ABSOLVIÇÃO DO PEDIDO
EXCEPTIO NON ADIMPLETI CONTRACTUS
Sumário


Sumário (da relatora):

I – O pedido de apreciação, em sede de recurso, de uma questão que não foi invocada no tribunal ad quo e que, por isso, não foi apreciada na sentença recorrida configura questão nova. Não sendo tal questão de conhecimento oficioso, não pode o Tribunal superior proceder à sua apreciação.

II – A exceptio non adimpleti contractus é uma exceção dilatória de direito material cuja verificação tem como consequência a absolvição temporária do pedido, e não a condenação em simultâneo dos dois contraentes, uma vez que, nos termos do art. 621º, do CPC, não é admissível a condenação condicional.

III – A absolvição do pedido por via da verificação da exceptio non adimpleti contractus é temporária pois, tratando-se de uma exceção dilatória de direito material, a parte pode renovar o pedido quando o facto se pratique, ou seja, quando cumprir a prestação em falta que levou à operância da exceção.

Texto Integral


Acordam em conferência na 1ª seção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

(…), Lda. veio propor contra (…) ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, peticionando que a Ré seja condenada a pagar-lhe:

A. a quantia de € 7 028,55, a título de capital;
B. a quantia de € 792,60 a título de juros de mora vencidos, acrescidos de juros de mora vincendos, calculados à taxa comercial até efetivo e integral pagamento.

Alega, em síntese, que celebrou com a ré um contrato de empreitada para remodelação de um imóvel, a pedido da ré.
Concluídas as obras, foram emitidas as correspondentes faturas, no valor do capital peticionado, as quais até à data não foram pagas pela ré não obstante as mesmas já se encontrarem vencidas e a autora ter interpelado várias vezes a ré para realizar o cumprimento voluntário das mesmas.
*
Regularmente citada, contestou a Ré, alegando, em síntese, que a autora não concluiu as obras objeto do contrato de empreitada nos termos e prazos acordados pois a obra não ficou concluída no prazo convencionado e apresentava defeitos cuja reparação a ré exigiu à autora.
A ré não eliminou os defeitos pelo que a obra não foi concluída e a ré não a recebeu.
A ré informou a autora que só pagaria os valores em débito após a eliminação dos defeitos.
Assim, ao abrigo da exceção de não cumprimento do contrato, considera não ter que efetuar o pagamento das faturas e pugna pela improcedência da ação.

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Procedeu-se a julgamento e a final foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu a ré do pedido formulado pela autora.
*
A autora não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

I. Como resulta das alegações que se dão aqui por integralmente reproduzidas por economia processual, a recorrente entende que não pode operar a exceção de não cumprimento do contrato no caso sub judice.
II. Porquanto, salvo melhor opinião, considera a recorrente que ao abrigo do disposto no art. 1224º, nº 1, do CC, verifica-se a caducidade do direito da recorrida de: exigir a eliminação dos defeitos ou nova construção, nos termos do disposto no art. 1221º, do CC; de exigir a redução do preço e a resolução do contrato, nos termos do disposto no art. 1222º, do CC; e ainda de exigir indemnização nos termos do disposto no art. 1223º, do CC.
III. Nessa medida, não se aceita a verificação da exceção de não cumprimento atento a que a recorrente já não se encontra obrigada a cumprir para que se opere a exceção.
IV. É que a exceção de não cumprimento do contrato tem por função obstar temporariamente ao exercício da pretensão do contratante, consistindo numa recusa provisória de cumprir a sua obrigação por parte de quem alega, sem que acarrete a extinção do direito de crédito de que é titular o outro contraente.
V. Significa dizer que a comprovação da exceção implica, não a absolvição do pedido, mas a condenação em simultâneo, ou seja, a condenação da ré/recorrida a pagar à autora /recorrente a quantia dívida contra simultânea eliminação dos defeitos (existentes e subsistentes) por parte daquela.
VI. De modo que não se compreende a decisão recorrida, porquanto o tribunal a quo procedeu à absolvição da ré/recorrida do pedido – isto é extinguiu, sem mais, o direito de crédito da autora recorrente.
VII. Mais! Não se compreende como é que o tribunal a quo dá como facto provado (18) “a correção/execução dos trabalhos elencados em 9. ascende à quantia de € 2 542,83” (valor com o qual não concordamos como se verá adiante) e absolve a ré/recorrida na totalidade do pedido.
VIII. Aliás, quer-nos parecer que ainda que o tribunal a quo tivesse proferido decisão condenando a ré no pagamento dos € 7 028,66 (capital integral) contra a eliminação dos defeitos pela autora, tal consubstanciaria abuso de direito, porquanto não estariam a ser observados o princípio da proporcionalidade e da boa-fé.
IX. Além do mais, somos da opinião que através de toda a prova acima elencada a recorrente logrou afastar a presunção de culpa no que foi alegado pela recorrida para fundamentar a exceção de não cumprimento do contrato, todavia, tal não foi analisado pelo tribunal a quo.
X. Pelo que importa a reanálise.
XI. Sucede que existiram vários trabalhos a mais solicitados pela recorrida à recorrente, conforme resulta provado através dos autos de medição juntos às faturas peticionadas na p.i., de todos os e-mails juntos pela recorrente em sede de audiência de julgamento (e-mails trocados com o Eng. L. B. com os autos de trabalho a mais e a menos, e-mails trocados entre a recorrente e a recorrida já representada pela nova mesa administrativa, datados de janeiro de 2017).
XII. Além disso, também não foi realizado aditamento ao contrato de empreitada no que se refere a alargamento do prazo inicialmente acordado, quando se verificaram atrasos imputáveis à recorrida.
XIII. Ficou provado nos autos, através dos e-mails tocados entre a recorrente e o Eng. L. B. e a prova testemunhal acima transcrita, pelo menos, os seguintes atrasos imputáveis à recorrida: falta de licença da obra, para que os veículos da recorrente pudessem entrar e estacionar diretamente no local da obra; atraso e troca de picheleiro contratado diretamente pela recorrida e adjudicação da cozinha.
XIV. Ou seja, pelas contas efetuadas por alto pelas testemunhas, em sede de audiência de discussão e julgamento, e pelo hiato de tempo que se verifica nos e-mails juntos aos autos a insistir com a recorrida para a resolução da questão do seu picheleiro, seguramente falamos de um atraso imputável à recorrida de pelo menos quatro meses.
XV. Sublinhe-se, período de atrasos da obra imputáveis exclusivamente à recorrida.
XVI. Todavia, a esse período temos de somar o período necessário para efetuar os trabalhos a mais que foram surgindo ao longo do contrato de empreitada.
XVII. Razão pela qual, em respeito pelos princípios da boa-fé e da confiança, salvo melhor opinião, não é permitido à recorrida invocar o não cumprimento do prazo previsto no contrato de empreitada porquanto contribuiu (em grande medida) para o mesmo.
XVIII. Omitiu-se ainda o tribunal a quo analisar a questão da fiscalização.
XIX. Isto é, por regra, o dono da obra contrata alguém independente como fiscal da obra, nos termos do disposto no art. 1209º, do CC, para acompanhar o cumprimento do contrato de empreitada.
XX. Ora, no caso concreto, foi nomeado pelo dono da obra/recorrida o Sr. Arq. D. C., na qualidade de arquiteto encarregado da obra e, ainda, na qualidade de fiscal da obra.
XXI. Portanto, todas as alterações além de autorizadas pelo Eng. L. B., na qualidade de representante do dono da obra/recorrida, todas as alterações aos trabalhos inicialmente previstos foram de contínuo fiscalizadas e aceites pelo fiscal da obra nomeado pela dona da obra/recorrida e em sua representação, o Sr. Arq. D. C..
XXII. Pelo que, novamente, a invocação deste fundamento pela recorrida consubstancia abuso de direito.

