo, apertava-lhe os braços, dava-lhe pontapés em várias zonas do corpo, designadamente na cabeça, e cuspia na sua direcção.
7) Com esse comportamento, o arguido causou-lhe dor, hematomas por todo o corpo, em especial nos braços, cortes no lábio superior, e tonturas por causa dos pontapés que lhe infligiu na cabeça.
8) Após agir como descrito, o arguido pedia perdão a BB, prometia-lhe que não voltava a actuar desse modo, justificando-se que procedia assim por causa do comportamento dela.
9) Apesar disso, o arguido agiu do mesmo modo sempre que a assistente agia de forma a contrariá-lo, ou quando discordava do comportamento ou das escolhas daquela.
10) Tal sucedeu designadamente, no ano de 2002, quando se deslocou ao Porto para participar num evento da “...”, marca para a qual colaborava na altura.
11) O arguido acompanhou-a, mas não foi consigo a um dos eventos que ocorreu à noite, tendo ficado a aguardar por si no quarto do hotel.
12) Como regressou ao hotel após a hora indicada pelo arguido, assim que chegou à entrada do quarto, ele dirigiu-se a si, e na presença das colegas que a acompanhavam, desferiu-lhe uma palmada na face.
13) Numa outra ocasião, e na presença de uns amigos, desferiu-lhe uma palmada na face porque discordou do vinho que ela havia escolhido para o jantar que iam oferecer a esses amigos, na casa onde ambos residiam.
14) No ano de 2006, quando soube que estava grávida do primeiro filho, BB disse ao arguido que se não parasse com o comportamento agressivo se separava dele.
15) A partir dessa altura o arguido não voltou a magoar o corpo de BB, mas frequentemente a enxovalhava com as mesmas palavras e expressões.
16) Após as discussões, o arguido mudava de postura, pedia desculpa a BB e ficava algum tempo sem a ofender.
17) Por estar apaixonada e na expectativa que o arguido alterasse o seu comportamento, BB sempre perdoou o arguido, acabando por casar com o mesmo em 2015, altura em que já tinham dois filhos em comum.
18) Nessa altura e já anteriormente, o arguido deslocava-se frequentemente para o estrangeiro, por alguns meses, para trabalhar, o que fazia com que existissem períodos de acalmia.
19) Em Dezembro de 2016, após um desses períodos de permanência do arguido no estrangeiro, BB comunicou ao arguido que queria separar-se dele e pediu-lhe que saísse da casa de ambos.
20) O arguido não aceitou separar-se, nem sair da residência de ambos, tendo regressado pouco tempo depois ao estrangeiro para trabalhar.
21) A partir desta data o casal passou a dormir em quartos separados.
22) Nos meses seguintes, sempre que o arguido comunicava com BB através de chamadas telefónicas, sms ou da aplicação Messenger, e esta lhe dizia que mantinha a sua decisão, ele insinuava que ela andava com outros homens, e dizia-lhe “tu queres é estabilidade financeira no meio das pernas”, “queres é levar na cona”.
23) O arguido regressou a Portugal, por duas semanas, em Abril/Maio de 2017, e quando novamente confrontado com a decisão de BB manteve a sua posição de não aceitar a separação nem sair da residência de ambos, mas o arguido não aceitou tal decisão.
24) Durante esse período de tempo, BB recusou-se a manter relações sexuais com o arguido.
25) No dia em que estava previsto o regresso do arguido ao estrangeiro, ele disse-lhe que não iria embora se não tivessem relações sexuais.
26) BB começou por recusar, mas como viu o tempo passar e temendo que ele não viajasse, acedeu a manter relações sexuais com o arguido.
27) Durante o período de tempo em que o arguido esteve no estrangeiro, sempre que comunicava com BB insinuava que andava com outros homens e enxovalhava-a com as mesmas palavras ou expressões.
28) No final do mês de Junho de 2017, o arguido regressou a Portugal, sem prespectiva de voltar para o estrangeiro a curto prazo nem de ter qualquer trabalho por cá.
29) Nessa ocasião, BB reiterou a sua decisão de se separarem, recusou manter relações sexuais com o arguido mas o arguido insistia em não sair da residência do casal e não aceitou que ela o fizesse com os filhos de ambos.
30) Sempre que falavam da separação, começavam uma discussão em que o arguido afirmava que BB tinha outros homens, dizia-lhe que só “queria levar na cona”, “que andava a mostrar e a oferecer a cona nas costas dele” e apelidava-a de “puta”, “puta de merda”, “puta oferecida”, “puta mentirosa”, “vaca”, “falsa interesseira” e “exibicionista provocadora”.
31) Afirmações que fazia igualmente por escrito, mediante sms que remetia para o telemóvel de BB, ou através da aplicação Messenger, nas quais também a amedrontava dizendo-lhe que “arrebento contigo e com o gajo que meteres cá em casa puta, prefiro morrer a ver os meus filhos com outro hotario e isso eu juro que não vai acontecer acabo contigo sua puta”.
32) Nessas alturas, o arguido dizia-lhe que “estava maluca”, “que a sua vida se ia tornar num inferno se continuasse com essa ideia” e que “queria meter outro lá em casa”.
33) Em data não concretamente apurada, mas próxima do regresso do arguido a Portugal, no decurso de uma discussão que mantinham no quarto de um dos filhos, o arguido agarrou-a, e ainda que BB lhe tivesse dito para a soltar, começou a beijá-la e empurrou-a para o chão.
34) Com vista a afastá-lo de si, BB ainda lhe desferiu pontapés, mas o arguido, para a imobilizar, deitou-se em cima dela e, em acto contínuo, levantou-lhe o vestido que usava e começou a baixar-lhe as cuecas.
35) Perante isso, BB mordeu-o no peito, mas ainda assim não o conseguiu impedir de prosseguir, tendo o arguido conseguido retirar-lhe as cuecas que usava depois de as rasgar.
36) Após, pegou nela ao colo e levou-a para o quarto.
37) Aí chegados, deitou-a sobre a cama e colocou-se por cima dela.
38) BB tentou afastar o arguido de si, empurrando-o, ao mesmo tempo que lhe pedia para parar, mas não conseguiu e ao final de algum tempo deixou de conseguir resistir, tendo o arguido conseguido colocar o seu pénis erecto na vagina daquela e friccionar até ejacular.
39) Enquanto o arguido agia assim, BB chorava, pedia-lhe para parar, dizia-lhe que era “louco”, “que só podia estar doente”, e perguntava-lhe “como é que era capaz de lhe estar a fazer aquilo”.
40) Ao que o arguido respondia “tu és minha e hás-de ser sempre minha, se queres que te trate como uma puta, é assim que te vou tratar, é assim que mereces ser tratada.
41) Nessa ocasião, BB sentiu dores por causa da penetração e ficou com um hematoma no ombro direito e numa das pernas, na zona da coxa.
42) A partir daí, passou a ter receio de estar sozinha com o arguido, que passava o dia em casa por se encontrar desempregado.
43) No seu período de férias, BB decidiu ir passar uns dias, entre 8 e 25 de Julho, ao Alentejo, onde possui uma casa de família.
44) Pese embora tenha pedido ao arguido para a deixar ir sozinha com os filhos, ele não aceitou e acompanhou-os.
45) Ao longo desse período e sempre que se encontravam sozinhos, BB tentou convencer o arguido a aceitar a separação, mas este persistia na recusa dessa ideia.
46) Num desses dias, os filhos estavam no exterior a brincar, e o arguido foi ter com BB à cozinha.
47) Nesse local, o arguido agarrou-a, envolvendo os seus braços à volta do peito e braços dela, levantou-a, sentou-a na bancada aí existente, e puxou a parte de baixo do biquíni que ela trazia vestido, a fim de a despir.
48) BB pediu-lhe para a largar e não voltar a fazer isso porque as crianças estavam presentes, ao mesmo tempo que se afastou dele.
49) Nesse momento, a filha de ambos entrou naquela divisão e pediu para ir à casa de banho.
50) BB segurou na filha pela mão e levou-a à casa de banho que se encontrava localizada no interior de um quarto, no andar superior, ficando a aguardar no exterior.
51) O arguido, que as havia seguido até aquele local, aproveitando-se de que a filha de ambos se encontrava no interior da casa de banho, empurrou BB para cima da cama, despiu-lhe a parte de baixo do biquíni e, de seguida, introduziu o pénis erecto na vagina daquela, friccionando até ejacular.
52) BB não reagiu para que a filha não se apercebesse do que estava a suceder.
53) No dia 18 de Agosto, ao início da tarde, quando se encontravam na varanda do quarto da residência de ambos, iniciaram uma nova discussão por causa da separação.
54) No decurso dessa discussão, o arguido pegou na BB ao colo e levou-a para o quarto, onde a colocou em cima da cama.
55) Após, deitou-se em cima dela e disse-lhe para se acalmar, para conseguirem falar.
56) Receosa daquilo que o arguido podia fazer, BB chamou pela filha, que se encontrava em casa, para ver se o arguido a deixava sair dali.
57) Quando a filha de ambos já se encontrava no quarto, o arguido pegou na BB ao colo e levou-a para a casa de banho, fechando a respectiva porta.
58) Ao fechar essa porta, entalou os dedos da sua filha, que os havia seguido, o que fez com que começasse a chorar.
59) Perante o choro da filha de ambos, o arguido soltou BB, que de imediato foi para junto da filha, segurou nela e levoua para o sofá da sala para a acalmar, tendo a mesma acabado por adormecer deitada no seu colo, enquanto o arguido permanecia em pé a olhar para ambas.
60) Nessa altura, BB sentiu receio de sair de junto da sua filha, mas como ia entrar ao serviço às 16 horas, dirigiu-se ao quarto para se vestir, deixando a filha a dormir deitada no sofá da sala.
61) Quando já se encontrava no quarto, entrou o arguido que, de imediato, a empurrou para cima da cama e se deitou sobre ela.
62) Em acto contínuo, despiu-a e baixou a roupa que ele próprio usava, e sem que ela tivesse capacidade para reagir, introduziu o pénis erecto na vagina dela, friccionando-o até ejacular.
63) No dia 11 de Setembro, BB comunicou ao arguido que iria a casa de sua mãe, acompanhada pelos filhos de ambos, para o jantar de aniversário da sua avó e que só regressaria no dia seguinte.
64) A propósito disso, iniciaram uma nova discussão e no decorrer da mesma, o arguido empurrou-a para o chão da varanda e tentou despir-lhe a roupa que trazia vestida da parte de baixo.
65) Ao que ela lhe diz “estás maluco, estamos na varanda, o que estás a fazer”.
66) Perante tais palavras, o arguido conteve-se, pegou nela ao colo, levou-a para o quarto, e atirou-a para cima da cama, deitando-se sobre ela.
67) Apesar da BB o ter empurrando com o intuito de o afastar e de lhe ter dado pontapés para impedir que lhe tirasse a roupa, ele conseguiu despir-lhe os calções e as cuecas que trazia vestidas,
68) E em acto contínuo, introduziu-lhe os dedos de uma das mãos na vagina e friccionou
69) BB continuou a esbracejar e a pontapear o arguido para impedir que ele continuasse, mas ele não parava.
70) Perguntou-lhe então o que queria que fizesse para parar, tendo o mesmo respondido que cessaria com aquele comportamento se o deixasse acompanhá-la ao jantar aniversário da avó e se depois regressasse a casa com ele.
71) BB acedeu para que o arguido não prosseguisse com os seus intentos, o que sucedeu.
72) No dia 13 de Outubro de 2017, chegou a casa pelas 10 horas, depois de ter ido levar os seus filhos à escola, e sentou-se no sofá da sala.
73) Nesse momento, o arguido, sem proferir qualquer expressão, foi na sua direcção, deitou-a no sofá e colocou-se em cima de si.
74) Pediu-lhe para se afastar e como ele não o fez, e por sentir receio de que a voltasse a forçar a manter relações sexuais, agarrou-o pelo pescoço, arranhando-o, e espetou-lhe os dedos nos olhos.
75) Todavia, o arguido conseguiu imobiliza-la, prendendo-lhe as mãos.
76) Em acto contínuo, o arguido tirou-lhe os calções e as cuecas que trazia vestidos, pegou nela ao colo, levou-a para o quarto, e aí chegados atirou-a para cima da cama.
77) Apesar de não estar ninguém em casa, BB gritou por socorro, mas o arguido tapou-lhe a boca para que não continuasse.
78) Com vista a afastar o arguido de si, ainda pegou numa caneca que estava na mesinha de cabeceira, e atirou-a na direcção dele, mas não lhe acertou.
79) Nesse momento, o arguido virou-a de barriga para baixo e tentou introduzir o pénis erecto no seu ânus, ao mesmo tempo que lhe dizia “se queres ser puta, vou tratar-te como tal”.
80) Nesse momento BB desferiu-lhe uma cotovelada que lhe acertou no rosto e fez com que o arguido se afastasse de si,aproveitando-se assim para se virar, ficando com as costas sobre a cama e começou a esbracejar para afastar o arguido.
