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JOGOS DE FORTUNA OU AZAR
USURPAÇÃO DE DENOMINAÇÃO DE ORIGEM OU DE INDICAÇÃO GEOGRÁFICA
DETENÇÃO EM DEPÓSITO PARA VENDA DE PRODUTOS VITIVINÍCOLAS ANORMAIS
Sumário
I - Para o preenchimento do crime de exploração ilícita de jogo é suficiente que o jogo desenvolvido pela máquina explorada pelo agente atribua pontuação dependente exclusiva ou fundamentalmente da sorte.
Texto Integral
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
I. Relatório
No Processo Comum nº 234/15.3ECLSB, que correu termos no Juízo Local Criminal de Benavente do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, por sentença proferida em 14/12/2017, foi decidido (excepto matéria de custas e perda de bens):
1. Condeno o arguido VD pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo disposto nos artigos 1.º, 3.º e 4.º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 02-12, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 10/95, de 19-01, nas penas de:
a) 160 (cento e sessenta) dias de multa.
b) 7 (sete) meses de prisão.
2. Condeno o arguido VD pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um I - Para o preenchimento do crime de exploração ilícita de jogo é suficiente que o jogo desenvolvido pela máquina explorada pelo agente atribua pontuação dependente exclusiva ou fundamentalmente da sorte., p. e p. pelo artigo 8º, nº 2 do DL 213/2004 de 23/8, na pena de 7 (sete) meses de prisão.
3. Condeno o arguido VD pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de produtos vitivinícolas anormais p. e p. pelo artigo 7º, nºs 1 e 2 do DL 213/2004 de 23/8 (em concurso aparente com um crime de depósito e venda de géneros alimentícios anormais falsificados, destinados ao consumo público p. e p. pelos artigos 24º, nº 1, alínea a) e 82º, nº 2, alínea a) do DL 28/84 de 02.01) na pena de 60 (sessenta) dias de multa.
4. Em cúmulo jurídico das penas de multa referidas em 1.a e 3., condeno o arguido VD na pena única conjunta de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de € 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos), perfazendo o montante de € 1.100,00 (mil e cem euros).
5. Em cúmulo jurídico das penas de prisão referidas em 1.b e 2., condeno o arguido VD na pena única conjunta de 12 (doze) meses de prisão, que suspendo na execução por igual período, com regime de prova assente num plano de reinserção social a elaborar pela DGRSP (artigos 50º, 53º e 54º do Código Penal).
6. Condeno o demandado VD a pagar à demandante “Sociedade Q…, SA” a quantia de 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) acrescida de juros, à taxa legal, desde a data da notificação até ao efectivo e integral pagamento.
7. Condeno o demandado VD a pagar ao demandante AX a quantia de € 1.000,00 (mil euros).
Com base nos seguintes factos, que então se deram como provados:
1. No dia 23 de Outubro de 2015, pelas 17h15m, no café denominado “A”, sito na EN 114-3,…, Foros de Salvaterra, o arguido explorava aquele estabelecimento e tinha exposta ao público, ligada à corrente eléctrica, uma caixa em madeira, de cor preta, tendo como mostrador quatro “displays”, com um transformador.
2. A referida caixa em madeira contem no interior um mecanismo para introdução de moedas, moedeiro, e um sistema electrónico de transmissão sem fios que simula um relógio digital.
3. Após a introdução de uma moeda, na caixa que simula um mero expositor de revistas, na parede lateral esquerda, aparece automaticamente, no primeiro “display”, do lado esquerdo, um número. Se introduzir uma moeda de €1,00, aparece no “display” o número dois, o que significa que o utilizador tem direito a duas jogadas. Após, automaticamente, sem intervenção do utilizador, os três “displays” do lado direito iniciam o aparecimento de um número de 0 a 9 fixando-se aleatoriamente em cada “display”.
4. Depois, pode acontecer o seguinte: I. o utilizador é contemplado com o número zero nos três “displays”, pelo que o utilizador não terá direito a qualquer prémio e terá de tentar novamente, introduzindo novas moedas de €0,50, €1,00 ou €2,00; II. se o jogador obtiver jogadas premiadas e optar por apostar os pontos ganhos, pressiona um botão e o jogador aposta um ponto, tendo direito a duas jogadas.
