ADVOGADO
MANDATO FORENSE
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
MATÉRIA DE DIREITO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
FACTO CONSTITUTIVO
TERCEIRO
PRINCÍPIO DA OFICIOSIDADE
Sumário


I. A determinação do modelo normativo da responsabilidade civil é uma questão de qualificação jurídica e, portanto, matéria de direito, de conhecimento oficioso, a cuja indagação, interpretação e aplicação o juiz não está sujeito às respetivas alegações das partes, nos termos do disposto no artigo 5º, nº 3 do Código de Processo Civil.
II. Fundamental é que o autor tenha alegado factos constitutivos suscetíveis de serem integrados numa ou noutra das modalidades de responsabilidade civil, nada obstando, nestes casos, a que o tribunal possa qualificar a situação sub judice como sendo de responsabilidade contratual mesmo que o autor pugne pela aplicação das regras da responsabilidade extracontratual ou vice versa.
III.  A responsabilidade civil do advogado pela violação das normas deontológicas impostas pelo EOA, no âmbito da relação advogado-cliente, tem natureza contratual na medida em que tais normas consubstanciam  uma série de deveres acessórios que conformam e integram-se  na  prestação principal emergente do contrato de mandato forense.
IV. Se o ilícito  consistir em conduta violadora de outros deveres - ou normas legais –  não integradas especificamente no contrato de mandato forense, a responsabilidade civil do advogado  para  com o cliente pode ter natureza extracontratual.
V. A responsabilidade civil do advogado para com terceiros é sempre extracontratual.   

Texto Integral

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL


I. Relatório

1. AA propôs, contra BB, CC, DD, EE - Averiguação e Gestão de Sinistros, Lda, e FF - Companhia de Seguros. SA, ação com processo comum, pedindo a condenação dos réus a pagarem-lhe a quantia de € 41.510,65, acrescida de juros, à taxa legal, desde 26/12/2013, correspondente ao valor que lhe foi atribuído, a título de indemnização decorrente de acidente de viação, e por si não recebido em consequência da atuação dos réus.

  

2. Contestaram os réus BB, CC, DD e FF - Companhia de Seguros. SA, impugnando a responsabilidade imputada e concluindo pela improcedência da ação.

 

3. Efetuado julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, condenando os réus, BB, CC e DD a pagarem à autora a quantia peticionada, acrescida de juros, absolvendo as demais rés do pedido.

    

4. Inconformadas, com esta decisão, as rés CC e DD dela interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão proferido em 15.09.2018, decidiu conceder provimento a ambos os recursos e alterando, nesta parte, a decisão recorrida, julgou a ação improcedente quanto às rés /apelantes, absolvendo as mesmas do pedido, mantendo em tudo o mais a sentença recorrida.


5. Inconformada com esta decisão, veio a autora dela interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:


«A) O Douto Acórdão não está juridicamente correcto, considerando a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal da l.a Instância e confirmada definitivamente pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa;

B) Com efeito, não considerou a relação contratual existente entre a ora Recorrente e as Recorridas;

C) Nesse sentido, ficou provado que a Recorrente AA passou procuração forense a favor da Recorrida Dra. CC e que a Recorrida Dra. DD aceitou e fez uso de um substabelecimento aparentemente emitido pela Dra. CC, ambas colegas de escritório;

D) Tal relação contratual, sob a forma de mandato, impunha a subsunção dos factos ao regime da responsabilidade contratual regulada pelo art.° 798.° e seguintes do Código Civil e não da responsabilidade por factos ilícitos do art.° 483.° e seguintes do mesmo Código, como sucedeu, o que consubstancia erro na determinação da norma aplicável;

E) Ainda que se considerasse existir concurso aparente de responsabilidades, sempre deveria prevalecer no caso concreto, a responsabilidade contratual sobre a responsabilidade por factos ilícitos (extracontratual), nos termos do que tem vindo a ser decidido na mais avisada jurisprudência (Ac. STJ de 07.02.2017, Proc.º 4444/03.8TBVIS.C1.S1);

F) O referido erro tem implicações directas na análise e decisão ora impugnada, designadamente, no que respeita aos pressupostos da ilicitude e da culpa, que têm diferenças significativas num ou noutro regime da responsabilidade;

G) A ilicitude na responsabilidade por factos ilícitos consubstancia-se no dever geral de não ofender direitos e bens alheios (neminem laederé) e na responsabilidade contratual, a ilicitude decorre do incumprimento dos deveres obrigacionais assumidos pelo contrato;

H) Na culpa, a prova incumbe ao lesado na responsabilidade por factos ilícitos e presume-se na responsabilidade contratual;

I) Dos factos provados resulta de forma clara e evidente a prática de actos ilícitos e culposos por parte das ora Recorridas, que o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa não deu a devida e necessária relevância;

J) Nesse sentido, note-se, por exemplo, quanto à Recorrida CC, os factos provados n.° 9, 13 e 20, dos quais resulta sumariamente que a Advogada nunca informou a sua Cliente do andamento dos autos e, quando recebeu o cheque a ela destinado correspondente à indemnização de acidente de viação, entregou-o a um terceiro, o Réu BB;

K) Já quanto à Recorrida DD vejam-se os factos provados n.° 16, 17, 21 a 23, dos quais resulta que a Advogada, na posse de um substabelecimento e, portanto, em representação da ora Recorrente, logrou proceder ao levantamento de um cheque na FF, o qual posteriormente foi descontar no Banco, através da sua conta, quantia que entregou integralmente a terceiro, o Réu BB;

L) Releva ainda quanto à Dra. DD o facto de que entre o acto de levantar o cheque na FF e o desconto do mesmo no Banco, surgiu o nome da Recorrente no verso do cheque, a título de endosso, o qual era falso e a própria sabia ou tinha que saber, circunstância que a não impediu de prosseguir com a sua demanda;

M) Nenhuma das Recorridas fez prova de qualquer facto susceptível de ilidir a presunção da sua culpa;

N) Mesmo que se admitisse, especialmente no caso da Recorrida DD, que a fonte da sua responsabilidade decorre de factos ilícitos, todos os seus pressupostos se verificam no caso sub judice;

O) Pelo que, a decisão de absolvição configura um erro de julgamento, pois dela decorre uma flagrante desconformidade entre o seu conteúdo absolutório e a matéria de facto na qual assentou;

P) Acresce que, o Douto Acórdão na ponderação dos pressupostos da ilicitude e da culpa, exige (ou assim parece) a verificação de requisitos que a lei não determina, como seja, o enriquecimento das lesantes e a prova pela lesada da motivação daquelas, o que configura uma violação do art.° 483.°, n.° 1 ou do art.° 798.° do Código Civil;

Q) Os factos provados revelam de forma insofismável a actuação ilícita e culposa das Recorridas pelo que, em prol da justiça, impõe-se decisão que a reconheça e declare, com as inerentes consequências legais.

Termos em que, e nos que doutamente serão supridos, deve o presente recurso ser julgado procedente e provado e o Acórdão recorrido revogado e substituído por outro que condene as Recorridas no pedido formulado pelo Autora e que conforme a decisão às conclusões atrás formuladas e suas consequências».


Requereu, ao abrigo do disposto no art.° 680.°, n.° 1 do Código de Processo Civil, a junção de 1 (um) documento – fotocópia do despacho de pronúncia proferido em 18.04.2018, no Proc.° nº 1164/15.4TDLSB do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, e que pronunciou as ora recorridas como arguidos -, alegando, para tanto, tratar-se de um documento superveniente à instauração da ação (29.12.2014) e da própria interposição do recurso de apelação (06.11.2017).


6. A ré, DD, respondeu, terminando as suas contra alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1.   Ao contrário do alegado pela Recorrente o Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, que decidiu absolver as Rés do pedido contra elas formulado, não merece qualquer reparo ou censura, encontrando-se devidamente fundamentado.

