LOCAÇÃO FINANCEIRA
LEGITIMIDADE PROCESSUAL
PROPRIEDADE HORIZONTAL
ASSEMBLEIA DE CONDÓMINOS
Sumário

I.– O regime legal especialmente previsto para a locação financeira permite concluir pela legitimidade do locatário financeiro de um imóvel constituído em propriedade horizontal para impugnar as deliberações tomadas em Assembleia de Condóminos respeitantes a despesas extraordinárias de reparação de partes comuns.

II.– Excluídos da actuação do locatário estão somente os direitos “(…) que, pela sua natureza, somente por aquele [locador] possam ser exercidos”, do que são exemplo a disposição de partes comuns ou alteração do título constitutivo.

(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral

Acordam os Juízes na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa.


I.Relatório:


A., Lda. intentou a presente acção contra B., C. e D., na qualidade de condóminos e por si mesmos representados, enquanto administradores do Condomínio do prédio sito na Rua ..., em Vila Franca de Xira, pedindo que se declarem nulas as deliberações tomadas em Assembleia Geral Extraordinária de Condomínio do mencionado prédio, realizada no dia 5 de Abril de 2016, com todas as legais consequências.
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Citados os RR. para contestar, estes invocaram, antes de mais, a ilegitimidade activa da A. porquanto, em síntese, esta é apenas locatária e não proprietária da fracção, não podendo reagir contra obras a realizar ou realizadas nas partes comuns nem exercer direitos que apenas competem ao proprietário da fracção em causa.

Notificada a A. para tanto, esta veio pronunciar-se por escrito sobre a excepção suscitada, pugnando pela sua improcedência.

Em sede de Audiência Prévia foi proferida decisão julgando procedente a invocada excepção e consequentemente, declarando-se a A. parte ilegítima, absolvendo os RR. da instância, por se entender “(…) quanto à legitimidade, e à qualidade de condómino, que a Autora não tem, impõe-se distinguir consonante se tratem de eventuais irregularidades na convocação dos condóminos que apenas podem dar lugar a deliberações anuláveis, como aliás é o peticionado, ou se se tratam de deliberações nulas e impugnáveis por qualquer interessado, porque contrárias à Lei, violando normas gerais imperativas, vide, Sandra Passinhas, in " A Assembleia de Condómino e o Administrados na Propriedade Horizontal", 2a Edição, Almedina, pág. 252.

In casu, trata se de impugnação de deliberações tomadas em Assembleia de Condóminos que apenas podem ser impugnadas, pelos condóminos - veja-se quanto à anulabilidade das mesmas, Ob Cit., págs. 245/246.

O locatário, não se confunde com o locador, e proprietário da fracção em causa, que este sim, é o condómino (art.° 1420°, n.°1).

Como aduzem os Réus e se preconiza, o contrato de locação financeira, tem como objecto a cedência do uso da coisa, no caso um imóvel (locação imobiliária), não transfere a propriedade da coisa, e pese embora os direitos que de facto assistem ao locador, nomeadamente os previstos no art.° 1424° do CC e art.° 10° do Dec. Lei n.° 149/95, de 24.06, e que o afastam de um mero arrendatário, também não lhe conferem os direitos que apenas assistem ao proprietário, como in casu, no confronto com os demais comproprietários das partes comuns, acordar na realização de despesas extraordinárias ou na diferente comparticipação nas despesas comuns.

No caso, de nelas não concordar e apenas na medida em que possa constituir uma alteração substancial do acordado em sede de locação financeira, influirão na relação locador/ locatário mas não na relação com os demais comproprietários das partes comuns do Prédio onde se insere a fracção, objecto de locação.”