5. O descrito jogo era utilizado pelos clientes que se deslocavam ao estabelecimento explorado pelo arguido, revertendo para este os lucros daí decorrentes.
6. O arguido não possuía qualquer licença de exploração ou autorização para explorar a aludida máquina, nem ao estabelecimento comercial onde a mesma se encontrava foi atribuído qualquer alvará que permitisse a exploração de máquinas ou jogos de fortuna ou azar.
7. O arguido sabia que o jogo desenvolvido através da descrita máquina dependia unicamente da sorte, que através do mesmo se poderiam ganhar prémios monetários, bem como que a explorava, ao facultar a sua utilização pelos seus clientes, para obter lucros, sem ter qualquer autorização para o efeito e teve vontade de efectuar a sua exploração nesses termos.
8. O arguido agiu sempre de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
9. A marca “Porto Alegre” encontra-se registada no INPI com o nº ---, sendo sua titular a “Sociedade Quinta…, SA”, que comercializa a bebida denominada “Porto Tawny”;
10. A marca “Rochedo” é titular da marca registada nº -- no INPI, sendo sua titular a “B.. – Indústria de Comércio e Bebidas, Lda.”, e comercializa a bebida denominada “Aguardente Bagaceira”;
11. A marca “Olaias” é titular da marca registada nº --- no INPI, sendo sua titular a “B… – Indústria de Comércio e Bebidas, Lda.”, que vende a bebida denominada “Licor de Ginja”;
12. A marca “Suera” é titular da marca registada nº --- no INPI, sendo o seu titular AX que comercializa a bebida denominada “Aguardente Bagaceira”.
13. Nas circunstâncias de tempo e lugar acima descritas, na zona de confecção de alimentos, o arguido guardava, para venda ao público, quatro garrafões em plástico transparente, da marca de água “Serrabrava”, que tinham no seu interior os seguintes líquidos:
a) Um dos garrafões tinha escrito à mão, na rotulagem, a menção “Porto” e tinha no seu interior um produto de cor vermelha ruby que se destinava ao enchimento das garrafas em vidro com a menção à marca Porto Alegre que anunciavam o produto “Vinho do Porto” e que se destinava a ser consumido pelos clientes do estabelecimento;
b) Um outro recipiente tinha escrito na rotulagem, a menção “Ginja” e tinha no seu interior um produto da de cor vermelha escura que se destinava ao enchimento das garrafas em vidro com a menção à marca “Olaias”, que anunciavam o produto “Licor de Ginja” e destinavam-se ao consumo do público;
c) Um recipiente que acomodava um líquido de cor acastanhada que se destinava ao enchimento das garrafas em vidro com a menção à marca “Suera” que anunciava o produto “Aguardente Bagaceira” e que se destinava ao consumo dos clientes;
d) Um recipiente que continha um líquido incolor e que se destinava ao enchimento das garrafas em vidro com a menção à marca “Rochedo” que anunciava o produto “Aguardente Bagaceira” que se destinava ao consumo dos clientes.
14. Contudo, em relação ao líquido acondicionado na garrafa com o rótulo “Vinho do Porto”, tratava-se de um vinho com título alcoométrico inferior ao correspondente limite legal e em incumprimento do previsto para o Vinho licoroso Porto, porquanto o título alcoométrico volúmico da bebida em questão é compreendido entre 19% vol. e 22º% vol, sendo que o valor apresentado pela bebida que o arguido vendia como sendo da referida marca apresentava um título volumétrico de 13,7% vol.;
15. No que diz respeito aos produtos vendidos como sendo “Aguardente Bagaceira” (das marcas Rochedo e Suera), eram destilados de origem agrícola sem características físico-químicas e sensoriais da aguardente de bagaço, ou seja, o líquido analisado e que se encontrava à venda tinha um aroma e sabor “a frutos” quando devia estar presente o aroma e sabor a “bagaço” pois a aguardente de bagaço é obtida exclusivamente a partir de bagaço de uvas fermentadas e destilados.