Por fim,
XXIII. Não concorda a recorrente com matéria de facto dada como provada pelo tribunal a quo nos pontos 6, 7, 8, 9, 10, 13, 14, 16, 17 e 18.
XXIV. Porquanto, na nossa humilde opinião, a mesma não tem correspondência com as provas careadas aos autos.
XXV. As mesmas só podem resultar da errada valoração dos meios de prova pelo julgador, daí solicitarmos a reapreciação das mesmas por tribunal superior.
XXVI. Acresce que, salvo o devido respeito que é muito, não cremos que o tribunal a quo tenha valorado devidamente as declarações das partes, nomeadamente, no tocante às confissões.
XXVII. Pois, caso o tivesse feito seria impossível que da lista da matéria de facto dada como provada na decisão recorrida constassem os atuais pontos 6, 7, 8, 9, 10, 13, 14, 16, 17.
XXVIII. Dispõe o art. 466º, do CPC, intitulado de declarações de parte que “o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão (sublinhado nosso).
XXIX. Acrescenta o nº 1 do art. 465º, do CPC, que “a confissão é irretratável”.
XXX. Ora, os Srs. R. A. e F. R. – são membros (mesários) da Mesa Administrativa da recorrida, isto é, membros dos órgãos sociais da recorrida.
XXXI. Motivo pelo qual foi peticionado que as mesmas prestassem as suas declarações na qualidade de parte, nos termos do art. 466º do CPC, o que foi deferido pelo tribunal a quo.
XXXII. Todavia, o tribunal a quo não deu como facto provado as suas confissões.
XXXIII. Razão pela qual, pelos motivos constantes e provas elencadas no capítulo C, que se dá aqui por integralmente reproduzido, se requer a reapreciação da prova identificada por este Tribunal.
XXXIV. Porquanto, a alteração de determinados factos dados como provados, designadamente os pontos 6, 7, 8, 9, 10, 14 e 17, levam à evidente exclusão da culpa do empreiteiro/recorrente.
XXXV. O que tem relevância em sede análise da aplicabilidade da exceção de não cumprimento no caso concreto.
***
A ré contra-alegou, pugnando pela manutenção da sentença, dizendo, quanto às conclusões:

I. Há um elenco vasto de “conclusões” que são meramente descritivas, não contendo qualquer juízo de valoração.
II. O Tribunal a quo, no ponto relativo aos factos provados enumera e concretiza os elementos de prova trazidos aos autos e teve-os por suficientes para concluir que é operante a exceção de incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato de empreitada em crise nestes autos.
III. A autora/recorrente sabia que a obra não tinha sido concluída e que enfermava de um conjunto de defeitos que não corrigiu.
IV. Há efetivo incumprimento do contrato por parte da autora/recorrente.
V. Pode a ré/recorrida invocar, em sede de defesa, como invoca, a exceção, por não ser aplicável o regime da caducidade a que se refere o artigo 1124º do Código Civil.
VI. Não pode a autora/recorrente pretender que o Tribunal decida de modo contrário à prova produzida em sede de julgamento, designadamente, quanto aos documentos, depoimentos e perícia realizada.
VII. A Douta Sentença não viola qualquer princípio da confiança, boa fé ou proporcionalidade.
VIII. Pelo que os argumentos invocados pela autora/recorrente, além de destituídos de qualquer suporte legal, não podem ser aceites para a finalidade aqui alegada.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo.
*
Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes:

I. Saber se a matéria de facto dada como provada na 1ª instância deve ser alterada;
II. Saber se não se verifica a exceção de não cumprimento do contrato por caducidade dos direitos da recorrida de exigir a eliminação dos defeitos, nova construção, redução do preço ou indemnização;
III. Concluindo-se pela existência de tal exceção, apurar se existe abuso de direito por o comportamento da ré ter contribuído para a ocorrência do incumprimento do contrato.
IV – Concluindo-se pela operância da exceção de não cumprimento, saber se a mesma tem como consequência a absolvição do pedido ou a condenação em simultâneo.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos:

