I – Não tem a natureza de lei interpretativa a Lei nº 142/2015, de 8 de setembro, ao dar nova redação ao art. 37º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP).
II – Não é imperativo o prazo de 6 meses fixado no art. 37º, nº 3 da LPCJP para a duração das medidas provisórias; é um prazo indicativo, no sentido de que, sendo embora um objetivo de celeridade a alcançar, pode, em casos devidamente justificados, ser ultrapassado.
III – Esta celeridade não é um valor absoluto em si, em termos de poder sobrelevar, prejudicando, o superior interesse da criança, primeiro dos princípios orientadores da intervenção para promoção de direitos e proteção da criança e do jovem em perigo - art. 4º, alínea a) da LPCJP.
2ª SECÇÃO CÍVEL
I - O Ministério Público instaurou processo judicial de promoção e proteção relativamente à menor AA, nascida a …/09/2014, filha de BB e de CC.
Em sede de conferência, realizada em 19/04/2018, foi proferido despacho de que se destacam as seguintes passagens:
“Solicite ao GML da … a avaliação da avó materna sobre a dependência alcoólica da mesma e se a sua convivência em ambiente familiar com a AA, face a essa dependência, poderá colocar em perigo a criança AA, que tem 3 anos de idade. Solicite também ao GML da … que após avaliação médica psiquiátrica da progenitora CC se pronuncie sobre se o problema de saúde da mãe, conjugado com a dependência alcoólica da avó, poderá colocar em causa o desenvolvimento harmonioso da criança AA.
Face ao referido quer pela mãe da criança quer pela tia materna DD, quer pela tia EE, quer pela testemunha FF, quer ainda pelo Sr. Presidente da Junta de Freguesia de …, GG, e tendo em conta o que resulta dos relatórios, nomeadamente da CPCJ, quer pela educadora HH, entendemos perfunctoriamente que:
1. A criança AA presencia discussões entre a mãe CC e a avó materna em que há verbalização de palavras como “filho da puta”, “qualquer dia mato-te com uma faca”.
2. A mãe da criança, CC, tem ideação de que aparecem lá em casa pessoas para a roubar nomeadamente peças de veículos avariados que tem junto ao local de residência; de que terá praticado, pelo menos uma vez, na presença de AA, rituais de “feitiçaria ou bruxaria”; que são feitas fogueiras cujo fumo tem um odor anormal.”
3. Que a avó materna é dependente alcoólica e não tem sido tratada a essa dependência; que embora a tia da criança, DD, viva no mesmo agregado familiar, tem dias e noites em que não se encontra em casa.
Assim, até decisão definitiva, entende o tribunal que a criança AA se encontra em perigo, pois que indiciariamente se evidencia que a mesma vive num ambiente familiar desestruturado, ouvindo agressões verbais entre a mãe e a avó materna e ameaças de morte, para além de que, ainda não resulta claro dos autos se a dependência alcoólica da avó e a saúde mental da mãe – Psicose-Esquizofrénica tipo Paranoide, que importa confirmar, poderão fazer com que a criança esteja em perigo, importando, portanto, que para que se comprove ou infirme a existência de perigo para a criança, se obtenham tais relatórios.
Assim, cautelarmente, determina-se a aplicação de medida provisória à AA, de acompanhamento junto da mãe, nos termos do disposto no artigo 35.º, n. 1, al. a), da LPCJ, no sentido de que:
- A mãe deverá diligenciar por forma a que a avó não tenha acesso a bebidas alcoólicas em casa; que não haja discussões e agressões verbais e ameaças entre a mãe e a avó materna, pelo menos na presença ou quando a criança esteja em casa; abster-se de eventuais práticas de actos que possam ser conotados com rituais de feitiçaria ou bruxaria;
- Deverá a mãe submeter-se à constante medicação sobre a sua doença, obtendo mensalmente do seu médico de família informação médica que se encontra psiquicamente equilibrada e com cumprimento da medicação prescrita;
- A avó materna deverá abster-se de consumos de bebidas alcoólicas e abster-se também de discussões verbais com a filha CC, pelo menos quando a criança AA esteja em casa;
- A tia DD terá que diligenciar junto da mãe e avó da criança, para que as mesmas ponham termo a discussões verbais entre elas e, bem assim, a acompanhar a AA no período em que a mesma se encontre em casa, preocupando-se em afastar a criança das discussões entre a irmã e a mãe.