16. Com tal conduta, o arguido quis fazer crer, como conseguiu, aos seus clientes que estava a servir-lhes e estes a pagar-lhe bebidas “Vinho do Porto”, “Licor de Ginja” e “Aguardente Bagaceira” quando, na verdade, as bebidas em questão estavam adulteradas.
17. Os únicos elementos que aproximam todas as mencionadas bebidas das comercializadas pelas referidas marcas são as garrafas e rótulos originais.
18. Ao actuar da forma descrita, o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, no intuito de ter em exposição pública para entregar a terceiros, mediante contrapartida em dinheiro, as descritas bebidas, bem sabendo que não correspondiam às bebidas originais das marcas “Porto Alegre”, “Olaias”, “Suera” e Rochedo” que, dessa forma, afectava, como pretendia, os respectivos interesses comerciais e prestígio dos titulares do registo das mesmas, o que logrou alcançar.
19. Ao proceder à venda das bebidas que não correspondiam às bebidas originais das marcas supra descritas, pretendia, mercê do prestígio das mesmas, obter lucros indevidos, o que conseguiu.
20. O arguido sabia que não se pode produzir, preparar, fabricar, armazenar, deter em depósito, vender ou transaccionar por qualquer outra forma de produtos alimentícios falsificados destinados ao consumo público.
21. O arguido foi julgado e condenado por sentença de 26.10.2011 e transitada em julgado no dia 12.03.2012, proferida no Proc. nº --/09.6EASTR, que correu termos neste Tribunal, pela prática, no dia 10.03.2009, de um crime de exploração ilícita de jogo, tendo-lhe sido aplicada uma pena de 3 meses de prisão, substituída por 160 dias de multa à taxa diária € 7,00.
22. O arguido foi julgado e condenado por sentença de 15.01.2016 e transitada em julgado no dia 11.04.2016, proferida no Proc. nº --/14.5EAEVR, que correu termos neste Tribunal, pela prática, no dia 21.02.2014, de um crime de exploração ilícita de jogo, tendo-lhe sido aplicada uma pena de 5 meses de prisão, substituída por 150 dias de multa à taxa diária € 5,00 e, bem ainda, uma pena de 70 dias de multa à taxa diária de € 5,00.
23. O arguido foi julgado e condenado por sentença de 28.06.2016 e transitada em julgado no dia 14.09.2016, proferida no Proc. nº --/15.0GBBNV, que correu termos neste Tribunal, pela prática, no dia 27.012015, de um crime de exploração ilícita de jogo, tendo-lhe sido aplicada, em cúmulo material, uma pena de 320 dias de multa à taxa diária € 6,00.
24. O arguido foi julgado e condenado por sentença de 04.10.2016 e transitada em julgado no dia 08.05.2017, proferida no Proc. nº --/15.2GBBNV, que correu termos neste Tribunal, pela prática, no dia 21.02.2015, de um crime de exploração ilícita de jogo, tendo-lhe sido aplicada uma pena de 6 meses de prisão, substituída por 180 dias de multa à taxa diária € 7,00 e, bem ainda, uma pena de 180 dias de multa à taxa diária de € 7,00.
25. O arguido foi julgado e condenado por sentença de 05.12.2016 e transitada em julgado no dia 19.10.2017, proferida no Proc. nº --/15.3GBBNV, que correu termos neste Tribunal, pela prática, no dia 26.02.2015, de um crime de exploração ilícita de jogo, tendo-lhe sido aplicada uma pena de 3 meses e 15 dias de prisão, substituída por 120 dias de multa à taxa diária € 7,00 e, bem ainda, uma pena de 100 dias de multa à taxa diária de € 7,00.
