ACIDENTE DE VIAÇÃO
EXAME TOXICOLÓGICO
DETEÇÃO ÁLCOOL NO SANGUE
PROCEDIMENTO LEGAL
PROVA PROIBIDA
Sumário


1 - A ocorrência de acidente de viação com veículo dirigido por condutor em estado de embriaguez (face ao teste qualitativo para pesquisa de álcool feito no local pela entidade policial), que determina a condução imediata daquele condutor a estabelecimento hospitalar, para receber assistência médica, e a validade neste caso da prova através de análise sanguínea para aferir da taxa de álcool no sangue, independentemente de as condições físicas daquele permitirem ou não o apuramento da TAS através de exame do ar expirado.

2 - As fortes razões de prevenção geral que se põem neste tipo de crime, e que justificam até a criminalização prevista no art.º 152º do C.E., bem como a maior fiabilidade do exame em função da diminuição do tempo entre o acidente e a quantificação da taxa de alcoolemia no sangue, impõem tal interpretação do art.º 4º da L. 17/2007.

Texto Integral


Relatora: Maria Isabel Cerqueira
Adjunto : Fernando Chaves

Acordam, em conferência, na Secção Criminal deste Tribunal:

Relatório

Nos autos de processo abreviado que correram termos pelo Juízo Local Criminal de Guimarães – Juiz 1, da Comarca de Braga, foi a arguida M. F., por decisão de 15/03/2019, condenada pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelos art.ºs 292º n.º 1 e 69º n.º 1 alínea a), ambos do Código Penal (a partir de agora, apenas designado por CP), na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de 5,50 euros e na pena acessória de 5 meses de proibição de conduzir veículos motorizados.

Desta decisão interpôs a arguida o presente recurso, em cujas conclusões pelas quais se afere o seu âmbito, alega constituir prova proibida o exame toxicológico por colheita de sangue efectuado nos autos, nomeadamente, por o mesmo não ter sido realizado nas circunstâncias legalmente previstas, já que lhe era possível fazer o teste de alcoolemia em aparelho quantitativo, como o fizera em aparelho qualitativo para despistagem de álcool no sangue, cujo resultado nem sequer lhe foi comunicado. Acrescenta ter o tribunal a quo baseado a sua convicção apenas no depoimento da testemunha J. F., que não foi corroborado por qualquer outro meio de prova, e não ter dado o seu consentimento para a realização daquela análise sanguínea, apesar de ter no momento capacidade volitiva para o dar ou recusar, além de não lhe ter sido explicado o fim deste exame. Conclui que deveria ter sido absolvida do crime que lhe era imputado, e sem prescindir, ser desajustada por excessiva a medida das penas principal e acessória aplicadas, bem como a taxa diária escolhida para a pena de multa, devendo ser reduzidas, designadamente face à sua necessidade, por razões de saúde, de conduzir veículos automóveis.
A Ex.mª Magistrada do M.P. junto do tribunal a quo respondeu pronunciando-se pela total improcedência do recurso interposto.
O Ex.mª Senhor Procurador-Geral Adjunto junto deste tribunal emitiu douto parecer, no qual se pronuncia pela parcial procedência do recurso interposto, com a alteração de 2 da matéria provada e a redução da medida da pena de multa aplicada e da taxa diária da mesma.
Foi cumprido o art.º 417º n.º 2 do Código de Processo Penal (a partir de agora apenas referido como CPP) e foram colhidos os vistos legais, cumprindo decidir.

*****
Foram as seguintes a matéria de facto provada e a motivação desta da douta decisão recorrida, que aqui se reproduzem totalmente:

1. Factos provados

Com relevo para a discussão da causa, provou-se o seguinte:

1) No dia 16 de outubro de 2017, cerca das 20:30 horas, na Rua de …, em …, Guimarães, a arguida conduziu o veículo ligeiro de passageiros de matrícula OZ e foi interveniente em acidente viação.
2) A arguida foi conduzida ao Hospital …, onde foi realizado exame toxicológico por colheita de sangue, tendo-se apurado que possuía uma taxa de álcool no sangue de 1,68 g/l.
3) Tal taxa de alcoolemia devia-se ao facto de a arguida, pouco tempo antes de conduzir, ter ingerido voluntariamente bebidas alcoólicas.
4) A arguida sabia que é proibida a condução de veículos sob o efeito do álcool e que a quantidade de bebidas alcoólicas que tinha ingerido não lhe permitiam conduzir e, não obstante, não se coibiu de levar por diante a sua conduta.
5) A arguida agiu de forma livre e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punível por lei penal.
6) A arguido não revelou arrependimento.
7) A arguida não tem antecedentes criminais.
8) A arguida tem como habilitações literárias a 4.ª classe; encontra-se desempregada desde 2007, não recebendo qualquer subsídio; é casada; o marido é operário da construção civil e aufere o salário mensal de cerca de € 600,00; tem dois filhos, um com 19 anos de idade, estudante, e o outro com 24 anos de idade, operário têxtil, que contribui para as despesas familiares com a quantia mensal de € 100,00; o agregado vive em casa arrendada, pagando a renda mensal de € 280,00.

2. Factos não provados

Com relevo para a discussão da causa não se provaram outros factos, além dos provados ou em contradição com eles.