2. Com efeito, o Douto Acórdão recorrido veio considerar que atenta a matéria dada como provada, que não mereceu qualquer censura pelo Tribunal superior: reputa-se tal factualidade claramente insuficiente para, seja em que termos de ilicitude ou de culpa, fundamentar a condenação das apelantes. Provado, efectivamente, não haver sido recebida pela Recorrente a quantia em causa, por do respectivo montante se ter indevidamente apossado o R. BB não resultou, todavia, sequer minimamente demonstrado que para tal haja contribuído, ainda que a título de negligência, a actuação daquelas.

3. Não assiste razão à Recorrente quando pretende, à revelia da factualidade por si alegada, reconduzir a actuação da Ré DD a uma situação geradora de responsabilidade civil contratual, na qual a culpa se presume (art. 799.º CC).

4. Não só tal nunca foi alegado, como não existe matéria de facto provada que permita atestar que a Ré DD actuou como mandatária substabelecida da Autora.

5. Os factos provados 21 e 22 atestam que existe um substabelecimento e alguém que se apresentou na FF munida do mesmo, mas nada mais do que isso.

6. A Ré CC rejeita ter elaborado o referido substabelecimento e nenhuma identificação foi solicitada a quem se apresentou com o mesmo.

7. Acresce que, a Autora não outorgou procuração à Ré DD, nem sequer esta conheceu alguma vez a Autora (facto provado 4. “A Autora outorgou Procuração Forense a favor das Advogadas Dr.ª CC, ora Ré, Dr.ª GG e Dr.ª HH (…); facto provado 5. “O escritório da Ré Dr.ª CC, Dr.ª GG e Dr.ª HH, à data, encontrava-se no mesmo espaço em que se encontrava a Sociedade EE”; facto provado 9. “Desde a realização da Audiência de Julgamento a Autora não foi informada pelas Mandatárias constituídas do andamento do processo”).

8. Resultando assim da matéria provada que a Ré DD nunca praticou qualquer acto enquanto Advogada da Recorrente, que justifique a aplicação do instituto da responsabilidade civil contratual.

9. Recorde-se que por confissão do Réu BB resultou desde logo a seguinte matéria como provada no despacho saneador:

1. A co-Ré CC entregou ao Réu o cheque de indemnização da Autora, emitido pelo co-Réu FF, Companhia de Seguros, S.A., no valor de 41.510,65 Euros; 2. O Réu procedeu ao desconto do cheque emitido pelo co-Réu FF, Companhia de Seguros, S.A., no valor de 41.510,65 Euros, datado de 26-12-2013, solicitando à co-Ré DD que o fizesse, por esta ser titular de conta junto do Banco II, em 27 de Dezembro de 2013 (data constante do documento de fls. 74 – documento 11 junto pela Autora).3. A co-Ré DD entregou ao Réu BB a totalidade do montante titulada pelo cheque. 4. O Réu não procedeu à entrega de qualquer valor à Autora.

10. Ou seja, apenas ficou provado que a Ré DD descontou o cheque em questão e que entregou a quantia em causa ao Réu BB, não existindo outra matéria dada como provada que evidencie que a mesma teve intervenção directa e consciente em toda esta situação que levou ao enriquecimento ilícito do Réu BB.

11. A única intervenção da Ré DD nos factos é a vertida nos artigos 17 e 18 dos factos provados, que dá conta da ajuda pedida pelo Réu BB à Ré DD (“solicitando à co-Ré DD que o fizesse, por esta ser titular de conta junto do Banco II, em 27 de Dezembro de 2013 (data constante do documento de fls. 74 – documento 11 junto pela Autora)”, tendo a “co-Ré DD entregou ao Réu BB a totalidade do montante titulada pelo cheque.”).

12. Em bom rigor, é imperioso concluir que a Ré DD não tinha forma de saber que a actuação do referido Réu seria ilícita, porquanto desconhecendo que o endosso poderia ter sido falsificado (pois, em momento algum foi dado como provado que o endosso foi falsificado e que a Ré DD tinha conhecimento de tal facto), não tinha razão para desconfiar de que a pretensão do Réu era apropriar-se do referido montante.

13. Assim, parece-se-nos evidente que dos depoimentos prestados e da prova documental junta aos autos resulta de forma clara que a intervenção da Ré DD se limitou ao facto de ter descontado, a pedido do Réu BB, o cheque em questão, tendo-lhe entregue a totalidade do montante titulado pelo cheque (ponto factos 3 e 4 assentes em virtude da confissão do Réu BB e ponto 18 dos factos dados como provados).

14.    Resultando assim dos factos dados como provados que a Ré DD não agiu com culpa, nem de forma ilícita, nem tinha forma de desconfiar que algo que a pretensão do Réu BB pretendia levar a cabo algo de ilícito.

15. Importa pois relembrar que: (i) O Réu BB atestou que a ora DD desconhecia por completo o que se passava; (ii) a DD nunca foi Advogada da Recorrente, nem teve qualquer intervenção no processo judicial em apreço, nos termos do qual foi atribuída uma indemnização; (iii) a substituição do cheque foi previamente solicitada telefonicamente e não presencialmente pela ora Ré DD; (iv) não ficou provado quem endossou o cheque, mas sabe-se que o primeiro cheque foi remetido às Advogadas da Recorrente, entre as quais não figurava a ora Ré DD; (v) a ora DD não teve qualquer benefício patrimonial ou outro com os factos em apreço, uma vez que conforme faz parte dos factos dados como provados, a totalidade da quantia em questão foi de imediato entregue ao Réu BB; (vi) foi exibido no balcão da FF Seguros um substabelecimento a favor da DD (21 dos factos provados), que alguém emitiu a seu favor.

16. Termos em que não resultam dos factos provados evidências que demonstrem que a DD ao acompanhar o Réu BB – para quem trabalhava há pouco tempo, em regime de freelancer (como explicou o mesmo nas suas declarações) – onde levantou um cheque endossado, entregando ao referido Réu a totalidade da verba em questão, devesse desconfiar de que estava a cometer um acto ilícito gerador do dever de indemnizar.

17. Não resultou provado que a DD tivesse forma de saber que o endosso em questão não era verdadeiro – ponto essencial que permitiria concluir pela sua actuação culposa.

18. Nem o facto de ser advogada (sendo que, nunca foi advogada do processo em questão, nem sequer colaborou no mesmo) permite exigir da mesma um especial dever de cuidado num processo de aparente normalidade (pois, considerando que a própria FF Seguros emitiu novo cheque endossável sem levantar qualquer questão, por que motivo seria exigível à DD desconfiar de tal procedimento?!)

19. Mais resultou provado – pois é matéria confessória constante da contestação do Réu BB, que não foi contraditada – que o referido Réu acompanhou a DD em todo este processo: (i) o cheque estava em seu poder; (ii) foi ele que solicitou à DD que – em virtude de ter conta bancária junto do II – o acompanhasse para levantamento da verba em questão no balcão do citado banco, na agência do …; (iii) a totalidade da verba foi-lhe entregue no momento do seu levantamento ao balcão do banco pela Apelante.

20. Em concreto, verifica-se que da matéria factual assente não resultam factos de onde possa retirar que a DD tivesse conhecimento de que com a sua actuação poderia vir a causar um prejuízo à Recorrente, uma vez que, por si só o acto de acompanhar o Réu BB no depósito de um cheque que não estaria inicialmente em seu nome, não evidencia que a mesma sequer desconfiasse dos propósitos daquele – pois é disso que a final se trata!

21. Nesse sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo n.º 2425/08.4YXLSB.L1-2, de 03/12/20092.

22. A decisão instrutória que a Recorrente junta aos autos além de ser apenas isso mesmo – uma decisão em fase de instrução – além de que não se encontra transitada em julgado uma vez que foi objecto de recurso, pelo que nenhuma prova produz nos presentes autos.