Esta medida provisória tem a duração de 3 meses.
(…) Após obtenção dos relatórios do GML da …, quanto à dependência da avó e à saúde mental da mãe da criança e respectivas implicações na vivência familiar desta, notifique o M.P., a progenitora, através da sua patrona e a criança através do patrono que lhe foi nomeado, para exercerem o contraditório e, oportunamente, se determinará o entendido e conveniente.”
Em 06/09/18, foi proferido novo despacho de onde, além do mais, consta:
“(…) Assim até que sejam obtidas informações clínicas da situação psiquiátrica da mãe da criança, e, bem assim, sobre a eventual dependência alcoólica da avó materna, ou até que seja decidido pelo Tribunal Superior que não pode ser exigido da mãe e da avó materna a avaliação pericial solicitada, entendemos que se mantêm os pressupostos para a aplicação da mesma medida cautelar de promoção e protecção em relação à criança AA, na medida em que, existindo os problemas de saúde da mãe que estão indiciados e referidos na decisão de 19/04/2018, bem como existindo os problemas de dependência alcoólica da avó materna, há perigo para a criança, não estando assegurados a sua protecção física e o seu bem-estar nos eu familiar, como é exigível.
Posto isto, face ao que se foi deixando referido nesta decisão e ao que já se deixou expresso na decisão de 19/04/2018, que aqui igualmente se deixa por reproduzido, decido manter (ou, caso se entenda que a primeira medida não pode ser prorrogada, se aplica de novo) a medida provisória/cautelar de promoção e protecção de apoio junto dos pais, no caso da mãe, nos termos do artigo 35.º, n.º 1, alínea a), 37.º, n.º 1 e 3, 38.º, 39.º, 62.º, n.º 1 e 3, alínea c), todos da LPCJP, com as exigências estabelecidas na decisão de 19/04/2018, que acima se referiram e aqui, novamente, se deixam como reproduzidas.”
Em 29/10/18, a progenitora CC apresentou requerimento, sustentando, além do mais, que a criança não se encontra em qualquer situação de perigo e que, não obstante isso e pese embora o teor do Relatório já junto aos autos e o facto de terem já decorrido mais de seis meses desde a data da sua aplicação, continua sujeita a uma medida cautelar.
Conclui requerendo que, por ter decorrido já o prazo legal e imperativamente fixado, se declare cessada a aludida medida aplicada à menor.
Seguiu-se despacho datado de 12/12/18, de onde, além do mais, consta:
“(…) Tal despacho não podia ter outra leitura que não fosse o de que a medida ir perdurar até que fossem obtidas informações clínicas da situação psiquiátrica da mãe da criança, e, bem assim, sobre a eventual dependência alcoólica da avó materna, ou até que fosse decidido pelo Tribunal Superior que não podia ser exigido da mãe e da avó materna a avaliação pericial solicitada.
(…) Acresce referir que a medida provisória aplicada ou mantida em 06/09/2018, apenas será de rever quando obtidas as informações clínicas da situação psiquiátrica da mãe da criança e, bem assim, sobre a eventual dependência alcoólica da avó materna, ou até que seja decidido pelo Tribunal Superior que não pode ser exigido da mãe ou da avó materna a avaliação pericial solicitada ou, na hipótese, que apenas admitimos por mera facilidade de exposição, ser considerado que a manutenção da medida seria apenas por 3 meses, tal revisão só ocorreria nesta altura (06/12/2018) e não na data do requerimento de 29/10/2018.
Assim sendo, indefere-se liminarmente a requerida revisão da medida e subsequente cessação, por desde logo, não se verificarem os pressupostos de revisão e cessação a que se refere o artigo 62.º, n.º 2 conjugado com o artigo 37.º, n.º 3, da LPCJP.”
Interposto recurso contra este despacho pela progenitora, o Tribunal da Relação do Porto proferiu acórdão que o julgou improcedente, mantendo a decisão impugnada.
