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REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO PARTICULAR
OMISSÃO DE FACTOS
DIFAMAÇÃO
ELEMENTO SUBJECTIVO
Sumário
I - Perante a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (art. 32º, n.º 5, da CRP), os poderes de cognição do tribunal estão rigorosamente limitados ao “objecto do processo”, previamente definido pelo conteúdo da acusação e constituído por “factos” que têm que ter a concretude suficiente para poderem ser contraditados e deles se poder defender o arguido e, sequentemente, serem sujeitos a prova idónea [art. 283º n.º 3 b) do CPP].
II - Assim, deduzida acusação particular com a imputação ao arguido de um crime de difamação, deve considerar-se, como pressuposto fundamental do seu recebimento, que qualquer juízo de culpabilidade teria de vir a assentar na descrição nesse libelo, objectivamente inequívoca, de factos que pudessem vir a sustentar aquela incriminação: a imputação de factos susceptíveis, não apenas de serem reputados como ofensivos da honra e da consideração do assistente, mas, também, de factos que, preenchendo o elemento subjectivo do crime, permitissem assacar ao arguido a responsabilidade penal por tal ofensa.
III - Ora, ao preenchimento deste elemento subjectivo exigir-se-ia o dolo (numa das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal), que se desdobra nos chamados elementos intelectual – representação, previsão ou consciência dos elementos do tipo de crime – e volitivo – vontade dirigida à realização daqueles elementos do tipo. Mas, aos elementos intelectual e volitivo, acresce um elemento emocional, que é dado, em princípio, pela consciência da ilicitude, i. é, uma qualquer atitude de contrariedade ou indiferença face ao dever- ser jurídico-penal.
IV - A necessidade de alegação dessa atitude de contrariedade ou indiferença por parte do arguido seria imprescindível ao recebimento da acusação, como resulta da jurisprudência reiteradamente afirmada pelos Tribunais Superiores, a começar pelo Supremo, p. ex., no seu AUJ nº 1/2015 (de 20/11/2014 - DR I nº 18/2015, I, de 27/01/2015): «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal».
Texto Integral
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
Nos presentes autos, que correm termos no Juízo Local Criminal de Vila Real, desta Comarca, o assistente M. M. deduzira acusação particular contra J. J., pela prática de um crime de difamação p. e p. pelos arts. 180º, nº. 1 e 183º, nº.1, a) e b) do C. Penal, imputando-lhe, no que ora releva, os seguintes factos:
No dia 6-01-2018, o arguido disse à sua ex-mulher e filha do assistente: «não tens vergonha, és montada pelo teu pai». Com esse comportamento, o arguido quis, como conseguiu, atingir a honra, consideração, bom nome e respeito do ofendido, bem sabendo da total falsidade da imputação.
Por decisão proferida em 1-03-2019, o Sr. Juiz rejeitou a acusação, nos termos do art. 311º, n.ºs 2, a), e 3, d), do CPP, devido à omissão, na descrição factual nela contida, de todos os componentes do elemento subjectivo do crime assacado ao arguido.
Inconformado com a referida decisão, o assistente interpôs recurso cujo objecto delimitou com conclusões em que suscita a questão de saber se a expressão vertida na acusação particular sintetiza «a vontade, o dolo, volitivo e intelectual, a liberdade de atuação, a consciência da ilicitude, o determinismo do arguido, em querer atingir a honra, o bom nome de forma livre e bem consciente no agir».
O recurso foi admitido por despacho proferido a fls. 79.
O Ministério Público, em 1ª instância, apresentou douta resposta, defendendo que deve manter-se a decisão porque não se acha descrito na acusação particular o elemento cognitivo e a consciência da ilicitude, integrantes do referenciado tipo de ilícito. E, neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu detalhado e muito fundamentado parecer, sustentando que deve ser negado provimento ao recurso, porquanto na acusação deduzida pelo assistente está omisso o elemento emocional integrante do tipo (subjectivo) do crime de difamação.
Cumprido o art. 417º, n.º 2, do CPP, e colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.
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Cumpre decidir a questão suscitada, para o que deve considerar-se como pertinente ao conhecimento do objecto do recurso a factualidade que se retira do antecedentemente relatado.
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Introduziremos a nossa pronúncia quanto ao que se nos afigura ser o núcleo central da questão de saber se, para que se pudesse vir a concluir pela responsabilidade criminal do arguido, a acusação particular do assistente contém matéria factual suficiente, pressuposto fundamental do seu recebimento, com umas sinópticas ponderações sobre os requisitos do libelo acusatório, em geral.
A acusação, sendo formalmente a manifestação da pretensão de que o arguido seja submetido a julgamento pela prática de determinado crime e por ele condenado, constitui o pressuposto indispensável da fase de julgamento, por ela se definindo e fixando o objecto deste último. Segundo Figueiredo Dias (1), citado pelo Desembargador Cruz Bucho no estudo “ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS EM PROCESSO PENAL” (2), «é a este efeito que se chama vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade 3 (segundo o qual o objecto do processo, os factos devem manter-se os mesmos, da acusação ao trânsito em julgado da sentença), da unidade ou indivisibilidade 4 (os factos devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade, unitária e indivisivelmente) e da consunção do objecto do processo penal (mesmo quando o objecto não tenha sido conhecido na sua totalidade deve considerar-se irrepetivelmente decidido, e, portanto, não pode renascer noutro processo 5.».