1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à indústria de construção civil e obras públicas, compra e venda de imóveis e comércio a retalho de materiais de construção, atividades de engenharia e técnicas afins.
2. No exercício da sua atividade comercial, a Autora celebrou com o Réu, em 28 de maio de 2015, um contrato de empreitada para remodelação e requalificação da fração do R/C do imóvel sito na Rua … em Viana do Castelo, correspondente ao processo n.º 037A15, a pedido e no interesse do Réu, pelo preço total de €23.425,71, no prazo de 90 dias, iniciando-se a 02 de Novembro de 2015 e terminando a 31 de Janeiro de 2016 – cfr. documento de fls. 32-33, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
3. A autora elaborou os seguintes autos de medição: auto de medição nº 6 (fls. 6-8 e 14); autos de medição nºs 1 e 2 de 31/10 (fls. 10, 12, 13, 15, 16, 17).
4. Bem como, emitiu e enviou à Ré as seguintes faturas:
a) FACT SEC 1/645, com data de emissão de 30.11.2016 e data de vencimento a 30.12.2016, no valor de € 2.761,48 (dois mil setecentos e sessenta e um euros e quarenta e oito cêntimos);
b) FACT SEC 1/646, com data de emissão de 30.11.2016 e data de vencimento a 30.12.2016, no valor de € 2.511,00 (dois mil quinhentos e onze euros).
c) FACT SEC 1/647, com data de emissão de 30.11.2016 e data de vencimento a 30.12.2016, no valor de € 1.756,18 (mil setecentos e cinquenta e seis euros e dezoito cêntimos)
5. A autora foi declarada insolvente por sentença de 22 de agosto de 2018, no processo 2602/18.0T8VCT, do juiz 4, do juízo local cível de Viana do Castelo.
6. A autora obrigou-se a executar todos os trabalhos previstos na proposta que apresentou à ré em 20 de julho de 2015, com os materiais, quantidades e de acordo com o projeto e caderno de encargos que foi apresentado à autora – cfr. documento de fls. 25-31, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
7. No dia 11 de janeiro de 2017, em reunião que se realizou no local da obra, a ré identificou os defeitos da obra infra identificados em 9. e exigiu a reparação pela autora.
8. A autora, contudo, nada fez.
9. A obra apresenta, atualmente:
- não colocação de pavimento flutuante de tipo “wincanders corkconfort original character 90.5x29.5x1.5”;
- não colocação de lajetas de betão branco de 60x40 cm, na área de 3,87m2;
- não colocação de revestimento vegetal sobre base preparada;
- irregularidades e pinturas mal executadas na paredes e revestimentos, com escorrências;
- irregularidades na junção das paredes com o pavimento, com visualização de fendas;
- falta de fornecimento e colocação de calhas nos tetos para colocação posterior de cortinas tipo blackout;
- no tampo do móvel de cozinha não foi colocada pedra de granito da região.
10. A ré, no dia 7 de Março de 2017, requereu a notificação judicial avulsa para que a autora procedesse à eliminação dos defeitos e à execução dos trabalhos em falta na empreitada no prazo máximo de trinta dias sob pena de exigir a redução do preço e indemnização por perdas e danos.
11. Esta notificação foi entregue ao sócio-gerente da autora, J. C..
12. A obra não foi concluída pela Autora na data prevista no contrato (31.01.2016), nem foi recebida pela ré.
13. A ré informou a autora que só pagaria os valores em débito após a eliminação dos alegados defeitos.
14. Até esta data não corrigiu os vícios e defeitos da obra.
15. A ré é instituição particular de solidariedade social detentora de património que rentabiliza com a finalidade de obtenção de receitas para as suas inúmeras actividades assistenciais.
16. A fração autónoma objeto do contrato de empreitada destinava-se a ser colocada em regime de prestação de serviços de alojamento local, dada a sua localização privilegiada na cidade de Viana do Castelo.
17. Fruto da conduta da autora, que não corrigiu os defeitos nem concluiu a obra, a ré não pode inscrever e colocar a fração para ser utilizada pelos utentes.
18. A correção/execução dos trabalhos elencados em 9. ascende à quantia de €2.542,83.

FUNDAMENTOS DE DIREITO

Cumpre apreciar e decidir.

I – Alteração da matéria de facto

Dispõe o artigo 662.º n.º 1 do C.P.C. que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A norma em questão alude a meios de prova que imponham decisão diversa da impugnada e não a meios de prova que permitam, admitam ou apenas consintam decisão diversa da impugnada.

Por seu turno, o art.º 640.º do C.P.C. que tem como epígrafe o “ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, dispõe que:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

Como se escreveu no Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 19.6.2019 (in www.dgsi.pt):

Importa referir que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade do julgador ou da prova livre, consagrado no n.º 5 do artigo 607º do CPC (…), segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que tenha formado acerca de cada um dos factos controvertidos, salvo se a lei exigir para a prova de determinado facto formalidade especial, ou aqueles só possam ser provados por documento, ou estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes.

Sobre a reapreciação da prova impõe-se assim toda a cautela para não desvirtuar, designadamente o princípio referente à liberdade do julgador na apreciação da prova, bem como o princípio de imediação que não podem ser esquecidos no convencimento da veracidade ou probabilidade dos factos. Não está em causa proceder-se a novo julgamento, mas apenas examinar a decisão da primeira instância e respetivos fundamentos, analisar as provas gravadas, se for o caso, e procedendo ao confronto do resultado desta análise com aquela decisão e fundamentos, a fim de averiguar se o veredicto alcançado pelo tribunal recorrido quanto aos concretos pontos impugnados assentou num erro de apreciação.

Em suma, a alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação tem de ser realizada ponderadamente, em casos excecionais, pontuais e só deverá ocorrer se, do confronto dos meios de prova indicados pelo recorrente com a globalidade dos elementos que integram os autos, se concluir que tais elementos probatórios, evidenciando a existência de erro de julgamento, sustentam, em concreto e de modo inequívoco, o sentido pretendido pelo recorrente. Tal sucede quando a convicção do tribunal de 1.ª instância assentou em erro tão flagrante que o mero exame das provas gravadas revela que a decisão não pode subsistir.

Tendo por base estes critérios, analisemos então se a matéria de facto deve ser alterada nos termos pretendidos pela recorrente, a qual cumpriu corretamente o ónus de impugnação.
***
O tribunal ouviu integralmente todos os depoimentos e declarações de parte prestados no julgamento, e não apenas as partes invocadas pela autora nas suas alegações, pelo que será com base nesse conjunto de declarações que será apreciada a pretendida alteração da matéria de facto.
*
A autora pretende que o facto nº 6 passe a ter a seguinte redação:

A autora obrigou-se a executar todos os trabalhos previstos na proposta que apresentou à ré em 20 de julho de 2015, com os materiais, quantidades e de acordo com o projeto e caderno de encargos que foi apresentado à autora – cfr. documento de fls. 25-31, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, bem como, a proceder a todas as alterações aos trabalhos, trabalhos a mais e trabalhos a menos exigidas pelo dono da obra no decorrer da empreitada.

O facto nº 6 tem a seguinte redação:

A autora obrigou-se a executar todos os trabalhos previstos na proposta que apresentou à ré em 20 de julho de 2015, com os materiais, quantidades e de acordo com o projeto e caderno de encargos que foi apresentado à autora – cfr. documento de fls. 25-31, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

Assim, pretende a autora que seja aditado que:

...bem como, a proceder a todas as alterações aos trabalhos, trabalhos a mais e trabalhos a menos exigidas pelo dono da obra no decorrer da empreitada.