23. Em face do exposto, impõe-se manter a absolvição da Ré DD do pedido contra ela formulado, considerando que não existe prova bastante de que a sua actuação foi culposa e geradora do dever de indemnizar, não se mostrando assim preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil necessários para condenar a Ré DD a entregar à Autora, solidariamente com os demais Réus, uma quantia que nunca teve em seu poder ».


Termos em que requer seja julgado improcedente o recurso, mantendo-se o acórdão recorrido.


7. A ré, CC, respondeu, terminando as suas contra alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«A) Vem o presente recurso interposto pela Recorrida AA por não se conformar com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa que absolveu, e bem, as Rés CC e DD do pedido contra elas formulado.

B) Sustentado a Recorrente que o Acórdão recorrido padece de fundamentação geral, vaga e indefinida que com dificuldade satisfaz as razões de ordem substancial e prática que a impõem, designadamente demostrar como aplicou a norma geral e abstracta ao caso concreto e assegurar que a partes compreendem os motivos subjacentes da decisão para, querendo e podendo, a impugnar.

C) Contudo, não assiste razão à Recorrente, na medida em que, o Douto Acórdão recorrido não merece qualquer censura.

D) O recurso interposto pelas ora Recorridas juto do Tribunal da Relação de Lisboa tinha como objectivo apreciar e decidir a responsabilidade das ora Recorridas, considerando o não recebimento pelas mesmas da quantia devida à ora Recorrente.

E) Assim sendo, não obstante o pedido de reapreciação da matéria de facto entendeu o Tribunal da Relação de Lisboa manter o decidido pelo tribunal de 1ª instância, tendo, contudo, alterado a decisão de condenação da ora Recorrida com fundamento na não verificação dos pressupostos de responsabilidade às mesmas imputadas, ou seja, responsabilidade por factos ilícitos.

F) Nestes termos, não obstante a não alteração da matéria de facto apurada em sede de 1ª instância que o Tribunal da Relação de Lisboa, conforme pugnado pela ora Recorrida no recurso de Apelação por si interposto, vem decidir não ser a mesma suficiente para condenar a ora Recorrida, conforme havia sido decidido pela 1ª instância.

G) O Tribunal de 1ª instância determinou a condenação solidária dos Réus BB, CC e DD, enquadrando a conduta dos mesmos no âmbito da responsabilidade civil por factos ilícitos (responsabilidade extracontratual).

H) Contudo, fê-lo analisando de forma idêntica a conduta dos três Réus, sem que em relação a cada um deles tenha analisado concretamente se se mostravam preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, pelo que, bem andou o Tribunal da Relação de Lisboa ao absolver a ora Recorrida por falta de verificação dos pressupostos que a constituiriam na obrigação de indemnizar, no âmbito da responsabilidade civil por factos ilícitos.

I) Não obstante a ora Recorrente não ter colocado em crise a sentença proferida pela 1ª instância, vem a mesma agora pretender que seja o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa subsumindo a conduta da ora Recorrida na obrigação de indemnizar com fundamento em responsabilidade civil contratual.

J) Ora, não tendo a ora Recorrente impugnado a sentença da 1ª instância que, repita-se condenou a ora Recorrida pelo facto da sua conduta ser geradora de responsabilidade civil por factos ilícitos e não por responsabilidade civil contratual, não pode agora pretende fazer essa inversão, não sendo a mesma admissível.

K) Tanto mais que, foi sobre a conduta da ora Recorrida vertida na sentença da 1ª instância e no âmbito da qual foi a mesma condenada ao abrigo da responsabilidade civil por factos ilícitos que a mesma apresentou recurso de apelação.

L) Mas mesmo que assim se considera-se e conforme resulta da prova existente nos autos a factualidade dada como provada sempre seria insuficiente para condenar a ora Recorrida, conforme aliás é ressalvado no Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do qual resulta não se encontrar minimamente demonstrado que a ora Recorrida haja contribuído, ainda que a título de negligência para o apossamento indevido pelo Réu BB da quantia devida à Recorrente.

M) Senão vejamos,

N) Da prova produzida em sede de Audiência de Julgamento resulta que efectivamente a recepcionou no seu escritório o cheque nº 63…4, no valor de 41.510,65 Euros, o qual foi emitido pela Ré Companhia de Seguros FF com a menção não à ordem e traçado, pelo que, o mesmo só poderia ser descontado pela própria Recorrente numa conta bancária de que a mesma fosse titular, conforme documento 8 da Petição Inicial.

O) Motivo pelo qual, a Recorrida quando procedeu à sua entrega ao Réu BB, fê-lo plenamente convicta que o mesmo seria entregue à Recorrente, porque isso lhe foi garantido pelo mesmo e porque tinha conhecimento que o mesmo nunca poderia ser descontado por outra pessoa que não a Recorrente.

P) Mais resultou provado que não foi a Recorrida quem apôs a sua assinatura no substabelecimento que foi utilizado para que o cheque por si recepcionado com o nº 63…4 fosse substituído pelo cheque com o nº 63…5, na medida em que a Recorrida expressamente informou que não tinha outorgado qualquer substabelecimento a favor de DD, conforme requerimento por si apresentado em 17/01/2017.

Q) Por outro lado, é perfeitamente visível que a assinatura aposta no substabelecimento junto aos autos de fls.202 não corresponde à assinatura da ora Recorrida, conforme Cartão de Cidadão junto aos autos.

R) Não resultando provado qualquer intervenção da Recorrida em todos os factos ocorridos posteriormente à entrega do cheque nº 63…4 ao Réu BB.

S) Conforme supra exposto, a Apelante apenas procedeu à entrega do cheque nº 6337198144 ao Réu BB por ter plenamente consciência que o mesmo não poderia ser movimentado por outra pessoa que não fosse a Recorrente, atenta a forma como o mesmo foi emitido.

T) Sendo que, resultou provado que não foi através desse cheque que o Réu BB ficou na posse da quantia devida à Recorrente, sendo totalmente alheia e desconhecedora da actuação por este perpetuada, cuja ilicitude não se questiona.

U) Por conseguinte, não resultou provado que a ora Recorrida tenha actuado com culpa, na medida em que não resulta dos autos elementos que permitam aferir que a Recorrida tivesse agido com consciência de que o cheque não teria o destino para o qual o mesmo foi entregue ao Réu BB, até porque, repita-se, esse cheque não poderia ser movimentado por alguém que não fosse a Recorrente.

V) Pelo que, relativamente à Recorrida não se encontram reunidos os pressupostos da obrigação de indemnizar, nos termos legalmente estabelecidos.

W) Na medida em que o Réu BB, desconsiderando confessou que o cheque lhe foi entregue pela Recorrida para ser entregue ao pai da Apelada, bem assim como não foi a Apelante que assinou o substabelecimento, nem tido qualquer intervenção na conduta ilícita do mesmo.

X) Assim, existiu prova nos autos que a ora Recorrida agiu ao longo deste processo sem culpa, com total desconhecimento dos factos posteriores à sua entrega ao Réu BB do cheque nº 63…4, o qual foi emitido pela Ré Companhia de Seguros FF com a menção não à ordem e traçado.

Y) Inexiste, repita-se, nos autos elementos que permitam aferir da culpa da ora Recorrida no sentido que a mesma terá agido com consciência da ilicitude da sua actuação, na medida em que, como resulta da matéria provada, o cheque nº 63…4 entregue à ora Recorrida, o qual não permitia a sua movimentação por outra pessoa que não a própria Recorrente, veio a ser substituído por outro sem que a Recorrida tivesse qualquer actuação para o efeito.

Z) Pelo que, não existiu pela ora Recorrida qualquer actuação violadora do contrato de mandato, designadamente, ao não entregar o pagamento à sua cliente e a ela destinado, porquanto, tendo o cheque nº 63…4, sido emitido com a menção não à ordem e traçado, não admitindo o mesmo a possibilidade de movimentação pelo pessoa que não fosse a própria Recorrente, o facto da ora Recorrida o ter entregue ao Réu BB, fê-lo na convicção do cumprimento do mandato, porquanto, lhe foi garantido pelo mesmo que este cheque seria entregue à ora Recorrente.