3. Motivação da decisão de facto

A convicção do Tribunal fundou-se nas declarações da arguida, a qual: confirmou que, nas circunstâncias de tempo e lugar referidas na acusação, conduziu o veículo aí identificado e foi interveniente em acidente de viação / despiste, do qual advieram ferimentos na própria e danos no veículo, tendo sido transportada ao hospital, onde recebeu assistência médica, obtendo alta clínica no dia seguinte; assumiu que, momentos antes de empreender tal condução, havia ingerido bebidas alcoólicas; e afirmou o seu conhecimento de integrar a prática de crime a condução de veículo automóvel na via pública sob influência de álcool.
Assumiu, outrossim, relevância o relatório pericial de fls. 6, relativo ao realizado exame toxicológico por colheita de sangue, o qual, em conjugação com a demais prova, nos termos que passamos a explicitar, foi fundamental ao apuramento da taxa de álcool no sangue que a arguida apresentava.
A este respeito, cumpre apreciar a questão suscitada pela arguida de saber se a colheita de sangue a que foi sujeita constituiu, ou não, um método proibido de prova, nos termos dos art.ºs 32.º, n.º 8, da CRP e 126.º do Código de Processo Penal, determinante da nulidade da prova obtida através desse meio.
O exame de pesquisa de álcool encontra-se previsto e regulado por lei, nos art.ºs 152.º, 153.º e 156.º do Código da Estrada e no Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência de Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas (Lei n.º 18/2007, de 17 de maio), de onde decorre a obrigatoriedade da fiscalização para os condutores, sempre que sejam intervenientes em acidente de trânsito.
A fiscalização da condução sob influência de álcool destina-se à recolha de uma prova rapidamente perecível e por isso de natureza urgente, que assegure o fim da descoberta da verdade no processo penal, bem como, ainda, a salvaguardar bens fundamentais, ao impedir que um condutor influenciado pelo álcool persista numa condução suscetível de fazer perigar a vida e integridade física do próprio e dos demais utentes da estrada.
O exame de sangue é a via excecional para a recolha de prova admitida na lei para deteção de álcool, apenas admissível em casos expressamente tipificados, designadamente quando não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado ou o estado de saúde do agente não permitir o exame por ar expirado – cfr. art.º 153.º, n.º 8, e 156.º, n.º 2, do Código da Estrada.
Regressando ao caso que nos ocupa, resulta dos elementos recolhidos – mormente, do auto de notícia de fls. 4 e da participação de acidente de fls. 7 a 8, em conjugação com os depoimentos das testemunhas J. F. e B. M., agentes da GNR que no exercício das suas funções tiveram intervenção na situação, na sequência do que foi elaborado o aludido expediente – que a arguida foi interveniente em acidente viação quando conduzia na via pública um automóvel; sofreu ferimentos e por causa deles foi de imediato conduzida ao hospital … de Guimarães, onde foi assistida e permaneceu até ter alta clínica no dia seguinte (como foi elucidado pela própria); quando a arguida já se encontrava no interior da ambulância, foi efetuado teste qualitativo para despistagem de álcool cujo resultado se revelou positivo, o que foi comunicado à arguida; não era possível concretizar o exame por pesquisa de álcool no ar expirado, considerando o circunstancialismo apurado, em que a arguida ferida carecia de assistência médica em estabelecimento de saúde, para onde foi conduzida e deu entrada logo depois do acidente e onde permaneceu até ao dia seguinte, e por impossibilidade de efetuar o necessário teste qualitativo, dado que o respetivo aparelho aprovado para o efeito, de grande porte e não amovível, se encontrava no posto da GNR (como foi elucidado pelos referidos agentes da GNR).
Perante este quadro, julgamos verificada a previsão do n.º 8 do art.º 153.º e n.º 2 do art.º 156.º do Código da Estrada, justificadora da colheita de amostra de sangue à arguida, para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool, através do qual se apurou ser a mesma portadora de uma taxa de 1,68 g/l de álcool no sangue.
Na contestação apresentada, a arguida alega ainda que não foi informada do fim da colheita, nem deu o seu consentimento à recolha.
A este respeito, e diversamente do ali pugnado, pela já citada testemunha / agente da GNR J. F. foi atestado, de forma assertiva, perfeitamente desinteressada e credível, que ainda no interior da ambulância, quando lhe comunicou o resultado positivo do teste qualitativo, informou a arguida que no hospital ia ser feita recolha de sangue para pesquisa de álcool, e que posteriormente, já no hospital, informou novamente a arguida que ia ser feita a colheita de sangue para exame do seu estado de influenciado pelo álcool, o que por ela foi aceite, não manifestando qualquer oposição, sabendo para o que estava a ser recolhido (o que pela própria arguida, em audiência de julgamento, não foi contrariado, a qual, refira-se, declarou ter permanecido, na ambulância e no hospital, sempre consciente).
De todo o modo, sempre importa assinalar que, percorrida a legislação e regulamentação da matéria, constata-se que em lado algum a lei impõe ou exige o consentimento expresso do visado para a recolha de sangue, quando o estado de saúde não permite o exame por ar expirado ou esse exame não for possível. De sorte que, nesta matéria apenas se encontram excluídos os exames coercivos, aos quais o titular do interesse manifestou a sua oposição através de recusa em sujeitar-se ao exame – o que no caso, como já afirmamos, não se verificou.
Acresce que também não pode considerar-se que a colheita de sangue para exame pericial à respetiva taxa de álcool viole o direito à não auto incriminação, posto é que a jurisprudência mais recente tem vindo pacificamente a aceitar que tal se circunscreve, essencialmente, ao direito ao silêncio e não, também, ao direito a ser compelido a realizar determinados exames com vista à obtenção de provas, não alcançáveis por outra via.
Ademais, importa notar que a colheita de sangue com vista à realização de perícia à taxa de álcool não só não constitui em si qualquer declaração, coo também nem sequer visa a condenação do agente, destinando-se antes e exclusivamente a averiguar a verdade material sobre o seu estado de influenciado de álcool, que é desconhecido e, à partida, tanto pode servir a acusação como beneficiar a defesa (cfr. Acórdão do TRP de 20.10.2010 e Acórdão recente do TRG de 05.06.2017, ambos acessíveis in www.dgsi.pt, que seguimos de perto por integral concordância).
Perfilhando o mesmo entendimento, no Acórdão do TRP de 18.05.2011, também disponível em www.dgsi.pt, afirma-se: “a colheita de sangue realizada em caso de acidente não viola normas constitucionais, designadamente, as atinentes à ausência de consentimento para a recolha de prova, à proibição de obtenção de prova mediante ofensa da integridade física ou moral da pessoa e ao direito à não auto incriminação”.
Ainda a este propósito decidiu o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, em 1996 no caso Saunders v. Reino Unido, que o direito de não contribuir para a sua auto-incriminação pressupõe que, em processos criminais, a acusação deve provar a sua argumentação sem recorrer a elementos de prova obtidos mediante medidas coercivas ou opressivas, que desrespeitem a vontade do acusado, garantia ligada ao princípio da presunção de inocência.
No entanto, disse aquele tribunal, este direito não abrange a utilização no processo penal de evidências que podem ser obtidas do acusado mediante o recurso a poderes coercivos, mas que existem independentemente da sua vontade, como seja a obtenção de documentos apreendidos com apoio em um mandato, amostras de hálito, de sangue, urina, bem como tecidos corporais para fins de realização de exame de ADN .
Entendeu-se, portanto, que as garantias da não auto-incriminação se restringem às contribuições do arguido de pendor claramente incriminatório, não abrangendo o poder de se furtar a diligências de prova, sob pena de deixar desarmados os poderes públicos no desempenho da sua função de proteção e repressão.
Por tudo quanto deixamos exposto, entendemos que a recolha de amostra de sangue à arguida, no circunstancialismo apurado, constituiu um meio de obtenção de prova legal, integrando o respetivo resultado da pesquisa quantitativa de álcool efetuada nessa amostra um meio de prova válido, que por isso mesmo pode ser e foi efetivamente valorado pelo Tribunal, permitindo atestar a taxa de álcool no sangue que a arguida apresentava nas circunstâncias de tempo e lugar em causa nos autos.
Importa ainda registar, porque a questão também perpassa na contestação apresentada pela arguida, que as circunstâncias de onde decorre a validade de um meio de prova, se bem que tenham de emanar dos autos – e no caso emanam, como acabamos de explanar nesta sede de motivação, que entendemos ser a própria para o efeito –, não têm que ser alegadas na acusação nem constar do elenco dos factos que na sentença são dados como provados e não provados.