Contra este aresto interpôs a progenitora o presente recurso, em primeira linha como revista normal e, em segunda linha, como revista excecional, tendo apresentado alegações onde formula as conclusões que passamos a transcrever:
1º Após a alteração legislativa introduzida pela Lei 142/2015, de 8 de Setembro, o artigo 37.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, com a epígrafe “Medidas Cautelares”, passou a dispor que “A título cautelar, o tribunal pode aplicar as medidas previstas nas alíneas a) a f) do n.º 1 do artigo 35.º, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 92.º, ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente” (n.º 1), sendo que “As medidas aplicadas nos termos dos números anteriores têm a duração máxima de seis meses e devem ser revistas no prazo máximo de três meses” (n.º3).
Sendo certo que,
2º Antes da referida alteração legislativa, o artigo 37.º, n.º 3, previa que “As medidas provisórias são aplicáveis nas situações de emergência ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente, não podendo a sua duração prolongar-se por mais de seis meses”.
Ora,
3º Quer as alterações legislativas introduzidas ao aludido artigo 37.º n.º 3, quer as introduzidas ao artigo 62., n.ºs 1 e 6 - ambas pela citada Lei 142/2015, de 8 de Setembro -, são de molde a concluir que o prazo de “seis meses”, previsto no aludido artigo 37.º, n.º 3, tem natureza imperativa, pelo que não mais poderá ser ultrapassado. E o certo é que,
4º Se até à alteração legislativa introduzida pela aludida Lei 142/2015, a Jurisprudência se dividia quanto à natureza do aludido prazo de “seis meses” existindo uma posição que, partilhando o entendimento do Acórdão recorrido, considerava que tal prazo “podia ser justificadamente ultrapassado em sede de decisão de revisão” - tal não é mais defensável face à citada alteração legislativa que, por acolher uma das soluções objecto da querela jurisprudencial, deverá ser considerada uma lei interpretativa.
E daí que,
5º Se tenha de concluir que, nos presentes autos, estamos perante uma situação claramente ilegal (e mesmo inconstitucional), porquanto a sua filha AA continua sujeita a uma medida cautelar “de promoção e proteção de apoio junto dos pais, no caso da mãe”, pese embora tenham já decorrido mais de seis meses desde a data da sua aplicação.
Pelo que,
6o Ao “julgar totalmente improcedente o recurso da Recorrente/progenitora”, violou o Acórdão recorrido o disposto nos artigos 36.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, 37.º e 62.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo.
Termos em que, deverá o presente recurso ser provido e, em consequência, ser revogado o Acórdão recorrido e substituído por outro que determine a cessação da medida cautelar aplicada à sua filha, AA, como é de DIREITO E JUSTIÇA.
Em contra-alegações que apresentou, o Exmo. Magistrado do M. P. pugna pela manutenção do decidido.
Da admissibilidade da revista normal:
A decisão recorrida foi proferida no âmbito de processo judicial de promoção e proteção que o art. 100º da Lei de proteção de crianças e jovens em perigo[1], doravante, L.P.C.J.P., qualifica como de jurisdição voluntária.
Assim, se fosse posta em causa a decisão, enquanto resolução efetivamente tomada segundo critérios de conveniência e oportunidade, o acesso a este Supremo estaria vedado, desde logo, pelo nº 2 do art. 988º do CPC.
Escreveu-se no acórdão deste STJ[2] de 25.05.2017:
“(…) importa ter em linha de conta que, em muitos casos, a impugnação por via recursória não se circunscreve aos juízos de oportunidade ou de conveniência adotados pelas instâncias, mas questiona a própria interpretação e aplicação dos critérios normativos em que se baliza tal decisão.
Assim, quando, no âmbito das próprias decisões proferidas em processos de jurisdição voluntária, estejam em causa a interpretação e aplicação de critérios de legalidade estrita, já a sua impugnação terá cabimento em sede de revista, circunscrita ao invocado erro de direito.”