AA) Não resultando da prova existente nos autos que a ora Recorrida não quis, com a sua conduta, entregar a referido cheque à Recorrente, o que é possível aferir igualmente pelo facto de a ora Recorrida ter sido totalmente alheia aos factos praticados após a entrega do mesmo, nomeadamente, quanto à elaboração de substabelecimento que permitiu a sua substituição, sendo a factualidade dada como provada inexistente quanto à existência de ilicitude ou culpa, nem a título de negligência, pela ora Recorrida.

BB) Para agir com culpa é necessário estar ciente de todos os circunstancialismos que rodeiam ao factos e de forma consciente tomar determinada decisão, pelo que, inexistindo prova nos autos de que, com a sua conduta a ora Recorrida pretendesse afectar de alguma forma o património da Recorrente, encontra-se afastada esta presunção, na medida em que resultou provado a sua ausência de culpa e ausência de consciência da ilicitude resultante da actuação do Réu BB,

CC) único beneficiado desta situação.

DD) Porquanto, não existe um só facto provado de onde se possa concluir que a ora Recorrida tivesse conhecimento de que o cheque que entregou ao Réu BB, emitido a favor da Recorrente com menção de não à ordem e traçado, só podendo ser movimentado pela própria através de conta bancária de que a mesma fosse titular, fosse posteriormente substituído por outro e o seu valor ilicitamente subtraído ao património da Recorrente, porque para isso era necessário que resultasse provado que a ora Recorrida tivesse conhecimento ou intervenção na elaboração do substabelecimento que permitiu a substituição deste cheque por outro, que tivesse conhecimento de que o mesmo tinha sido endossado e que o endosso era falso e que o mesmo tivesse sido descontado por alguém que não a própria Recorrente ou que nisso tivesse consentido.

EE) Não tendo tal matéria resultado como provada, não poderá à ora Recorrente ser imputada tal responsabilidade.

FF) No que concerne ao processo crime mencionado pela Recorrente, como esta bem refere, o Ministério Público decidiu arquivar a queixa-crime, tendo sido posteriormente proferida decisão de pronuncia, não obstante a promoção novamente do Ministério Público quanto à não pronuncia das ora Recorridas e a qual foi objecto de recurso por parte da ora Recorrente, não sendo portanto a mesma definitiva.

GG) Face a todo o exposto, não deverá o presente recurso ter provimento, mantendo-se a decisão recorrida que absolveu as ora Recorridas inalterada nos seus precisos termos, por não existir prova de que a sua actuação foi culposa e geradora do dever de indemnizar».


Termos em que requer seja julgado improcedente o recurso interposto pela autora, mantendo-se o acórdão recorrido.


8. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.



***



II. Delimitação do objeto do recurso


Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1].


Assim, a esta luz, a única questão a decidir traduz-se em saber se a atuação das rés CC e DD preenche os requisitos da responsabilidade civil do advogado.



***



III. Fundamentação


3.1. Fundamentação de facto

    Em 1ª instância, foram dados como provados os seguintes factos:


1. A R. sociedade EE tem por objecto a averiguação e gestão de sinistros e peritagens, sendo sócios e gerentes o R. BB e JJ (certidão permanente a fls. 19 e 20).

2. A A. foi interveniente num acidente de viação, em 5/5/2009.

3. Para tratar das questões decorrentes do acidente, junto nomeadamente da R. FF Seguros, o pai da A. contactou o R. BB, enquanto gerente da R. sociedade EE, Lda.

4. A A. outorgou procuração forense a favor das advogadas Drª CC, ora R., Drª GG e Drª HH, conferindo-lhes poderes forenses gerais e especiais, bem como para substabelecer, representar em todos os actos, para no seu domicílio profissional receberem todas as notificações, inclusive as pessoais que a ela houverem de ser feitas no decurso do processo de sinistro automóvel em que foi interveniente, bem como os poderes para assinarem qualquer transacção, acordo ou desistência do pedido e da instância e para receber custas de parte.

5. O escritório da R. Drª CC, Drª GG e Drª HH, à data, encontrava-se no mesmo espaço em que se encontrava a sociedade EE.

6. Foi intentada acção judicial quanto ao acidente ocorrido em 5/5/2009, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Instância Local de … - Secção Cível - Unidade … (extinto … Juízo de Competência Cível do Tribunal Judicial de …) sob o proc. nº 10751/11.9TBOER (certidão judicial de fls. 21 a 54).

7. Foi proferida sentença em 29/4/2013, que condenou a R. FF, Companhia de Seguros, a pagar à A. a quantia global de € 39.595,55, acrescida de juros de mora (certidão judicial de fls. 24 a 51).

8. A sentença foi confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26/12/2013, tendo transitado em julgado em 11/1/2014  (certidão judicial de fls. 24 a 54).

9. Desde a realização da audiência de julgamento a A. não foi informada pelas mandatárias constituídas do andamento do processo.

10. A A., através do advogado, remeteu à R. EE, Lda, ao cuidado do R. BB, carta datada de 17/7/2014, que foi recebida, solicitando o pagamento da quantia de € 41.510,65, conforme docs. fls. 53 a 59, cujo teor se dá por reproduzido.

11. O R. BB respondeu em 3/9/2014, em que refere ser devido o valor de 20% sobre o valor da indemnização pelo serviço que foi prestado, pelo que a quantia a receber é de € 31.299,03, solicitando a designação de uma data para pagamento, conforme docs. de fls. 60 e 61, cujo teor se dá por reproduzido.

12. A A., através do advogado, remeteu à R. FF Seguros carta datada de 6/8/2014, que foi recebida, solicitando o pagamento da quantia de € 41.510,65, conforme docs. de fls. 62 a 66, cujo teor se dá por reproduzido.

13. Em 16/12/2013 a R. FF Seguros emitiu cheque sobre o II, com o nº 63…4, no valor de € 41.510,65, a favor da A., não à ordem, remetido via postal em nome da A. ao cuidado da Drª CC (doc. de fls. 72 dos autos).

14. O cheque com o nº 63…4 foi substituído por cheque sobre o II, datado de 26/12/2013, com o nº 63…5, no valor de € 41.510,65, à ordem da A. (doc. de fls. 74 dos autos).

15. No cheque com o nº 63…5 foi aposto carimbo com a menção “PAGO” (doc. de fls. 74 dos autos).

16. No verso do cheque com o nº 63…5 consta, após a menção “N.º CONTA A CREDITAR” o nº 12…4, manuscrito, seguido de uma assinatura correspondente ao nome da A., "AA"; após, surgem, manuscritos, o nome DD, identificação civil e número do cartão do cidadão 12…6 2ZZA, a data 2016/06/10 e, posteriormente, uma assinatura ilegível. Consta, ainda, no verso do cheque "… Estádio (...) 2013/12/26 16h04m" (doc. de fls. 74 dos autos).

17. O R. procedeu ao desconto do cheque emitido pelo co-R. FF Companhia de Seguros, SA, no valor de € 41.510,65, datado de 26-12-2013, solicitando à co-R. DD que o fizesse, por esta ser titular de conta junto do Banco II, em 27/12/2013 (data constante do doc. de fls. 74 - doc. 11 junto pela A.).

18. A co-R. DD entregou ao R. BB a totalidade do montante titulada pelo cheque.

19. O R. não procedeu à entrega de qualquer valor à A.

20. A co-R. CC entregou ao R. BB o cheque de indemnização da A., com o nº 63…4, não à ordem, emitido pelo co-R. FF, Companhia de Seguros, SA, no valor de € 41.510,65.

21. No dia 26/12/2013, nas instalações da R. FF Seguros, SA, foi exibido à responsável da área de sinistros, KK, substabelecimento a favor da R. DD, por pessoa que se identificou como tal e solicitou a substituição do cheque nº 63…4 por cheque à ordem e entrega do mesmo.

