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CESSÃO DE CRÉDITO
MEIOS DE DEFESA OPONÍVEIS PELO DEVEDOR
Sumário
I– Ao devedor cedido, enquanto terceiro quanto ao acordo de cessão de créditos, a lei concede o direito de opor ao cessionário os meios de defesa que podia invocar contra o cedente, pelo que se excluem do círculo dos meios de defesa oponíveis pelo devedor todas as circunstâncias que digam respeito à causa da cessão, pois que estas interessam apenas às relações entre cedente e cessionário.
Texto Integral
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES-
I. Relatório
“Calendário X, Lda.”, veio, por apenso à execução sob o n.º 2601/10.0TBBCL, requerer a sua habilitação nos autos executivos, no lugar do exequente.
Para o efeito, alega que, por contrato de cessão de créditos, a requerente adquiriu o crédito exequendo, com transmissão dos respectivos direitos e garantias.
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Notificada a parte contrária, veio o executada/requerido A. C. apresentar contestação, alegando, em síntese, que:
1º - O contrato de cessão de créditos não havia sido antes deste incidente comunicado ao executado/requerido, o que a torna ineficaz em relação ao requerido;
2º - A cessão de créditos apenas foi outorgada pelas partes que nela intervieram (exequente e requerente, sendo aquele representante legal desta) com o único objectivo de permitir que a requerente possa requerer a adjudicação dos bens penhorados na execução, com dispensa do depósito do preço, evitando despesas com escritura e pagamento de impostos, permitindo a transmissão dos bens directamente para a requerente, sendo que o preço da cessão não foi pago. Refere ainda que a cessão prejudica o Estado, pelos impostos que não serão pagos com a aquisição dos bens penhorados e prejudica os executados, por os bens serem vendidos por valores inferiores aos valores de mercado. Conclui, por isso, o requerido que o contrato de cessão foi simulado.
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A requerente, na sequência de interpelação do tribunal quanto à forma do contrato de cessão de créditos, veio alegar ter agora autenticado tal contrato, juntando a autenticação, com ratificação do mesmo.
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O requerimento da requerente foi admitido como articulado superveniente e, notificada a parte contrária, veio o requerido contestar, mantendo, no fundo a posição vertida na contestação.
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Considerando o tribunal a quo, face à prova junta julgada suficiente, por não haver qualquer diligência probatória relevante a produzir, foi proferida sentença, que deferiu a requerida habilitação de cessionário e, em conformidade, declarou habilitada a requerente, para com ela, no lugar do exequente, prosseguir a execução.
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II-Objecto do recurso
Não se conformando com essa decisão, A. C., requerido, veio interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
A - QUESTÃO PRÉVIA: DA NULIDADE DA SENTENÇA
1 ° - Ao não produzir prova para aferir do pagamento ou não pagamento do preço constante da cessão de crédito, o douto tribunal recorrido deixou de apreciar questões que devia ter apreciado, ao abrigo do artigo 615°, n. ° 1 al. d) do C.P.C., pelo que a sentença é nula
B - DO RECURSO
2° - O recorrente não pode conformar-se com a douta sentença proferida nos presentes autos, que deferiu o incidente de habilitação de cessionário e em consequência declarou habilitada a requerente, para com ela, no lugar do exequente, prosseguir com a execução.
3° - É nosso entendimento que a contestação oferecida merecia provimento e o incidente deveria ter sido declarado improcedente, pelo que, o que está em causa, no presente recurso é apurar se há fundamentos legais para a impugnação da validade do ato de cessão de crédito.
4° - Resulta da sentença recorrida que o Mmo Juiz "a quo" julgou suficientes os documentos juntos nos autos, e assim prescindiu da produção de qualquer outra diligência probatória relevante e por isso, com base nos documentos juntos, entendeu que os requisitos do instituto da simulação não estavam preenchidos.
5° - Também para o tribunal "a quo" a questão do preço é irrelevante como circunstância invalidante da cessão, e que o contrato de cessão de créditos é válido perante a junção, pela Apelada, dos termos de autenticação pelo Notário, cumprindo assim o disposto no artigo 578° do C.C.