26. O arguido aufere rendimentos mensais no montante de cerca de € 500,00, resultantes da exploração do café.
27. Vive sozinho, em casa arrendada, pagando de renda de casa a quantia de € 250,00.
28. Tem o 9º ano.
29. A demandante Sociedade Quinta do Portal SA está no mercado de vinhos há cerca de 23 anos.
30. A demandante Sociedade Quinta… SA, proprietária da marca “Porto Alegre”, exportava e exporta para muitos países.
31. Nos anos de 2015-2016, a Sociedade Quinta … SA vendeu entre € 120.000 a € 130.000,00 garrafas a um preço de cerca de € 3,20, acrescido de impostos e margens dos distribuidores.
32. Ao actuar da forma supra descrita, o arguido colocou em causa o prestígio, fama e imagem das marcas “Porto Alegre” e “Suera”.
A mesma sentença julgou os seguintes factos não provados:
a) O volume de negócios da sociedade Quinta … SA em território nacional ascendeu, no ano de 2016, a € 115.441,78.
b) Em consequência das condutas do arguido, as marcas “Porto Alegre” e “Suera” viram diminuído o seu número de vendas, com reflexos nas respectivas facturações.
Da referida sentença o arguido VD veio interpor recurso devidamente motivado, formulando as seguintes conclusões:
1 _ Os factos vertidos nos pontos 1 a 4 da matéria assente são insuficientes para a decisão quanto ao preenchimento do elemento objectivo do tipo de crime de exploração ilícita de jogo;
2 _ A decisão de facto contida no ponto 7, quanto á existência de "prémios monetários" não é fundamentada, existindo, na decisão recorrida, um salto lógico que não permite compreender, no confronto entre os meios de prova apresentados e a decisão em causa, porque é que se chegou a tal conclusão pois a máquina, fisicamente, não dá prémios e ninguém viu, no caso concreto, a fixação, atribuição ou pagamento de quaisquer prémios pelo Arguido, sejam eles monetários ou em espécie;
3 _ O Arguido deve ser absolvido do crime de exploração ilícita de jogo, refazendo-se o cúmulo jurídico pelos crimes pp pelos artº. 7º e 8º do DL 213/2004, para os quais o Arguido é primário, pelo que a pena final, em cúmulo, deverá ser convertida em multa, no montante julgado por adequada.
Termos em que deve conceder-se provimento ao presente recurso, com as legais consequências.
O recurso interposto foi admitido com subida imediata nos próprios autos, e efeito suspensivo.
O MP respondeu à motivação do recorrente, formulando, por sua vez, as seguintes conclusões:
1. A sentença recorrida não padece do invocado vício de insuficiência da matéria de facto dada como provada para a decisão, acertada, assinale-se, de ter considerado preenchido o tipo objectivo do crime de exploração ilícita de jogo, porquanto, contrariamente ao pretendido pelo arguido, recorrente, além do mais, foi dado como provado pelo Tribunal a quo que a máquina, em funcionamento, instalada no estabelecimento explorado pelo arguido, visava atribuir prémios em dinheiro.
2. Igualmente terá de improceder o invocado vício de falta de fundamentação do ponto sete dos factos dados como provados na sentença recorrida pois a Mma. Juiz a quo deixou ali plenamente expressas as razões da formação da sua convicção para dar como provado que, justamente, a máquina atribuía prémios monetários.
3. Para tal efeito estribou-se a Mma. Juiz a quo nas declarações prestadas pelo arguido, que o reconheceu, no depoimento da testemunha – inspector da ASAE – inquirida, no teor do relatório do exame pericial realizado à máquina, que igualmente concluiu no sentido de que a mesma visava atribuir prémios em dinheiro, e nas regras da lógica e máximas da experiência que nos dizem que não sendo o jogo em causa determinado por outro factor que não seja a mera sorte ou azar – isto é, não carecendo de qualquer perícia ou destreza, velocidade, pontaria ou memória do jogador – a colocação de moedas como modo de acionamento do funcionamento da máquina teria necessariamente na sua génese a expectativa de alcançar uma vantagem patrimonial, designadamente dinheiro.
Termos em que entendemos dever ser mantida nos seus exactos termos a sentença proferida pela Mma. Juiz a quo, negando-se provimento ao recurso interposto e julgando-se o mesmo, totalmente, improcedente.