22. No documento exibido, denominado "Substabelecimento", consta “CC, Advogada vem substabelecer, com reserva, na sua Ilustre Colega Drª DD, Advogada, portadora da cédula profissional n.º …L, com escritório na mesma morada, os poderes que lhe foram conferidos por AA, no âmbito do processo n.º 10751/11.09TBOERLl, que corre termos na … Secção do Tribunal da Relação de Lisboa", datado de 26/12/20l3, seguindo-se a menção "A Advogada”, uma assinatura correspondente ao nome "CC" e carimbo de identificação profissional de advogada, relativo a CC (doc. de fls. 202, cujo teor se dá por reproduzido) .

23. A gestora de sinistros LL entregou pessoalmente à pessoa que se identificou como DD carta-cheque datada de 26/12/2013, com o nº 63…5, em que esta escreveu, no canto superior esquerdo, “recebi original; DD", conforme doc. de fls. 203, cujo teor se dá por reproduzido.

24. Foi remetido à R. FF Seguros o doc. de fls. 484 e 485 dos autos, com data de 20/12/2013, subscrito por MM, advogada, enquanto mandatária da A., acusando a recepção, nessa data, do cheque enviado, manifestando desagrado pela forma como tinha sido conduzido o envio do mesmo, cujo teor se dá por reproduzido.

25. Em Outubro de 2009 a R. FF Seguros procedeu ao pagamento de € 1.404,06 à A., relativamente a despesas apresentadas, mediante cheque “não à ordem", que foi depositado pela A. na sua conta bancária (docs. de fls. 75 a 77 dos autos).   


2. Factos Não Provados


Não resultaram provados quaisquer outros factos, com relevância para a presente decisão, que excedam ou sejam diversos dos elencados supra, não cabendo elencar alegações de direito ou manifestamente conclusivas.

Nomeadamente, não resultaram provados os seguintes factos:

Da Petição Inicial:

- O Réu BB solicitou à Autora que assinasse a Procuração a favor das advogadas Dra. CC, Dra. GG e Dra. HH.

- A Autora nunca falou ou tratou directamente com nenhuma das referidas advogadas de qualquer assunto, tendo tudo sido tratado por intermédio do aqui Réu BB

- O pai da Autor e NN telefonaram ao Réu BB para saber porque razão o pagamento não era efectuado, ao que este respondia que o atraso era normal e a Seguradora ainda não o tinha processado

- O cheque “não à ordem” foi substituído por cheque à ordem da Autora a solicitação do Réu BB e entregue pessoalmente ao Réu BB pela Ré FF Seguros.


Da Contestação da Ré CC:

-      O Réu BB apresentou à Ré CC a Autora e o pai desta, este como seu amigo pessoal,

-      A procuração forense foi assinada pela Autora na presença da Ré CC. A Autora foi informada da decisão proferido pelo TJ de … e do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa

- Quando recepcionou o cheque a Ré CC tentou entrar em contacto com a Autora para proceder à sua entrega mas não conseguiu, pelo que solicitou ao Réu BB que comunicasse ao pai da Autora que já tinha o cheque na sua posse

- O Réu BB informou a Ré CC que tinha falado com o pai da Autora e que este lhe solicitou para levar o cheque e entregá-lo pessoalmente.

- Posteriormente, o Réu BB disse à Ré CC que tinha entregue o cheque.

- A Ré CC apenas tomou conhecimento que o cheque nunca foi entregue à Autora em finais de 2014.

Da Contestação do Réu BB:

- Ficou acordado com a Autora que pela prestação dos seus serviços a EE -Averiguação e Gestão de Sinistros, Lda. cobraria 20% sobre o montante que a Autora viesse a ser indemnizada pela Companhia de Seguros.

- O Réu procedeu a várias diligências e negociações junto da Companhia de Seguros

- Pelos serviços prestados à Autora é devido à EE o valor de 10.211,62 Euros.

- O pai da Autora recusou liquidar 20% sobre o montante da indemnização recebida.



***



3.2. Fundamentação de direito


Conforme já se deixou dito, a questão essencial colocada no presente recurso consiste em saber se a conduta das rés/recorridas preenche os requisitos da responsabilidade civil do advogado.


3.2.1. Antes, porém, impõe-se tomar posição sobre o requerimento apresentado pela recorrente com as suas alegações de recurso e no qual a mesma peticiona, ao abrigo do disposto no art.° 680.°, n.° 1 do Código de Processo Civil, a junção aos autos do documento constituído por uma fotocópia do despacho proferido em 18.04.2018, no Proc.° nº 1164/15.4TDLSB do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, e que pronunciou as ora recorridas como arguidas, alegando, para tanto, tratar-se de um documento  superveniente à instauração da ação (29.12.2014) e da própria interposição do recurso de apelação (06.11.2017).

Neste domínio, dispõe o citado art. 680º, nº 1 que «Com as alegações podem juntar-se documentos supervenientes, sem prejuízo do disposto no nº 3 do artigo 674º e no nº 2 do artigo 682º».

Decorre, assim, da articulação destas normas que a possibilidade de junção de documentos no âmbito do recurso de revista não só é excecional como é bem mais restrita do que o regime previsto para a apelação no art 651º do CPC.

Com efeito, como refere Abrantes Geraldes[2], « uma vez que está praticamente vedado ao Supremo alterar a decisão da matéria de facto provada, a aplicabilidade do preceito está reservada para os casos  em que as instâncias tenham considerado provado um facto para o qual a lei exigia prova documental ( v.g. escritura pública ou certidão de registo), com violação do direito probatório material, sustentando-o apenas em prova testemunhal ou em confissão, situação que pode ser regularizada, sem prejudicar o resultado, mediante a junção de documento  que seja superveniente».

Ora, porque nada disto acontece no caso dos autos e porque nem sequer está demonstrada a superveniência do documento em causa, uma vez que dele não consta a data da prolação do referido despacho, não se admite a sua junção aos autos, pelo que o mesmo não será tido em consideração.


*


3.2.2. Vejamos, então, se a factualidade dada como provada é suficiente para fazer incorrer as rés/recorridas em responsabilidade civil para com a autora/recorrente, pelo não recebimento da quantia a ela devida.


No sentido negativo, pronunciou-se o acórdão recorrido com base na seguinte fundamentação:


«  (…) reputa-se tal factualidade claramente insuficiente para, seja em termos de ilicitude ou de culpa, fundamentar a condenação das apelantes.    

     Provado, efectivamente, não haver sido recebida pela apelada a quantia em causa, por do respectivo montante se ter indevidamente apossado o R. BB, não resultou, todavia, sequer minimamente demonstrado que para tal haja contribuído, ainda que a título de negligência, a actuação daquelas.

    Tanto mais que, como resulta da matéria provada, o primeiro dos aludidos cheques, entregue ao cuidado da apelante CC, veio a ser substituído por outro - sem que se vislumbre qual haja sido a sua intervenção para o efeito.

  Acrescendo que, achando-se esse título aparentemente endossado pela beneficiária, de todo, se não apurou a motivação, alegadamente ilícita, da apelante DD, ao aceitar proceder ao desconto do cheque, ulteriormente emitido pela seguradora.

  Concluindo-se pela não verificação dos pressupostos da responsabilidade às mesmas imputada, haver-se-ia, pois, de considerar improcedente o pedido formulado, no tocante às ora apelantes».


Insurge-se a recorrente contra este entendimento, sustentando, no essencial, que o acórdão recorrido não considerou a relação contratual existente entre ela e as recorridas, quando é certo resultar da matéria de facto provada que a recorrente AA passou procuração forense a favor da recorrida CC e que a recorrida DD aceitou e fez uso de um substabelecimento aparentemente emitido pela CC, ambas colegas de escritório.

Mais sustenta, quanto à ré CC, resultar ainda dos factos provados n.° 9, 13 e 20, que esta advogada nunca informou a sua cliente do andamento dos autos e, quando recebeu o cheque a ela destinado correspondente à indemnização de acidente de viação, entregou-o a um terceiro, o Réu BB.