6° - Mas, salvo melhor opinião, não foi produzida prova suficiente para aferir do preenchimento de todos os elementos integradores do conceito de simulação, pelo que existe vício de insuficiência da matéria de facto, que aqui expressamente se alega nos termos do artigo 662°, n.º 2 c), e que conduz à anulação da decisão judicial proferida nos presentes autos.
7° - Refere a douta sentença colocada em crise, que o Apelante não alega factos que consubstanciem a divergência entre a vontade e a declaração negocial das partes na cessão de créditos, o primeiro requisito para a existência da simulação.
8° - Contudo, nenhuma sessão de julgamento foi realizada e por ISSO, o Requerido não pode produzir a sua prova e demonstrar a existência de simulação nos presentes autos.
9° - E mesmo que o articulado do Apelante padecesse de irregularidades na alegação dos factos atinentes ao pressuposto enunciado, este não foi convidado a aperfeiçoar o seu articulado, ao abrigo dos números 2, 3 e 4 do artigo 590° do C.P.C., o que permitiria a discussão em sede de primeira instância de uma cessão de créditos simulada.
SEM PRESCINDIR,
10° - Corresponde à verdade que na contestação ao incidente de habilitação de cessionário, o artigo 356°, n.º 1 al. a) do C.P.C. permite aos requeridos a utilização de dois fundamentos para obstar à procedência do incidente. Mas no que concerne à validade do acto, ensinam-nos Lebre de Freitas e Isabel Alexandre que "o correspondente artigo 381 do CPC de 1939 limitava-se, na falta de oposição, a impor (a validade da transmissão segundo o seu objecto e a qualidade das pessoas que nela intervieram' [...] em vez da verificação de que (o documento prova a aquisição ou a cessão', o que levava Alberto dos Reis […] a fazer a interpretação extensiva do preceito, de modo a abranger também os casos de (nulidade extrínseca ou formal) e de (inexistência da cessão ou transmissão) (CPC anotado, 1.0 vol., 3.a edição, Coimbra Editora, 2013, pág. 692).
11 ° - E a seguir (pág. 693) lembram que "na contestação, pode ser impugnada a validade do acto, com qualquer fundamento de nulidade ou de anulabilidade da lei substantiva [...] e o tribunal conhece oficiosamente dos fundamentos de nulidade que não hajam sido alegados, mesmo não havendo contestação [...]".
12° - Infelizmente e apesar dos citados autores indicarem que o tribunal conhece oficiosamente dos fundamentos da nulidade, mesmo que não hajam sido alegados, o douto tribunal "a quo" considerou apenas e só que a simulação não se verificou, por ausência de alegação de factos, prescindindo de ser a verdadeira casa da Justiça!
13 ° - Mais, invoca a decisão agora em crise que a questão do preço não é condição invalidante da cessão, por o Apelado não ter legitimidade para discutir o cumprimento ou incumprimento da obrigação, e que a cessão pode ser gratuita.
14° - Em primeiro lugar, quanto à gratuitidade invocada pelo tribunal recorrido, se a vontade das partes era que a cessão fosse gratuita, a verdade é que estas estipularam um preço pela cessão. Por este prisma, há uma divergência na intenção das partes, isto é, entre a sua vontade - queriam celebrar uma cessão de créditos gratuita - e a declaração - estipulação de um preço e por isso, o requisito em falta expresso na sentença verifica-se.
15° - Em segundo lugar, de acordo com a doutrina supra exposta, é permitido ao Apelante discutir o cumprimento ou não cumprimento do contrato. É que o não pagamento obsta, na nossa humilde opinião, a que haja transmissão do crédito, pois estamos na presença de um contrato sinalagmático, com obrigações mútuas entre cedente e cessionário. E por isso, à Apelada não pode ser reconhecida a titularidade do direito que pretende exercitar no processo.
16° - Dito de outra perspectiva, o executado tem que ter acesso à prova do pagamento efectivo, como prova do cumprimento e transferência do crédito, para assim poder apreciar a sua validade formal ou qualquer outro fundamento de nulidade da lei substantiva. E é este argumento que conduz a jurisprudência, ignorada pelo tribunal recorrido, a afirmar que o Tribunal tem "de verificar se houve cessão ou transmissão, isto é, se está feita a prova legal do acto respectivo" - cfr. Ac. TRP, de 27/09/2004, Proc. 0453447 (Rel. Cunha Barbosa), in www.dgsi.pt
ALÉM DISTO,
17° - O Código Civil exige que a cessão de créditos hipotecários seja celebrada por escritura pública ou documento particular autenticado, nos termos do artigo 578° n.º 2 do C.C. Nos presentes autos, a cessão de créditos foi apenas e só titulada por um documento particular com reconhecimento de assinatura.