Decidindo, Vossas Excelências farão justiça.
O Digno Procurador-Geral Adjunto junto desta Relação emitiu parecer sobre o mérito do recurso, defendendo a respectiva procedência parcial, no sentido de se ajuizar que a sentença recorrida enferma do vício de insuficiência da matéria de facto provada para decisão e da nulidade de falta de fundamentação e se determinar o seu reenvio à primeira instância para novo julgamento.
O parecer emitido foi notificado aos sujeitos processuais, a fim de se pronunciarem, o que não fizeram.
Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.
II. Fundamentação
Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.
A sindicância da sentença recorrida, expressa pelo recorrente nas suas conclusões, centra-se na invocação da insuficiência da factualidade dos pontos 1 a 4 da matéria provada e da falta de fundamentação do facto do ponto 7 da mesma enumeração, quanto à existência de prémios monetários com o consequente pedido de absolvição do arguido do crime de exploração ilícita de jogo, por cuja prática foi condenado.
O recorrente aponta à sentença recorrida as referidas anomalias, mas não extrai delas qualquer juízo jurídico-processual contrário à validade do acto decisório.
Em sentido contrário, tomou posição o Digno PGA, no seu douto parecer.
No entanto, antes de entrarmos na apreciação da pretensão recursiva, importa que nos ocupemos de uma outra patologia de que a sentença sob recurso enferma.
No ponto 1 do segmento decisório da sentença impugnada, consta a declaração que o Tribunal condena o arguido «pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo disposto nos artigos 1.º, 3.º e 4.º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 02-12, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 10/95, de 19-01».
Diferentemente, o relatório do mesmo acto decisório abre com a seguinte menção:
«O Ministério Público acusou, em processo comum singular com o nº 234/15.3ECLSB, o arguido
VD, (…)
Pela prática, em autoria material e na forma consumada, de:
i) Um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelos art.ºs 108.º e 115.º, em conjugação com o disposto nos artigos 1.º, 3.º e 4.º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 02-12, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 10/95, de 19-01».
A formulação constante do relatório é a que figura na acusação deduzida pelo MP a fls. 332 a 336.
Passamos a reproduzir as disposições do DL nº 422/89 de 2/12, com eventual relevo para a incriminação da conduta, pela qual o arguido responde:
- Art. 1º Jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte.
- Art. 3º 1 - A exploração e a prática dos jogos de fortuna ou azar só são permitidas nos casinos existentes em zonas de jogo permanente ou temporário criadas por decreto-lei ou, fora daqueles, nos casos excepcionados nos artigos 6.º a 8.º
2 - Para efeitos de exploração e prática de jogos de fortuna ou azar, haverá zonas de jogo nos Açores, no Algarve, em Espinho, no Estoril, na Figueira da Foz, no Funchal, em Porto Santo, na Póvoa de Varzim, em Tróia e em Vidago-Pedras Salgadas.
3 - A distância mínima de protecção concorrencial entre casinos de zonas de jogo será estabelecida, caso a caso, no decreto regulamentar que determinar as condições de adjudicação de cada concessão.
4 - Mediante autorização do membro do Governo da tutela, ouvida a Inspecção-Geral de Jogos, poderão as concessionárias das zonas de jogo optar pela exploração do jogo do bingo em salas com os requisitos regulamentares, em regime igual ao dos casinos, mas fora destes, desde que sejam situadas na área do município em que estes se achem localizados.
- Art. 4º 1 - Nos casinos é autorizada a exploração, nomeadamente, dos seguintes tipos de jogos de fortuna ou azar:
a) Jogos bancados em bancas simples ou duplas: bacará ponto e banca, banca francesa, boule, cussec, écarté bancado, roleta francesa e roleta americana com um zero; b) Jogos bancados em bancas simples: black jack/21, chukluck e trinta e quarenta; c) Jogos bancados em bancas duplas: bacará de banca limitada e craps; d) Jogo bancado: keno; e) Jogos não bancados: bacará chemin de fer, bacará de banca aberta, écarté e bingo; f) Jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas; g) Jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.