Também, quanto à ré DD, argumenta ainda resultar dos factos provados n.° 16, 17, 21 a 23, que esta advogada, na posse do referido substabelecimento e, portanto, em representação da ora recorrente, logrou proceder ao levantamento de um cheque na FF Seguros que, posteriormente foi descontar no Banco, através da sua conta, quantia que entregou integralmente ao réu BB.

Daí defender conterem os autos elementos suficientes para dar por preenchidos os requisitos da responsabilidade civil contratual, sendo que nenhuma das recorridas fez prova de qualquer facto suscetível de ilidir a presunção da sua culpa.

Defende ainda que, mesmo admitindo, especialmente no caso da recorrida DD, que a fonte da sua responsabilidade decorre de factos ilícitos, no caso sub judice verificam-se todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontatual.


Que dizer?


Desde logo, que o instituto da responsabilidade civil, sendo uma das fontes da obrigação de indemnização, traduz-se na necessidade imposta por lei, a quem causa danos a outrem, de colocar o lesado na situação em que se encontraria se não fosse a lesão.

A responsabilidade extracontratual resulta da violação de direitos absolutos ou da prática de certos atos que, embora lícitos, causam prejuízo a outrem. 

A responsabilidade contratual, embora subordinada aos pressupostos comuns a todas as formas de responsabilidade – ato ilícito, culpa, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano - , resulta da falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos, de negócios unilaterais ou da lei.

Mas, tal como afirma nos Acórdãos do STJ, de 08.05.2003[3] e de 07.02.2017 (processo nº 4444/03.8TBVIS.C1.S1)[4], ao contrário do que acontece com a responsabilidade extracontratual, que é fonte autónoma da obrigação de indemnizar, a responsabilidade contratual é apenas condição modificativa da obrigação de prestar em obrigação de indemnizar, mas a obrigação é a mesma.

De realçar que a determinação do modelo normativo da responsabilidade é uma questão de qualificação jurídica e, portanto, matéria de direito, de conhecimento oficioso, a cuja indagação, interpretação e aplicação o juiz não está sujeito às respetivas alegações das partes, nos termos do disposto no art. 5º, nº 3 do CPC.

Fundamental é que o autor tenha alegado factos constitutivos suscetíveis de serem integrados numa ou noutra destas modalidades de responsabilidade civil, nada obstando, nestes casos, a que o tribunal possa qualificar a situação sub judice como sendo de responsabilidade contratual mesmo que o autor pugne pela aplicação das regras da responsabilidade extracontratual ou vice versa.



*


Vejamos, então, se:

A-  há responsabilidade contratual da ré CC, tendo em conta que, como fundamento do pedido de indemnização que deduz contra a esta ré, a autora alegou, na sua petição inicial, que :


- « A R. Drª CC (…) tinha celebrado com a A. um contrato de mandato, no âmbito do qual lhe foram conferidos  poderes forenses (…)» - ( artigo 46º da p. i. );

- « A conduta da R. CC é ilícita por violação evidente do contrato de mandato ao qual estava vinculada, designadamente, por ter recebido o (primeiro) cheque “não há ordem” e não ter procedido à sua entrega  à A., sua mandante, que era beneficiária do mesmo, tendo ao invés procedido à sua entrega ao R. BB, por não ter informado a A. da notificação da Sentença nem do posterior Acórdão Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito do processo  de indemnização referido no art. 11º da presente PI, mantendo a A. na ignorância da tramitação processual e da posterior emissão do pagamento  da indemnização por parte da R. FF Seguros a seu favor» - ( artigo 47º da p. i. );

- « A R. CC actuou de forma livre e voluntária, contrariando os seus deveres legais (art. 84º da Lei nº 15/2005, de 26/01 – Estatuto da Ordem dos Advogados) e contratuais ( mandato), apesar de poder agir de forma diversa, licitamente e no interesse da sua mandante, ora A. » - ( artigo 48º da p. i. ).


E, a este respeito, ficou provado que:


i) - A A. outorgou procuração forense a favor das advogadas Drª CC, ora R., Drª GG e Drª HH, conferindo-lhes poderes forenses gerais e especiais, bem como para substabelecer, representar em todos os atos, para no seu domicílio profissional receberem todas as notificações, inclusive as pessoais que a ela houverem de ser feitas no decurso do processo de sinistro automóvel em que foi interveniente, bem como os poderes para assinarem qualquer transação, acordo ou desistência do pedido e da instância e para receber custas de parte.

ii) - Foi intentada ação judicial quanto ao acidente ocorrido em 5/5/2009, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Instância Local de … - Secção Cível - Unidade … (extinto … Juízo de Competência Cível do Tribunal Judicial de …) sob o proc. nº 10751/11.9TBOER.

iii) - Foi proferida sentença em 29/4/2013, que condenou a R. FF, Companhia de Seguros, a pagar à A. a quantia global de € 39.595,55, acrescida de juros de mora.

iv) - A sentença foi confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26/12/2013, tendo transitado em julgado em 11/1/2014.

v) - Desde a realização da audiência de julgamento a A. não foi informada pelas mandatárias constituídas do andamento do processo.

vi) - Em 16/12/2013 a R. FF Seguros emitiu cheque sobre o II, com o nº 63…4, no valor de € 41.510,65, a favor da A., não à ordem, remetido via postal em nome da A. ao cuidado da Drª CC.

vii) - A co-R. CC entregou ao R. BB o cheque de indemnização da A., com o nº 63…4, não à ordem, emitido pelo co-R. FF, Companhia de Seguros, SA, no valor de € 41.510,65.

viii)  O cheque com o nº 63…4 foi substituído por cheque sobre o II, datado dc 26/12/2013, com o nº 63…5, no valor de € 41.510,65, à ordem da A.

ix) O R. procedeu ao desconto do cheque emitido pelo co-R. FF Companhia de Seguros, SA, no valor de € 41.510,65, datado de 26-12-2013, solicitando à co-R. DD que o fizesse, por esta ser titular de conta junto do Banco II, em 27/12/2013.

x) A co-R. DD entregou ao R. BB a totalidade do montante titulada pelo cheque.

xi) O R. não procedeu à entrega de qualquer valor à A.


Ora, perante este quadro factual, temos por certo ter a autora celebrado com a ré CC um contrato de mandato forense, com poderes de representação que, na definição de João Lopes Reis[5], se apresenta como «o contrato pelo qual um advogado (ou um advogado estagiário, ou um solicitador) se obriga a fazer a gestão jurídica dos interesses cuja defesa lhe é confiada, através da prática, em nome e por conta do mandante, de actos jurídicos próprios da sua profissão».

Trata-se, por isso, de um contrato de mandato atípico sujeito ao regime especial do Estatuto da Ordem dos Advogados (no caso o EAO, aprovado pela Lei nº 15/2005, de 26.01, por ser o vigente aquando dos factos que se discutem na presente lide), sendo-lhe ainda aplicável, a título subsidiário, o regime civilístico do mandato constante dos arts. 1157º a 1184º,  do C. Civil.

E ainda que se admita que o regime de responsabilidade profissional não constitui um instituto autónomo de direito civil, a verdade é que o mesmo não deixa de apresentar determinadas particularidades decorrentes do regime geral que a responsabilidade civil dos advogados apresenta, impostas, desde logo, pelo interesse público da profissão e do papel do advogado como elemento indispensável na administração da justiça (cfr. art. 83º do referido EOA[6]) e, consequentemente, pelo conjunto de deveres e princípios deontológicas que regulamentam o seu comportamento público e profissional (cfr. arts. 83º a 100 do citado EOA).

Tratam-se de normas deontológicas que, como refere Carneiro da Frada[7], desempenham a função de “modelação e afinamento de exigências de comportamento”, através da especificação dos deveres a observar pelos advogados no exercício da sua profissão, sob pena de incorrerem em responsabilidade, e que, segundo Orlando Guedes da Costa[8], assumem-se como deveres de ordem pública, pelo que a sua imperatividade decorre também do disposto no art. 280º do C. Civil.   