Ora, a questão que é suscitada no presente recurso nada tem a ver com o acerto dos critérios dessa natureza usados pela Relação do Porto, discutindo a recorrente apenas a sua legalidade à luz do art. 37º da L.P.C.J.P.[3], norma que fixa em seis meses a duração máxima das medidas provisórias enunciadas no art. 35º do mesmo diploma, entre as quais, a de “apoio junto dos pais” – nº 1, alínea a) -, aplicada à criança AA.
Vindo assim invocado um erro de natureza estritamente jurídica – a recorrente diz ter sido violado o dito prazo a que atribui natureza imperativa -, este primeiro obstáculo mostra-se ultrapassado.
Mas, além disso, estamos perante acórdão que, por não ter conhecido do mérito da causa, está fora da alçada do nº 1 do art. 671º do CPC, melhor se enquadrando na previsão normativa do nº 2 do mesmo preceito, visto que apreciou decisão interlocutória proferida em 1ª instância, não podendo, por isso, ser objeto de revista, a não ser que se trate de caso em que o recurso é sempre admissível – alínea a) – ou esteja em contradição com outro acórdão já transitado em julgado pelo STJ, nas condições definidas na alínea b) do mesmo nº 2.
Como se sabe, o recurso é sempre admissível nos casos enunciados no nº 2 do art. 629º do mesmo diploma.
Neste campo, a recorrente invoca estarmos perante caso subsumível à previsão da alínea d) desta norma[4], por o acórdão impugnado estar em contradição com outro acórdão da Relação de Évora, já transitado em julgado, quanto à questão jurídica de saber se é imperativo ou meramente indicativo o prazo de seis meses, fixado no art. 37º para a duração da medida provisória.
Constata-se, de facto, a existência dessa contradição, já que o acórdão recorrido e o invocado como fundamento, enfrentando a questão jurídica de saber se é imperativo ou meramente indicativo aquele prazo, resolveram-na de modo diverso, atribuindo-lhe o primeiro natureza indicativa, enquanto o segundo o considerou de cariz imperativo, sendo ainda certo que essa diferente qualificação foi determinante para a solução do caso encontrada em cada um dos arestos.
Por outro lado, são motivos estanhos à alçada do tribunal que, em princípio, vedariam o acesso ao STJ, pelo que, nos termos das preditas disposições legais, se conclui pela admissibilidade da revista normal.
Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo questão única sujeita à nossa apreciação - visto o conteúdo das conclusões que, como é sabido, delimita o objecto do recurso – a de saber se é imperativo ou meramente indicativo o prazo indicado no art. 37º, nº 3.
II – Sobre esta temática, lê-se no bem elaborado acórdão impugnado:
“A Recorrente sustenta no presente recurso que não é mais defensável o entendimento da admissibilidade de sucessivas aplicações e/ou revisões de medidas cautelares, ultrapassando o prazo fixado no aludido artigo 37.º, n.º 3, com a justificação que o prazo apenas se inicia com a aplicação/revisão da última delas, uma vez que isso seria contornar o prazo imperativamente imposto no aludido artigo 37.º, n.º 3, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo.
Defende que, considerando a solução preconizada pela Lei 142/2015, de 08 de Setembro – concretamente a redacção introduzida no aludido artigo 37.º -, aos presentes autos há que forçosamente se concluir que estamos perante uma situação claramente ilegal (e mesmo inconstitucional), porquanto a sua filha AA continua sujeita a uma medida cautelar “de promoção e protecção de apoio junto dos pais, no caso da mãe”, pese embora tenha já decorrido mais de seis meses desde a data da sua aplicação.
Entendemos não lhe assistir razão, em face dos princípios orientadores da LPCJP e das finalidades da aplicação das medidas cautelares.
É incontestável que o n.º 3 do art.º 37.º da LPCJP dispõe que as medidas aplicadas têm a duração máxima de seis meses, devendo ainda ser revistas no prazo máximo de três meses.
O legislador, atendendo teleologicamente a que se deve garantir, de forma célere, uma situação de estabilidade para a criança, fixou este prazo como o suficiente e adequado para o Tribunal apurar o enquadramento sociocultural da mesma.