O art.º 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal determina, além do mais, que a fundamentação da sentença contenha a enumeração dos factos provados e não provados que serão, como resulta do art.º 368.º, n.º 2, do mesmo diploma, apenas os que, sendo relevantes para a decisão, estejam descritos na acusação ou pronúncia, hajam sido alegados na contestação ou resultem da discussão da causa.

Ora, neste art.º 368.º, n.º 2, do Código de Processo Penal são expressa e taxativamente enunciados os factos a incluir na fundamentação factual da sentença – “2 - Em seguida, se apreciação do mérito não tiver sido prejudicada, o presidente enumera discriminada e especificamente e submete a deliberação e votação os factos alegados pela acusação e pela defesa e, bem assim, os que resultarem da discussão da causa, relevantes para as questões de saber: a) Se se verificam os elementos constitutivos do tipo de crime (note-se que, com relevo no caso, é absolutamente pacífico não fazer parte dos elementos constitutivos do crime de condução de veículo em estado de embriaguez o tipo de método utilizado para a determinação da TAS apresentada pelo arguido); b) Se o arguido praticou o crime ou nele participou; c) Se o arguido atuou com culpa; d) Se se verificou alguma causa que exclua a ilicitude ou a culpa; e) Se se verificaram quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou aplicação a este de uma medida de segurança; f) Se se verificaram os pressupostos de que depende o arbitramento da indemnização civil” –, e entre eles manifestamente não se inclui aqueles de onde decorrem os pressupostos da validade de cada meio de obtenção de prova que for considerado (cfr. neste sentido o citado Acórdão do TRG de 05.06.2017).

Resta registar a uniformidade do entendimento que desde há muito o STJ tem vindo a adotar sobre este ponto (cfr. por todos Acórdãos do STJ de 03.04.1991, 05.02.1998 e 15.01.1997, in CJ, T. II e I, págs. 19, 245 e 181, respetivamente), aquela enumeração dos factos provados e não provados visa a exaustiva cognição do thema probandum, isto é, a demonstração de que o tribunal analisou especificamente toda a matéria de prova que foi submetida à sua apreciação e que se revista de interesse para a decisão da causa, pelo que a obrigação legal de na sentença se fazer a descrição dos factos provados e não provados, se refere tão somente “(...) aos que são essenciais à caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes, o que exclui os factos inócuos, irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação ou na contestação”.
A ausência de antecedentes criminais da arguida emergiu do teor do seu certificado de registo criminal de fls. 63.
As condições pessoais e sociais da arguida e a sua situação económica foram apuradas com base no declarado pela própria sobre a matéria.
*****
*****
Fundamentação de direito

No caso sub judice, a recorrente condenada pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, nas penas de 70 dias de multa, à taxa diária de 5,50 euros e em proibição de conduzir veículos motorizados por um período de 5 meses, vem alegar constituir prova proibida o exame toxicológico feito para detecção de álcool no sangue efectuado através de análise sanguínea, por não obstante ter tido um acidente de viação e ter sido sujeita a tratamento hospitalar, não estar impossibilitada de fazer o teste em analisador quantitativo no ar expirado, tendo pois a colheita de sangue sido feita fora do condicionalismo legal.