18° - Pelo que, o negócio é nulo por falta de forma. No entanto, considerou o douto tribunal recorrido que a junção dos termos de autenticação pela Apelada, 6 meses após a celebração do negócio, por articulado superveniente, é suficiente para sanar a invalidade decorrente da falta de forma.
190 - Ora, é nosso humilde entendimento que a junção tardia dos termos que transformam o documento particular em documento autenticado não permite sanar a irregularidade cometida aquando da celebração do contrato, pelo que o título notificado ao aqui Apelante é nulo por falta de forma, pois não foi celebrado por escritura pública, ou autenticado à data da celebração do negócio -19 de Abril de 2018. - por força do artigo 5780 n.º 2 C.C.
200 - Apesar da aposição da chancela notarial, a verdade é que o Notário não redigiu o contrato, não assistiu ao pagamento, não interveio na composição do negócio através da celebração de uma escritura pública, pelo que, tais termos de autenticação e ratificação não fazem prova, principalmente 6 meses após a alegada realização do negócio jurídico aqui em causa, da cessão de créditos, ao abrigo do artigo 3770 do C.C.
210 - E mesmo que se considere que tenham a força probatória de documentos autênticos, estes documentos não conduzem à certeza de que o teor das cláusulas insertas no contrato corresponde à verdade, podendo por isso ser impugnados, como foram, nos presentes autos.
220 - Motivo pelo qual, nos presentes autos não se podia ter considerado como provado que o crédito exequente foi cedido à Apelante, nos termos do artigo 5770 do C.C. Perante isso, e como consequência do provimento da contestação do Apelante, devia ter sido proferida decisão judicial que obstasse à habilitação da Apelada nos presentes autos, e ter julgado improcedente o incidente de habilitação de cessionário.
230 - Foram violadas as disposições legais constantes dos artigos 5900 números 2, 3 e 4, 6150 n.º 1 al. d), e 6620 n.º 2 al. c), todos do C.P.C., bem como os artigos 3770 e 578 n.º 2 do C.C.
Termos em que, deve revogar-se a sentença recorrida, em conformidade com o atrás exposto, concedendo provimento à contestação do Apelante, tudo com as legais consequências devidas, fazendo V. Exas. a habitual JUSTIÇA!
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi recebido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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III-O Direito
Como resulta do disposto nos art..ºs 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 639.º, n.os 1 a 3, 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem das conclusões que definem, assim, o âmbito e objecto do recurso.
Deste modo, e tendo em consideração as conclusões acima transcritas cumpre decidir se a decisão padece de nulidade por não ter apreciado questões que devia apreciar, bem como se se verifica vício da insuficiência da matéria de facto para apreciação da simulação que impunha a realização das provas requeridas e se se verifica a nulidade do acto, quer por via da simulação que se invoca, quer pela inobservância da forma exigida por lei.
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Fundamentacão de facto
Factos provados
a) F. F. requereu execução, em 23.07.2010, contra os executados S. C. e A. C., para pagamento da quantia de € 207.523,28, por dívida decorrente de contrato de mútuo com hipoteca junto com o requerimento executivo e cujo teor aqui se dá por reproduzido.
b) A requerente “Calendário X, Lda.”, deduziu o presente incidente “de habilitação de cessionário:
a. juntando inicialmente documento particular, com reconhecimento de assinaturas, intitulado “Contrato de Cessão de Crédito”, em que o exequente figura como “cedente” e a requerente figura como “cessionária”, o qual se mostra junta com o requerimento inicial e cujo teor aqui se dá por reproduzido, constando do mesmo, além do mais, a referência a “…crédito do montante de 207.523,28…sobre S. C.…e A. C.…”.
b. Juntando, por requerimento de 25.10.2018:
i. o termo de autenticação do contrato referido em a., datado de 25.10.2018 e elaborado por notário, cujo teor aqui se dá por reproduzido;
ii. Bem como documento escrito com o título “Termo de Ratificação de Contrato de Cessão de Crédito”, acompanhado do termo de autenticação de 25.10.2018, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
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Fundamentação jurídica
Cumpre, em primeiro lugar, apreciar e decidir sobre a alegada nulidade que é imputada à decisão, baseada na invocada falta de apreciação de questões que devia apreciar.