2 - É permitido às concessionárias adoptar indiferentemente bancas simples ou duplas para a prática de qualquer dos jogos bancados referidos na alínea a) do n.º 1 deste artigo.
3 - Compete ao membro do Governo da tutela autorizar a exploração de novos tipos de jogos de fortuna ou azar, a requerimento das concessionárias e após parecer da Inspecção-Geral de Jogos.
- Art. 108º 1 - Quem, por qualquer forma, fizer a exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados será punido com prisão até 2 anos e multa até 200 dias.
2 - Será punido com a pena prevista no número anterior quem for encarregado da direcção do jogo, mesmo que não a exerça habitualmente, bem como os administradores, directores, gerentes, empregados e agentes da entidade exploradora.
- Art. 115º Quem, sem autorização da Inspecção-Geral de Jogos, fabricar, publicitar, importar, transportar, transaccionar, expuser ou divulgar material e utensílios que sejam caracterizadamente destinados à prática dos jogos de fortuna ou azar será punido com prisão até 2 anos e multa até 200 dias.
Os arts. 108º e 115º do diploma legal em referencia tipificam indubitavelmente crimes distintos, mas a tipificação do art. 115º é manifestamente inapta a enquadrar a conduta objectiva do arguido descrita nos pontos 1 a 4, pelo que apenas pode estar em causa a prática por parte dele de um crime de exploração ilícita de jogo p. e p. pelo art. 108º.
O nº 1 do art. 108º pune como crime «a exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados».
O art. 1º contém uma definição genérica de jogo de fortuna e azar e o art. 3º define os locais onde a sua exploração e a sua prática são permitidas
O nº 1 do art. 4º comporta alíneas de a) a g), em que se estende uma lista, aparentemente não exaustiva de hipóteses típicas de jogo de fortuna e azar, pelo que, para que a apurada conduta do arguido seja punível enquanto crime e exploração ilícita de jogo, é necessário, antes de mais, que o jogo desenvolvido pela máquina, que ele explorava, cujas características se descrevem nos pontos 3 e 4 da matéria assente, integre alguma dessas hipóteses típicas.
Aqui chegados, impõe-se transcrever o trecho da fundamentação da sentença recorrida, na parte relativa ao enquadramento jurídico criminal dos factos, mais especificamente, o crime de exploração ilícita de jogo (transcrição com diferente tipo de letra):
1) Do crime de exploração ilícita de jogo:
Em conforme com o recorte proporcionado pela previsão típica, pratica o crime de exploração ilícita de jogo quem, por qualquer forma, fizer a exploração de jogos de fortuna ou azar - aqueles cujo resultado é contigente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte - fora dos locais legalmente autorizados, quais sejam, nos casinos existentes em zonas de jogo permanentes ou temporário ou, fora daqueles, nos casos excepcionados nos artigos 6º a 8º do aludido diploma legal (artigo 108º do diploma legal).
Dentro do elenco de jogos de fortuna ou azar previsto no artigo 4º do mencionado diploma legal estão incluídos os jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte (cfr. alínea g) do nº 1).
O artigo 159º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 422/89, reformulado pelo Dec. Lei n.º 10/95, define, por seu turno, as modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar como sendo “as operações oferecidas ao público em que a esperança reside conjuntamente na sorte e perícia do jogador, ou somente na sorte, e que atribuem como prémios coisas com valor económico”.
No n.º2 da referida disposição acrescenta-se que, na categoria aí prevista, se encontram também abrangidas as rifas, tômbolas, sorteios, concursos publicitários, concursos de conhecimentos e passatempos.
Preceitua, por seu turno, o artigo 160º, n.º 1, do mesmo diploma que a exploração de modalidades afins do jogo de fortuna ou azar e outras formas de jogo referidas no citado artigo anterior fica dependente de autorização do membro do Governo responsável pela administração interna. E no artigo 163º, qualificam-se tais condutas como contra-ordenações e estabelecem-se as punições respectivas para as violações ao disposto nos artigos 160º a 162º.