Inconformada com tal decisão recorreu a A., apresentando as seguintes conclusões:
“1 Incumbe à locatária, ora Recorrente, pagar as despesas correntes necessárias à fruição das partes comuns de edifício e aos serviços de interesse comum, bem como promover e suportar as reparações ordinárias e extraordinárias no imóvel locado e, em particular, nos termos do artigo10°, n° 1, alíneas b) e f) do referido diploma, “Pagar, em caso de locação de fracção autónoma, as despesas correntes necessárias à fruição das partes comuns de edifício e aos serviços de interesse comum” e “realizar as reparações, urgentes ou necessárias, bem como quaisquer obras ordenadas pela autoridade pública.
2 Assim, todas despesas inerentes à fracção autónoma em causa, designadamente as despesas inerentes ao condomínio e reparações nas partes comuns, são suportadas pela ora Recorrente.
3 O Locador, Banco Popular SA, não tem qualquer interesse em reagir relativamente a eventuais deliberações, ainda que nulas, ou anuláveis, que acarretem o pagamento de obras relativamente a partes comuns do edifício onde se insere a fracção autónoma objecto do contrato de locação, já que o mesmo faz repercutir o valor desses pagamentos sobre a Recorrente, debitando tal valor na conta à ordem associada ao contrato de locação.
4 O artigo 10.° n° 2 alínea e) do Decreto-Lei n.° 149/95 de 24 de Junho, consagra a possibilidade de o locatário “Exercer, na locação de fracção autónoma, os direitos próprios do locador, com excepção dos que, pela sua natureza, somente por aquele possam ser exercidos”.
5 Será a Recorrente quem terá que suportar as despesas inerentes às deliberações tomadas na Assembleia Geral Extraordinária de Condóminos, realizada no dia 5 de Abril de 2016, pelo que se torna evidente que a tem interesse directo em Demandar os Réus, ora Recorridos, uma vez que da procedência, ou improcedência, da acção, dependerá a sua obrigação de pagar, ou não pagar, as verbas cujo pagamento foi deliberado na mencionada Assembleia.
6 A Recorrente não é, juridicamente, a proprietária do bem locado, mas é a “proprietária” económica do bem.
7 A lei não confere legitimidade activa, ou passiva, ao locatário num contrato de arrendamento comum, relativamente a questões relacionadas com as partes comuns.
8 O contrato de locação financeira locatário financeiro tem regras especiais que o adaptam a uma situação particular, cuja especificidade reclama um tratamento jurídico também especial e nessa medida, as normas do artigo 10° n° 1 alínea b) e n° 2 alínea e) do Decreto-lei 149/95, de 24 de Junho - diploma que estabelece o regime jurídico da locação financeira - tem regras especiais que, sem contrariarem substancialmente o regime da propriedade horizontal, o adaptam a essa mesma situação particular, cuja especificidade reclama um tratamento jurídico também especial.
9 Conferindo à locatária legitimidade activa e passiva relativamente a questões relacionadas com as partes comuns, com excepção daquelas que, pela sua natureza, somente possam ser exercidos pelo locador.
10 A anulação de deliberações aprovadas em Assembleia Geral Ordinária de Condóminos, na qual foi aprovada uma deliberação no sentido da criação de uma quota extraordinária para proceder a trabalhos de reparação das partes comuns, uma outra deliberação no sentido da criação de uma outra quota para pagamento de trabalhos a empresa que efectuou a gestão do condomínio e finalmente uma outra referente ao orçamento para o ano de 2016 (como sucedeu na Assembleia realizada no dia 5 de Abril de 2016), não integra o leque questões de relacionadas com as partes comuns, que, pela sua natureza, somente possam ser exercidos pelo locador.
11 As questões que “pela sua natureza” só poderão ser exercidas pelo locador, serão apenas aquelas que restrinjam, diminuam ou alterem o direito de propriedade destes relativamente a essas mesmas partes comuns.
12 A entender-se de outra forma, o locatário, sobre o qual impede efectivamente a obrigação de pagar os encargos inerentes às partes comuns, ver-se-ia impossibilitado de reagir contra eventuais deliberações da Assembleia de Condóminos, ainda que estas sejam nulas ou anuláveis e impliquem a obrigação desses mesmos pagamentos.
13 A ora Recorrente tem assim legitimidade activa e passiva relativamente às deliberações relacionadas com as partes comuns objecto da presente acção, quando estas se referem apenas à criação de uma quota extraordinária para proceder a trabalhos de reparação das partes comuns, à criação de uma outra quota para pagamento de trabalhos a empresa que efectuou a gestão do condomínio e finalmente uma outra referente ao orçamento para o ano de 2016, como aliás se decidiu no douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido 23.02.2012, no âmbito do processo 5564/10.8TBMTS.P1, in www.dgsi.pt - “O locatário financeiro de fracções autónomas de um prédio constituído em propriedade horizontal tem legitimidade para impugnar as deliberações tomadas na respectiva assembleia de condóminos”.
14 O estatuto do locatário financeiro é, em tudo, idêntico ao de qualquer condómino, sendo sobre ele que impende não só a responsabilidade pelo pagamento de despesas, mas também os direitos inerentes aos de qualquer proprietário, com excepção dos que, pela sua natureza, somente possam ser exercidos pelo locador.
15 Deste modo, a Recorrente é parte legítima na presente acção.
16 Deve assim ser revogada a douta sentença agora em crise, que declarou a ora Recorrente parte ilegítima e absolveu os Réu da instância e substituída por uma outra que declare a legitimidade da mesma e que consequentemente ordene o prosseguimento da instância.”