Para o efeito, importa considerar que os vícios determinantes de nulidade da sentença correspondem a casos de irregularidades ou ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adoptado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia) — als. a) a e) do n.º 1 do art.º 615 do CPC.
Tais nulidades típicas da sentença reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito.
Consubstancia a nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do C.P.C., para o caso que agora nos interessa, quando o julgador deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
A previsão deste art. 615.º, n.º 1 al. d) está em consonância com o comando do n.º 2 do art.º 608.º do mesmo Código, em que se prescreve que «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
In casu, o recorrente fundamenta esta nulidade que invoca, no facto de não ter sido produzida prova para aferir do pagamento, ou não, do preço constante da cessão de créditos, o que manifestamente é diferente do fundamento que subjaz ao vício da nulidade prevista na al. d), do n.º 1, do art. 615.º, do Cód. Proc. Civil, que se prende, para o caso que agora nos interessa, com a falta de pronúncia por parte do julgador sobre questões que devesse apreciar.
Assim, ao ter o tribunal ‘a quo’, por ter considerado existirem já nos autos todos os elementos necessários para se pronunciar sobre as questões que importava decidir, apreciado e decidido todas elas, faz com que se tenha de considerar não existir manifestamente a nulidade arguida.
Pois, saber se necessário seria a produção de prova de outros elementos para a decisão a proferir prende-se já com a verificação, ou não, de uma causa de anulação da decisão proferida, ao abrigo do disposto no art. 662.º, n.º 2, al. c), do mesmo diploma, que é suscitada no presente recurso.
Para esse efeito importa, antes de mais, apurar se necessário seria, para apreciação da simulação invocada, a prova da existência, ou não, do pagamento do preço declarado na cessão de créditos.
Nesse sentido, o requerido invocou que a cessão de créditos apenas foi outorgada pelas partes que nela intervieram (exequente e requerente, sendo aquele representante legal desta) com o único objectivo de permitir que a requerente pudesse requerer a adjudicação dos bens penhorados na execução, com dispensa do depósito do preço, evitando despesas com escritura e pagamento de impostos, permitindo a transmissão dos bens directamente para a requerente, sem que o preço da cessão fosse pago.
Aduziu, ainda, que a declarada cessão prejudica o Estado, pelos impostos que não serão pagos com a aquisição dos bens penhorados e prejudica os executados, por os bens serem vendidos por valores inferiores aos valores de mercado.
Em primeiro lugar, importa ter em conta que a cessão de créditos - artigos 577.º e seguintes do Código Civil - consiste, nas palavras de Luís Manuel Teles de Menezes Leitão (Direito das Obrigações, Volume II, 2011, 8.ª Edição, Almedina, páginas 15 e 16) “… numa forma de transmissão do crédito que opera por virtude de um negócio jurídico, normalmente um contrato celebrado entre o credor e terceiro”.
Já o Prof. Antunes Varela refere tratar-se do “contrato pelo qual o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou uma parte do seu crédito (artigo 577.º)” – in “Das Obrigações em geral”, II, 6.ª ed. 293.
Refere ainda que “o termo cessão, tanto designa o acto (contrato) realizado entre cedente e cessionário, como o efeito fundamental da operação (a transmissão da titularidade do crédito)”, sendo que esta pode ser operada não só por via convencional, ou contrato de cessão, mas também por disposição de lei ou por decisão judicial (cf. o artigo 588.º CC).
Segundo Pires de Lima e Antunes varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, páginas 593 e 594, “a cessão de créditos é, assim, um negocio de causa variável ou policausal, podendo ter por base uma venda, uma doação, uma dação em cumprimento, uma dação pro solvendo, um negócio de garantia em benefício doutro crédito”. Daí que o regime aplicável à cessão de créditos – requisitos e efeitos da cessão entre as partes – se defina em função do tipo de negócio que lhe serve de base (n.º 1 do artigo 578.º do Código Civil).