Efetivamente, resulta dos depoimentos prestados que, depois de adjudicada a obra, houve alterações ao estabelecido no caderno de encargos, tendo sido acordado quer a realização de trabalhos adicionais, quer a não realização de alguns trabalhos. Tal resulta, designadamente, dos depoimentos de C. C., que exercia, na prática, as funções de diretor técnico da obra, L. B., o qual no início da obra exercia na ré as funções de coadjutor, tendo passado posteriormente a ser mesário, e de J. C., representante da autora.
Tendo em conta que estas alterações ocorreram após a adjudicação a obra, entende-se que deve ser mantido o facto nº 6 e que deve ser aditado o facto 6.A com a seguinte redação:
6.A – Após a adjudicação da empreitada referida em 6., autora e ré acordaram em alterações aos trabalhos, havendo quer trabalhos a mais quer trabalhos a menos.
*
A autora considera que os pontos 7 e 8 da matéria de facto dada como provada na decisão recorrida devem ser considerados factos não provados.

Os factos 7 e 8 têm a seguinte redação:

7. No dia 11 de janeiro de 2017, em reunião que se realizou no local da obra, a ré identificou os defeitos da obra infra identificados em 9. e exigiu a reparação pela autora.
8. A autora, contudo, nada fez.

A testemunha R. A., mesário da Santa Casa, confirmou que esteve presente na reunião de 11.1.2017 e que reclamou das situações referidas em 9. A testemunha F. R., também mesário da Santa Casa, confirmou a mesma situação em moldes idênticos ao da anterior testemunha.
Por isso, tem que ser dado como provado que as situações referidas em 9. foram alvo de reclamação por parte da ré. Todavia, essas situações não podem ser todas classificadas como defeitos pois algumas delas decorrem de ter sido acordado entre a ré e a autora a realização de trabalhos a menos. Com efeito, a testemunha L. B., membro da anterior direção, esclareceu que, para haver uma redução de custos, pois a obra já estava a alcançar valores elevados, acordou com a ré não realizar alguns trabalhos e usar materiais de preço inferior. Designadamente, acordaram em não usar o pavimento flutuante de tipo wincanders corkconfort, não colocarem calhas nos tetos para colocação posterior de cortinas tipo blackout e não colocarem pedra de granito da região no tampo da cozinha.
A testemunha R. A. declarou que efetivamente reclamou de todas as situações referidas em 9. Porém, a testemunha não sabia das alterações acordadas entre L. B., enquanto representante da ré, e a autora porque houve uma mudança na direção da ré. A testemunha R. A., só tem conhecimento do que consta dos documentos e as alterações referentes a trabalhos a menos foram feitas verbalmente e nunca foi corrigido o caderno de encargos inicial. Daí a testemunha reclamar relativamente a trabalhos que não estavam feitos, por assim ter sido acordado, mas que continuavam a constar do caderno de encargos, único elemento pelo qual a testemunha se guiava visto desconhecer o acordado anteriormente com a autora.
Quer esta testemunha quer o senhor perito confirmaram que as situações descritas em 9. se verificam ainda hoje.
Assim, considera-se que os factos 7 e 8 são de manter, devendo, porém, substituir-se a expressão “defeitos” por “situações”.
Assim, altera-se a redação do facto nº 7 nos seguintes termos:

7. No dia 11 de janeiro de 2017, em reunião que se realizou no local da obra, a ré identificou as situações da obra infra identificadas em 9. e exigiu a reparação pela autora.
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A autora pretende que seja dado como provado que a ré, na reunião datada de 11.01.2017, pelo menos denunciou defeitos relacionados com pinturas, falta de espelho, falta de tampo de granito e parafusos a atravessar as dobradiças nos armários e a falta de rodapé, os quais foram corrigidos pela Autora.
Parte destes factos já resultam provados da conjugação dos factos 7 e 9. No mais não se pode considerar que as situações tenham sido eliminadas pela autora porque o perito confirmou a sua existência, a testemunha F. R. afirmou que foi ao imóvel há dois meses e tudo se encontrava na mesma e a testemunha R. A. também confirmou que não houve correção.
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A autora requer que a classificação da “- não colocação de pavimento flutuante de tipo “wincanders corkconfort original character 90.5x29.5x1.5” seja considerado facto não provado.
Tal não é possível pois resulta à saciedade de todos os elementos constantes dos autos, designadamente depoimentos e relatório pericial que este tipo de piso não foi colocado.
Todavia, a não colocação não pode ser qualificada como um defeito ou um trabalho em falta porque, como já acima referido, foi acordado entre as partes a colocação de piso de qualidade inferior, para efeitos de redução de custos.
Esta circunstância será adiante tida em consideração para efeitos de alteração da matéria de facto.
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Como referido, resulta claramente dos depoimentos das testemunhas que depuseram sobre esta matéria e a que já cima se fez alusão que, do conjunto de situações elencadas em 9, nem todas são defeitos. Algumas delas resultaram de instruções dadas por L. B. à autora, o qual atuava junto desta como representante da ré, no sentido de alguns trabalhos não serem feitos ou serem realizados com recurso a materiais de custo inferior para que a obra saísse mais barata.

Assim, adita-se à matéria de facto provada o facto nº 9.A com a seguinte redação:

9.A - A ré, para efeitos de diminuição dos custos da obra, acordou verbalmente com a autora, após a adjudicação da mesma, a não colocação de pavimento flutuante de tipo “wincanders corkconfort original character 90.5x29.5x1.5” e colocação de pavimento de custo inferior, o não fornecimento e colocação de calhas nos tetos para colocação posterior de cortinas tipo blackout e a não colocação de pedra de granito da região no tampo do móvel de cozinha.
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A autora requer que seja considerado facto provado que a dona da obra/Ré ordenou ao empreiteiro/Autora a alteração do tipo de pavimento para o que atualmente se encontra na obra.
E que seja considerado facto provado que o preço do pavimento flutuante efetivamente aplicado é de € 10,00, acrescido do custo de mão de obra e algum lucro, no valor de € 8,90, perfaz os € 18,90 por m2.