Daí não podermos deixar de enfrentar as questões de saber se a violação destas normas estabelecidas no EOA gera a responsabilidade civil do advogado para com o seu cliente e, em caso afirmativo, em que tipo de responsabilidade incorre o advogado que, em virtude do incumprimento de uma ou mais normas deontológicas lesa interesses do seu cliente.

E a este respeito diremos, desde logo, que se é certo haver unanimidade de entendimento em torno da primeira questão, na medida em que a doutrina[9] e a jurisprudência[10], admitem que a violação de normas deontológicas representa um facto ilícito, pelo que, desde que verificados os demais requisitos da responsabilidade civil [11], o advogado constitui-se na obrigação de indemnizar os particulares por ele patrocinados, o mesmo já não acontece relativamente à segunda questão, tendo-se formado, no seio da doutrina portuguesa, três teses.

Assim, enquanto António Arnault defende que a responsabilidade civil do advogado para com o cliente tem natureza extracontratual, pois «sendo a advocacia uma actividade de eminente interesse público, a responsabilidade civil decorrente do seu exercício só pode resultar da infracção de deveres deontológicos estabelecidos, justamente, em nome daquele interesse»[12], L. P. Moitinho de Almeida defende a tese da responsabilidade mista ou do concurso da responsabilidade contratual e extracontratual, referindo que «se o advogado não cumpre ou cumpre defeituosamente as obrigações que lhe advém do exercício do contrato de mandato (ou inominado) que firmou com o constituinte, tacitamente ou mediante procuração, incorre em responsabilidade contratual para com ele; se o advogado praticou facto ilícito lesivo dos interesses do seu constituinte, já a sua responsabilidade civil para com o mesmo constituinte é extracontratual ou aquiliana. Em grande parte dos casos, porém, a responsabilidade civil do advogado para com o cliente é, simultaneamente, contratual e extracontratual», podendo o lesado optar pela invocação de uma ou de outra[13].

Diferentemente, outra corrente, na qual se incluem Lebre de Freitas[14], Orlando Guedes da Costa[15], Abel Laureano[16] e Vitor Manuel Furtado Sousa[17], entende que a responsabilidade civil do advogado pela violação das normas deontológicas no âmbito da relação advogado-cliente impostas pelo EOA, tem natureza contratual na medida em que estamos perante normas imperativas, que integram o contrato de mandato forense e que, nas palavras deste último autor, “conformam o próprio dever de prestar”, constituindo uma limitação à liberdade contratual dos particulares contemplada no art. 405º do C. Civil[18].              

De sublinhar, porém, que para Vitor Manuel Furtado Sousa [19] , seguidor da tese defendida por Adela Serra Rodríguez[20], os deveres impostos pelas normas deontológicas constituem uma série de deveres acessórios que se integram no dever estrito da prestação principal, implicando uma ampliação desta e assegurando uma maior tutela do cliente.

Mas, embora defendendo, neste âmbito, a natureza obrigacional da responsabilidade civil do advogado, não deixa de fazer a distinção entre a «responsabilidade decorrente do inadimplemento da prestação principal (como poderá ser exemplo o caso da obrigação de contestar uma ação judicial- (…) – intentar uma petição inicial antes de ocorrer a prescrição do direito do cliente, representar o cliente em juízo, etc.) da responsabilidade decorrente do inadimplemento de deveres acessórios que conformam a própria prestação principal, ou seja, das normas deontológicas dos advogados», designadamente das normas constantes dos artigos 92º a 102 do referido EOA.   

De realçar que nesta linha de pensamento já se havia afirmado, no Acórdão do STJ, de 29.04.2010 (processo nº 2622/07.0TBPNF.P1.S1)[21], que «a responsabilidade do advogado para com o cliente é contratual desde que o ilícito se traduza no incumprimento do, especifica ou genericamente clausulado (aqui incluindo os deveres colaterais deontológicos), no mandato forense, só sendo extra contratual se o ilícito consistir em conduta violadora de outros deveres - ou normas legais – não precisamente  contratuais», entendimento que se perfilha, por se considerar mais consentâneo  com o papel desempenhado pelas normas deontológicas, e sem prejuízo de se entender, ainda em consonância com este mesmo acórdão, que «a responsabilidade do advogado para com terceiros  é sempre extracontratual».    



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Ora, neste contexto jurídico e ante os factos provados e supra descritos nos pontos i) a xi), não restam dúvidas de que a ré, Drª CC, assumiu patrocinar a autora, vítima de acidente de viação, na ação nº  10751/11.9TBOER, instaurada contra a FF, Companhia de Seguros e que correu termos  no extinto … Juízo de Competência Cível do Tribunal Judicial de ….

Consequentemente, como mandatária forense da autora, estava esta ré obrigada a praticar os atos compreendidos no mandato judicial que aceitou, sobre ela impendendo, nos termos do preceituado no art. 92º, nºs 1 e 2 do EOA, o dever de estabelecer com a autora, sua cliente, uma relação fundada  na confiança e de «agir de forma a defender os interesses legítimos do cliente », o dever, nos termos do disposto no art. 103º, nº1, do mesmo diploma, de «em qualquer circunstância, actuar com diligência e lealdade na condução do processo» e o dever específico constante do art. 96º, nº1, do referido EOA de « dar a aplicação devida a valores, objectos e documentos que lhe tenham sido confiados, bem como prestar conta ao cliente de todos os valores deste que tenha recebido, qualquer que seja a sua proveniência».

Todavia, o que se provou foi que, não obstante ter sido proferida decisão que condenou a FF, Companhia de Seguros, a pagar à autora a quantia global de € 39.595,55, a título de indemnização pelos danos por ela sofridos em consequência de acidente de viação, acrescida de juros de mora, e desta companhia seguradora, para pagamento destes montantes, ter emitido cheque sobre o II, com o nº 63…4, no valor de € 41.510,65, a favor da autora, não à ordem, remetido via postal em nome da autora, mas ao cuidado da Drª CC, esta, em vez de proceder à entrega desse cheque à autora, como era seu dever, entregou esse mesmo cheque a um terceiro, o réu BB.

Torna-se, assim, evidente que, com esta sua atuação, a ré CC não só violou os deveres de lealdade e de defesa do interesse legítimo da autora a que aludem os citados arts. 83º, nº 2 e 103º, n.º1 como incumpriu o dever específico prescrito no citado art. 96º, nº1 de dar a aplicação devida ao cheque que lhe foi confiado pela companhia seguradora e de prestar conta à autora do valor desse mesmo cheque, destinado ao pagamento à ora recorrente da indemnização por acidente de viação que lhe foi arbitrada no âmbito do processo nº 10751/11.9TBOER.

Daí ter-se por verificada a ilicitude da atuação desta ré, revelada pela violação destes deveres deontológicos, o que, em nosso entender, não pode deixar de relevar em termos de responsabilidade civil contratual, na medida em que consubstancia incumprimento de obrigações emergentes do contrato de mandato forense celebrado com a autora.

Demonstrada a ilicitude do comportamento da ré CC, importa, agora, indagar se estão verificados os demais requisitos da responsabilidade civil contratual que a ligava à autora, que, como é consabido, pressupõe, para além da referida ilicitude e da culpa presumida da mandatária (cfr. art. 799º, nº1 do C. Civil), a prova, por parte da autora (cliente/lesada), do nexo de causalidade adequada entre a violação dos referidos deveres e os danos por ela sofridos, sem esquecer, como refere, Antunes Varela [22] que, «para que haja causa adequada, não é de modo nenhum necessário que o facto, só por si, sem a colaboração de outros, tenha produzido o dano. Essencial é que o facto seja condição do dano, mas nada obsta a que como frequentemente sucede, ele seja apenas uma das condições desse dano».