Daí que, perante a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (art. 32º, n.º 5, da CRP), os poderes de cognição do tribunal estão rigorosamente limitados ao objecto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação.
Por outro lado, nos termos do art. 283º, n.º 3, alínea b) – no caso, ex vi art. 285º, n.º 3 – do CPP, a acusação deve conter, sob pena de nulidade, a «narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança». Ou seja, os “factos” que constituem o “objecto do processo” têm que ter a concretude suficiente para poderem ser contraditados e deles se poder defender o arguido e, sequentemente, a serem sujeitos a prova idónea (6).
Ora, na decisão agora posta em crise, o Sr. Juiz considerou que «…a acusação particular omite, designadamente, a alegação de factos que consubstanciem o preenchimento do elemento intelectual do dolo do tipo, mas também, por completo, o referido elemento emocional, o dolo do tipo de culpa, a consciência da ilicitude do agente».
Afigura-se-nos correcto, pelo menos em parte, o entendimento perfilhado pelo Sr. Juiz, facilmente se compreendendo que, em face da estrutura conferida à acusação, outro desfecho não poderia ter sido obtido que não fosse o da rejeição da acusação: qualquer juízo de culpabilidade teria de vir a assentar na descrição na acusação, objectivamente inequívoca, evidente e incontroversa, de factos que pudessem vir a sustentar a incriminação que ao arguido era efectuada: a imputação de factos susceptíveis, não apenas de serem reputados como ofensivos da honra e da consideração do recorrente, mas, também, o de factos que permitissem assacar ao arguido a responsabilidade penal por tal ofensa.
Assim, ao preenchimento do elemento subjectivo exigir-se-ia o dolo numa das modalidades previstas no art. 14º – portanto, pelo menos, sob a forma de dolo eventual –, relativamente aos elementos constitutivos do respectivo tipo objectivo. Temos assim, a par dos elementos objectivos, como elementos do tipo subjectivo: o dolo – o conhecimento e vontade de praticar o facto (a ofensa), com consciência da sua censurabilidade.
Com efeito, na verificação do respectivo preenchimento, há que ter em consideração que o dolo se desdobra nos chamados elementos intelectual – representação, previsão ou consciência dos elementos do tipo de crime – e volitivo – vontade dirigida à realização daqueles elementos do tipo (7). Mas, aos elementos intelectual e volitivo, acresce um elemento emocional, que é dado, em princípio, pela consciência da ilicitude (8): «uma qualquer posição ou atitude de contrariedade ou indiferença face às proibições ou imposições jurídicas (…) quando o agente revela no facto uma posição ou uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal» (9).
A necessidade de alegação dessa atitude de contrariedade ou indiferença por parte do arguido é imprescindível ao recebimento da acusação, como resulta da jurisprudência reiteradamente afirmada pelos Tribunais Superiores, a começar pelo Supremo, p. ex., no seu AUJ nº 1/2015 (de 20/11/2014 - DR I nº 18/2015, I, de 27/01/2015):
«A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal»
Desse mesmo entendimento é paradigmático o acórdão deste Tribunal de 19-06-2017 (10), cuja fundamentação foi assim sintetizada:
«I) A alegação de que a arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal não é inócua e desnecessária, não passando de um protocolo ou fórmula pré-determinada acolhida pela prática judiciária, sem qualquer valor funcional. Ao contrário, a alegação da consciência da ilicitude, seja com a utilização daquela fórmula ou através da descrição mais objetiva desse facto da vida interior, corresponde à necessidade de descrever um dos elementos do tipo subjetivo, traduzido no dolo da culpa, o qual, segundo as modernas conceções dogmáticas da teoria do crime, defendidas entre nós por Figueiredo Dias, constitui uma categoria autónoma, relativamente ao dolo do tipo, ao passo que na conceção tradicional não se distinguia entre os elementos do tipo e os elementos do tipo de culpa. II) Na acusação deduzida nos autos, a assistente limita-se a alegar, em termos de factos relativos ao preenchimento dos elementos subjetivos, que ao dirigir-lhe as palavras "filha da puta" e "pretendia a arguida atingir a assistente na sua honra e consideração social, o que conseguiu". Esta articulação contém factos que integram o elemento volitivo do dolo (direto) e do elemento intelectual do dolo. Já em relação aos elementos integrantes da consciência da ilicitude (elemento emocional), habitualmente traduzido na expressão de que "o arguido atuou sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal", ou por qualquer outra que comporte o respetivo conteúdo, a acusação omite toda e qualquer referência. III) Concluindo-se, assim, que a acusação particular deduzida nos autos não contém a descrição dos factos integrantes da totalidade dos elementos subjetivos do tipo, necessária à verificação do crime imputado à arguida, e que, por outro lado, tais elementos em falta não poderão vir a ser aditados em julgamento, não restava outra solução ao Juiz a quo senão considerá-la como manifestamente infundada, por os factos nela descritos não constituírem crime, e, como tal, rejeitá-la ao abrigo do disposto nos artºs 283º, nº 3, b) e 311º, nºs 2, a), e nº 3, d) do CPP.»