Nessa senda, requer que seja dado como matéria de facto provada e se converta também em dispositivo que: o valor de € 707,05 (setecentos e sete euros e cinco cêntimos) devido pela Recorrida à Recorrente, conforme auto de medição n.º 6 da proposta 037A15 e da fatura SEC 1/645, acrescido de juros vencidos e vincendos.
A 1ª parte desta matéria está prejudicada face ao aditamento do facto 9.A, a 2ª parte é matéria não diretamente relevante para o objeto dos autos e a 3ª parte é matéria conclusiva e de direito.
*
A autora requer que a classificação da “não colocação de lajetas de betão branco de 60x40 cm, na área de 3,87m2” e “não colocação de revestimento vegetal sobre base preparada” seja considerada como facto não provado. Nessa senda, requer que seja dado como matéria de facto provada e se converta também em dispositivo que: o valor de € 81,19 (oitenta e um euro e dezanove cêntimos) e o valor de € 25,38 (vinte e cinco euros e trinta e oito cêntimos) devido pela Recorrida à Recorrente, conforme auto de medição n.º 6 da proposta 037A15 e da fatura SEC 1/645, acrescidos de juros vencidos e vincendos.
Não resulta dos documentos juntos aos autos nem dos depoimentos das testemunhas que a não colocação de lajetas e de revestimento vegetal se integre nos “trabalhos a menos” determinados pela ré para controle de custos, através de L. B.. Assim, este facto não pode ser dado como não provado pois resulta do relatório pericial que o mesmo se verifica.
Quanto ao que a autora quer que se adite, tal não é possível visto integrar matéria conclusiva e de direito.
*
A autora requer que a classificação da falta de “tampo do móvel de cozinha não foi colocada pedra de granito da região” como um defeito de obra na matéria de facto provada seja considerado como facto não provado.
Além disso, requer que passe a constar da matéria de facto provada que: a Recorrente realizou o tampo do armário da cozinha em cerâmica Cinca, como ordenado pelo dono de obra, e na mesma rúbrica, forrou também a parede entre os móveis superior e inferior da cozinha, com uma medida de 2,50 x 0,60, com a mesma cerâmica Cinca e, ainda, deixou em obra um pio de aço inox para a banca da cozinha, com preço equivalente.
Nessa senda, requer que seja dado como matéria de facto provada e se converta também em dispositivo que: o valor de € 318,00 (trezentos e dezoito euros) devido pela Recorrida à Recorrente, conforme auto de medição n.º 1 da proposta 037A15_007 e da fatura SEC 1/646, acrescido de juros vencidos e vincendos.
A 1ª parte desta matéria está prejudicada face ao aditamento do facto 9.A, a 2ª parte é matéria não diretamente relevante para o objeto dos autos e a 3ª parte é matéria de conclusiva e de direito.
*
A autora requer a alteração da matéria de facto dada como provada, no sentido de ficar provado o facto de que: a alegada irregularidade na junção das paredes com o pavimento, com visualização de fendas não se trata de um defeito na execução dos trabalhos pela Recorrente, antes sim do cumprimento escrupuloso da solução preconizada pelo dono da obra, pelo que não é imputável à Recorrente.
Nessa senda, considera que deverá o conteúdo do parágrafo 5.º do ponto 9 da matéria de facto dada como provada ser considerado facto não provado.

Não resulta dos documentos juntos aos autos nem dos depoimentos das testemunhas que a irregularidade na junção das paredes com o pavimento, com visualização de fendas, se integre nos “trabalhos a menos” determinados pela ré para controle de custos, através de L. B.. Assim, este facto não pode ser dado como não provado pois resulta do relatório pericial que o mesmo se verifica.
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A autora requer a alteração da matéria de facto dada como provada, no sentido de ficar provado o facto de que: a falta das calhas metálicas para a colocação de blackouts não se trata de um defeito na execução dos trabalhos pela Recorrente, antes sim do cumprimento escrupuloso das alterações pelo dono da obra, pelo que não é imputável à Recorrente. Nessa senda, deverá o conteúdo do parágrafo 6.º do ponto 9 da matéria de facto dada como provada ser considerado facto não provado.
Esta matéria está prejudicada face ao aditamento do facto 9.A.
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A autora requer que o facto nº 13 facto seja considerado como facto não provado. Nessa senda, requer seja a Recorrida condenada a pagar à Recorrente o valor correspondente a € 104,31 (cento e quatro euros e trinta e um cêntimos), acrescido de juros vencidos e vincendos, conforme auto n.º 1 da proposta 037A15_005 e fatura SEC 1/647.

O facto nº 13 tem a seguinte redação:

13. A ré informou a autora que só pagaria os valores em débito após a eliminação dos alegados defeitos.

Diz a autora que não existe qualquer prova de tal facto. Porém, assim não é, pois a testemunha R. A. confirmou este facto tendo até esclarecido que o motivo que levou ao não pagamento nem foi tanto o não haver documentos sobre trabalhos a mais ou a menos mas sim a existência de defeitos que a obra apresentava e que referiu (depoimento prestado na sessão de 19.11.2018).
Assim, este facto não pode ser considerado como não provado, devendo antes manter-se.
Quanto à 2ª parte da pretensão da autora, a matéria em questão é conclusiva e de direito não podendo integrar os factos.
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A autora requer que os pontos 16 e 17 sejam dados como factos não provados.

Os factos nºs 16 e 17 têm a seguinte redação:

16. A fração autónoma objeto do contrato de empreitada destinava-se a ser colocada em regime de prestação de serviços de alojamento local, dada a sua localização privilegiada na cidade de Viana do Castelo.
17. Fruto da conduta da autora, que não corrigiu os defeitos nem concluiu a obra, a ré não pode inscrever e colocar a fração para ser utilizada pelos utentes.

Todas as testemunhas que depuseram sobre estes factos confirmaram a sua veracidade.
O depoimento de R. A. que a autora invoca para dar este facto como não provado, não tem essa virtualidade. A testemunha referiu efetivamente que teve autorização da Sr.ª Provedora para mandar concluir a obra e reparar os defeitos e que não o fez porque sabia que ia haver julgamento e podia ser necessário verificar o estado da obra.
Tratou-se de uma atitude correta e prudente pois, efetivamente, no decurso do julgamento foi necessário efetuar uma perícia à obra que seria mais difícil e provavelmente menos exata se fosse realizada com base em fotografias.
Do facto de a ré ter decidido não corrigir os defeitos a expensas suas nunca pode decorrer como não provado o facto 17. Foi efetivamente a atuação da autora que impediu a colocação da fração no mercado. É verdade que se a ré tivesse intervindo poderia ter colocado o imóvel no mercado, mas não tinha que o fazer a expensas suas, tinha um motivo justificado para não o fazer e não faz qualquer sentido tentar imputar à ré um facto que é da exclusiva responsabilidade da autora. A causa imediata e direta da não colocação do imóvel no mercado foi a conduta da autora de não correção dos vícios e não conclusão da obra.
Assim, os factos 16 e 17 não devem ser dados como não provados.
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O facto nº 18 baseia-se no pressuposto de que todos as situações elencadas em 9 são defeitos, sendo o valor de € 2.542,83 resultante da soma dos vários trabalhos necessários para eliminar os defeitos, referidos no relatório pericial junto aos autos.
Uma vez que se alterou a matéria de facto, com aditamento do facto 9.A, do qual decorre que algumas das situações referidas em 9 não são defeitos ou trabalhos em falta, mas sim situações decorrentes de ordens da ré no sentido de haver uma redução de custos, não realizando certos trabalhos ou efetuando-os com materiais de preço inferior, é necessário alterar o facto 18, descriminando os valores individuais de cada trabalho, em conformidade com o que consta do relatório pericial junto aos autos.