Ora, constatando-se, neste domínio, não ter a ré CC, logrado provar que não foi por culpa sua que não entregou o cheque nº 63…4 à autora nem que esta não recebeu o valor de € 41.510,65 nele titulado e resultando dos factos provados que, na posse deste cheque, o réu BB logrou obter, junto da companhia seguradora, a sua substituição pelo cheque nº 63…5, de igual montante, que descontou e não procedeu à entrega à autora do respetivo valor, mais não resta se não concluir pela culpa presumida da ré CC e pela verificação do nexo causal entre a atuação ilícita e culposa desta mesma ré e o dano sofrido pela autora, que, em virtude de uma tal atuação, está, desde 26.12.2013, privada do montante de € 41.510,65.

Quer tudo isto dizer ser a ré CC responsável pelo prejuízo causado à autora, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 798º, 799º nº1, 805º, nº2, al. a) e 806º, nºs 1 e 2, todos do C. Civil.



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B - Indagando, agora, da responsabilidade da ré DD, importa, desde logo, referir que, contrariamente ao que sustenta a recorrente, não se vislumbra que a sua atuação possa dar lugar à responsabilidade contratual, porquanto da factualidade dada como provada e supra descrita nos pontos 21, 22 e 23 não resulta suficientemente demonstrado que tenha sido ela a fazer uso do substabelecimento aí aludido.

De resto sempre se dirá ter a autora deduzido a sua pretensão indemnizatória contra esta ré com base na responsabilidade civil extracontratual, alegando, para além do mais, na petição inicial que:

- « (…) também a sua conduta foi ilícita, nomeadamente, porque foi a pessoa que procedeu ao depósito e levantamento do (segundo)cheque “à ordem” ( Doc. 11) e que posteriormente entregou a respetiva quantia ao R. BB» - ( artigo 52º da p. i. );   

-  (…) a R. DD, mesmo sabendo que não tinha sido a  beneficiária do cheque, ora A.,  que lho entregou devidamente endossado – (…) – aceitou na mesma o seu empossamento para fim  que não era lícito», sendo que « não podia ignorar que a sua actuação podia  auxiliar um acto ilícito, como efetivamente o fez», provocando, desse modo,  um dano «equivalente ao valor do cheque que a própria depositou/levantou e cuja quantia era destinada à A., que até hoje a não recebeu» - ( artigos 53º, 54 e 55 da p. i. ).


Acontece, porém, que a factualidade alegada nos artigos 53, 54 e 55 da petição inicial e que assume especial relevância para, atento o disposto no art. 483º, nº1 do C. Civil, se poder aferir da ilicitude e da culpa da ré DD bem como do nexo de causalidade adequada entre a sua atuação e o dano sofrido pela autora, não foi objeto de qualquer decisão positiva ou negativa, pelo que impõe-se, ao abrigo do artigo 682.º, n.º 3, do CPC, determinar a ampliação da decisão de facto, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito.


Termos em que revoga-se o acórdão recorrido na parte em que absolveu as rés do pedido formulado pela autora.



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III – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em julgar parcialmente procedente a revista e, revogando acórdão recorrido, na parte em que absolveu as rés CC e DD do pedido formulado pela autora, em:


A - Julgar a ação parcialmente procedente e, consequentemente, condenar a ré CC a pagar à autora, AA, a quantia de € 41.510,65, acrescida de juros, à taxa legal, desde 26.12.2013 e até efetivo e integral pagamento.

 

B - Determinar, de harmonia com o disposto no art. 682º, nº 3 do CPC, a baixa do processo ao tribunal recorrido para que, por determinação deste, no tribunal de 1ª instância se apreciem os seguintes factos alegados pela autora nos artigos 50, 53, 54 e 55º da petição inicial e em função disso, julgar a causa em conformidade com o direito já definido, nos termos do preceituado no art. 683º, nº1 do CPC.


As custas da ação ficam a cargo da ré CC, na proporção de 3/5, ficando as custas devidas nos recursos a cargo desta mesma ré, na proporção de 1/2.


As demais custas devidas na ação e nos recursos, ficam a cargo da parte vencida a final.



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Posto que os factos constantes dos autos, no que respeita à ré CC, são suscetíveis de constituir infração disciplinar, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 121.º, n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados, determina-se a extração de certidão da presente decisão e a respetiva remessa à Ordem dos Advogados.



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Supremo Tribunal de Justiça, 2 de maio de 2019

Maria Rosa Oliveira Tching (Relatora)

Rosa Maria Ribeiro Coelho

Catarina Serra

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[1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[2] In, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2018- 5ª edição, pág. 428.
[3] In, CJ/STJ, Ano XI, T2, pág. 39.
[4] Acessível, in, www.dgsi.pt/stj.
[5] In,  “Representação Forense e Arbitragem”, pág. 43
[6]  O qual prescreve que o advogado« deve ter um comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidades da função que exerce, cumprindo pontual e escrupulosamente os deveres consignados no presente Estatuto e todos aqueles que a lei, os usos, costumes e tradições profissionais lhe impõem», estabelecendo o nº 2 deste mesmo artigo que « A honestidade, probidade, rectidão, lealdade, cortesia e sinceridade são obrigações profissionais».
[7] In “Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil”, Coimbra, Almedina, 2007, pág. 338.
[8] In, “Direito Profissional do Advogado: Noções elementares”, 7ª ed., Coimbra, Almedina, 2010, pág. 401.
[9] Cfr. entre outros, Cunha Gonçalves, “Tratado de direito civil: em comentário ao código civil português”, Volume XII, Coimbra Editora, 1938, pág. 762; L. P. Moitinho de Almeida, “Responsabilidade civil dos advogados”, 2ª ed., Coimbra Editora, 1998, pág. 8 e 15 segs; António Arnaut, “Iniciação à advocacia”, 11ª ed., Coimbra Editora, 2011, pág. 170; José Lebre de Freitas, “Estudos sobre direito civil e processo civil”, 2ª ed., Coimbra Editora, Vol. II, 2009, pág. 694.
[10] Cfr, entre outros, os Acórdãos do STJ de 17.06. 2006 (Processo 06A2773); de 29.04.2010 (processo nº 2622/07.0TBPNF.P1.S1) e de 28.09.2010 (processo nº 171/2002.S1).
[11] Ou seja, da culpa, de um prejuízo para o cliente e de um nexo e causalidade entre a culpa e o prejuízo.
[12] In obra citada, pág. 169 e segs.
[13] In obra citada, págs. 13 e 14, citando Yves Avril (“La responsabilité de l’avocat”, nº 3, pág. 2) que entende que a responsabilidade civil do advogado é sempre a contratual em relação aos clientes, sendo extracontratual em relação a terceiros.
[14] In “Estudos sobre direito civil e processo civil”, 2ª ed., Coimbra Editora, Vol. II, 2009, pág. 694
[15] In “Direito Profissional do Advogado: Noções elementares”, 7ª ed., Coimbra, Almedina, 2010, pág. 694.
[16] In “O cliente e a independência do advogado”, reimpressão, Lisboa, Quid Juris? – Sociedade Editora Ld.ª, 2000, pág. 61.
[17] “ A responsabilidade civil dos advogados pela violação de normas deontológicas”, Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Dissertação de Mestrado em Direito – Ciências Jurídicas-Privatísticas, Porto julho de 2014, acessível https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/78338/2/34287, págs.43 e segs.
[18]  Cfr, obra citada, pág. 44 e segs.
[19]  Cfr, obra citada, pág. 44 e segs.
[20] In “ La responsabilidade civil del Abogado”, 2ª edição, Elcano (Navarra), Aranzadi Editorial, 2000, pág. 260, por ele citado na referida dissertação de Mestrado. 
[21] No mesmo sentido, cfr. Acórdão do STJ, de 17.06.2006 (Processo 06A2773), ambos acessíveis in www.dgsi.pt/stj.
[22] In, “ Das Obrigações em Geral”, 10ª Edição, Vol. I, págs. 893e 899