81) O arguido segurou-lhe os braços, e BB começou a empurra-lo com as pernas para o afastar, porém, sem sucesso, continuando o arguido por cima dela a prender-lhe os braços e as pernas.
82) Após um longo período de tempo, em que esbracejou e esperneou, BB não conseguiu resistir mais, e o arguido, aproveitando-se disso, introduziu o pénis erecto na vagina daquela, friccionando até ejacular.
83) Ao agir do modo supra descrito, desde a altura em que tinham uma relação de namoro até que passaram a coabitar, e depois quando contraíram matrimónio, o arguido quis maltratar psicológica e fisicamente BB, como efectivamente maltratou, molestando o corpo e a saúde daquela, provocando-lhe dores e hematomas, e coarctando-a na sua liberdade pessoal, com expressões que lhe dirigiu.
84) Quis o arguido ofender a honra e consideração de BB ao dirigir-se à mesma do modo como o fez.
85) Não se coibindo o arguido de actuar assim no interior da residência comum.
86) O arguido quis, ainda, manter relações sexuais de cópula completa com BB, em cada um dos dias supra referidos, e ainda proceder à introdução dos seus dedos na vagina da mesma, numa das situações, com o intuito de satisfazer os seus desejos sexuais, em cada um dos supracitados dias, sabendo que o fazia sem o consentimento e contra a vontade desta, que se via impossibilitada de reagir face à força física utilizada por aquele.
87) O arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
Do pedido de indemnização civil
88) Até 2006, e por diversas vezes a demandante sofreu fortes dores de cabeça em virtude dos pontapés que lhe eram infringidos pelo demandado;
89) E sentia muitas tonturas e tinha muita dificuldade em adormecer, pois mesmo de olhos fechados padecia de uma elevada falta de equilíbrio, quando o arguido lhe batia na cabeça, o que ocorreu pelo menos uma vez.
90) Na sequência das agressões do arguido, a demandante ficou com hematomas escoriações nos braços e feridas abertas no lábio superior, o que lhe causava dores.
91) Aquando da primeira relação sexual não consentida, descrita supra, a
demandante sentiu dores por causa da penetração e ficou com um hematoma no ombro direito e numa das pernas, na zona da coxa.
92) Aquando das outras relações sexuais não consentidas a demandante também sentiu dores aquando da penetração e ficou com dores no corpo pela resistência física.
93) A demandante passou a viver inquieta e constantemente receosa pelas atitudes violentas do demandando, nomeadamente que o mesmo lhe batesse.
94) A demandante acreditava que o arguido podia concretizar as ameaças de morte que lhe fazia, o que a colocava em pânico.
95) A demandante sentia vergonha e humilhação sempre que era agredida e insultada pelo arguido, muito mais quando o mesmo o fazia em locais públicos e no seu local de trabalho.
96) Em virtude do comportamento do arguido, a demandante passou a evitar estar sozinha em casa a partir de Junho de 2017, para que o demandando não se aproximasse da mesma, e evitava fazer a sua higiene quando o mesmo estava em casa, pois temia que este estivesse no wc consigo.
97) Sentiu um enorme desgosto e sofrimento por ver que o arguido não tinha qualquer respeito por si.
98) A demandante perdeu a capacidade de se concentrar não reunindo condições físicas ou emocionais para o que fosse, passando a sentir grande dificuldade em adormecer, pois estava sempre a pensar no que o arguido tinha feito.
99) A demandante passou a ter uma baixa auto-estima
100) O arguido não tem antecedentes criminais.
101) O arguido desenvolveu-se numa família funcional, em que os pais, ambos trabalhadores, foram garantindo a satisfação das necessidades básicas do arguido e da sua irmã mais nova e asseguraram o seu adequado acompanhamento educativo.
102) O arguido teve um percurso escolar irregular, tendo com cerca de 18 anos completado o 9º ano, após várias retenções motivadas pelo absentismo, fraco aproveitamento e desmotivação pelo processo ensino-aprendizagem.
103) Com cerca de 16 anos, o arguido iniciou namoro com BB.
104) O arguido desvalorizou a gravidade do seu comportamento.
105) Com cerca de 18 anos, o arguido integrou curso de formação/especialização na ..., onde depois passou a trabalhar de forma regular como soldador.
106) AA residiu com os pais até aos 24 anos, tendo nessa altura passado a coabitar com BB em casa própria, localizada na ....
107) O arguido admitindo alguns actos de violência refere que os mesmos eram espaçados no tempo, porque, e passamos a citar “não sou uma pessoa agressiva” (sic). O arguido assumiu sem valorizar, as agressões verbais tendo procurado contextualizar as mesmas na sua negação face à possibilidade de separação.
108) Em termos económicos e habitacionais, o agregado do arguido foi dispondo de uma situação estável.
109) AA manteve o apoio de uma rede social estruturada, tendo relevado a relação de proximidade com amigos de infância.
110) À data dos alegados factos que estão na origem do presente processo, o arguido residia com o seu agregado constituído, composto pela mulher e pelos filhos do casal.
111) A família habitava em casa propriedade do casal, descrita como apresentando boas condições de acomodação e de conforto.
112) O arguido dispunha de uma situação profissional e social estável, auferindo de rendimentos mensais suficientes para fazer face às expensas mensais. AA referiu que passou vários períodos no estrangeiro, onde desempenhou funções de soldador naval, beneficiando de remunerações superiores às obtidas em território nacional.
113) No que referiu às agressões sexuais, o arguido não as valora em termos morais ou legais tal conduta, justificando a mesma pela existência de vínculo matrimonial.
114) AA não manifestou, durante a entrevista, empatia para com a ofendida, apresentando propensão para um discurso vitimizado.
115) A avaliação efetuada apontou para a presença, no arguido, de características pessoais que potenciam o comportamento violento, algumas das quais reconhecidas pelo próprio, tais como a impulsividade e a dificuldade de gestão interna de emoções negativas.
116) Considerou-se, concomitantemente, como fatores de risco, a existência, no arguido, de distorções cognitivas relativas a relacionamentos/intimidade (por exemplo: aceitação de um padrão de comunicação agressivo, desconfianças injustificadas, superioridade de género, obrigação em manter disponibilidade sexual em contexto conjugal).
117) O arguido tem beneficiado, regularmente, de visitas da sua mãe. Também o seu filho mais velho tem efetuado algumas visitas, por determinação judicial.
118) O arguido referiu, em entrevista, que a sua atual situação jurídicopenal é da responsabilidade da ofendida, tendo sido inteligível a presença de sentimentos de raiva para com esta (citando: “não sei se lhe vou perdoar” (sic).
119) O arguido teve dificuldades em avaliar legal e moralmente determinadas condutas, denotando a presença de crenças que legitimam a violência física, verbal e sexual.
b) Dos factos não provados
Não resultou provado que:
a) O arguido dizia à assistente “que não sabia estar e se fazia a tudo quanto era homem”.
O Tribunal Colectivo alicerçou a sua convicção na apreciação conjunta das declarações do arguido em julgamento, de toda a prova testemunhal produzida em julgamento, bem como a prova documental junta aos autos, interpretada com recurso às regras da experiência comum.
A fls. 352 consta o assento de casamento de arguido e assistente e a fls.355/356 e 357/358 constam os assentos de nascimento dos filhos do casal.
O arguido e a assistente reconheceram o percurso da sua relação, ou seja, que iniciaram o namoro ainda bastante jovens, e que depois passaram a viver juntos, tiveram os filhos e apenas em finais 2015 oficializaram o relacionamento com o casamento, sendo que o mesmo está neste momento dissolvido por divórcio. Mais reconheceram que o casal vivia na Rua ...
Quanto ao relacionamento do casal ambos têm uma visão algo diversa.
O arguido reconhece que no período de namoro poderá ter dado algumas bofetadas à assistente, enquanto a mesma relata que este era possessivo e ciumento e que lhe dava chapadas, pontapés, cuspidelas, e chegou mesmo a dar-lhe pontapés na cabeça, de tal forma que chegou mesmo a sentir-se mal e a ter dificuldades em adormecer e problemas de equilíbrio aquando da situação desta última situação de pontapés.
O arguido reconhece, no entanto, que lhe terá dado uma estalada, à frente de terceiros, quando ambos se deslocaram ao Porto, sendo que a assistente também relatou de forma pormenorizada a mesma situação, fazendo referência a que o arguido o terá feito depois de ela ter chegado mais tarde do que a hora que aquele tinha estipulado para ela retornar ao hotel.
O arguido refere não se recordar da outra situação que é relatada na acusação, e na qual o mesmo terá desferido uma estalada na cara da assistente por não ter concordado com o vinho que aquela tinha comprado, mas tal situação é descrita pela própria assistente e igualmente pela testemunha CC que referiu estar presente no dia em questão, relatando com precisão o que ocorreu, pelo que ambas as situações terá de ser julgadas como provadas,
por serem credíveis os relatos apresentados pela assistente e corroborada pela
testemunha.
Também a testemunha CC descreve o comportamento do arguido, ainda em sede de namoro de depois quando o casal passou a viver junto, como agressivo, como chamando-lhe publicamente “estúpida”, “filha da puta”, “és uma merda”, “não vales nada”, e outros parecidos, o que dá consistência à descrição da assistente.
A assistente relata que após ter engravidado do primeiro filho e por o ter confrontado, o arguido deixou de ter um comportamento fisicamente violento para com ela, mas manteve o mesmo comportamento verbalmente violento,continuando com o mesmo tipo de expressões, que foram também relatadas
pela testemunha CC e que não foi negado pelo arguido.
No que respeita aos factos referentes a finais de 2016 e 2017, foi tido em atenção essencialmente o teor do depoimento da assistente que descreveu de forma credível, coerente a forma como os factos correram, sendo possível de nos apercebermos da forma como a mesma os recordou que os estava a reviver de forma sentida.
O arguido admite que efectivamente o casamento não se encontrava bem, e que a assistente pretendia a separação e o divórcio o que o mesmo não aceitava, recusando-se a sair de casa, como a mesma lhe solicitou.
O arguido admite também que forçou a assistente a manter consigo relações sexuais, de cópula, contra vontade da mesma, em Outubro de 2017, mas negando que tê-lo feito em momento anterior. Segundo o arguido o relacionamento sexual entre ambos até tal momento, quando ocorreu, foi sempre consentido por ambos.
Quando foi detido o arguido tinha lesões físicas, compatíveis com a descrição da assistente de que se tinha debatido violentamente, pelo que dificilmente poderia o mesmo explicar essas lesões, que se mostram documentadas que não com a descrição dos factos. Mais concretamente a fls. 28/32 constam as fotos das lesões apresentadas pelo arguido no dia 13/10/2017 e que são compatíveis com a forma como a assistente refere que se defendeu.
Para além das declarações que quer arguido quer assistente fazem dos factos, e que são em parte contraditórios temos de nos socorrer dos indícios que temos para concluir pela credibilidade de uma ou outra versão.
Como em tantos outros casos, o que se passa no interior da casa apenas é presenciado pelo casal, sendo que no caso os filhos eram demasiado equenos para terem uma percepção real do que se passava, e atento o tipo de acções em questão é normal que a vítima se retraia a contar a terceiros.
Foram lidas as declarações do auto de inquirição da testemunha DD (fls. 127/128) que se mostra internada e por isso se não sabe a data em que estará disponível para depor, sendo que o foi feito ao abrigo do disposto no artigo 356.º do Código de Processo Penal, tendo tal acto sido aceite quer pelo Ministério Público que o requereu, mas também foi aceite pela assistente e arguido. Esta testemunha que foi acompanhando a vida do casal, recordando que o arguido por vezes injuriava a assistente à frente de terceiros, nomeadamente da própria depoente, tendo também descrito uma situação de violência física, em que o arguido agarrou nos cabelos da assistente e a arrastou pelo corredor.
A assistente confidenciava-lhe o que se estaria a passar, nomeadamente as situações em que o arguido a forçou a ter relações sexuais e ter tal testemunha tirado as fotos das lesões que a assistente tinha e que estão no processo.
A isso acresce o teor do depoimento das testemunhas de acusação, EE e CC, que descreve também uma agressividade verbal do arguido para com a assistente, sendo que a última relata também uma situação de agressão física.
Mas não fosse suficiente a descrição minuciosa, dolorosa, e coerente da assistente de cada uma das situações, com precisões sobre onde estava, quem estava presente, quais os actos que o arguido teve, muitas vezes com a descrição dos diálogos que tiveram, o reconhecimento por parte do arguido da existência de quase todos os actos sexuais entre o casal, apenas referindo que foram consentido, teremos de nos socorrer também das mensagens remetidas pelo arguido à assistente em início de Agosto de 2017, que constam a fls. 106/115 e as fotos que constam a fls. 116/120 e que foram tiradas em Junho de 2017 nas quais constam as lesões que a assistente sofreu.