Tal como explica Tomé D’Almeida Ramião[5], há uma dualidade de interesses em presença, já que “(…) a definição do projecto de vida da criança ou jovem implica uma avaliação aprofundada da sua situação e meio familiar, decisão que importa ponderar, mas exige igualmente alguma celeridade, uma vez que o tempo útil da criança é diferente do tempo útil do adulto.”
Assim, o tribunal deve diligenciar no sentido de que a decisão definitiva seja tomada antes do decurso deste prazo de seis meses.
No entanto, a conjugação destes interesses terá que ser norteada à luz do “Interesse superior da criança e do jovem”, como se viu o princípio orientador central da intervenção para a promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo.
Como infelizmente é sabido, especialmente nas situações em que a aplicação da medida provisória é aplicada enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança, nem sempre é possível concluir os exames, inquirir as partes e/ou obter as informações necessárias no prazo de seis meses.
Nestes casos, a caducidade automática da medida implicaria um vazio de protecção, uma situação de desprotecção da criança indiciariamente em perigo, o que redundaria numa afronta directa ao princípio do superior interesse desta.
Deve, por inerência, entender-se que a cessação automática da medida cautelar aplicada não se coaduna com a natureza destes processos de promoção e protecção.
Assim, a medida cautelar, decorridos que sejam seis meses da sua aplicação, deve ser mantida, sempre que permaneça a indiciária situação de perigo que justificou a sua aplicação e não haja ainda condições objectivas para a prolacção de uma decisão definitiva, desde que o superior interesse da criança o justifique.
Tal como referem Helena Bolieiro e Paulo Guerra[6], “Com efeito, atendendo à natureza e finalidade da intervenção de protecção, bem como aos seus princípios orientadores, afigura-se-nos que nos casos em que a efectiva protecção da criança impõe a manutenção da medida provisória, sob pena de se voltar a coloca-la na situação de perigo que desencadeou o processo, a prorrogação da execução da medida deve ser admitida, proferindo-se para tanto despacho devidamente fundamentado.”
(…)
Ao contrário do defendido pela Recorrente, não consideramos que as alterações legislativas introduzidas pela Lei n.º 142/2015, de 08 de Setembro, tenham sido de molde a impedir a admissibilidade de sucessivas aplicações e/ou revisões de medidas cautelares, ultrapassando o prazo fixado no aludido artigo 37.º, n.º 3, da LPCJP.
Esta Lei limitou-se - neste particular - a restringir, quanto ao art.º 37.º da LPCJP, a aplicação das medidas cautelares às previstas no art.º 35.º, n.º 1, alíneas a) a f) e, quanto ao art.º 62.º da mesma Lei, a eliminar o anterior n.º 6, do seguinte teor “As medidas provisórias são obrigatoriamente revistas no prazo máximo de seis meses após a sua aplicação.”
A nosso ver, e não havendo interpretação autêntica a atender, esta eliminação do n.º 6 do art.º 62.º visou uma mera reorganização do dispositivo legal, eliminando do mesmo uma referência contraditória com a estatuição do art.º 37.º, que define o prazo de seis meses como aquele indicativo para a vigência do regime cautelar.
Isto é, nada trouxe de novo ao regime legal anteriormente existente.
Aliás, independentemente desta interpretação do diploma, não podemos esquecer que o processo judicial de promoção dos direitos e protecção de crianças e jovens em perigo é um processo de jurisdição voluntária, não estando o Tribunal sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar, em cada caso, a solução mais conveniente e oportuna, nos termos decorrentes do art.º 987.º do CP Civil (ex vi do art.º 100.º da LPCJP).
Finalmente, cumpre ainda atender a que, comparativamente com todas as demais previstas na lei, a suscitada questão da cessação automática das medidas de promoção e protecção sempre assumiria menos acuidade nas situações – como a presente – de aplicação de medida cautelar de apoio junto dos pais[7], por se tratar de uma medida de cariz essencialmente pedagógico e comunitário.