Acresce que a cessão de créditos está na livre disponibilidade das partes, sem prévia dependência do consentimento do devedor, desde que entre este e o cedente não exista convenção que estipule limitação ou proibição de cessão de créditos.
Acontece que "o crédito transferido fica inalterado: apenas se verifica a substituição do credor originário para um novo credor” (cfr. STJ, de 10/03/2016, no âmbito do Processo n.º- 703/11.4TBVRS-A.E1.S1).
Certo é que a cessão não pode afectar, em termos de prejudicar, a posição que o devedor tinha para com o cedente (cf. Prof. A. Varela, ob. cit. 287 e nota 1; Prof. Vaz Serra, “Cessão de Créditos ou de Outros Direitos”, BMJ, 1955, 130; e Prof. Ribeiro de Faria, “Direito das Obrigações”, II, 2.ª ed., 539).
Relativamente ao seu âmbito, a cessão do direito de crédito importa, na falta de convenção contrária, a transmissão para o cessionário, das garantias e outros acessórios do crédito, desde que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente (art.º 582 nº 1 do Código Civil). São, portanto, transmissíveis, com o crédito, tanto as garantias reais – como a hipoteca – como as garantias pessoais (cfr. Menezes Leitão, Cessão de créditos, pág. 327).
Como a cessão exige uma fonte, uma causa – o negócio que lhe serve de base, que em princípio redunda num contrato – ela será inválida se o for este negócio. A cessão orienta-se pelas regras do facto transmissivo, designadamente no tocante à forma. Assim, a cessão de crédito sujeito a escritura pública ou equivalente, deve também ser feita por essa forma. Assim, tratando-se de uma cessão de créditos hipotecários e a hipoteca recaia sobre bens imóveis, deve ser feita por escritura pública ou documento particular autenticado (art.º 578 nº 2 do Código Civil). A especial exigência de forma justifica-se, neste caso, não apenas pela transmissão da hipoteca, como acessório do crédito, mas também pela necessidade do seu registo para que produza efeitos, mesmo entre as partes (art.º 687.º do Código Civil).
Posto isto, coloca-se a questão de saber se o devedor tem a faculdade de opor ao cessionário a nulidade do negócio que serviu de base à cessão de créditos. No caso, trata-se de saber se o requerido tem o poder de opor ao autor a simulação da venda do crédito.
Em matéria de meios de defesa oponíveis pelo devedor, o artigo 585.º do Código Civil estabelece apenas que “o devedor pode opor ao cessionário, ainda que este os ignorasse, todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, com ressalva dos que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão”.
A doutrina tem-se pronunciado de forma divergente quanto à questão enunciada, pela seguinte forma:
1. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, página 601, consideram que estão excluídos do “círculo dos meios de defesa oponíveis pelo devedor, todas as circunstâncias que respeitam à causa da cessão: estas interessam apenas às relações entre cedente e cessionário, e não ao devedor, que é um terceiro em relação ao facto da cessão”;
2. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão [Cessão de Créditos, Almedina, página 381, sustenta, em relação à questão, que “a melhor posição parece, no entanto, ser a de que as excepções relativas à cessão que impedem o cessionário de adquirir o crédito (inexistência da cessão, nulidade, ineficácia por falta de poderes representativos, não verificação de condição suspensiva) podem ser invocadas pelo devedor”;
3. Maria de Assunção Oliveira Cristas [Transmissão Contratual do Direito de Crédito, colecção teses, Almedina, página 150] afirma em relação à invocação da nulidade do negócio que serve de base à cessão que “… considerando que juridicamente o negócio nulo não produz efeitos, ele [refere-se ao devedor] deverá abster-se de cumprir perante o cessionário e, quando muito, consignar em depósito, a quantia em dívida de modo a exonerar-se. Além disso, é indiscutível que o devedor a pode invocar uma vez que, nos termos da lei, é invocável por qualquer interessado”.