Ora, como muito bem salientou o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, nada consta da acusação que se possa reportar a uma tal componente do elemento subjectivo do ilícito em questão.
Por conseguinte, improcede o recurso.
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Decisão:
Nos termos expostos, julgando-se totalmente improcedente o recurso, decide-se confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro unidades de conta (arts. 513º, nº 1, do CPP, e 8º, n.º 9, do RCP, e Tabela III anexa a este último diploma).
Guimarães, 30/09/2019
Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado
1Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, pág. 145. 2 Que apresentou, nomeadamente, numa comunicação feita no Tribunal da Relação de Guimarães, no dia 2 de Abril de 2009. 3 Cfr. Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal – II Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, Coimbra, Almedina, reimp., 1983, págs. 305 e 317. 4 Não pode “a acusação pretender uma consideração só parcial ou só de alguns dos aspectos jurídico-criminais do objecto posto pela acusação” (Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, Coimbra, 1968, pág. 202). Por isso, também, “o juiz deve conhecer não de maneira fragmentária mas esgotantemente o facto que é submetido ao seu julgamento” (Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal, cit., pág. 359; cfr. também, págs. 314-315 e 317-318). O princípio da investigação ou da verdade material, com os propósitos de economia, celeridade e justiça material, justifica a indivisibilidade do objecto do processo. 5 O princípio da consunção implica que "posta uma questão penal ante um magistrado, deve este necessariamente resolvê-la. E resolvê-la esgotantemente até onde deva e possa. Aquilo, pois, que, devendo tê-lo sido, não se decidiu na sentença directamente, tem de considerar-se indirectamente resolvido; aquilo que se não resolveu por via expressa deve tornar-se como decidido tacitamente” (Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal, cit., pág. 304); “Por outras palavras, o conhecimento do objecto do processo deve ter-se sempre por totalmente consumido – a decisão sobre ele deverá considerar-se como tendo-o definido jurídico-criminalmente em tudo o que dele podia e devia ter conhecido” (Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, cit., pág. 205). 6 Assim, concluiu o STJ no Ac. de 17-06-2004 (04P908 - Santos Carvalho): «Não são “factos” susceptíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado (“procediam à venda de produtos estupefacientes”, “essas vendas eram feitas por todos e qualquer um dos arguidos”, “a um número indeterminado de pessoas consumidoras de heroína e cocaína”, utilizavam também “correios”, “utilizavam também crianças”, etc.). As afirmações genéricas, contidas no elenco desses “factos” provados do acórdão recorrido, não são susceptíveis de contradita, pois não se sabe em que locais os citados arguidos venderam os estupefacientes, quando o fizeram, a quem, o que foi efectivamente vendido, se era mesmo heroína ou cocaína, etc. Por isso, a aceitação dessas afirmações como “factos” inviabiliza o direito de defesa que aos mesmos assiste e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art. 32º da Constituição.». Ou no Ac. de 2-07-2008 (07P3861 - Raul Borges): «Esta imprecisão da matéria de facto provada colide com o direito ao contraditório, enquanto parte integrante do direito de defesa do arguido, constitucionalmente consagrado, traduzindo aquela uma mera imputação genérica, que a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido ser insusceptível de sustentar uma condenação penal – cf. Acs. de 06-05-2004, Proc. n.º 908/04 - 5.ª, de 04-05-2005, Proc. n.º 889/05, de 07-12-2005, Proc. n.º 2945/05, de 06-07-2006, Proc. n.º 1924/06 - 5.ª, de 14-09-2006, Proc. n.º 2421/06 - 5.ª, de 24-01-2007, Proc. n.º 3647/06 - 3.ª, de 21-02-2007, Procs. n.ºs 4341/06 - 3.ª e 3932/06 - 3.ª, de 16-05-2007, Proc. n.º 1239/07 - 3.ª, de 15-11-2007, Proc. n.º 3236/07 - 5.ª, e de 02-04-2008, Proc. n.º 4197/07 - 3.ª.». 7 Em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal (directo, necessário e eventual): intenção de realizar o facto típico, aceitação como consequência necessária da conduta, conformação ou indiferença pela realização do resultado previsto como possível. 8 Cfr. Figueiredo Dias, “Jornadas de Direito Criminal”, Fase I, ed. do Centro de Estudos Judiciários, 1983, p. 71-72 e Rev. Port. de Ciência Criminal, Ano 2, 1º, p. 18-19. 9 Ainda Figueiredo Dias, em “Direito Penal, Parte Geral”, I, Coimbra Editora, 2004, p. 333. 10 P. 430/15.3GEGMR.G1, relatado pelo Desembargador Jorge Bispo.