Tal como resulta do D.L. n.º 12/2008, de 17 de Janeiro, em regulamentação à LPCJP, o apoio psicopedagógico consiste numa intervenção de natureza psicológica e pedagógica (cf. art.º 11.º); o apoio social consiste numa intervenção com recurso aos apoios comunitários, concretizando-se na criação de condições para a prestação de cuidados adequados de alimentação, higiene, saúde, segurança, educação e bem-estar da criança (cf. art.º 12.º) e o apoio económico consiste na atribuição de uma prestação pecuniária para a manutenção da criança junto do agregado familiar com quem reside (cf. art.º 13.º).
Ou seja, a natureza desta medida cautelar, por não eliminar ou limitar o poder paternal e por não contender, de forma relevante, com as condições de vida da criança ou jovem, não reclama, de forma tão premente, uma decisão célere.
No caso dos autos, não foi ainda possível, até ao presente, obter para os autos os respectivos Relatórios Médico-Legais às pessoas da mãe e da avó da menor.
Mantêm-se os indícios de que a menor viva num ambiente familiar desestruturado e nenhum elemento probatório carreado para os autos nos permite equacionar que tal realidade se tenha alterado, designadamente nos termos agora alegados pela Recorrente.
Sendo estes exames, conjugados com os demais relatórios e elementos probatórios carreados para os autos, que permitirão ao Tribunal aferir da existência da indiciária situação de perigo, deve concluir-se – tal como fez o tribunal recorrido – que se mantêm os pressupostos para a manutenção da medida cautelar de promoção e protecção em relação à criança AA.
Em face desta situação de facto, à luz do enquadramento jurídico acima feito, é manifesta a improcedência do recurso.”
Contra isto a recorrente defende a imperatividade do prazo em causa, essencialmente fundada em que, havendo controvérsia jurisprudencial sobre a natureza do prazo de seis meses referido no art. 37º, a Lei nº 142/2015, de 8 de setembro, tem natureza interpretativa, uma vez que, ao alterar o art. 37º, criando os seus atuais nºs 1 e 3, e, bem assim, os nºs 1 e 6 do art. 62º, acolheu uma das soluções que constituíam o objeto da querela jurisprudencial; e segundo o que tais normas ora dispõem o prazo em causa tem natureza imperativa.
Não podemos, adianta-se já, acolher a sua tese.
Figurando a hipótese de uma lei a respeito da qual se suscitam dúvidas sobre se tem aplicação a certas entidades, Oliveira Ascensão[8] discorre do seguinte modo a respeito da génese da lei interpretativa e dos requisitos a que deve obedecer:
“Há opiniões em dois sentidos: há mesmo decisões judiciais contraditórias. Para evitar uma instabilidade que a todos prejudica e a diversidade de tratamento de casos semelhantes, surge uma nova lei que esclarece a anterior, declarando qual das interpretações é a verdadeira. Temos então uma lei interpretativa, realizando interpretação autêntica, vinculativa para todos.”
E prossegue, escrevendo, “Não basta ainda. Para termos interpretação autêntica é também necessário que a nova lei tenha por fim interpretar a lei antiga. Não basta pois que em relação a um ponto duvidoso surja uma lei posterior que consagre uma das interpretações possíveis para que se possa dizer que há interpretação autêntica: tal lei pode ser inovadora.
Como se sabe então que a lei é interpretativa?
1) Antes de mais por declaração expressa contida no texto do diploma.
2) Tem igualmente significado a afirmação expressa do carácter interpretativo constante do preâmbulo do diploma.(…)
3) Se a fonte expressamente nada determinar, o carácter interpretativo pode resultar ainda do texto, quando for flagrante a tácita referência da nova fonte a uma situação normativa duvidosa preexistente. (…)”
Na mesma linha afirma Baptista Machado[9] “(…) são de sua natureza interpretativas aquelas leis que, sobre pontos ou questões em que as regras jurídicas aplicáveis são incertas ou o seu sentido é controvertido, vem consagrar uma solução que os tribunais poderiam ter adoptado.”
E como pressupostos que cumulativamente se hão de verificar indica os seguintes: “que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei.” Não se verificando este último pressuposto, a lei será inovadora e já não interpretativa.
Tendo presentes estes ensinamentos doutrinários, vejamos o caso concreto, atentando, antes de mais, no conteúdo e sentido das alterações operadas pela lei em causa.