Acrescenta que não lhe tinha sido previamente comunicado que o teste de despistagem efectuado em aparelho qualitativo fora positivo e não ter consentido na realização daquela análise ao sangue de cujo objectivo nem sequer fora informada.

E, sem indicar a matéria provada que impugna, limitando-se a dizer que esta “ficou aquém da prova produzida”, transcreve partes das suas declarações e dos depoimentos das testemunhas J. F. e B. M. (indicando também aquelas partes por referência à gravação efectuada).

Ora, a impugnação prevista no art.º 412º do CPP impõe que o recorrente para além das partes concretas dos depoimentos das testemunhas que impõem decisão diversa, indique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as provas a renovar, já que, aquela impugnação não corresponde a um novo julgamento, mas sim ao remédio jurídico para eventuais erros de julgamento.

A recorrente não indicou qual a matéria de facto relativamente à qual considera haver erro de julgamento, não imputando a qualquer dos factos provados da douta decisão recorrida qualquer erro, e limitando-se a dizer que os mesmos estavam aquém do que se provou em audiência, por não constarem daqueles factos as circunstâncias que tornam válido o exame sanguíneo feito, que como e bem se diz na decisão recorrida, citando Jurisprudência deste Tribunal, não têm que constar da matéria provada, mas apenas emanar dos autos.

Assim, não tendo essas circunstâncias que constar da matéria provada, não existe qualquer insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, e por falta de cumprimento dos requisitos previstos nas alíneas a) e c) do n.º 3 do art.º 412º do CPP, não se ouviu, pois, a gravação da parte dos depoimentos das testemunhas indicadas na motivação do presente recurso.
No entanto, a alteração da matéria de facto provada também pode resultar da ocorrência na decisão recorrida de qualquer dos vícios através no n.º 2 do art.º 410º do mesmo diploma legal, que são de conhecimento oficioso para o tribunal de recurso, mas que têm que resultar do texto da mesma decisão por si só ou conjugado com regras de experiência comum, ao que acresce que foi referido no douto parecer do Sr. Procurador-Geral Adjunto verificar-se nela o ali previsto sob a alínea c), impõe-se e porque não se verificam os vícios previstos nas alíneas a) (como já se referiu) e b), verificar se ocorre na sentença recorrida aquele vício do erro notório na apreciação da prova.

Ora, ocorre erro notório na apreciação da prova quando, analisada a decisão recorrida na sua globalidade e sem recurso a elementos extrínsecos, é manifesto que o tribunal fez uma apreciação ilógica da prova, em oposição às regras básicas da experiência comum, ou seja, sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão diferente daquela a que chegou o tribunal. Trata-se de um erro ostensivo, que é detectado pelo homem médio.

No caso concreto, resulta do relatório pericial de fls. 6 para o qual a decisão recorrida remete (passando o teor do mesmo a ser integrante da sentença, por tal o permitir o art.º 391º-F), que a arguida conduzia com uma taxa de alcoolemia de 1.68 g/l, taxa apurada através de análise ao sangue, relativamente à qual, tal como a apurada através de alcoolímetros de modelo legalmente aprovado existe uma margem de erro, que no caso do método em causa nestes autos é de 0,22 g/l.

Ou seja, que, e em nome do principio in dubio pro reo, que e se traduz em que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido, e do qual decorre que “todos os factos relevantes para a decisão … que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à ´dúvida razoável´ do tribunal, também não possam considerar-se como ´provados´” (Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I), o facto 2 a matéria provada tem que ser alterada, dela passando a constar que a arguida acusava uma TAS de pelo menos 1,46 g/l.

Ora, aqui chegados importa aferir da validade da prova que determinou este resultado, verificando o que emana dos autos relativamente a esta questão.