Assim, altera-se a redação do facto 18, nos seguintes termos:

18. A correção/execução dos trabalhos elencados em 9. implica:
- um custo de € 1 436,54 para corrigir a não colocação de pavimento flutuante de tipo “wincanders corkconfort original character 90.5x29.5x1.5” (onde se inclui a quantia de € 74,82 referente ao custo da remoção do pavimento existente);
- um custo de € 61,16 para corrigir a não colocação de lajetas de betão branco de 60x40 cm, na área de 3,87m2 (onde se inclui a quantia de € 15 referente ao custo da remoção das lajetas existentes);
- um custo de € 125,38 para corrigir a não colocação de revestimento vegetal sobre base preparada (onde se inclui a quantia de € 100 referente ao custo da remoção da betonilha e rebaixamento do piso);
- um custo de € 526 para corrigir as irregularidades e pinturas mal executadas na paredes e revestimentos, com escorrências;
- aquisição e aplicação de rodapé para corrigir as irregularidades na junção das paredes com o pavimento, com visualização de fendas, de valor não apurado;
- um custo de valor não apurado para corrigir a falta de fornecimento e colocação de calhas nos tetos para colocação posterior de cortinas tipo blackout;
- e um custo de € 318,75 para corrigir a não colocação de pedra de granito da região no tampo do móvel de cozinha (onde se inclui a quantia de € 50 para remoção do tampo existente e execução e remates).
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Face ao que se acaba de decidir, a matéria de facto a considerar para a decisão do recurso é a que a seguir se transcreve na íntegra, com inclusão dos factos aditados e alterados, para uma mais fácil compreensão:

1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à indústria de construção civil e obras públicas, compra e venda de imóveis e comércio a retalho de materiais de construção, atividades de engenharia e técnicas afins.
2. No exercício da sua atividade comercial, a Autora celebrou com o Réu, em 28 de maio de 2015, um contrato de empreitada para remodelação e requalificação da fração do R/C do imóvel sito na Rua … em Viana do Castelo, correspondente ao processo n.º 037A15, a pedido e no interesse do Réu, pelo preço total de €23.425,71, no prazo de 90 dias, iniciando-se a 02 de Novembro de 2015 e terminando a 31 de Janeiro de 2016 – cfr. documento de fls. 32-33, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
3. A autora elaborou os seguintes autos de medição: auto de medição nº 6 (fls. 6-8 e 14); autos de medição nºs 1 e 2 de 31/10 (fls. 10, 12, 13, 15, 16, 17).
4. Bem como, emitiu e enviou à Ré as seguintes faturas:
a) FACT SEC 1/645, com data de emissão de 30.11.2016 e data de vencimento a 30.12.2016, no valor de € 2.761,48 (dois mil setecentos e sessenta e um euros e quarenta e oito cêntimos);
b) FACT SEC 1/646, com data de emissão de 30.11.2016 e data de vencimento a 30.12.2016, no valor de € 2.511,00 (dois mil quinhentos e onze euros).
c) FACT SEC 1/647, com data de emissão de 30.11.2016 e data de vencimento a 30.12.2016, no valor de € 1.756,18 (mil setecentos e cinquenta e seis euros e dezoito cêntimos)
5. A autora foi declarada insolvente por sentença de 22 de agosto de 2018, no processo 2602/18.0T8VCT, do juiz 4, do juízo local cível de Viana do Castelo.
6. A autora obrigou-se a executar todos os trabalhos previstos na proposta que apresentou à ré em 20 de julho de 2015, com os materiais, quantidades e de acordo com o projeto e caderno de encargos que foi apresentado à autora – cfr. documento de fls. 25-31, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
6.A – Após a adjudicação da empreitada referida em 6., autora e ré acordaram em alterações aos trabalhos, havendo quer trabalhos a mais quer trabalhos a menos.
7. No dia 11 de janeiro de 2017, em reunião que se realizou no local da obra, a ré identificou as situações da obra infra identificadas em 9. e exigiu a reparação pela autora.
8. A autora, contudo, nada fez.
9. A obra apresenta, atualmente:
- não colocação de pavimento flutuante de tipo “wincanders corkconfort original character 90.5x29.5x1.5”;
- não colocação de lajetas de betão branco de 60x40 cm, na área de 3,87m2;
- não colocação de revestimento vegetal sobre base preparada;
- irregularidades e pinturas mal executadas na paredes e revestimentos, com escorrências;
- irregularidades na junção das paredes com o pavimento, com visualização de fendas;
- falta de fornecimento e colocação de calhas nos tetos para colocação posterior de cortinas tipo blackout;
- no tampo do móvel de cozinha não foi colocada pedra de granito da região.
9.A - A ré, para efeitos de diminuição dos custos da obra, acordou verbalmente com a autora, após a adjudicação da mesma, a não colocação de pavimento flutuante de tipo “wincanders corkconfort original character 90.5x29.5x1.5” e colocação de pavimento de custo inferior, o não fornecimento e colocação de calhas nos tetos para colocação posterior de cortinas tipo blackout e a não colocação de pedra de granito da região no tampo do móvel de cozinha.
10. A ré, no dia 7 de Março de 2017, requereu a notificação judicial avulsa para que a autora procedesse à eliminação dos defeitos e à execução dos trabalhos em falta na empreitada no prazo máximo de trinta dias sob pena de exigir a redução do preço e indemnização por perdas e danos.
11. Esta notificação foi entregue ao sócio-gerente da autora, J. C..
12. A obra não foi concluída pela Autora na data prevista no contrato (31.01.2016), nem foi recebida pela ré.
13. A ré informou a autora que só pagaria os valores em débito após a eliminação dos alegados defeitos.
14. Até esta data não corrigiu os vícios e defeitos da obra.
15. A ré é instituição particular de solidariedade social detentora de património que rentabiliza com a finalidade de obtenção de receitas para as suas inúmeras actividades assistenciais.
16. A fração autónoma objeto do contrato de empreitada destinava-se a ser colocada em regime de prestação de serviços de alojamento local, dada a sua localização privilegiada na cidade de Viana do Castelo.
17. Fruto da conduta da autora, que não corrigiu os defeitos nem concluiu a obra, a ré não pode inscrever e colocar a fração para ser utilizada pelos utentes.
18. A correção/execução dos trabalhos elencados em 9. implica:
- um custo de € 1 436,54 para corrigir a não colocação de pavimento flutuante de tipo “wincanders corkconfort original character 90.5x29.5x1.5” (onde se inclui a quantia de € 74,82 referente ao custo da remoção do pavimento existente);
- um custo de € 61,16 para corrigir a não colocação de lajetas de betão branco de 60x40 cm, na área de 3,87m2 (onde se inclui a quantia de € 15 referente ao custo da remoção das lajetas existentes);
- um custo de € 125,38 para corrigir a não colocação de revestimento vegetal sobre base preparada (onde se inclui a quantia de € 100 referente ao custo da remoção da betonilha e rebaixamento do piso);
- um custo de € 526 para corrigir as irregularidades e pinturas mal executadas na paredes e revestimentos, com escorrências;
- aquisição e aplicação de rodapé para corrigir as irregularidades na junção das paredes com o pavimento, com visualização de fendas, de valor não apurado;
- um custo de valor não apurado para corrigir a falta de fornecimento e colocação de calhas nos tetos para colocação posterior de cortinas tipo blackout;
- e um custo de € 318,75 para corrigir a não colocação de pedra de granito da região no tampo do móvel de cozinha (onde se inclui a quantia de € 50 para remoção do tampo existente e execução e remates).
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II. Não verificação da exceção de não cumprimento do contrato por caducidade dos direitos da recorrida de exigir a eliminação dos defeitos, nova construção, redução do preço ou indemnização