Sob a epígrafe “Medidas cautelares”, o art. 37º, na redação que lhe foi dada pela Lei nº 142/2015, de 8 de setembro, dispõe o seguinte:
“1. A título cautelar, o tribunal pode aplicar as medidas previstas nas alíneas a) a f) do n.º 1 do artigo 35.º, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 92.º, ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente.
2. As comissões podem aplicar as medidas previstas no número anterior enquanto procedem ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente, sem prejuízo da necessidade da celebração de um acordo de promoção e proteção segundo as regras gerais.
3. As medidas aplicadas nos termos dos números anteriores têm a duração máxima de seis meses e devem ser revistas no prazo máximo de três meses.”
Já na anterior versão, o art. 37º, com a epígrafe “Medidas provisórias” prescrevia:
“As medidas provisórias são aplicáveis nas situações de emergência ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente, não podendo a sua duração prolongar-se por mais de seis meses.”
O art. 62º, com a epígrafe “Revisão das medidas” nos números referidos pela recorrente, dispõe, por força das alterações introduzidas pela citada Lei, o seguinte: “1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 37.º, as medidas aplicadas são obrigatoriamente revistas findo o prazo fixado no acordo ou na decisão judicial, e, em qualquer caso, decorridos períodos nunca superiores a seis meses, inclusive as medidas de acolhimento residencial e enquanto a criança aí permaneça. (…) 6 - As decisões tomadas na revisão constituem parte integrante dos acordos de promoção e proteção ou da decisão judicial.” Na anterior redação, dispunha: “1. A medida aplicada é obrigatoriamente revista findo o prazo fixado no acordo ou na decisão judicial, e, em qualquer caso, decorridos períodos nunca superiores a seis meses. (…) 6. As medidas provisórias são obrigatoriamente revistas no prazo máximo de seis meses após a sua aplicação.” |
O confronto das redações sucessivas do art. 37º mostra que, no tocante à duração das medidas provisórias ou cautelares que nas situações aí definidas podem ser aplicadas às crianças e jovens em perigo, pese embora se tenham operado mudanças na expressão verbal usada, mantem-se inalterado o respetivo conteúdo substancial.
Com efeito, tanto na anterior versão da norma, como na atual, se fixa em seis meses o prazo de duração dessas medidas.
E sobre a natureza desse prazo que é, relembre-se, a questão que a recorrente traz nesta revista à nossa apreciação, as expressões sucessivamente usadas e que, de algum modo, podem concorrer para a aferição dessa natureza, são, em termos de significado, perfeitamente idênticas: antes, “não podendo a sua duração prolongar-se por mais de seis meses” e agora “duração máxima de seis meses”.
Também se não vislumbra, nem a recorrente explicitou, em que medida poderá contribuir para caraterizar a natureza imperativa ou meramente indicativa do prazo de duração das medidas, a nova redação do nº 1 do art. 62º que, tal como a anterior, fixa em 6 meses o prazo máximo da revisão das medidas, naturalmente ressalvando o regime já estabelecido no nº 3 do art. 37º onde se prevê um prazo de revisão mais curto.
E o nº 6 da norma – que constitui o seu anterior nº 5 -, é, pelo seu conteúdo, absolutamente alheio à natureza do prazo em questão.
Assim importa concluir que a nova lei, no que respeita à natureza do prazo de duração das medidas cautelares – 6 meses –, não introduziu qualquer alteração, pelo que, mesmo que antes se tivesse estabelecido querela jurisprudencial quanto a saber se o mesmo tinha natureza imperativa ou meramente indicativa, nunca a nova lei poderia constituir uma opção do legislador por uma das soluções plausíveis em termos de interpretação legislativa.
Ademais, na nova lei não se encontra qualquer declaração expressa no sentido de as alterações introduzidas na matéria em apreço terem natureza interpretativa e essa mesma natureza de modo algum resulta do seu conteúdo.
Diga-se, aliás, que a recorrente invoca a existência de controvérsia jurisprudencial sobre a questão antes das alterações introduzidas pela Lei nº 142/2015, mas em sentido contrário ao sufragado no acórdão recorrido - que foi igualmente acolhido em vários arestos das Relações anteriores à dita alteração legislativa -, aponta tão só o acórdão da Relação de Évora a que acima aludimos e que é invocado como acórdão fundamento para efeitos de admissibilidade da revista à luz do art. 629º, nº 2, d).