No auto de noticia de fls. 4, resulta que a arguida por ter sido interveniente com o veículo que conduzia em acidente de viação (despiste), e que quanto ao autuante quando este chegou ao local, já aquela tinha sido transportada em ambulância para o Hospital, por precisar de assistência médica (o que também resulta da participação de fls. 8, onde se refere ainda que a arguida não prestou declarações “derivado as suas lesões”), tendo-lhe ali sido feito teste ao ar expirado, em aparelho qualitativo, para despistar a presença de álcool no sangue, como está expressamente previsto no n.º 1 do art.º 156º do Código da Estrada (a partir de agora apenas referido como CE) e no art.º 1º da L. 17/2007, de 17/05.

Face à positividade dessa despistagem, à recorrente foi colhido sangue no estabelecimento hospitalar para onde fora conduzida, com vista a quantificar a TAS, TAS que, nos termos dos art.ºs 153º do CE e 2º da L. 17/2007 deve ser medida por alcoolímetro quantitativo de modelo aprovado, excepto se o exame sanguíneo for requerido pelo agente como contraprova, nos casos de impossibilidade de realizar o teste no ar expirado previsto no art.º 4º da supra citada lei, quando o estado de saúde do condutor interveniente em acidente de viação não o permitir e sempre que o condutor tiver que ser conduzido a estabelecimento hospitalar para receber assistência médica, conforme doutamente decidido no recente Acórdão deste tribunal de 11/03/2019, relatado pelo Sr. Desembargador Armando Azevedo (in www.dgsi.pt, base de jurisprudência a que nos referiremos se não for feita qualquer menção).

E isto, não obstante a aqui relatora já ter sustentado que a impossibilidade de realização do teste através do ar expirado para que o exame seja feito através de análise ao sangue era legalmente justificada apenas por razões de saúde do condutor que impedissem a realização do teste em analisador quantitativo do ar expirado.

Posição que se inflecte, quer porque só esta interpretação permite o cumprimento do intervalo de tempo de 30 minutos, ou do mais curto espaço de tempo depois do acidente previstos respectivamente nos n.ºs 1 dos art.ºs 2º e 5º da L. 17/2007, e isto não obstante aquele período de 30 minutos ser meramente ordenador e não peremptório, mas que, e atendendo a que o interprete deve considerar que o legislador consagrou a solução mais acertada (n.º 3 do art.º 9º do Código Civil), tem subjacente o pensamento legislativo da maior fiabilidade do teste para o apuramento da TAS, quer através do ar expirado, quer através de análise do sangue, dentro de um curto espaço de tempo após a detecção de álcool no ar expirado.

Fim que apenas é atingido no caso de condutor que conduz sob a influência de álcool e intervém em acidente de viação, sendo conduzido a estabelecimento hospitalar para lhe ser prestada assistência médica, pela possibilidade de detecção da taxa de álcool, de imediato e no estabelecimento hospitalar, através de análise sanguínea, porque se não pode ser logo conduzido ao local onde poderia fazer o teste através do ar expirado (os postos das autoridades policiais), por estar internado, a quantificação da TAS poder ser corrompida pelo grande intervalo de tempo que necessariamente mediaria entre os testes qualitativo e quantitativo feitos ao ar expirado.

Só esta interpretação permite também satisfazer as fortíssimas razões de prevenção geral que se põem nos crimes de condução sob a influência de álcool, e que justificam a criminalização prevista no n.º 5 do art.º 152º do CE (médico ou paramédico que recusa seguir os procedimentos previstos na lei para diagnosticar a condução sob a influência de álcool) – neste sentido ver Ac. da Relação de Coimbra de 20/12/2011, Relator Sr. Desembargador Jorge Dias.

Também, nestes casos em que ocorre acidente de viação, não são necessários a comunicação de que a despistagem de álcool deu resultado positivo, a prévia informação do agente do fim concreto a que se destina a colheita de sangue, nem qualquer pedido expresso de consentimento para essa colheita ao mesmo, já que, aquela circunstância implica sempre a sujeição do agente a análise sanguínea para quantificação da TAS (v. nestes sentidos, Acs. do mesmo Tribunal da Relação de 23/05/2012 e 20/11/2011, desta Relação de 5/06/2017, relatados respectivamente pelos Srs. Desembargadores Brizida Martins, José Eduardo Martins e Fátima Furtado).