Defende a recorrente, nas suas alegações, que caducaram os direitos da recorrida de exigir a eliminação dos defeitos, nova construção, redução do preço ou indemnização e que, devido a essa caducidade, não se pode considerar verificada a exceção de não cumprimento do contrato visto que a recorrente já não se encontra obrigada a cumprir.

Como escreve António Santos Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., pág. 119) “a natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objeto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas.

Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não analisar questões novas, salvo quando (...) estas sejam de conhecimento oficioso (...). Seguindo a terminologia proposta por Teixeira de Sousa, podemos concluir que tradicionalmente termos seguido um modelo de reponderação que visa o controlo da decisão recorrida, e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso.”

Como se escreveu no Acórdão desta Relação de 8.11.2018 (in www.dgsi.pt)por definição, a figura do recurso exige uma prévia decisão desfavorável, incidente sobre uma pretensão colocada pelo recorrente perante o Tribunal recorrido. Só se recorre de uma decisão que analisou uma questão colocada pela parte e a decidiu em sentido contrário ao pretendido (...). A única exceção a esta regra, como bem se compreende, são as questões de conhecimento oficioso, das quais o Tribunal tem a obrigação de conhecer, mesmo perante o silêncio das partes. Não sendo uma situação de conhecimento oficioso, não pode o Tribunal superior apreciar uma questão nova, por pura ausência de objeto: em bom rigor, não existe decisão de que recorrer. É um caso de extinção do recurso por inexistência de objeto.

A exceção de não cumprimento do contrato foi invocada pela ré na sua contestação. A autora, na 1ª instância, não invocou a caducidade dos referidos direitos da ré e a consequente inexistência da obrigação de cumprir, não tendo respondido à exceção invocada pela ré, sendo que o poderia sempre fazer no início da audiência de julgamento, ao abrigo do princípio do contraditório, nos termos do art. 3º, nºs 3 e 4, do CPC.
A caducidade desses direitos não foi, por isso, objeto de apreciação pelo tribunal de 1ª instância. Essa caducidade não é de conhecimento oficioso pois não está em causa matéria excluída da disponibilidade das partes (art. 333º, º 2 e 303º, ambos do CC)
Consequentemente, a invocada caducidade é uma questão nova que não pode ser apreciada em sede recurso.
Assim, este Tribunal da Relação não irá conhecer dessa questão, por impossibilidade legal.

III. Existência de abuso de direito por o comportamento da ré ter contribuído para o incumprimento do contrato.

A recorrente alega a má fé da recorrida por invocar o não cumprimento do prazo de empreitada estipulado no contrato, sendo certo que houve atrasos na obra de cerca de quatro meses decorrentes de comportamentos da recorrida devidos, designadamente, à realização de trabalhos a mais, falta de licença da obra para que os veículos da recorrente pudessem entrar e estacionar no local da obra, atraso e troca de picheleiro e adjudicação da cozinha. Assim, considera que existe abuso de direito da recorrida na invocação da exceção do não cumprimento do contrato.
À semelhança do que sucedeu com a questão da caducidade, também esta questão do abuso de direito, por os atrasos na obra decorrerem de comportamentos da ré, não foi suscitada no tribunal ad quo e sobre ela o mesmo não se pronunciou, tratando-se igualmente de uma questão nova.
Assim, pelas razões e com os fundamentos que acima se aduziram, o abuso de direito é uma questão nova que não pode ser apreciada em sede recurso.
Consequentemente, este Tribunal da Relação não irá conhecer dessa questão, por impossibilidade legal.

IV – Consequências da verificação da exceção de não cumprimento

Defende a recorrente que, tendo o tribunal ad quo concluído pela exceção de não cumprimento do contrato, a consequência dessa conclusão deveria ter sido a condenação em simultâneo, ou seja, a recorrida deveria ter sido condenada a pagar à recorrente o valor em dívida contra a simultânea eliminação dos defeitos existentes e subsistentes por parte da recorrente. Ao invés, a sentença absolveu a recorrida do pedido, tendo, assim extinto, sem mais, o direito de crédito da recorrente.
Em primeiro lugar, e em abono da verdade e do rigor jurídico, note-se que a sentença não pode ser interpretada nos moldes referidos pela recorrente.
Efetivamente, no dispositivo, a sentença limita-se a julgar a ação totalmente improcedente e a absolver a ré do pedido formulado pela autora.
Porém, na sua fundamentação, a sentença considera verificada a exceção de não cumprimento, enuncia as duas teses em confronto no que diz respeito à consequência jurídica da verificação dessa exceção - e que são a condenação em simultâneo dos dois contraentes versus a absolvição temporária do pedido – e opta pela segunda tese, mas sempre referindo que há uma absolvição meramente temporária do pedido.
Com efeito, e citando a sentença, consta da mesma que “perfilhamos esta segunda orientação entendendo que deve a ré ser absolvida (temporariamente) do pedido.
Por conseguinte, impõe-se reconhecer a procedência da invocada exceção de não cumprimento da obrigação de pagamento do preço por parte da ré e a sua absolvição do pedido.” (sublinhado nosso)
Assim, a sentença não extinguiu o direito de forma definitiva, como referido pela recorrente.
Esclarecida esta situação, vejamos então qual a consequência jurídica quando se conclui pela verificação da exceção de não cumprimento do contrato.