De tais mensagens se retiram as seguintes expressões:
“queres-me tirar tudo os meus filhos minha alegria sem ela a minha vida não faz sentido nunca te vou perdoar sua falsa interesseira”
“só queres chamar atenção puta a mim nunca me enganaste o que tu queres sei eu estabilidade no meio das pernas puta oferecida”
“o teu lugar é na reta de coina puta”
“eu sei que queres é paz no meio das pernas a mim não me enganas”
“aceitar a bem separar me dos meus filhos se isso um dia acontecer vais ver o que é um inferno”
“Arrebento contigo e com o ajo que meteres cá em casa puta prefiro morrer a ver os meus filhos com outro hotario e isso eu juros que não vai acontecer acabo contigo sua puta” quem se meter no meu caminho vai se dar mal nem sabes do que sou capaz é bom que avises “
“sempre foste exibicionista provocadora oferecida não é agora que vais mudar e com aqueça da estabilidade financeira disseste tudo só estas a espera do primeiro para pores em pratica os teus dotes de puta”
“continuas a só querer chamar à atenção dos teus ex e amigos tu dizes me que não queres ninguém mas eu sei bem que não é verdade só me dizes isso porque tens medo de dizer a verdade és uma interesseira e o primeiro que te aparecer vais dar a cona puta”
“uma mentirosa como tu não merece respeito oferecida sempre foste sempre serás santinha que andava a mostrar e oferecer a cona nas minhas costas”
“virgem que andava a fazer broches e a meterem-lhe os dedos na cona com a
... toda a saber”
“és uma vergonha”
“não passas duma puta mentirosa”
“vou tornar essa tua vidinha de merda num inferno podes ter a certeza”
“se os meus filhos quiserem morar com o pai tu não vais impedi puta só mereces é ficar sozinha puta”
“não quero nenhum filho da puta como padrasto dos meus filhos metes nojo vaca puta como sempre foste”
A fls. 146 consta o auto de leitura e transcrições de mensagens telefónicas da assistente para a GNR no dia 13/10/2017.
A fls. 84 consta o auto de exame médico à assistente, e que foi realizado no dia 15/09/2017, e que se refere aos factos referentes ao dia 11/09/2017,sendo que foram observadas lesões, no dia 12/09/2017 consta igualmente um relatório médico em que são descritas lesões (fls. 85).
Foi tido em atenção igualmente o teor do relatório de perícia de natureza sexual de fls. 174/175 e 344/346 e que se referem aos factos de 13/10/2017, constando de fls. 347/349 e a fls. 364/336 o relatório pericial de criminalística biológica, que permite concluir que havia material biológico do arguido em
zaragatoas que foram recolhidas na pessoa da assistente, mais concretamente não só nas unhas da mão esquerda, como na vagina da mesma. Foi tido igualmente em atenção o resumo do episódio de urgência de 13/10/2017, que consta a fls. 176.
Assim, conjugando todos indícios físicos, o teor dos depoimentos de quem acompanhou a assistente, mais credibilidade se confere ao depoimento da assistente.
As testemunhas FF, amigo do arguido, GG, tia do arguido; HH, amiga do arguido, e II, mãe do arguido, pouco puderam esclarecer, por nada de estranho terem visto, o que não é estranho já que os factos em questão são muito íntimos.
No que respeita à ausência de antecedentes criminais a mesma mostra-se certificada a fls. 450.
A situação pessoal e familiar do arguido resulta, entre outros, do teor do relatório social de fls. 465/467.
O arguido mostra-se acusado da prática de um crime de violência doméstica e seis crimes de violação.
Do crime de violência doméstica
Dispõe o artigo 152.º do Código Penal
“1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos,
incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.
É punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
(...)
4 – Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicados ao arguido as penas acessórias de proibição de contactos com a vítima e de proibição de isso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 – A pena acessória de proibição de contactos com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
(…) ”
Tal disposição visa a criminalização das condutas que consubstanciam a prática de “subtis” formas de violência no âmbito da família. Muitas das vezes tais condutas, “de per si” não consubstanciam a prática de crimes de ofensa à integridade física nem qualquer outro crime.
O bem jurídico protegido com o presente crime é o da saúde, quer a saúde física como a saúde psíquica e mental. Tal bem jurídico pode ser afectado por um comportamento que (...) afectem a dignidade pessoal do cônjuge (...) –vide Comentário Coninbricense do Código Penal, tomo I, Américo Taipa de Carvalho, dirigido por Figueiredo Dias, Coimbra Editora, pág. 332.
Este crime pressupõe uma reiteração de condutas, ou, pelo menos a ocorrência de uma conduta tão grave que, só por si ponha em causa a manutenção do vínculo conjugal, ou análogo.
No caso apura-se que o arguido e assistente passaram a manter uma relação de namoro desde 1996, passaram a coabitar juntos desde 2001 e formalizaram o casamento em finais de 2015. Têm dois filhos em comum, sendo que o primeiro nasceu em Abril de 2007 e a segunda em Agosto de 2013.
Desde que iniciaram a vida em comum, em 2001, que o arguido por variadíssimas vezes, apodava a assistente de “estúpida, “oferecida”, “puta”, dizia que a mesma “não prestava para nada, que não sabia arrumar a casa, que não sabia fazer comer”, “que era uma merda”. Estas expressões, são anifestamente de menosprezo para com a assistente, rebaixando-a e violando assim a sua integridade moral, o que o arguido tinha de saber, tendo-o feito reiteradamente desde 2001.
Já no ano de 2017 o arguido chegou mesmo a dizer à assistente que “tu queres é estabilidade financeira no meio das pernas”, “queres é levar na cona”, “que andava a mostrar e a oferecer a cona nas costas dele” e apelidava-a de “puta”, “puta de merda”, “puta oferecida”, “puta mentirosa”, “vaca”, “falsa interesseira” e “exibicionista provocadora”, insinuando que a mesma andava com outros homens e enxovalhava-a com as mesmas palavras ou expressões.
Chegou também a amedrontá-la dizendo-lhe que “arrebento contigo e com o gajo que meteres cá em casa puta, prefiro morrer a ver os meus filhos com outro hotario e isso eu juro que não vai acontecer acabo contigo sua puta”.
Para além desta situação de violência verbal e emocional, resulta também provado que o arguido entre 2001 e meados de 2006, pelo menos uma vez por ano desferia palmadas na face da assistente, puxava-lhe o cabelo, apertava-lhe os braços, dava-lhe pontapés em várias zonas do corpo, e cuspia na sua direção, o que levou a que a mesma tivesse tido dores nas zonas afectadas, e tonturas quando lhe batia na cabeça, sendo que pelo menos por duas vezes o fez em frente de terceiros, um dos quais em frente de colegas de trabalho.
Há assim um reiterado comportamento do arguido que não só agrediu fisicamente a assistente durante um período, mas que manteve tais agressões
verbais ao longo de todo o período em que o casal esteve junto, sendo que no último ano o fez de forma particularmente violenta. Se a situação física por si só terá terminado em 2006, sem graves danos físicos, temos de ter em atenção que durante particamente todo o tempo em que o casal esteve junto, o arguido imputava à vítima um comportamento desadequado rebaixando-a, e ofendendo a sua honra e consideração. Todo o comportamento do arguido revela uma violência psicológica para com a vítima.
A apreciação da gravidade da lesão deve fundar-se em critérios objectivos (duração e intensidade do ataque ao bem jurídico e necessidade de tutela penal), embora não perdendo de vista critérios individuais, isto é, atendendo a especiais conhecimentos do agente.
O comportamento do arguido teve não só consequências directas na integridade física da assistente como igualmente na sua honra e consideração, bem como no seu sentimento de segurança, com o propósito conseguido de lhe causar sofrimento físico e psicológico.
Este comportamento reiterado e persistente de mau trato psicológico através da diminuição da dignidade da ofendida e da agressão física, embora as lesões provocadas fisicamente não sejam muito graves, são, manifestamente graves do ponto de vista psicológico.
O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
Neste caso, não podemos deixar de entender violência doméstica na pessoa da assistente pois que o comportamento do arguido foi violador da saúde, quer a saúde física como a saúde psíquica e mental, afectando a dignidade pessoal da companheira.
O arguido agiu com pleno domínio da vontade, sabendo que ao actuar da forma como o fez iria necessariamente magoar a assistente quer fisicamente quer atentar contra a sua dignidade pessoal, no entanto quis agir da forma descrita.
Assim sendo actuou o arguido com dolo directo.
Nestes termos entendo que cometeu, o arguido, o crime de que vem acusado, ou seja o mesmo praticou, em autoria material, na forma consumada, um crime de violência doméstica, sendo o mesmo agravado por ter sido praticado na casa de morada de família.
O arguido vem acusado da prática de seis crimes de violação, p. e p. pelo artigo 164.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 2, alínea a) do Código Penal.
Dispõe o artigo 164.º do Código Penal:
1 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral;
ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;
é punido com pena de prisão de três a dez anos.
2 – Quem, por meio não compreendido no número anterior constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral;
ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;
é punido com pena de prisão de 1 a 6 anos de prisão.
O bem jurídico protegido com a presente incriminação é o da liberdade de determinação sexual.
A liberdade sexual tem como limites, não apenas o respeito pelo exercício da liberdade sexual alheia, mas também o costume social, ou seja, o conjunto de regras que os costumes sociais impõem ao comportamento sexual e que são recebidos pelo direito positivo, variando de uma sociedade para a outra e, na mesma sociedade, ao longo do tempo – neste sentido José Mouraz, “Os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual no Código Penal”, pág. 20.
Como é dito pelo Prof. Jorge de Figueiredo Dias, no Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, Tomo I, pág. 467 “também a pessoa (nomeadamente a mulher) casada tem um direito intacto à liberdade de determinação sexual, nos termos gerais.”. Ou seja, mesmo no contexto de uma relação entre duas pessoas casadas, ou que vivem como tal, cada pessoa mantém a sua liberdade de determinação sexual, devendo ser respeitado na sua individualidade a sua decisão.
Vejamos o que resultou provado quanto a esta matéria:
Quanto à primeira situação:
O arguido regressou a Portugal, por duas semanas, em Abril/Maio de 2017, e quando novamente confrontado com a decisão de BB manteve a sua posição de não aceitar a separação nem sair da residência de ambos, mas o arguido não aceitou tal decisão.
Durante esse período de tempo, BB recusou-se a manter relações sexuais com o arguido.
No dia em que estava previsto o regresso do arguido ao estrangeiro, ele disselhe que não iria embora se não tivessem relações sexuais.
BB começou por recusar, mas como viu o tempo passar e temendo que ele não viajasse, acedeu a manter relações sexuais com o arguido.
Constranger é por definição forçar uma pessoa a realizar alguma coisa que a mesma não quer, obrigar, coagir ou impor.
O arguido com o seu comportamento, ainda que não usando de violência nem de ameaça grave forçou a assistente a manter com ele um acto de cópula, que o mesmo sabia que aquela não pretendia fazer, tanto que a mesma o recusou, e apenas o fez perante uma “ameaça” que aquele não se iria embora. O arguido não podia desconhecer que a assistente não pretendia manter consigo relações sexuais, como não o tinha feito ate aí, e que apenas por imposição daquele e com a “ameaça” de que não sairia de casa ela terá claudicado na sua pretensão.
Mostram-se preenchidos os pressupostos objectivos do disposto no artigo 164.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal.
Quanto à segunda situação:
No final do mês de Junho de 2017, o arguido regressou a Portugal, sem prespectiva de voltar para o estrangeiro a curto prazo nem de ter qualquer trabalho por cá.
Nessa ocasião, BB reiterou a sua decisão de se separarem, recusou manter relações sexuais com o arguido mas o arguido insistia em não sair da residência do casal e não aceitou que ela o fizesse com os filhos de ambos.
Em data não concretamente apurada, mas próxima do regresso do arguido a Portugal, no decurso de uma discussão que mantinham no quarto de um dos filhos, o arguido agarrou-a, e ainda que BB lhe tivesse dito para a soltar, começou a beijá-la e empurrou-a para o chão.
Com vista a afastá-lo de si, BB ainda lhe desferiu pontapés, mas o arguido, para a imobilizar, deitou-se em cima dela e, em acto contínuo, levantou-lhe o vestido que usava e começou a baixar-lhe as cuecas.
Perante isso, BB mordeu-o no peito, mas ainda assim não o conseguiu impedir de prosseguir, tendo o arguido conseguido retirar-lhe as cuecas que usava depois de as rasgar.
Após, pegou nela ao colo e levou-a para o quarto.
Aí chegados, deitou-a sobre a cama e colocou-se por cima dela.
BB tentou afastar o arguido de si, empurrando-o, ao mesmo tempo que lhe pedia para parar, mas não conseguiu e ao final de algum tempo deixou de conseguir resistir, tendo o arguido conseguido colocar o seu pénis erecto na vagina daquela e friccionar até ejacular.
Pela descrição dos factos não há qualquer dúvida que o arguido usou de violência física para lograr manter com a assistente uma relação de cópula, contra a vontade daquela, pelo que se mostram preenchidos os pressupostos objectivos do disposto no artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
Quanto à terceira situação:
No seu período de férias, BB decidiu ir passar uns dias, entre 8 e 25 de Julho, ao Alentejo, onde possui uma casa de família.
Num desses dias, os filhos estavam no exterior a brincar, e o arguido foi ter com BB à cozinha.