O recurso foi admitido como de apelação.

Colhidos os vistos cumpre decidir.
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II.Questão a decidir:
Como resulta do disposto pelos artigos 5º; 635º, n.º 3 e 639º  n.º 1 e n.º 3, todos do Código de Processo Civil, e é jurisprudência consolidada nos Tribunais Superiores, para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que no caso concreto a questão a apreciar consiste em saber se o locatário de fracção de um imóvel constituído em propriedade horizontal, por força de um contrato de locação financeira, pode impugnar as deliberações tomadas em Assembleia de Condóminos.
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III.Fundamentação de facto:
Os elementos fácticos a considerar para o conhecimento da invocada excepção, que se mostram admitidos por força das posições assumidas pelas partes e dado que os mesmos não se encontram fixados na decisão a quo, são os seguintes:
1. Mostra-se registada a aquisição por compra da fracção “A” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Franca de Xira sob o n.º …, inscrito na matriz sob o artigo …, sito na Rua …, Vila Franca de Xira, pela Ap. … de 28/10/2008 a favor do Banco Popular Portugal, S.A.
2. Mostra-se registada a locação financeira, por transmissão de posição, da referida fracção, a favor da A., pela Ap. 3… de 16/12/2009.
3. Por convocatória datada de 11 de Março de 2016 a A. foi convocada para uma Assembleia Geral Extraordinária de Condóminos do prédio em causa a realizar no dia 5 de Abril de 2016, pelas 19h30m, com a seguinte ordem de trabalhos:
1- Ponto de situação da obra da cobertura, apresentação de factura final e pagamento do valor em dívida à ARIEPE (trabalhos a mais – substituição dos restantes 50% do pagamento).
2- Pagamento do valor em dívida à CREDIS.
3- Apresentação e verificação das apólices de seguro de todas as fracções.
4-  Infiltrações reportadas pelo locatário da loja – fracção A.
5- Outros assuntos de interesse geral.
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IV.O Direito:
A definição de legitimidade está plasmada no art.º 30º do Código de Processo Civil, dispondo o autor de legitimidade quando tem interesse directo em demandar, o qual se exprime pela utilidade derivada da procedência da acção. Na falta de indicação da lei em contrário, os titulares do interesse relevante para efeito de legitimidade são os sujeitos da relação material controvertida, tal como vem configurada pelo autor.