Assim, quer no crime de exploração de jogos de fortuna ou azar, quer nas modalidades afins, o resultado é contingente, por depender principal ou exclusivamente da sorte. O critério diferenciador, segundo consensualmente tende a ser entendido, deve buscar-se nos termos em que é estabelecida a relação com o público: ao passo que as modalidades afins supõem sempre a procura e oferta ao público, a sua directa interpelação pelos respectivos promotores, já a exploração dos jogos de fortuna e azar tout cour prescinde de um tal modus operandi, bastando-se com na mera colocação dos jogos em estabelecimentos pré-determinados e contando com o público aí se dirige para a respectiva prática.
Concretizando um pouco mais.
Enquanto as operações a que alude o artigo 159º correspondem a actividades limitadas, seja temporalmente, seja pela via do número de apostas possíveis, já os jogos, independentemente da classificação que seja de lhes atribuir, não têm uma vida útil pré-definida por natureza, antes se subordinando à progressiva vontade do explorador.
Por outro lado, se dúvidas poderão subsistir em qualificar como jogos de fortuna ou azar ou como modalidades afins as situações em que está apenas em causa pagamento de prémios em espécie, nenhuma dificuldade suscita qualificar um jogo que, para além de prémios em espécie, paga prémios em dinheiro.
Ora, no caso em apreço, o arguido explorava um café onde se encontrava, exposta ao público e ligada à corrente, uma caixa em madeira, tendo como mostrador quatro “displays”, com um transformador.
Esta caixa em madeira tem um mecanismo para introdução de moedas, moedeiro e um sistema electrónico de transmissão sem fios que simula um relógio digital.
Após a introdução de uma moeda, na caixa que simula um mero expositor de revistas, na parede lateral esquerda, aparece automaticamente, no primeiro “display”, do lado esquerdo, um número. Se introduzir uma moeda de €1,00, aparece no “display” o número dois, o que significa que o utilizador tem direito a duas jogadas. Após, automaticamente, sem intervenção do utilizador, os três “displays” do lado direito iniciam o aparecimento de um número de 0 a 9 fixando-se aleatoriamente em cada “display”.
Depois, caso o utilizador seja contemplado com o número zero nos três “displays”, não terá direito a qualquer prémio e terá de tentar novamente, introduzindo novas moedas de €0,50, €1,00 ou €2,00.
Caso obtenha jogadas premiadas e opte por apostar os pontos ganhos, pressiona um botão e o jogador aposta um ponto, tendo direito a duas jogadas.
Este jogo era utilizado pelos clientes que se deslocavam ao estabelecimento explorado pelo arguido, revertendo para este os lucros daí decorrentes.
Todavia, o arguido não possuía qualquer licença de exploração ou autorização para explorar a aludida máquina, nem ao estabelecimento comercial onde a mesma se encontrava foi atribuído qualquer alvará que permitisse a exploração de máquinas ou jogos de fortuna ou azar.
Considerando, pois, o que dito fica, dúvidas não subsistem de que a actividade desenvolvida pelo arguido integra o tipo legal que sucintamente vimos de analisar, já que, a par de todos os elementos já analisados, demonstrado resultou ainda que, ao explorar, em local não legalmente autorizado para o efeito, jogo exclusivamente dependente da sorte de cada utilizador e cujos proventos para si revertiam, o arguido actuou de forma livre e conscientemente, sabendo que tal conduta era ilegal e punível.
Destarte, inexistindo causas que excluam a ilicitude da conduta ou a culpa, importa concluir que o arguido praticou, em autoria material e na forma consumada, um crime de exploração ilícita de jogo de que vem acusado.
Como pode verificar-se, entendeu o Tribunal «a quo» que o jogo desenvolvido pela máquina explorada pelo arguido integrava a hipótese típica da al. g) do nº 1 do art. 4º do DL nº 422/89 de 2/12, nada tendo nós a censurar a tal enquadramento jurídico.
Nesta conformidade, a correcta qualificação jurídica da conduta ilícita de objectiva e subjectiva do arguido, descrita nos pontos 1 a 8 da matéria provada, seria um crime de exploração ilícita de jogo p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 108º nº 1, 4º nº 1 al. g), 1º e 3º do DL nº 422/89 de 2/12.