Nesse local, o arguido agarrou-a, envolvendo os seus braços à volta do peito e braços dela, levantou-a, sentou-a na bancada aí existente, e puxou a parte de baixo do biquíni que ela trazia vestido, a fim de a despir.
BB pediu-lhe para a largar e não voltar a fazer isso porque as crianças estavam presentes, ao mesmo tempo que se afastou dele.
Nesse momento, a filha de ambos entrou naquela divisão e pediu para ir à casa de banho.
BB segurou na filha pela mão e levou-a à casa de banho que se encontrava localizada no interior de um quarto, no andar superior, ficando a aguardar no exterior.
O arguido, que as havia seguido até aquele local, aproveitando-se de que a filha de ambos se encontrava no interior da casa de banho, empurrou BB para cima da cama, despiu-lhe a parte de baixo do biquíni e, de seguida, introduziu o pénis erecto na vagina daquela, friccionando até ejacular.
BB não reagiu para que a filha não se apercebesse do que estava a suceder.
Pela descrição dos factos não há qualquer dúvida que o arguido usou de violência física para lograr manter com a assistente uma relação de cópula, contra a vontade daquela, pelo que se mostram preenchidos os pressupostos objectivos do disposto no artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
Quanto à quarta situação:
No dia 18 de Agosto, ao início da tarde, quando se encontravam na varanda do quarto da residência de ambos, iniciaram uma nova discussão por causa da separação.
No decurso dessa discussão, o arguido pegou na BB ao colo e levou-a para o quarto, onde a colocou em cima da cama.
Após, deitou-se em cima dela e disse-lhe para se acalmar, para conseguirem falar.
Receosa daquilo que o arguido podia fazer, BB chamou pela filha, que se encontrava em casa, para ver se o arguido a deixava sair dali.
Quando a filha de ambos já se encontrava no quarto, o arguido pegou na BB ao colo e levou-a para a casa de banho, fechando a respectiva porta.
Ao fechar essa porta, entalou os dedos da sua filha, que os havia seguido, o que fez com que começasse a chorar.
Perante o choro da filha de ambos, o arguido soltou BB, que de imediato foi para junto da filha, segurou nela e levou-a para o sofá da sala para a acalmar, tendo a mesma acabado por adormecer deitada no seu colo, enquanto o arguido permanecia em pé a olhar para ambas.
Nessa altura, BB sentiu receio de sair de junto da sua filha, mas como ia entrar ao serviço às 16 horas, dirigiu-se ao quarto para se vestir, deixando a filha a dormir deitada no sofá da sala.
Quando já se encontrava no quarto, entrou o arguido que, de imediato, a empurrou para cima da cama e se deitou sobre ela.
Em acto contínuo, despiu-a e baixou a roupa que ele próprio usava, e sem que ela tivesse capacidade para reagir, introduziu o pénis erecto na vagina dela, friccionando-o até ejacular.
Pela descrição dos factos não há qualquer dúvida que o arguido usou de violência física para lograr manter com a assistente uma relação de cópula, contra a vontade daquela, pelo que se mostram preenchidos os pressupostos objectivos do disposto no artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
Quanto à sexta situação
No dia 11 de Setembro, BB comunicou ao arguido que iria a casa de sua mãe, acompanhada pelos filhos de ambos, para o jantar de aniversário da sua avó e que só regressaria no dia seguinte.
A propósito disso, iniciaram uma nova discussão e no decorrer da mesma, o arguido empurrou-a para o chão da varanda e tentou despir-lhe a roupa que trazia vestida da parte de baixo.
Ao que ela lhe diz “estás maluco, estamos na varanda, o que estás a fazer”.
Perante tais palavras, o arguido conteve-se, pegou nela ao colo, levou-a para o quarto, e atirou-a para cima da cama, deitando-se sobre ela.
Apesar da BB o ter empurrando com o intuito de o afastar e de lhe ter dado pontapés para impedir que lhe tirasse a roupa, ele conseguiu despir-lhe os calções e as cuecas que trazia vestidas,
E em acto contínuo, introduziu-lhe os dedos de uma das mãos na vagina e Friccionou
BB continuou a esbracejar e a pontapear o arguido para impedir que ele continuasse, mas ele não parava.
Perguntou-lhe então o que queria que fizesse para parar, tendo o mesmo respondido que cessaria com aquele comportamento se o deixasse acompanhá-la ao jantar aniversário da avó e se depois regressasse a casa com ele.
BB acedeu para que o arguido não prosseguisse com os seus intentos, o que sucedeu.
Pela descrição dos factos não há qualquer dúvida que o arguido usou de violência física para lograr manter com a assistente uma relação de cópula, contra a vontade daquela, pelo que se mostram preenchidos os pressupostos objectivos do disposto no artigo 164.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
Quanto à sexta das situações:
No dia 13 de Outubro de 2017, a assistente chegou a casa pelas 10 horas, depois de ter ido levar os seus filhos à escola, e sentou-se no sofá da sala.
Nesse momento, o arguido, sem proferir qualquer expressão, foi na sua direcção, deitou-a no sofá e colocou-se em cima de si.
Pediu-lhe para se afastar e como ele não o fez, e por sentir receio de que a voltasse a forçar a manter relações sexuais, agarrou-o pelo pescoço, arranhando-o, e espetou-lhe os dedos nos olhos.
Todavia, o arguido conseguiu imobiliza-la, prendendo-lhe as mãos.
Em acto contínuo, o arguido tirou-lhe os calções e as cuecas que trazia vestidos, pegou nela ao colo, levou-a para o quarto, e aí chegados atirou-a para cima da cama.
Apesar de não estar ninguém em casa, BB gritou por socorro, mas o arguido tapou-lhe a boca para que não continuasse.
Com vista a afastar o arguido de si, ainda pegou numa caneca que estava na mesinha de cabeceira, e atirou-a na direcção dele, mas não lhe acertou.
Nesse momento, o arguido virou-a de barriga para baixo e tentou introduzir o pénis erecto no seu ânus, ao mesmo tempo que lhe dizia “se queres ser puta, vou tratar-te como tal”.
Nesse momento BB desferiu-lhe uma cotovelada que lhe acertou no rosto e fez com que o arguido se afastasse de si, aproveitando-se assim para se virar, ficando com as costas sobre a cama e começou a esbracejar para afastar o arguido.
O arguido segurou-lhe os braços, e BB começou a empurra-lo com as pernas para o afastar, porém, sem sucesso, continuando o arguido por cima dela a prender-lhe os braços e as pernas.
Após um longo período de tempo, em que esbracejou e esperneou, BB não conseguiu resistir mais, e o arguido, aproveitando-se disso, introduziu o pénis erecto na vagina daquela, friccionando até ejacular.
Pela descrição dos factos não há qualquer dúvida que o arguido usou de violência física para lograr manter com a assistente uma relação de cópula, contra a vontade daquela, pelo que se mostram preenchidos os pressupostos objectivos do disposto no artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
Em cada uma destas seis situações, o arguido quis, ainda, manter relações sexuais com BB, com o intuito de satisfazer os seus desejos sexuais, sabendo que o fazia sem o consentimento e contra a vontade desta, que se via impossibilitada de reagir face à força física utilizada por aquele, ou pelo facto, na primeira das situações de o arguido a ter forçado.
O arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as condutas eram proibidas e punidas por lei penal, pelo que cometeu cada um dos crimes que supra foi mencionado.
Poderíamos estar perante uma situação concurso aparente de crimes, numa relação de consumpção, na qual os factos que integram o crime de violação são valorados em sede de actuação no crime de violência doméstica ,como uma qualquer violência sexual, como entende parte da jurisprudência1.[8]
Valorando assim o comportamento como um só na violência intrafamiliar, e sendo aplicada a pena do crime de violação no crime de violência doméstica.
No entanto, entende o Tribunal que os factos em questão são autonomizáveis, sendo que o comportamento do arguido tem uma vertente física e emocional para com a assistente que é transversal a toda a uma relação, e depois tem situações muito concretas no ano de 2017, que extravasam essa violência, passando a uma violência sexual, e que não são unificáveis sob a capa de violência doméstica, até porque em cada uma das seis situações que constam supra houve uma decisão de ter relações sexuais, após constranger a vítima, com ou sem violência, não existindo uma única resolução criminosa.
Nestes termos, e porque os factos são perfeitamente autonomizáveis quer quanto à sua efetivação mas também ao momento em que o arguido decidiu praticá-los, entende o tribunal que estamos perante uma situação de concurso efectivo de crimes.
A assistente nos presentes autos veio requerer a condenação do arguido a proceder ao pagamento de um valor como forma de ressarcir os danos que lhe foram infringidos.
Constitui-se na obrigação de indemnizar quem, com dolo ou mera culpa,violar ilicitamente o direito de outrem, pelos danos resultantes dessa violação -artigo 483.º do Código Civil.
Como supra foi exposto o arguido, com a sua actuação, violou o direito à integridade física da assistente, quer quando a agrediu fisicamente quer quando a forçou a manter relações sexuais com ele, e violou igualmente o seu direito à sua integridade psíquica e à sua paz de espirito, o qual constitui uma vertente dos direitos de personalidade – artigo 70.º, n.º 1 do Código Civil, pelo que se constituiu na obrigação de a indemnizar pelos danos daí resultantes.
Os danos ressarcíveis são aqueles que o demandante sofreu devido à conduta do arguido, aqueles ligados à acção lesante por um nexo de causalidade (artigo 563.º do Código Civil).
Os danos morais são ressarcíveis desde que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito – artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil.
A paz e serenidade são, sem dúvida, bens jurídico importante e a imputação de factos lesivos desse bem estar inerente, provocando receio, leva a que sejam provocados “danos” nesse “núcleo essencial” que acompanha a pessoa em/na comunidade.
A conduta do arguido atingiu directa e necessariamente a integridade física e a paz e tranquilidade da assistente/demandante provocando-lhes fundado receio, e dores e incómodos.
A vítima estive sujeita a uma violência psicológica, para além de física por parte do arguido durante vários anos, sendo particularmente relevante a do último ano.
A assistente/demandante sofreu dores, em várias ocasiões, tendo ficado com marcas físicas, sentiu tonturas. Mas para além das questões físicas há que relevar essencialmente o sofrimento psíquico de quem para além de ser menosprezada pelo arguido e algumas vezes em público, se viu violada na sua intimidade sexual e levou a que tenha mesmo deixado de querer estar em casa sozinha, e a impedi-la de ir ao c em casa quando estava o marido.
Assim, e usando critérios de equidade, e atento o tipo de danos na integridade física, mas especialmente no sentimento de segurança e de liberdade de actuação e de liberdade sexual da ofendida, entendemos que deve ser fixado o valor indemnizatório em 30.000,00 euros, a que acrescerão juros de mora, à taxa legal, que se mostra fixada em 4% ao ano desde a data da prolação do acórdão e até integral pagamento da mesma quantia.
A determinação da medida da pena a aplicar, em concreto, ao arguido terá de ter em conta a sua culpa, a finalidade de prevenção geral (protecção dos bens jurídicos) e especial (reintegração do agente na sociedade) – artigo 71.º, n.º1, do Código Penal.
As penas visam a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (artigo 40.º, n.º 1, do citado código); têm um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador, e a sua aplicação tem como finalidade restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07/05/97, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 467.º, pág. 237 e seg.).
O legislador, na norma incriminadora determina em abstracto o limite mínimo e máximo de pena a aplicar a cada crime, cabendo ao tribunal a sua determinação em concreto, tendo em conta as finalidades e limites supra referidos.
A culpa do agente funciona como limite da pena, isto é estabelece o limite máximo da pena a aplicar concretamente. Por seu turno, o limite mínimo da moldura concreta é determinado pelas exigências de prevenção geral positiva ou de integração - vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10/4/96, in Coletânea de Jurisprudência do STJ, tomo II, pág. 168. Dentro destes limites terá de ser estabelecida a pena concreta a aplicar, de acordo com as exigências de prevenção especial de socialização.
O artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal prescreve que as circunstâncias a ter em conta na determinação da medida concreta da pena reduzem-se a três núcleos fundamentais: a gravidade da ilicitude, a culpa do agente e a influência da pena sobre o delinquente.
Teremos de tomar em consideração:
- o grau de ilicitude dos factos e o modo de execução dos mesmos:
O arguido tem um comportamento reiterado de menosprezo pela pessoa com quem vivia, manifestando-o não apenas no que respeita a situações psíquicas, e físicas, mas mesmo sexuais.
Assim, entende-se que a ilicitude do comportamento do arguido será elevado, sendo que em algumas das situações estavam presentes os filhos do casal, que impediam a mesma de poder resistir para que os mesmos não se apercebessem.
- A gravidade e consequências da conduta do arguido – quanto a esta situação há que referir que a vítima ficará marcada psicologicamente com a experiência por que passou.
- a intensidade do dolo – o arguido actuou sempre com dolo, sabendo da ilicitude da sua conduta e pretendendo maltratar a vítima, e de forma violenta abusar da sexualidade da mesma.