Segundo o nº 1 do artigo 1433º do Código Civil, “As deliberações da assembleia contrárias à lei ou a regulamentos anteriormente aprovados são anuláveis a requerimento de qualquer condómino que as não tenha aprovado”. São assim requisitos para assegurar a legitimidade activa nas acções de impugnação das deliberações da Assembleia, ou para requerer a respectiva suspensão: deter a qualidade de condómino e não ter aprovado a deliberação que é posta em crise.

O artigo 1433º do Código Civil atribui aos condóminos a legitimidade para intentar acção de anulação de deliberação da assembleia de condóminos (não estando em causa na presente acção a nulidade, a ineficácia ou inexistência da deliberação – veja-se quanto a estas o que é referido por Sandra Passinhas, A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, 2º Edição, Almedina, pg. 250 a 258, obra aliás citada na decisão em recurso).

De acordo com o artigo 1420º do Código Civil, cada condómino “é proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do prédio”.

Assim, da leitura deste normativo resulta que o condómino coincide com o proprietário da fracção; ou seja, a qualidade de condómino coincide com a titularidade do direito de propriedade da fracção.

A A. não é titular do direito de propriedade, sendo locatária financeira da fracção “A”.

Deste modo, e num entendimento literal dos preceitos, tem vindo a ser considerado por alguma jurisprudência que resulta das normas citadas que as locatárias financeiras não assumem, nos termos dos artigos 1420º e 1424º do Código Civil, a qualidade de condómino, carecendo de legitimidade para intentar acções como a que está agora em causa.

Neste sentido, veja-se o que é dito no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/6/2008, Proc. n.º 08A1755, disponível em www.dgsi.pt:
“Segundo o nº 1 do artigo 1433º do Código Civil, “As deliberações da assembleia contrárias à lei ou a regulamentos anteriormente aprovados são anuláveis a requerimento de qualquer condómino que as não tenha aprovado”.

Assim, (…) os únicos requisitos necessários e suficientes para assegurar a legitimidade activa nas acções de impugnação das deliberações da Assembleia, ou para requerer a respectiva suspensão, são apenas dois: ser titular de uma fracção autónoma, ou seja, deter a qualidade de condómino, e, além disso, não ter aprovado a deliberação que é posta em crise. (cfr. Abílio Neto, “Manual da Propriedade Horizontal”, 3ª edição, pág. 348).

Estabelece o nº 1 do artigo 1420º do referido diploma que “Cada condómino é proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício”.

Logo, atribuem-se aqui ao condómino, em geral, os poderes próprios do proprietário singular, pelo que respeita à fracção que lhe pertence. Assim, tais poderes constituem como que a matriz do direito do condómino (cfr. Luís Carvalho Fernandes, “Lições de Direitos Reais”, 3ª edição, pág. 365).).”

Mas tal questão tem vindo a ser debatida e discutida na doutrina e jurisprudência, tal como atesta o voto de vencido do Exm.º Conselheiro Urbano Dias no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça supra citado, posição com a qual, desde já se adianta, se concorda inteiramente.

No mesmo sentido da ilegitimidade, mas também com um voto de vencido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15/2/ 2018, Processo n.º 23245/15.4T8LSB.L1-6.

Efectivamente, há que atender ao regime específico da locação financeira, não podendo a aplicação da lei descolar-se da realidade hodierna.

Veja-se o que refere o Ilustre Conselheiro Urbano Dias no seu voto de vencido:
“É certo que este problema - objecto da nossa reflexão aqui e agora - não se punha nos tempos longínquos em que a propriedade horizontal foi regulamentada, em termos de direito positivo, no nosso Ordenamento Jurídico.
Quando entrou em vigor o Decreto-Lei n° 40333, de 14 de Junho de 1955, o legislador não tinha qualquer dúvida sobre a legitimidade da participação das assembleias de condóminos: só os proprietários das fracções tinham tal poder.
E os jurisprudentes não deixavam de fazer notar que este era um direito próprio dos proprietários. Que aos locatários não assistia tal direito.
E o problema continuou a não se colocar quando, tempos mais tarde, entrou em vigor o Código Civil de 1966.
É que a vida comercial não era, nesses tempos, tão imaginativa como é hodiernamente. Então, os negócios funcionavam dentro dos quadros típicos que estavam há muito consolidados.