Nos termos do art. 428º, nº 1, do CC, “se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efetuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo”.
A exceptio non adimpleti contractus constitui uma causa justificativa de incumprimento de obrigações pois permite que um contraente recuse licitamente a sua prestação enquanto o outro não efetuar a sua ou não se dispuser a oferecer o cumprimento simultâneo.
Tal exceção tem como função obstar temporariamente ao exercício da pretensão do contraente que reclama a execução da obrigação de que é credor, sem por sua vez cumprir a obrigação correspetiva a seu cargo, ou sem, pelo menos, oferecer o seu cumprimento simultâneo. A exceção não extingue o direito de crédito de que é titular o outro contraente, há apenas suspensão da exigibilidade da sua obrigação; ou seja, o excipiente pode legitimante recusar a sua obrigação, sem com isso incorrer em mora (José J Abrantes in A exceção de não cumprimento do contrato, pág. 127 e ss).

A exceção do não cumprimento do contrato constitui uma exceção dilatória de direito material ou substantivo que tem por principal efeito a dilação do tempo de cumprimento da obrigação de uma das partes até ao momento do cumprimento da obrigação da outra.
É exceção material porque fundada em razões de direito substantivo; é dilatória, por que não exclui definitivamente o direito do autor, apenas o paralisa temporariamente (cf. Calvão da Silva, in “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, pg. 329 e ss., e José Abrantes, in “A Exceção do Não Cumprimento”, pg. 127 e ss.).

Discute-se, porém, quer na doutrina quer na jurisprudência, quais os seus efeitos: absolvição do pedido (como sucedeu na decisão sob recurso) ou condenação a prestar em simultâneo (como defende a recorrente).

Sobre esta matéria cita-se o Acórdão da Relação de Coimbra, de 29.1.2013 (in www.dgsi.pt) o qual sintetiza de forma esclarecedora as duas teses em confronto, os argumentos aduzidos a propósito de cada uma e o apoio doutrinal e jurisprudencial correspondente.

Escreve-se no aludido acórdão que, “para esta segunda orientação, a procedência da “exceptio” tem como efeito a condenação do réu a prestar ao mesmo tempo que o autor, argumentando-se que a exceção é um meio de defesa destinado a assegurar o respeito pelo princípio do cumprimento simultâneo, pelo que a condenação do réu fica subordinada à condição de cumprimento por parte do autor. Uma vez feito o cumprimento pelo autor, dispensa-se uma nova ação a pedir a condenação do réu, ficando desde logo o autor com uma sentença que o legitima a tornar efetiva a obrigação do réu;

Para Calvão da Silva (in “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, pg. 335), “se é verdade que, em virtude das exceções materiais dilatórias, o direito do autor não existe ou não é exercitável no momento em que a decisão é proferida, por falta de algum requisito material, mas pode vir a existir ou a ser exercitável mais tarde”, parece que a “exceptio non adimpleti contractus” não deve obstar ao conhecimento do mérito da ação. “O Juiz deve, isso sim, condenar à realização da prestação contra o cumprimento ou o oferecimento de cumprimento simultâneo da contraprestação, em consonância com o “indireto pedido de cumprimento” co-envolto na arguição da “exceptio” e salvaguarda do equilíbrio contratual”. No plano jurisprudencial, vejam-se, por exemplo, o Acórdão do S.T.J., de 26/10/2010, e o Acórdão da Relação de Lisboa de 26/6/2008, ambos consultados na “internet” em www.dgsi.pt.

Outra tese aponta no sentido de que a procedência da “exceptio” implica a absolvição (temporária) do pedido, porque a lei não permite a condenação condicional, sendo que inexiste caso julgado quanto à posterior ação (cf. Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. III, pg. 80 e ss.).

Neste sentido, escreve Miguel Mesquita (in “Reconvenção e Exceção no Processo Civil”, pg. 95): “Afastada no nosso sistema, como resulta do artº 673º, a figura da condenação condicional, o tribunal não deve, uma vez provada a “exceptio non adimpleti contractus”, condenar o réu a cumprir a prestação se e quando o autor realizar a correspondente contraprestação. Ficando o juiz convencido de que também o autor se encontra em falta, deverá proferir uma sentença absolvendo temporariamente o réu do pedido”.

A nível jurisprudencial veja-se o Acórdão do S.T.J. de 30/9/2010, e o Acórdão da Relação do Porto de 30/1/2012, ambos consultados na “internet” em www.dgsi.pt.”

Aqui chegados, e expostas as teses em confronto, há que optar por uma delas.

Acompanhamos a segunda orientação, tal como o fez a decisão recorrida.

Com efeito, consideramos que não é admissível uma condenação condicional, pelo que rejeitamos a orientação que perfilha a possibilidade de condenação em simultâneo, a qual contém em si uma condenação condicional visto que uma parte é condenada a cumprir a sua prestação quando a parte contrária cumprir a prestação que lhe compete.

Ora, como decorre do art. 621º, do CPC, “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se preencha ou o facto se pratique”.

Esta norma, na nossa interpretação, exclui a possibilidade de uma condenação condicional razão pela qual consideramos que não é possível efetuar a condenação em simultâneo, ou seja, condenar uma parte a cumprir a sua prestação quando a outra parte cumprir aquela a que está adstrita. Consequentemente, resta a absolvição do pedido, a qual será temporária podendo sempre a parte renovar o seu pedido quando a condição estiver cumprida, ou seja, quando realizar a sua prestação e já não se verificar a exceptio non adimpleti contractus.
*
Conclui-se, assim, que a apelação improcede, sendo de manter a decisão recorrida, salvo no que toca à alteração da matéria de facto nos termos supra expostos.
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DECISÃO

Pelo exposto, acordam as juízas deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas da apelação pela apelante.
Notifique.
Guimarães, 26 de setembro de 2019

(Relatora) Rosália Cunha
(1ª Adjunta) Anizabel Pereira
(2ª Adjunta) Lígia Venade