- os sentimentos manifestados no cometimento dos crimes e os fins ou motivos determinantes – o arguido tem características pessoais que potenciam o comportamento violento, tais como a impulsividade e a dificuldade de estão interna de emoções negativas
O arguido evidencia limitações ao nível da sua consciência crítica relativamente às noções de dano e de vítima (nega/minimiza), sendo que entende que a culpa é da vítima.
- as condições pessoais do arguido e a sua situação económica:
O arguido não tem antecedentes criminais e tem uma estrutura familiar, sendo visitado pela mãe no estabelecimento prisional.
- a falta de preparação para manter conduta lícita, manifestada no facto
–Mais uma vez se realça as fragilidades de gestão de impulsos do arguido, sendo que não tendo interiorizado qualquer desvalor no seu comportamento tenderá a repeti-lo.
As necessidades de prevenção geral são elevadas, atenta a quantidade de idênticos factos que são praticados desta forma.
Assim, entende-se proporcionais e adequadas aos factos a aplicação das penas:
- 3 (três) anos de prisão, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1 e 2, do Código Penal;
- 2 (dois) anos de prisão, pela prática de um crime de violação, p. e p.pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal (situação I);
- 5 (cinco) anos de prisão, pela prática de cada um dos quatro crimes de violação, p. e p. pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal (Situações II, III, IV e VI);
- 4 (quatro) anos de prisão pela prática de um crime de violação, p. e p. pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, (Situação V).
Dispõe o artigo 77.º, do Código Penal, que quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitado em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
Assim, por aplicação dos critérios do artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal, há que proceder ao cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido sendo que a pena mínima é de 5 anos (a mais elevada das penas concretamente aplicada) e a pena máxima é de 25 anos, já que a soma das penas parcelares é superior.
Na medida concreta da pena a aplicar serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente – de harmonia com a parte final do n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal.
Os factos dos presentes autos têm uma duração temporal longa, embora os crimes de violação tenham sido praticados num período de sete meses, e com uma violência relevante, pelo que se entende que deverá ser aplicada uma pena única de 11 (cinco) anos de prisão.
Acresce que atenta a reiteração da actuação do arguido, à gravidade da mesma e às ameaças que o mesmo tem produzido para ambas as ofendidas, entende-se que o mesmo deverá, igualmente ser sujeito à sanção acessória de proibição do contacto com a vítima, nomeadamente de afastamento da sua residência e do seu local de trabalho, durante 5 anos - artigo 152.º, n.º 4 e 5, do Código Penal.
Pelo exposto o tribunal colectivo decide:
a) Julgar procedente a acusação deduzida contra o arguido condenando o, em conformidade, como autor material, na forma consumada, e em concurso real de:
- um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1 e 2, do Código Penal, na pena 3 (três) anos de prisão;
- um crime de violação, p. e p. pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
- quatro crimes de violação, p. e p. pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, cada um deles na pena de 5 (cinco) anos de prisão;
- um crime de violação, p. e p. pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão;
b) Efectuando o cúmulo jurídico das penas supra, aplicar-lhe a pena única de 11 (onze) anos de prisão, e na sanção acessória de proibição do contacto com a assistente, nomeadamente de afastamento da sua residência e do seu local de trabalho, durante 5 (cinco) anos.
c) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado, e em conformidade condenar o arguido a proceder ao pagamento à assistente da quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros), acrescido de juros legais desde a data da prolação da decisão até integral pagamento, a título de indemnização civil.
d) Condenar o arguido a pagar 4 (quatro) UC de taxa de justiça, e os encargos do processo - artigo 513.º, n.º 1, e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais.
e) Condenar arguido e assistente, na proporção do decaimento, das custas cíveis.
Após trânsito em julgado:
- Boletins ao registo criminal.
- Determino a recolha de amostra de ADN do arguido, nos termos do
disposto no artigo 8.º, n.º 2, da Lei 5/2008, de 12/02.
- Comunique o teor da decisão à SGMAI, nos termos do disposto no
artigo 37.º da Lei 112/2009.
Depois de lido vai ser depositado - artigo 372.º, n.º 5, do Código de
Processo Penal.
3. Decidindo
Da nulidade do acórdão por falta de fundamentação ( artigo 374º, nº 2, do C.P.P.).
A obrigação de fundamentação das sentenças está consagrada constitucionalmente – artigo 205º, nº1, do C.R.P..
E, sob a epígrafe Requisitos da sentença, dispõe o artigo 374º do C.P., o seu nº2, que: “2- Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal…”.
Só desta forma fica verdadeiramente garantido o direito ao recurso.
Por isso, nos termos do artigo 379º, nº1, alínea a), do C.P.P., o desrespeito dos comandos, constitucional e legal, acabados de referir determina a nulidade da sentença.
Impõe-se, pois, analisar se, de facto, se verifica a inexistência da fundamentação no acórdão sub judice. Impõe-se verificar se o acórdão é omisso acerca dos fundamentos pelos quais desvalorizou o depoimento do arguido, bem como a sua prova testemunhal.
Analisemos então a fundamentação, tendo em atenção as linhas traçadas pelo STJ no Acórdão datado de 23.4.2008, CJ ( STJ), 2008, T2, pág. 205:
” O cumprimento do dever de fundamentação deve ser claro e transparente, permitindo acompanhar de forma linear o raciocínio sentenciado, não sendo exigível que o mesmo explane todas as possibilidades teóricas de conceptualizara forma como se desenvolveu a dinâmica dos factos em determinada situação e muito menos que equacione todas as complexidades suscitadas pelos sujeitos processuais.”.
Vejamos:
Quanto à prática dos factos imputados ao arguido e não admitidos por este:
Como consta da sentença recorrida:
- Valorou o tribunal recorrido toda aprova produzida em julgamento, interpretada com base nas regras gerais da experiência comum..
- Para além das declarações que quer o arguido quer a assistente fazem dos factos e que são em parte contraditórias temos que nos socorrer dos indícios que temos para concluir pela credibilidade de uma outra versão.
- Como em tantos outros casos, o que se passa no interior da casa apenas é presenciado pelo casal, sendo que no caso os filhos eram demasiado pequenos para terem a percepção real do que se passava, atento o tipo de acções em questão é normal que a vítima se retraia a contar a terceiros.
- No que respeita aos factos referentes a finais de 2016 e 2017, foi tido em atenção essencialmente o teor do depoimento da assistente que descreveu de forma credível, coerente a forma como os factos correram, sendo possível de nos apercebermos da forma como a mesma os recordou que os estava a reviver de forma sentida.
- Foram lidas as declarações do auto de inquirição da testemunha Rita Gonçalves…Esta testemunha que foi acompanhando a vida do casal, recordando que o arguido por vezes injuriava a assistente à frente de terceiros, nomeadamente da própria depoente, tendo também descrito uma situação de violência física...a assistente confidenciava-lhe ..as situações em que o arguido a forçou a ter relações sexuais e a ter tirado as fotos das lesões ´s, que referiu ter presenciado injúrias e uma situação de violência física perpetradas pelo arguido e ter-lhe a assistente confidenciado que o arguido a forçou a relações sexuais e ter tal testemunha tirado as fotos das lesões que a assistente tinha e que estão no processo.
- A isso acresce o teor dos depoimentos das testemunhas de nomes Cláudia Romão e Sónia Ferreira, que descreve também uma agressividade verbal do arguido para com a assistente, sendo que esta última relata também uma situação de agressão física.
- Que foram tidas em conta as fotos de fls 116 /120 e as mensagens de fls 106/115, bem como o exame médico de fls 84 e 85, referente aos factos do dia 11.9.2017, e a perícia de fls 174/175 e 344/346..
- Assim, conjugando todos os indícios físicos, o teor dos depoimentos de quem acompanhou a assistente, mais credibilidade se confere a depoimento da assistente”.
- As testemunhas de nomes FF, amigo do arguido, GG, tia do arguido, HH, amiga do arguido e II, mãe do arguido, nada puderam esclarecer, por nada terem presenciado, o que não é estranho, já que os factos em questão são muito íntimos.
Do exposto decorre que in casu, o Tribunal recorrido discrimina com toda a clareza todos os meios de prova (declarações do arguido, da assistente, depoimentos das testemunhas e prova documental) em que sustentou a sua decisão e esclareceu os motivos pelos quais deu credibilidade a alguns depoimentos em detrimento de outros.
Dispõe o disposto no art. 127º do C.P.P., sob a epígrafe Livre apreciação da prova, que “ Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”.
E, nenhum reparo oferece a forma como a prova foi apreciada pelo tribunal a quo.
Improcede, assim, a arguida nulidade, bem como o recurso, neste segmento.
Impugnação da matéria de facto.
Como refere Sérgio Gonçalves Poças em Processo Penal, Quando o Recurso Incide sobre a Decisão da Matéria de Facto (in Revista Julgar – Nº 10-2010):
“O Direito real e efectivo ao recurso é um elemento estruturante do Estado de Direito Democrático.
De facto só se pode falar em Estado de Direito quando o cidadão tem direito a que a sua causa seja reapreciada por um outro tribunal – por um tribunal superior.
E porque assim é, a Constituição da República Portuguesa (art. 32º), inclui expressamente o direito ao recurso nas garantias de defesa asseguradas no processo penal.
Finalmente este duplo grau de jurisdição, constitucionalmente consagrado, compreende tanto o recurso sobre a matéria de facto como recurso sobre matéria de direito….”.
No presente caso, o recorrente alega que vem impugnar a matéria de facto.
Mais alega que considera incorrectamente julgados todos os factos dados como provados, à excepção dos constantes nos artigos 1º a 3º e 100º a 112º.
Determina o artigo 412º do C.P.P.:
“…
3- Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As provas concretas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
…”.
In casu, o recorrente deu cumprimento ao disposto na alínea a) do nº3 do preceito legal acabado de referir.
Mas, no que respeita ao disposto na alínea b) do mesmo artigo - indicação das provas que imporiam decisão diversa -, o arguido indicou, quer na motivação quer nas conclusões, de forma global, as passagens das declarações do arguido e dos depoimentos das testemunhas inquiridas, transcrevendo-os, que entende que impunham decisão diversa. Mas não indicou, como lhe era exigido, relativamente a cada ponto que entendeu incorrectamente julgado, quais os meios de prova que impunham diferente decisão.[9]
Pelo que, não pode haver lugar ao convite a que alude o artigo 417º, nº3, do C.P.P., dado que tal implicaria extravasar o que consta da motivação e que determina o âmbito do recurso, o que está vedado no nº4 do mesmo preceito.
Do exposto decorre que, porque não se pretende que, em sede de recurso, a matéria de facto seja toda ela reapreciada e o recorrente não deu cabal cumprimento ao disposto no art. 412º, nº3 e 4, do C.P.P., como resulta do disposto no artigo 431º do C.P.P., está vedada a este Tribunal qualquer alteração da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, a menos que essa alteração decorra da constatação de qualquer dos vícios elencados no nº2 do artigo 410º do C.P.P. .
Dispõe o artigo 410º, nº2, do C.P.P. que:
“2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulta do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório da apreciação da prova…”
Assim, importa analisar o texto da sentença recorrida com vista a averiguar da verificação dos aludidos vícios, de conhecimento oficioso.
Da insuficiência para a decisão de facto da matéria provada:
Aqui, há que averiguar se o tribunal investigou cabalmente, [10]“…sempre no respeito da estrutura acusatória do processo, sempre no respeito pelo objecto do processo. Do que se trata é de indagar e conhecer de toda a matéria necessária àquele processo, com determinado objecto, para uma decisão justa e não um outro processo..”. Dito de outra forma, há que apurar se, por falta de investigação do tribunal, se verifica a existência de factos não provados que teriam relevo na decisão da causa.
Da análise dos autos decorre que os factos com relevo para a causa foram adequadamente apreciados pelo tribunal e os factos dados como provados são suficientes para a decisão de direito.
Da contradição insanável da fundamentação e da decisão:
Estão aqui previstas apenas as situações que o tribunal não possa sanar, recorrendo às regras gerais da experiência comum ou a elementos constates do processo.
Esta contradição “ tanto pode existir na motivação da decisão da matéria de facto como na própria decisão da matéria de facto. Parece claro que há contradição na motivação ( fundamentação, nas palavras da lei) quando para a decisão de um determinado ponto de facto são invocados meios probatórios totalmente incompatíveis entre si…Como também parece haver clara contradição quando a motivação num raciocínio lógico conduz precisamente ao contrário do que se decidiu…Por outro lado, são casos flagrantes de contradição na decisão da matéria de facto: a) dar como provados dois factos totalmente incompatíveis entre si..b) dar como provado e não provado o mesmo facto..”[11].
A sentença recorrida não enferma de contradição entre a fundamentação e a decisão.
Do erro notório na apreciação da prova:
“ Erro notório, no fundo, é, pois, a desconformidade com a prova produzida em audiência ou as regras da experiência (decidiu-se contra o que se provou ou não provou ou deu-se como provados o que não pode ter acontecido.
Assim, jamais poderá incluir-se no erro notório na apreciação da prova a sindicância que os recorrentes possam pretender efectuar à forma como o tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência, valoração que aquele tribunal é livre de fazer, da harmonia com o preceituado no artigo 127º.