Sem embargo disto, afigura-se-nos que o apelante, como devedor cedido que é, é simplesmente terceiro quanto ao acordo de cessão (v. Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 9ª ed., pág 760), não parecendo que goze do direito de impugnar tal acto. Na realidade, o que a lei (v. art.º 585.º do CC) lhe concede é apenas o direito de opor ao cessionário os meios de defesa que podia invocar contra o cedente. Dentro desta ordem de ideias, dizem Pires de Lima/Antunes Varela (Código Civil Anotado, anotação ao art.º 585.º) que se excluem do círculo dos meios de defesa oponíveis pelo devedor todas as circunstâncias que digam respeito à causa da cessão, pois que estas interessam apenas às relações entre cedente e cessionário. Também Antunes Varela (v. Das Obrigações em Geral, II, 3ª ed., pág 263) defende que são irrelevantes para o devedor os vícios do contrato de cessão. Pois, mesmo que a cessão viesse porventura a ser declarada nula ou anulada o pagamento não perderia a sua validade e eficácia (v. Antunes Varela, ob. cit., pág 264).
Certo que a simulação provoca nulidade, e esta pode ser arguida por qualquer interessado (art.º 286.º do CC). Só que a qualidade de interessado tem aqui de ser entendida como sendo o titular da relação cuja consistência possa ser afectada pelo negócio. Ora, o apelante não pode ser afectado pela pretensa nulidade da cessão, pois que a primitiva credora não goza do direito de exigir a repetição do pagamento feito à cessionária.
Neste mesmo sentido, defende Pestana de Vasconcelos, in “Dos Contratos de Concessão Financeira [Factoring]”, apud “Studia Iuridica”, 43, BFDUC, 1999, 314, que ficam fora da defesa do devedor cedido as circunstâncias do negócio causa da cessão, outorgado entre cedente e cessionário, do qual resultou a transmissão do crédito e que apenas relevam entre estes.
Certo é que quanto à questão formal, a requerente veio aos autos juntar a autenticação do contrato de cessão de crédito e ainda o termo autenticado de ratificação do mesmo, o que preenche os requisitos de forma previstos no aludido art. 578.º, n.º 2, do NCPC, pelo que se tem de considerar verificar-se a validade formal do contrato de cessão de créditos.
Já a entender-se que o requerido poderia arguir a invalidade do acto com base na simulação arguida, tal importaria apurar se alegados foram os fundamentos previstos no art. 356.º, n.º 1, al. a), do NCPC, cuja prova se entende que deveria ter sido produzida.
Ora, preceitua-se nesse preceito que “na contestação pode o notificado impugnar a validade do acto ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo”.
Alegou o então requerido a nulidade da cessão, por simulação.
Segundo o n.º 1 do art. 240.º do Código Civil, “se, por acordo entre declarante e declaratário e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado”. O negócio simulado, diz-nos o n.º 2 do art. 240.º do CC, é nulo. Nestes termos, a simulação é a divergência intencional entre o que se quer (a vontade) e o que se diz (a declaração), procedente de um acordo entre o declarante e o declaratário, no intuito de enganar terceiros.
São requisitos cumulativos da simulação:
1º - A divergência intencional entre a declaração negocial e a vontade real (o declarante não só tem consciência da divergência entre a vontade declarada e a real, mas quer ainda, de uma forma livre e propositada, emiti-la nesses termos);
2º - A existência de um conluio simulatório (pactum simulationis) em que as partes declaram ter realizado um acto que, na verdade, não quiseram realizar;
3º - O intuito de enganar ou iludir terceiros (o animus decipiendi), que não se confunde com o intuito de prejudicar, isto é, de causar um dano ilícito (animus nocendi).
A simulação diz-se absoluta quando os simuladores fingem realizar um certo negócio jurídico e, na verdade, não querem realizar negócio jurídico algum. Será relativa quando as partes pretendem realizar, de facto, um negócio, mas para iludir terceiros encobrem-no com um outro negócio jurídico de tipo ou conteúdo diverso (cfr. Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., Coimbra Editora, 1986, pp. 472/473).
Acontece que in casu, o requerido não alegou qualquer divergência entre a vontade e a declaração negocial de cessão de créditos, mas apenas a alegação do motivo que determinou as partes da cessão a assumirem a vontade que declararam: prejudicar o Estado e os executados.