Por isso, não tem fundamento o entendimento da recorrente, segundo o qual teria natureza interpretativa a Lei nº 142/2015, de 8 de setembro, e definitivamente esclareceria que tem natureza imperativa aquele prazo, no sentido de, em caso algum, poder ser ultrapassado.
A ser admissível a interpretação, segundo a qual o prazo tem natureza imperativa, não podendo, em caso algum, ser ultrapassado, a mesma tanto poderá ter lugar em face da anterior como da atual redação, atenta a manifesta identidade substancial que existe entre elas.
Assim, carece de fundamento a tese da recorrente a este propósito.
Está-se inequivocamente perante a fixação de um limite temporal para a duração das medidas cautelares que, em vista da proteção do superior interesse da criança ou do jovem, tem subjacente a preocupação de alcançar com a maior brevidade possível uma solução que consagre em definitivo a medida mais adequada ao seu desenvolvimento equilibrado.
Procura-se celeridade na obtenção desse objetivo, mas esta não é um valor absoluto em si, em termos de poder sobrelevar, prejudicando, o superior interesse da criança, primeiro dos princípios orientadores da intervenção para promoção de direitos e proteção da criança e do jovem em perigo - art. 4º, alínea a).
Se a medida cautelar decretada visa superar, afastando, o perigo em que a criança se encontra, a cessação pura e simples da medida pelo decurso do prazo, sem que o tribunal tenha conseguido obter os elementos relativos à saúde e condições psicológicas dos familiares mais chegados da criança, tidos como indispensáveis para aferir a real situação desta, equivaleria a colocá-la, sem mais, na situação em que antes se encontrava e que foi considerada como indiciando perigo.
Ademais, está-se, como acima dissemos, em sede de processo de jurisdição voluntária em que as resoluções a tomar não estão sujeitas a regras de legalidade estrita, devendo prevalecer razões de oportunidade e conveniência que protejam o superior interesse da criança que, a entender-se de modo diverso do exposto, seria postergado.
Assim, é de afirmar que o prazo de 6 meses fixado no art. 37º, nº 2 para a duração das medidas provisórias é indicativo no sentido de que, sendo embora um objetivo de celeridade a alcançar, pode, em casos devidamente justificados, ser ultrapassado.
E fazendo nossa a bem elaborada e minuciosa fundamentação do acórdão impugnado, consideramos, tal como aí se entendeu, que o caso dos autos justifica, pelas razões aí abundantemente expostas e acima transcritas, que tal prazo tenha sido ultrapassado, não havendo motivo para declarar a cessação da medida cautelar.
Impõe-se, deste modo, a improcedência da revista.
IV – Pelo exposto, julga-se a revista improcedente, mantendo-se o acórdão impugnado.
Custas a cargo da recorrente.
Lisboa, 11.07.2019
Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho (Relatora)
Catarina Serra
Bernardo Domingos
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[1] Anexa à Lei nº 147/99, de 1 de setembro
[2] Relator Conselheiro Tomé Gomes, Proc. nº 945/15, acessível em www.jusnet.pt
[3] Diploma a que respeitam as normas de ora em diante referidas sem menção de diferente proveniência.
[4] Segundo o qual, “independentemente do valor da causa e da sucumbência é sempre admissível recurso: (…) d) Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.”
“[5] In Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo Anotada e Comentada, 2017, Quid Juris, pág. 87.”
“[6] In A Criança e a Família – uma questão de direito(s), 2014, Coimbra Editora, pág. 74.”
“[7] Assumindo particular relevância, por contraponto, nos casos de aplicação de medida de acolhimento familiar, por se tratar de uma medida particularmente invasiva dos direitos dos progenitores, retirando-lhes os poderes/deveres resultantes da regulação do poder paternal.”
[8] O Direito, Introdução e Teoria Geral, 13ª Edição Refundida, Almedina, pág. 561-562.
[9] Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1994, págs. 246-247