Mas já haverá erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras gerais sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis…”[12].
Após atenta análise da decisão recorrida conclui-se pela não existência de qualquer erro notório.
Da violação do princípio in dúbio pro reo
Alega o recorrente que a prova produzida nos autos no que se refere aos cinco primeiros crimes de violação é inexistente ou, eventualmente, insuficiente, pelo que, atento o princípio in dúbio pro reo, devia a matéria de facto referente aos referidos crimes ter sido dada como não provada.
Ora, conclui-se que o recorrente pretende impugnar o processo de formação da convicção do tribunal a quo que levou à fixação da matéria de facto dada como provada e como não provada, no sentido em que o foi pelo tribunal a quo, esquecendo-se que nos termos do art. 127º do C.P.P., a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da autoridade competente.
Como supra consta, nenhum reparo merece a forma como foi analisada a prova.
Mais, da análise da sentença recorrida apura-se que na convicção do tribunal a quo não subsistiu qualquer dúvida relativamente aos factos que, após um processo lógico, coerente e claro, deu como provados.
Do exposto decorre que, nos presentes autos, não se viu o tribunal a quo confrontado com um estado de dúvida insanável, face ao qual estaria obrigado a decidir em favor do arguido.
Da alteração da qualificação jurídica:
Foi o arguido condenado pela prática, como autor material, na forma consumada e em concurso real, de:
- um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n1 e 2, do C.Penal, na pena de 3 anos de prisão,
- um crime de violação, p. e p. pelo art. 164º, nº2, al.a), do C.Penal, na pena de 2 anos de prisão,
- quatro crimes de violação, p. e p. pelo art.164º, nº1, al.a), do C.Penal, na pena de 5 anos de prisão, por cada um deles,
- um crime de violação, p. e p. pelo art.164º, nº1, al.a) do C.Penal na pena de 4 anos de prisão,
- em cúmulo jurídico, na pena de 11anos de prisão.
Pugna o recorrente pela alteração da qualificação jurídica constante da sentença recorrida e pela condenação apenas pela prática de um crime de violência doméstica, aplicando a moldura penal mais gravosa dos factos imputados, ou seja, a que resulta do crime de violação.
Dispõe o artigo 152º do C.Penal ( na actual redacção que foi introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4.9, e com as alterações introduzidas pela Lei nº19/2013, de 21.2), sob a epígrafe Violência doméstica, que:
1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele habite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
3 - Se dos factos previstos no nº 1 resultar :
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de três a dez anos.
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis a cinco anos, de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizados por meios de controlo à distância.
6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade o facto e a conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou curatela por m período de um a dez anos.
Dispõe o artigo 164.º do Código Penal:
1 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral;
ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;
é punido com pena de prisão de três a dez anos.
2 – Quem, por meio não compreendido no número anterior constranger outra
pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral;
ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;
é punido com pena de prisão de 1 a 6 anos de prisão.
Assim, duas questões se levantam:
A - Se os factos constantes dos artigos 24º a 26º dos factos provados integram um crime de violação, p. e p. pelo art. 164º, nº2, al. a), do C.Penal.
B - Se se verifica uma situação de concurso real ou aparente entre o crime de violência doméstica e os crimes de violação pelos quais o arguido foi condenado.
Qualificação jurídica dos factos constantes dos artigos 24º a 26º dos factos provados:
O arguido disse à assistente que não iria trabalhar para o estrangeiro caso esta se recusasse a manter relações sexuais com ele e, para que o arguido se fosse embora, a assistente acedeu a manter com o mesmo relações sexuais.
O bem jurídico protegido com a incriminação em causa é o da liberdade de determinação sexual.
Mas, será que estes factos em causa podem integrar uma situação de constrangimento?
Entende-se que não. Integram, sem dúvida, uma situação de desrespeito, de desconsideração por parte do arguido no que toca à vontade manifestada pela assistente. No entanto, entende-se que, nesta situação, a assistente manteve a capacidade de decisão.
Pelo que, salvo melhor entendimento, tais factos não integram um crime de violação, p. e p. pelo art. 164º, nº2, al.a), do C.Penal.
Do concurso real ou aparente entre o crime de violência doméstica e os cinco crimes de violação:
Como bem defende André Lamas Leite: “ No nosso modo de ver, o fundamento último das acções e omissões abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um individuo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análoga.”[13]
No Ac. TRE de 3.7.2012 decidiu-se que: “ A pedra de toque da distinção entre o tipo de crime de violência doméstica e os tipos de crime que especificamente tutelam os bens pessoais nele visados concretiza-se pela apreciação de que a conduta imputada constitua, ou não, um atentado à dignidade pessoal aí protegida.”.
O foco está, pois, na protecção da pessoa individual, da sua dignidade, do seu direito à integridade pessoal, liberdade e pleno desenvolvimento.
Tal protecção, como decorre do texto da lei, abrange uma multiplicidade de comportamentos que ofendem tal dignidade, quando tais condutas sejam perpetradas por alguém com quem a vítima tem ou teve uma relação amorosa, ou tem uma relação familiar ou de coabitação.
Ora, da análise dos factos dados como provados decorre que:
- Mostram-se verificados os elementos, objectivo e subjectivo, do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº1, al.a), do C.Penal.
- E, mostram-se também verificados, em abstracto, os elementos, objectivo e subjectivo do crime de violação, p. e p. pelo artigo 164º, nº1, al.a), e nº2, al.a), do C.Penal.
O que importa decidir é se, como decidido na decisão recorrida, devem ser autonomizados os referidos crimes, por estarmos perante um concurso real de crimes, ou se deve o arguido ser punido pela pratica de um crime de violência doméstica com a pena aplicável ao crime de violação.
Como refere Paulo Pinto Albuquerque in Comentário do Código Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia de Direitos do Homem, UCP, 3ª Ed., pág. 593 “As “ofensas sexuais incluem a coacção sexual prevista no artigo 163º, nº1, a violação, prevista nos termos do artigo 164º, nº2, a importunação sexual, o abuso sexual de menores dependentes previsto no artigo 172º, nº2 e 3.O emprego de formas mais graves de ofender a liberdade de autodeterminação sexual é punível pelas respectivas incriminações.” e 594 “ O crime de violência doméstica está numa relação de concurso aparente ( subsidiariedade expressa ) com os crimes de ofensas corporais graves, contra a liberdade pessoal e contra a liberdade e autodeterminação sexual que sejam puníveis com pena mais grave do que 5 anos. Isto é, a punição destes crimes afasta a da violência doméstica.”.
E, entende-se que, do teor do artigo 152º, nº1, do C.Penal decorre que, face à gravidade e diversidade das situações englobadas neste ilícito mas também face ao circunstancialismo específico em que as mesmas se enquadram, o legislador estabeleceu um regime de concurso aparente, no qual são englobados ilícitos puníveis com penas menos graves, mas também outros ilícitos punidos de forma mais severa, sendo, neste último caso, o agente punido com a pena correspondente ao crime mais grave.
Como analisa Sara Margarida Novo das Neves Simões, na sua dissertação de mestrado, UCP., “O crime de violência Doméstica: Aspectos materiais e processuais”, pág.12 “ A jurisprudência apoia a qualificação como concurso aparente, marcado por uma relação de subsidiariedade que o crime de violência doméstica apresenta perante os restantes tipos de crime. Os factos praticados deixam de ter relevância jurídico-penal enquanto eventos separados, sendo sim valorados conjunta e harmoniosamente no crime familiar.”.
No sentido do concurso aparente, vide, ainda e por todos, Ac.TRL de 13.12.2016, Processo nº 1152/15.0PBAMD-5, relatado por Cid Geraldo, e Acórdãos ali citados.
E, entende-se que estamos perante um crime de violação, de trato sucessivo (atenta a conexão temporal e a unidade resolutiva), pelo que deve o arguido ser punido com a pena mais grave aplicável.
Em conformidade, deve o arguido ser punido pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art 152º, nº1, al. b) e nº 2 do C.Penal, com a pena aplicável ao crime de violação, p. e p. pelo art. 164º, nº1, al. a), do C.Penal.
Da medida da pena:
(Transcrita mais à frente no sector da apreciação da medida da pena)
Do pedido de alteração da decisão proferida em sede de pedido de indemnização cível.
Pede o recorrente se altere a decisão, reduzindo o montante da indemnização fixado, tendo em atenção os factos efectivamente provados.
Está este pedido conexionado com o pedido de alteração da matéria de facto, pedido este que que foi julgado improcedente.
Mantendo-se a factualidade que foi dada como provada no acórdão recorrido, a diferente qualificação jurídico-penal desses factos não tem a virtualidade de alterar a decisão no que toca ao pedido de indemnização civil.»
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Apreciação do recurso
2. Apreciando.
Conforme jurisprudência pacífica, as conclusões delimitam, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, os poderes de cognição do Tribunal de recurso (art. 412.º, n.º 1, CPP; v. BMJ 473, pág. 316; jurisprudência do STJ referenciada no Ac. RC de 21/1/2009, Proc. 45/05.4TAFIG.C2, Rel. Gabriel Catarino; Acs. STJ de 25/3/2009, Proc. 09P0486, Rel. Fernando Fróis; de 23/11/2010, Proc. 93/10.2TCPRT.S1, Rel. Raul Borges; de 28/4/2016, Proc. 252/14.9JACBR., Rel. Manuel Augusto de Matos).
As questões levantadas nas conclusões do presente recurso, já sintetizadas quer na Resposta do Ex.mo PGA junto da Relação de Lisboa, quer no parecer da Ex.ma PGA junto deste STJ, têm a ver com:
─ Nulidade da omissão de pronúncia (art.º 379º n.º 1 c) do CPP);
─ Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito (art.º 410º n.º 2 a) do CPP);
─ Medida concreta da pena de prisão e suspensão da execução da mesma.
--da questão da omissão de pronúncia (art.º 379º n.º 1 c) do CPP).
O recorrente impugnou a matéria de facto perante a Relação invocando erro de julgamento nos termos dos n.º 3 e 4 do art. 312.º do CPP.
A Relação todavia entendeu que o recorrente não cumpriu o ónus imposto pela alínea b), do n.º 3, do artigo 412.º do CPP e que, por isso, lhe estava vedada a alteração da matéria de facto.
Escreve-se a propósito na decisão em crise que:
«3- Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As provas concretas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4- Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
…”.
In casu, o recorrente deu cumprimento ao disposto na alínea a) do nº3 do preceito legal acabado de referir.
Mas, no que respeita ao disposto na alínea b) do mesmo artigo - indicação das provas que imporiam decisão diversa -, o arguido indicou, quer na motivação quer nas conclusões, de forma global, as passagens das declarações do arguido e dos depoimentos das testemunhas inquiridas, transcrevendo-os, que entende que impunham decisão diversa. Mas não indicou, como lhe era exigido, relativamente a cada ponto que entendeu incorrectamente julgado, quais os meios de prova que impunham diferente decisão.[14]
Pelo que, não pode haver lugar ao convite a que alude o artigo 417º, nº 3, do C.P.P., dado que tal implicaria extravasar o que consta da motivação e que determina o âmbito do recurso, o que está vedado no nº4 do mesmo preceito.
Do exposto decorre que, porque não se pretende que, em sede de recurso, a matéria de facto seja toda ela reapreciada e o recorrente não deu cabal cumprimento ao disposto no art. 412º, nº3 e 4, do C.P.P., como resulta do disposto no artigo 431º do C.P.P., está vedada a este Tribunal qualquer alteração da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, a menos que essa alteração decorra da constatação de qualquer dos vícios elencados no nº2 do artigo 410º do C.P.P. .»
Como bem se assinala, quer na Resposta do Ex.mo PGA da Relação de Lisboa, quer no parecer do Ex.mo PGA junto deste STJ, o tribunal recorrido (Relação de Lisboa) pronunciou-se sobre a questão que lhe foi colocada. Decidiu-a foi de forma que não agradou ao recorrente. Mas decidiu correctamente.
O Tribunal explicou, em detalhe, como se vê da transcrição acabada de fazer, a razão por que não avançava para a apreciação ampla da matéria de facto nos moldes do art. 412.º do CPP.
Entende-se, na sequência de diversa jurisprudência constitucional (cfr. Ac. TC 401/2001 e arestos aí citados e, também, o Ac. TC 320/2002, DR I. S. de 7 de Outubro de 2002; note-se que o Tribunal Constitucional no Ac. 259/2002, DR II S., de 13 de Dezembro de 2002, considerou que «Na verdade, não pode inferir-se da lei fundamental que tem — sempre e necessariamente — de ser facultada ao autor de uma peça processual deficiente a possibilidade de suprir o vício cometido, determinando o interesse na celeridade e economia processuais a não prolação de um despacho de aperfeiçoamento face a deficiências indesculpáveis e respeitantes a elementos ou indicações que revestem carácter essencial, por se conexionarem com a própria inteligibilidade e concludência da impugnação deduzida») que o convite ao aperfeiçoamento das conclusões de recurso deve ter lugar não só no caso do n.º 2 (matéria de direito), mas também no do n.º 3 (matéria de facto) do art. 412.º do CPP (cfr., na jurisprudência mais recuada, Ac. STJ de 10 de Abril de 2002, proc.153/01, Rel. Pires Salpico).