Ora, no âmbito de um processo cível, a alegação de factos e a sua prova constitui o cerne fundamental sobre o qual incidirá uma decisão de mérito.
Pois, de acordo com o princípio do dispositivo, incumbe às partes alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções (forma de oposição), razão por que o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes.
Como tal, o poder inquisitório apenas confere ao juiz tomar em consideração na decisão os factos que "sejam complemento ou concretização de outros que as partes oportunamente hajam alegado", visando suprir certas deficiências da alegação, e não a completa omissão de factos essenciais à procedência da pretensão formulada ou da excepção deduzida, conforme decidiu o STJ no Ac. 01.07.2004, proc. 03B3417, Cons. Noronha do Nascimento, dgsi.pt, sem que seja possível ao tribunal suprir essa falta, substituindo-se às partes, sob pena de se instalar uma total insegurança e incerteza jurídicas, violando-se o princípio contraditório.
Já o facto do preço poder não ter sido pago igualmente como se referiu na decisão proferida é irrelevante como circunstância invalidante da cessão, por traduzir incumprimento do contrato de cessão pelo cessionário, dado que a cessão de créditos até poderia ser gratuita, nada obstando, por outro lado, que o cessionário (com ou sem o conhecimento do cedente) assuma a vontade de adquirir o crédito para obter os eventuais benefícios que a lei confere ao exequente na aquisição dos bens penhorados, de acordo com o previsto legalmente (cfr. arts. 802.º e 827.º do NCPC) e a dispensa do depósito do preço conferida pelo art. 815.º do NCPC.
Também a fixação do valor dos bens a vender é absolutamente independente da cessão.
Como tal, não se tendo alegado factos susceptíveis de integrar os pressupostos da simulação inútil seria o prosseguimento dos autos para produção de prova dos elementos que se requereu.
É que embora o direito à prova, como corolário do direito de acção e defesa, consagrado no art. 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), garanta a todos «o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (…)», tal não significa, porém, que o direito subjectivo à prova implique a admissão de todos os meios de prova permitidos em direito, em qualquer tipo de processo e relativamente a qualquer objecto do litígio.
Necessário se torna que a prova seja pertinente, adequada, necessária, útil, capaz de permitir a demonstração da factualidade que integra os fundamentos do instituto jurídico aplicável.
Se a prova que se pretende produzir for inócua para o desfecho da causa, inútil será a sua produção.
Já quanto à força probatória dos documentos ela circunscreve-se ao âmbito das declarações (de ciência e de vontade) que nele constam como feitas pelo respectivo subscritor, respeitando, no que toca aos documentos autênticos, apenas ao plano da formação da declaração, não ao da sua validade ou eficácia (cfr. Lebre de Freitas in A Falsidade no Direito Probatório, Almedina, Coimbra, pp. 55 e 56).
Mais especificando que, como tem sido entendido, de forma algo pacífica, a força ou eficácia probatória plena atribuída pelo n.º 1 do artigo 376.º do C.C. às declarações documentadas, limita-se à materialidade, isto é, à existência dessas declarações, não abrangendo a exactidão das mesmas, ficando, assim, por demonstrar que tais declarações correspondem à realidade dos respectivos factos materiais (cfr. Ac. do S.T.J. de 09-12-2008 in www.dgsi.pt., proc. n.º 08A3665).
Daqui decorre que o que as partes tivessem, ou não, declarado num determinado momento nunca abrangeria a prova da sua exactidão, pelo que, nesse aspecto carece de sentido o vertido nos pontos 19 a 22, das conclusões de recurso, para o efeito requerido de considerar não se ter feito a prova da cessão do crédito.
Nestes termos, tem, pois, de improceder o recurso, por se julgar ser de manter o decidido.
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IV-Decisão
Pelo exposto acordam os juízes desta 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, mantendo-se, consequentemente, a decisão recorrida
Custas pelo recorrente.
Registe e notifique.
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Guimarães, 3.10.2019
O presente acórdão foi elaborado em processador de texto pela primeira signatária e assinado electronicamente por:
Maria dos Anjos S. Melo Nogueira
Desembargador José Carlos Dias Cravo
Desembargador António Manuel Antunes Figueiredo de Almeida