Tais eram as menções que deveriam constar do ponto 1 do decisório da sentença recorrida, o que não acontece.
Importa então averiguar se a deficiência constatada no ponto 1 do segmento dispositivo da sentença sob recurso, afecta a validade desta.
Em matéria de nulidades de sentença dispõe o nº 1 do art. 379º do CPP: É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;
Os nºs 2 e 3 do art. 374º do CPP são do seguinte teor: 2 - Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
3 - A sentença termina pelo dispositivo que contém: a) As disposições legais aplicáveis; b) A decisão condenatória ou absolutória; c) A indicação do destino a dar a coisas ou objetos relacionados com o crime, com expressa menção das disposições legais aplicadas; d) A ordem de remessa de boletins ao registo criminal; e) A data e as assinaturas dos membros do tribunal.
Interessará também ter presente o disposto no nº 1 do art. 380º do CPP: O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correcção da sentença quando:
a) Fora dos casos previstos no artigo anterior, não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374.º;
Tudo visto, teremos de concluir que a falta de indicação ou indicação deficiente, no segmento dispositivo da sentença, das disposições legais aplicáveis, não é geradora da nulidade prevista no art. 379º n 1 al a) do CPP, é mera irregularidade e pode corrigida, ao abrigo do disposto no art. 380º nº al. a) do CPP.
Consequentemente, será determinada, a final, a correcção do ponto 1 do dispositivo da sentença em crise.
A correcção, que irá determinada, não comporta alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, que tenha de ser comunicada, nos termos do nº 3 do art. 358º do CPP, na medida em que constitui mera especificação dos normativos indicados na peça acusatória.
Uma vez aqui chegados, torna-se possível conhecer da pretensão recursiva.
Alega o recorrente que os factos descritos nos pontos 1 a 4 da matéria provada são insuficientes para a decisão, porquanto deles não consta que o jogo desenvolvido pela máquina existente no estabelecimento explorado pelo arguido pague prémios monetários, enquanto no ponto 7 da mesma enumeração se refere que tal jogo podia atribuir prémios dessa natureza.
Num primeiro momento, importa reconhecer razão ao recorrente, quanto à discrepância por ele assinalada na matéria de facto dada como assente, pelo Tribunal «a quo».
Contudo, o mesmo já poderá dizer-se relativamente às consequências jurídicas que o recorrente pretende sejam retiradas dessa situação, a saber, a sua absolvição do crime de exploração ilícita de jogo, pelo menos após a correcção que iremos introduzir, a final, no ponto 1 do segmento dispositivo da decisão sob recurso.
Na verdade, a circunstância de o jogo desenvolvido pela máquina em referência, tal como vêm descritas as suas características, nos pontos 3 e 4 da matéria provada, é irrelevante para o preenchimento do tipo objectivo, na modalidade concretamente preenchida pelo arguido e que é a da al. g) do nº 1 do art. 4º do DL nº 422/89 de 2/12.
Para o preenchimento desta modalidade típica é suficiente que o jogo desenvolvido pela máquina explorada pelo agente atribua pontuação dependente exclusiva ou fundamentalmente da sorte, como é o caso, conforme decorre das características do jogo em causa nos autos, descritas nos pontos 3 e 4.
Por fim, a restante factualidade subjectiva é bastante para integrar a vertente subjectiva do tipo de crimes a que nos reportamos.
Como tal, terá o recurso de improceder.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
a) Ao abrigo do disposto no art. 380º nº 1 al. a) do CPP, determinar oficiosamente a rectificação do ponto 1 do segmento dispositivo da sentença recorrida, em termos de o seu proémio passar a ter a seguinte redacção:
«1. Condeno o arguido VD pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 108º nº 1, 4º nº 1 al. g), 1º e 3º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 02-12, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 10/95, de 19-01, nas penas de:»;
b) Negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
Notifique.
Évora, 8/10/19 (processado e revisto pelo relator)