Efectivamente, o convite aplica-se, agora, não apenas aos casos previstos no n.º 2, mas também aos dos n.os 3 e 4 do art. 412.º (cfr., v. g., igualmente, Acs. TC 140/2004 e 405/2004 ou os Acs. STJ de 15 de Dezembro de 2005; Proc. 05P2951 e de 9 de Março de 2006, Proc. 06P461, ambos relatados por Simas Santos). E, de igual modo, ao n.º 5 (v. Ac. do TC 381/2006, DR II. S. de 16 de Agosto de 2006).
Inicialmente o TC debruçou-se sobre a constitucionalidade do n.º 2, tendo-se, posteriormente (tenha-se em atenção que a L 59/98 alterou a redacção do n.º 3 e introduziu os n.os 4 e 5), debruçado sobre os outros números (cfr., v.g., Acs. TC 191/2003, DR II S, de 28 de Maio de 2003, 529/2003, DR II S, de 17 de Dezembro de 2003, 140/2004, DR II S, de 17 de Abril de 2004, 405/2004, DR II S, de 23 de Julho de 2004, 724/2004, DR II S, de 4 de Fevereiro de 2005, 381/2006, DR II S, de 16 de Agosto de 2006).
O Ac. do TC 120/2002, DR II. S. de 15 de Março de 2002, debruçou-se sobre a constitucionalidade da alínea b), do n.º 2, do art. 412.º.
E começou igualmente, aquele tribunal, por apreciar questões relacionadas com conclusões não concisas ou prolixas (cfr., v. g., Ac. TC 43/99, DR II S, de 26 de Março de 1999; 337/2000, cit. e outros arestos referenciados no cit. Ac. do TC 120/2002).
Posteriormente, debruçou-se sobre a falta de conclusões da motivação tendo chegado a posição semelhante, isto é, à necessidade de convite [vide Acs. TC 323/2003 e 428/2003; é diferente, mais rígido, o regime do processo civil — cfr. Ac. TC 536/2011 e artigos 685.º- C, n.º 2, alínea b) do Velho CPC; no âmbito do vigente CPCivil aprovado pela L 41/2013, de 26 de Junho, cfr. os seguintes artigos: 637.º, n.º 2 (imediata rejeição), 639.º, n.º 3 (convite), 640.º, n.º 1 (rejeição), 641.º, n.º 2 b) (indeferimento por falta de conclusões), 672.º, n.º 2 (rejeição)].
O legislador de 2007, por um lado, suprimiu do corpo do n.º 2 do art. 412.º a expressão sob pena de rejeição, e, por outro, introduziu a redacção do n.º 3 do art. 417.º (o legislador de 2013 manteve a necessidade do convite), consagrando no texto da lei o entendimento expresso na jurisprudência do TC.
O n.º 3 do art. 417.º do CPP tem em vista a motivação:
— com conclusões onde falhem, total ou parcialmente, as indicações previstas nos n.os 2 a 5 do artigo 412.º; ou.
— apresentada sem conclusões.
Verificadas tais falhas, o relator convida o recorrente a «completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afetada.» ou, no caso de a motivação não ter conclusões, convida-o a «apresentá-las em 10 dias sob pena de o recurso ser rejeitado» (itálico nosso).
E, de acordo com o n.º 4, o aperfeiçoamento previsto no número antecedente não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação.
Donde resulta que a falha ou deficiência na motivação não tenha o mesmo significado, nem a mesma consequência, da falha ou deficiência nas conclusões (cfr. anotações n.º 2 e 3 ao artigo 412.º e n.º 3 ao artigo 414.º). Aspecto que resulta vincado na redacção do n.º 3 proveniente da L 20/2013.
Sobre o convite à correcção consagrado no n.º 4 do presente normativo, na redacção da L 48/2007, cfr. Ac. STJ de 9 de Janeiro de 2008, Proc. 07P2075, Rel. Santos Monteiro.
Na jurisprudência mais recente, cfr. Ac. STJ 18 de Dezembro de 2013, Proc. 137/08.8SWLSB.L1.S1, Rel. Arménio Sottomayor.
A propósito do n.º 3 do art. 417.º do CPP, escreve-se no cit. Ac. STJ 18 de Dezembro de 2013, Proc. 137/08.8SWLSB.L1.S1, Rel. Arménio Sottomayor (referenciado no parecer do Ex.mo PGA), que:
Segundo o entendimento perfilhado pelo Supremo Tribunal de Justiça, o mencionado preceito destina-se somente a que sejam oferecidas as conclusões do recurso ainda não apresentadas ou a que delas passem a constar as especificações de facto ou de direito que já se encontravam vertidas na motivação, mas não pode visar a alteração material do recurso interposto, a concessão de um novo prazo ao sujeito processual para reduzir, ampliar ou, de algum modo, modificar, o âmbito do recurso. Como se escreveu a propósito no Ac. do STJ de 19-05-2010, proferido no Proc. n.º 696/05.7TACVD.S1 - 5.ª Secção e disponível em: : “Não se estando perante deficiências relativas apenas à formulação das conclusões mas perante deficiências substanciais da própria motivação, o princípio constitucional do direito ao recurso em matéria penal não implica que ao recorrente seja facultada oportunidade para aperfeiçoar em termos substanciais a motivação do recurso quanto à matéria de facto. Tal equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso, como, ainda, o legislador reconheceu ao estatuir que o aperfeiçoamento das conclusões, na sequência do convite formulado nos termos do n.º 3 do artigo 417.º do CPP, não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação (n.º 4 do artigo 417.º do CPP)”.
Afectando a falha em causa a própria motivação de recurso não pode ter lugar o convite.
Bem andou a decisão em crise.
Não há, pelo que atrás se deixa exposto, também qualquer omissão de pronúncia.
Conforme se escreve no Ac. STJ de 15 de Dezembro de 2005, Proc. 05P2951, Rel. Simas Santos
6 — Não se verifica omissão de pronúncia quando o Tribunal conhece da questão que lhe é colocada, mesmo que não aprecie todos os argumentos invocados pela parte em apoio da sua pretensão. A omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidos pelas partes na defesa das teses em presença.
Trata‑se de jurisprudência consolidada. No mesmo sentido, e do mesmo Relator, Acs. STJ de 9 de Março de 2006, Proc. 06P461 e de 11 de Dezembro de 2008, Proc. 08P3850, onde também se escreve que o juiz «não tem que se pronunciar sobre questões que ficam prejudicadas pela solução que deu a outra questão que apreciou.»; idem Acs. STJ de 21 de Fevereiro de 2007, Proc. 06P3932, Rel. Oliveira Mendes; de 18 de Novembro de 2008, Proc. 08P3776, Rel. Santos Cabral; de 21 de Janeiro de 2009, Proc. 111/09 - 3.ª, Rel. Santos Cabral; de 14 de Maio de 2009, Proc. 09P0096, Rel. Raul Borges, em que estava em causa a questão do regime penal especial para jovens; de 10 de Dezembro de 2009, Proc. 22/07.0GACUB.E1.S1,3.ª, Rel. Santos Cabral; de 15 de Dezembro de 2011, Proc. 17/09.0TELSB.L1.S1, Rel. Raul Borges; de 9 de Fevereiro de 2012, Proc. 131/11.1YFLSB, Rel. Oliveira Mendes; de 24 de Outubro de 2012, Proc. 2965/06.0TBLLE.E1, Rel. Santos Cabral; de 4 de Junho de 2014, Proc. 262/13.3PVLSB.L1.S1, Rel. Oliveira Mendes, em que estava em causa também o regime penal especial para jovens; de 2 de Outubro de 2014, Proc. 87/12.3SGLSB.L1.S1, Rel. Isabel Pais Martins; de 17 de Junho de 2015, Proc. 1149/06.1TAOLH-A.L1.S1, Rel. João Silva Miguel; de 30 de Março de 2016, Proc. 89/14.5GGBJA.E1.S1, Rel. Sousa Fonte; de 9 de Novembro de 2016, Proc. 235/14.6JELSB.L1.S1, Rel. Oliveira Mendes.
Improcede o recurso nesta parte.
--da questão da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito.
A invocação perante o STJ dos vícios do art. 410.º do CPP também, em princípio, está votada ao fracasso.
Conforme já tivemos oportunidade de escrever noutras decisões a este propósito, no que concerne à questão do conhecimento dos vícios consagrados no n.º 2 do art. 410.º, do CPP, gerou-se controvérsia entre as Relações e o STJ, após as alterações introduzidas, em matéria de recursos, pela revisão de 1998 (L 59/98)
Todavia, posteriormente a jurisprudência do STJ estabilizou, consolidando-se.
O Ac. do STJ de 24 de Março de 2003, CJACSTJ, ano XXVIII, n.º 166, T. I, pág. 236, refere em sumário que: «Nos recursos das decisões do Tribunal Colectivo, o STJ só conhece dos vícios contemplados no art. 410.º, do n.º 2, do CPP, por sua iniciativa e nunca a pedido do recorrente, o qual, para esse efeito, terá sempre de se dirigir ao Tribunal da Relação, por ser o competente para tal.».
O entendimento expresso neste aresto é hoje pacífico no STJ, como informa, também, A. G. Lourenço Martins, O Instituto dos Recursos, Revista do MP n.º 94, 2003, págs. 81, 82 e como ressalta, entre muitos outros, dos Acs. de 20 de Outubro de 2005, Proc. 2939/05 - 5.ª, Rel. Simas Santos, de 2 de Novembro de 2005, Proc. 2752/05 - 3.ª, Rel. Silva Flor, de 30 de Novembro de 2005, Proc. 2901/05-3.ª, Rel. Pires Salpico, de 30 de Novembro de 2005, Proc. 3637/05 - 3.ª, Rel. Sousa Fonte, de 14 de Dezembro de 2005, Proc. 3357/05 - 3.ª, Rel. Oliveira Mendes, de 4 de Janeiro de 2006, Proc. 3636/05-3.ª, Rel. Armindo Monteiro, de 25 de Janeiro de 2006, Proc. 2981/05-3.ª, Rel. Pires Salpico, de 8 de Fevereiro de 2006, Proc. 4411/05-3.ª, Rel. Henriques Gaspar, de 8 de Fevereiro de 2006, Proc. 98/06-3.ª, Rel. Silva Flor, de 8 de Fevereiro de 2007, Proc. 159/07-5.ª, Rel. Simas Santos, de 27 de Novembro de 2007, Proc. 3872/07-5, Rel. Simas Santos, de 12 de Junho de 2008, Proc. 07P4375, Rel. Raul Borges, de 7 de Abril de 2010, Proc. 2792/05.1TDLSB.L1.S1, Rel. Pires da Graça, de 6 de Janeiro de 2011, Proc. 355/09.1JAAVR.C1.S1, Rel. Rodrigues da Costa, de 15 de Dezembro de 2011, Proc. 17/09. 0TELSB.L1.S1, Rel. Raul Borges, de 17 de Outubro de 2012, Proc. 1243/10.4PAALM.L1.S1, Rel. Pires da Graça, de 7 de Setembro de 2016, Proc. 405/114.0JACBR.C1.S1, Rel. Santos Cabral, de 19 de Outubro de 2016, Proc. 108/13.2P6PRT.G1.S1, Rel. Pires da Graça, de 21 de Março de 2018, Proc. 736/03.4OPRT.P2.S1, Rel. Oliveira Mendes, de 12 de Julho de 2018, Proc. 116/15.9JACBR.C1.S1, Rel. Raul Borges, com vastíssima referência jurisprudencial.
E tal entendimento deriva, além do mais, conforme frisa a jurisprudência do STJ, da interpretação do sistema de revista alargada consagrado nos n.os 2 e 3, do cit. artigo 410.º.
Tal interpretação está bem delineada em múltiplos arestos, transcrevendo-se de um deles o seguinte passo:
«Concordando‑se ou não com os fundamentos expressos, é inegável que sobre a matéria de facto e os vícios que o recorrente lhe assacava, o Tribunal da Relação, ora recorrido, se pronunciou expressamente, tendo‑os por afastados.
E não se descortinando no discurso do próprio acórdão recorrido, ex novo, nenhum dos apontados vícios da matéria de facto, há que ter esta como definitivamente adquirida, até porque a discussão sobre matéria de facto, para além, em certos limites, do conhecimento oficioso desses vícios, está, em regra, como no caso, fora da alçada do Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista que é — art. 434.º do CPP. Com efeito, como reiteradamente aqui vem sendo decidido, em regra, «o recurso da decisão proferida por tribunal de 1.ª instância interpõe‑se para a relação» (art. 427.º do Código de Processo Penal).
E só excepcionalmente — em caso «de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito» — é que é possível recorrer directamente para o STJ (arts. 432.º, d), e 434.º).