Assim, a colheita de sangue efectuada à recorrente nos autos não constitui qualquer prova proibida, pelo que, tendo a arguida conduzido, na via pública, veículo automóvel acusando uma TAS de 1,46 g/l, facto de que tinha conhecimento e que sabia proibido por lei, tinha a mesma que ser condenada pela prática do crime cometido.

Ao crime em causa corresponde, em abstracto, a pena principal de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias, e a acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de 3 meses a 3 anos, penas que o tribunal fixou em 70 dias de multa, à taxa diária de 5,50 euros, e na inibição de conduzir por 5 meses.

Penas que a recorrente considera excessivas, o mesmo acontecendo quanto ao montante da taxa diária da pena de multa, nomeadamente, por não ter antecedentes criminais, ter demonstrado arrependimento e face à sua débil situação económica e financeira e à sua necessidade por razões de saúde de conduzir veículos automóveis.

A escolha e a medida da pena têm de fazer-se de harmonia com o disposto nos art.ºs 40º, 70º e 71º do CP, ou seja, em função da culpa do agente, sem nunca a poder ultrapassar, e das exigências de prevenção, tendo em vista a protecção dos bens jurídicos e a reintegração daquele.

Por sua vez, o art.º 70º estabelece o princípio da prevalência das penas não detentivas da liberdade, impondo a opção por estas, desde que realizem “…de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

As finalidades da punição são a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, e no caso concreto, as exigências de prevenção geral são elevadas, atento o elevado número de crimes desta natureza praticados no nosso País, com as consequências para a grande sinistralidade que se verifica, não assumindo as exigências de prevenção especial acuidade, por a arguida não ter antecedentes criminais.

No caso sub judice, o tribunal a quo optou e fundadamente pela aplicação de pena de multa, e sendo certo que a arguida confessou os factos de que vem acusada, esta atenuante não tem grande valor porque a taxa de alcoolemia apresentada resulta de prova por exame (a que aquela não se podia furtar), quando não é acompanhada de arrependimento (não foi dada como provada a verificação desta circunstância, que a recorrente agora invoca, invocação irrelevante face à não alteração da matéria provada, com excepção de 2).

A arguida apresentava uma taxa de alcoolemia no sangue já relevante para a condução automóvel, mas ainda relativamente próxima do limite mínimo para que a conduta integrasse crime, mas, a fixação da pena de multa a aplicar-lhe acima da média da moldura penal aplicável, e concretamente em 70 dias, não se mostra ainda excessiva, nomeadamente, face à falta de demonstração de arrependimento, e não obstante a alteração do facto 2 da matéria provada, pelo que, tem que ser mantida, o mesmo acontecendo com a pena acessória que se mostra fixada de forma proporcional à pena principal.

Já o mesmo não podemos dizer relativamente à fixação da taxa diária daquela pena em 5,50 euros, por a mesma estar desempregada, e atentos, os rendimentos mensais modestos do agregado familiar (o marido aufere o salário mínimo nacional, e recebe 100,00 para a comparticipação das despesas domésticas de um filho que já trabalha), e os encargos que tem (com um filho a estudar e com uma renda de casa de 280,00 euros), que se impõe fixar no mínimo legalmente possível de 5,00 previsto no n.º 2 do art.º 47º, por esta se mostrar mais adequada e proporcionada, assumindo ainda a característica de sacrifício, que a pena de multa tem que implicar, sob pena de se desvirtuar a sua natureza de sanção penal.

Tem, pois, que proceder parcialmente o recurso interposto.
*****
Decisão

Pelo exposto, os juízes deste Tribunal acordam em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela arguida M. F., ordenando-se a correcção do facto 2 provado, nos termos supra expostos no primeiro parágrafo de fls. 9 desta decisão, e reduzindo a taxa diária da pena de multa aplicada em 1ª instância de 5,50 para 5 euros, mantendo no mais a douta decisão recorrida.
Sem custas.
Guimarães, 30 de Setembro de 2019