Ora, como resulta do exposto, o aspecto em apreciação do actual recurso — proveniente da Relação (e não, directamente, do tribunal colectivo) — visa, fundamentalmente, o reexame de matéria de facto. De qualquer modo, não visa, exclusivamente, o reexame da matéria de direito (art. 434.º do CPP). Aliás, o reexame pelo Supremo Tribunal exige a prévia definição (pela Relação) dos factos provados. E, no caso, a Relação — avaliando a regularidade do processo de formação de convicção do tribunal colectivo a respeito dos factos impugnados no recurso (os factos imputados ao arguido, mormente a posse das cerca de 98 gr de heroína) — manteve‑o, definitivamente, no rol dos «factos provados».
De resto, a revista alargada prevista no art. 410.º, n.os 2, e 3 do Código de Processo Penal, pressupunha (e era essa a filosofia original, quanto a recursos, do Código de Processo Penal de 1987) um único grau de recurso (do júri e do tribunal colectivo para o STJ e do tribunal singular para a Relação) e destinava‑se a suavizar, quando a lei restringisse a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito (o recurso dos acórdãos finais do júri ou do colectivo; e o recurso, havendo renúncia ao recurso em matéria de facto, das sentenças do próprio tribunal singular), a não impugnabilidade (directa) da matéria de facto (ou dos aspectos de direito instrumentais desta, designadamente «a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não devesse considerar-se sanada»).
Essa revista alargada para o Supremo deixou, por isso, de fazer sentido — em caso de prévio recurso para a Relação — quando, a partir da reforma processual de 1998 (Lei 59/98), os acórdãos finais do tribunal colectivo passaram a ser susceptíveis de impugnação, «de facto e de direito», perante a Relação (arts. 427.º e 428.º n.º 1).
Actualmente, com efeito, quem pretenda impugnar um acórdão final do tribunal colectivo, de duas uma: — se visar exclusivamente o reexame da matéria de direito (art. 432.º d), dirige o recurso directamente ao Supremo Tribunal de Justiça; — ou, se não visar exclusivamente o reexame da matéria de direito, dirige‑o, «de facto e de direito», à Relação, caso em que da decisão desta, se não for «irrecorrível nos termos do art. 400.º», poderá depois recorrer para o STJ (art. 432.º b).» (Ac. STJ de 20 de Maio de 2004, Proc. 04P771, Rel. Pereira Madeira)[1].
Como se refere-se no sumário do Ac. STJ de 27 de Janeiro de 2009, Proc. 08P3978, Rel. Santos Monteiro «I — O Tribunal da Relação fecha, como regra, o ciclo de conhecimento da matéria de facto, nos termos do art. 428.º do CPP, a ele cabendo a reapreciação daquela matéria, não de uma forma ilimitada, ignorando a fixação naquele domínio pela 1.ª instância, procedendo a um seu reexame na globalidade, fazendo do anterior julgamento autêntica tábua rasa, como se não existisse e, ainda assim, no pressuposto do cumprimento, nas conclusões do recurso, do ónus de impugnação imprimido no art. 412.º, n.º 4, do CPP.» (itálico e sublinhado nosso).
Ou, mais recentemente, no sumário do Ac. STJ de 18 de Junho de 2014, Proc. 659/06.5GACSC.L1.S1, Rel. Oliveira Mendes:
I — Constitui jurisprudência constante e uniforme do STJ (desde a entrada em vigor da Lei 58/98, de 25-08) a de que o recurso da matéria de facto, ainda que circunscrito à arguição dos vícios previstos nas als. a) a c) do n.º 2 do art. 410.º, do CPP, tem de ser dirigido ao Tribunal da Relação e que da decisão desta instância de recurso, quanto a tal vertente, não é admissível recurso para o STJ. É que o conhecimento daqueles vícios, constituindo actividade de sindicação da matéria de facto, excede os poderes de cognição do STJ, enquanto tribunal de revista, ao qual apenas compete, salvo caso expressamente previsto na lei, conhecer da matéria de direito — art. 33.º da LOFTJ. O STJ, todavia, não está impedido de conhecer aqueles vícios, por sua iniciativa própria, nos circunscritos casos em que a sua ocorrência tome impossível a decisão da causa, assim evitando uma decisão de direito alicerçada em matéria de facto manifestamente insuficiente, visivelmente contraditória ou viciada por erro notório de apreciação[2].
É perfeitamente inútil, maxime nos casos, como o dos presentes autos, em que já houve intervenção da Relação, pretender-se rediscutir a matéria de facto perante o STJ, que como é sabido funciona, em regra, como tribunal de revista, conhecendo apenas de direito. Mesmo nos casos de recurso directo para o STJ, a competência deste restringe-se, exclusivamente, à matéria de direito (alínea c) do n.º 1 do art. 432.º do CPP).
As questões atinentes à matéria de facto (nem se vislumbra qualquer vício) foram, definitivamente, decididas pela Relação.
Pelo exposto, nesta parte, rejeita-se o recurso.
-- da questão da medida concreta da pena de prisão e suspensão da execução da mesma.
Neste campo escreve-se no aresto recorrido que:
«Incorre o arguido numa pena de prisão entre 3 (três) e 10 (dez) anos.
Como ensina o Professor Figueiredo Dias, in Temas Básicos da Doutrina Penal, Edição 2001, 110: 1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial; 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; 3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto máximo óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.”.
Devem ser analisadas a culpa do agente bem como as exigências de prevenção, geral e especial, e todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, deponham a favor ou contra este.
Dos factos apurados decorre que o arguido actuou com dolo directo.
E, impõe-se também ponderar o elevado grau de ilicitude.
Durante anos, o arguido humilhou a assistente, injuriando-a quer perante terceiros quer em privado, e ofendeu a integridade física da mesma, quer perante terceiros quer em privado.
E, entre Junho e Outubro de 2017, o arguido, verbalmente e através de sms que lhe enviava, humilhou e ameaçou a assistente de forma muito grave.
Por fim, entre Junho e Outubro de 2017, o arguido, por quatro vezes, forçou, mediante o recurso a violência, a assistente a com ele manter cópula e, noutra ocasião e também com recurso a violência, introduziu os seus dedos na vagina da assistente.
Terão que ser ponderadas as elevadas necessidades de prevenção especial, decorrentes do facto de o arguido não ter interiorizado o valor ou erro do seu procedimento.
O arguido confessou parcialmente os factos. No entanto, pouco releva tal confissão, dado que a mesma ocorreu num contexto em que estavam já reunidas provas da ocorrência dos factos confessados (o arguido apresentava lesões compatíveis com a versão da assistente no sentido de que não consentiu na relação sexual e tentou resistir e mostra-se junto exame médico e perícia médico-legal).
Do exposto decorre que, face à diversidade e elevada gravidade dos factos praticados pelo arguido, se mostra adequada uma pena que ultrapasse, de forma significativa, o meio da pena.
Em concreto, entende-se adequada uma pena de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Procede, assim, nesta parte, o recurso interposto pelo arguido.»
Desta transcrição constam as razões que o tribunal recorrido utilizou para a aplicação da medida da pena.
Atentou na elevada ilicitude, no dolo directo.
Atendeu também, além do mais, à humilhação infligida à assistente durante anos, à sua confissão parcial.
Levou em conta, igualmente, as necessidades de prevenção, nomeadamente a prevenção especial «decorrentes do facto de o arguido não ter interiorizado o valor ou erro do seu procedimento».
Conforme se escreve em recente Ac. STJ de 13 de Setembro de 2018, Proc. 372/17.8PBLRS.L1.S1, Rel. Raul Borges, «são elevadas as exigências de prevenção geral tendo em conta, entre o mais, as consequências muito nefastas deste ilícito para a saúde, física e psíquica, das pessoas violentadas. O fenómeno da violência doméstica no nosso país tem sido sinalizado como um problema social a exigir medidas para a sua resolução, que têm vindo a ser adoptadas nas sucessivas alterações nesta matéria ao Código Penal, assim como a adopção de um Plano Nacional contra a Violência Doméstica.»
Atendendo a todo o circunstancialismo em causa e à moldura abstracta da pena, afigura-se-nos adequada a pena aplicada.
Sendo superior a 5 anos, está afastada a questão da sua eventual suspensão.
Improcede, também nesta parte, o recurso.
III. - DECISÃO
Atento o exposto, os Juízes desta 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça acordam em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC (artigo 8.º, n.º 9 e Tabela III anexa ao RCP—DL 34/2008, de 26/2, na redacção do DL 52/2011, de 11 de 13 de Abril).
Processei e revi (art. 94.º, n.º 2, CPP)
Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 25 de Setembro de 2019
Vinício Ribeiro (Relator)
Conceição Gomes
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[1] «Segundo o entendimento perfilhado pelo Supremo Tribunal de Justiça […] [o art. 417º n.º 3 do CPP], destina-se somente a que sejam oferecidas as conclusões do recurso ainda não apresentadas ou a que dele passem a constar as especificações de facto e de direito que já se encontravam vertidas na motivação, não podendo visar a alteração material do recurso interposto através da concessão ao sujeito processual de um novo prazo para reduzir, ampliar ou, de algum modo, modificar, o âmbito do recurso» é o que, entre muito, se pode ver no AcSTJ de 18.12.2013 - Proc. n.º
137/08.8SWLSB.L1.S1, disponível em www.stj.pt.
[2] Na sua vertente associada à matéria de facto.
[3] Neste sentido, AcSTJ n.º 1419/16.0JAPRT.P1.S2 de 22.3.2018, in www.dgsi.pt.
[4] AcSTJ de 28.6.2018 - Proc. n.º 687/13.4GBVLN.P1.S1, sumariado em www.stj.pt.
[5] AcSTJ de 25.1.2006 Proc. n.º 4006/05, sumariado em www.stj.pt.
[6] Vejam-se fls. 11 a 12 respectivas.
[7] Contramotivação do Exmo. Procurador-Geral Adjunto da Relação de Lisboa.
[8] 1 Vide acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/12/2016, relatado pelo Desembargador Cid Geraldo, no processo 1152/15.0PBAMD-5.
[9] Neste sentido, vide:
Ac.STJ de 112.6.2008, processo nº 07PT4375, e
Ac. STJ de 28.10.2009, processo nº121/07.9PBPTM.e1.S1 ,
ambos consultáveis in www.dgsi.pt.
[10] Sérgio Gonçalves Poças, in Revista Julgar nº 10- 2010, pág. 27
[11] Como bem resume Sérgio Gonçalves Poças, in Revista Julgar nº 10- 2010, pág. 28.
[12] Cfr ensinam Simas Santos e Leal Henrique, in Recursos em Processo Penal, 5ª Edição, 2002, páginas 66 e 67.
[13] “A violência Relacional íntima, in revista Julgar, nº12, especial, pág.49.
[14] Neste sentido, vide:
Ac.STJ de 112.6.2008, processo nº 07PT4375, e
Ac. STJ de 28.10.2009, processo nº121/07.9PBPTM.e1.S1 ,
ambos consultáveis in www.dgsi.pt.
[1] No mesmo sentido, e com redacção similar, cfr. Ac. STJ de 21 de Fevereiro de 2008, Proc. 4805/06-5.ª, transcrito, na parte respectiva, no Ac. STJ de 2 de Junho de 2016, Proc. 715/14.6JAPRT.C1.S1, Rel. Isabel Pais Martins; sobre a revista ampliada ou alargada, a reforma de 1998 e a impugnação da matéria de facto, cfr. Ac. STJ de 12 de Junho de 2008, Proc. 07P4375, Rel. Raul Borges.
Do mesmo relator, Raul Borges, o extenso Ac. STJ de 25 de Março de 2010, Proc. 427/08.OTBSTB.E1.S1, faz a história da evolução do recurso sobre a matéria de facto e os poderes de cognição da Relação e do Supremo, desde o CPP de 1929 até à actualidade, com muita referência jurisprudencial dos tribunais comuns e do Tribunal Constitucional; idem, Acórdão do STJ n.º 3/2012, DR I S., de 18 de Abril de 2012 e na CJACSTJ, XX, T.I, pág. 17 e ss.; ainda sobre a “revista alargada” na versão originária do CPP e depois da reforma de 1998, cfr. Ac. STJ de 18 de Junho de 2008, Proc. 08P901, Rel. Maia Costa e Ac. STJ de 4 de Dezembro de 2008, CJACSTJ, XVI, T. III, pág. 239).
[2] Entendimento seguido, v.g., nos Acs. STJ de 9 de Novembro de 2016, Proc. 235/14.6JELSB.L1.S1, do mesmo Relator; de 11 de Dezembro de 2012, Proc. 951/07.1GBMTJ-E1.S2, Rel. Raul Borges; de 21 de Janeiro de 2016, Proc. 8/12.3JALRA.C1. S1, Rel. Armindo Monteiro; de 31 de Março de 2016, Proc. 221/14.9JAFAR.E1.S1, Rel. Isabel São Marcos; de 14 de Abril de 2016, Proc. 1415/14. 2JAPRT.G1.S1, Rel. Manuel Braz; de 29 de setembro de 2016, Proc. 459/14.9PBEVR.S1, Rel. Francisco Caetano.
Na doutrina, v. António da Silva Henriques Gaspar et alii, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2.ª ed., 2016, anotações aos arts. 410.º e 434.º