Num interessante e profundo estudo, o Conselheiro Quirino Soares, com a sabedoria que põe em todas as cousas, olhando para o aparecimento de todos os novos contratos financeiros e garantias que os acompanham, v.g. desconto bancário, garantias à primeira solicitação, factoring, locação financeira, etc, acaba por ver em tudo isto como uma espécie de repetição, "sob a forma uniformizadora e em ambiente cibernético" de "velhas fórmulas jurídicas (...), numa espécie de eliminação do tempo, num eterno retorno".

Assim, há que analisar o regime da locação financeira para descortinar se do mesmo resulta uma conclusão diversa sobre a legitimidade da A. para intentar a acção em causa.

Mais uma vez, e com a devida vénia, se atenta nas palavras do Exmo. Sr. Conselheiro Urbano Dias:
 “Uma palavra de reflexão merece, em primeiro lugar, o instituto da locação financeira.

Diogo Leite Campos na análise à figura da locação financeira não deixa de apontar que o locador "não «explora» o bem, não dispõe de um bem que oferece em locação, não tem intenção de correr riscos próprios do proprietário, nomeadamente o risco económico da não rentabilidade da coisa e do seu perecimento", razão pela qual se desinteressa da coisa.

Por outro lado - acrescenta - os riscos são assumidos pelo utente e é ele que escolhe a coisa de acordo com as suas necessidades, acabando por concluir que "o locatário aparece, pois, como o «proprietário» (económico) do bem que paga integralmente durante o período do contrato, e cujos riscos assume" (A Locação Financeira, páginas 129 e 130).

E isto acontece porque "o contrato de locação financeira é, essencialmente, um negócio de crédito, ainda que vertido nos moldes da velha locação" (António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário - 3a edição - página 563).

Também João Calvão da Silva acentua esta nota ao dizer que "o locador tem a obrigação de conceder mas não de assegurar o gozo da coisa ao locatário", a este cabendo "a manutenção e conservação do bem em bom estado, efectuando todas as despesas necessárias. O que se revela harmónico com a função de financiamento desempenhada pela sociedade de leasing, que compra a coisa para a dar em locação financeira, com opção de compra final, e que, por isso mesmo, a partir da concessão da mesma ao locatário, se «desinteressa» dos riscos e responsabilidade conexos à sua utilização" (Estudos de Direito Comercial - Pareceres - Locação Financeira e Garantia Bancária, página 26).

Da natureza do contrato de leasing também nos dá conta Luís Manuel Teles de Menezes Leitão: "o leasing constitui uma operação complexa",... "tem a natureza de verdadeira garantia", ... "o leasing é uma operação de financiamento, que se reconduz a um empréstimo de dinheiro" e, ainda, que "para além dos direitos e deveres gerais do contrato de locação, cabem ao locador financeiro as faculdades de defender a integridade do bem, examiná-lo e fazer suas, sem compensação, as peças ou outros acessórios nele incorporados", mas "já as obrigações do locatário financeiro são moldadas pelo regime geral da locação" (Garantias Das Obrigações, página 277 e seguintes).

Também António Pedro A. Ferreira sublinha o elemento financeiro como sendo o seu traço distintivo e justifica: "De facto, uma avaliação substancial dos interesses que confluem na negociação em causa evidencia que a aquisição do bem e a sua posterior cedência em locação financeira constituem meros elementos instrumentais à sustentação creditícia assegurada a um dado investimento, permitindo ao investidor não correr riscos desnecessários de imobilização económica ou de obsolescência técnica".

Para este A., a locação financeira surge como "contrato novo, nominado e típico, específico da actividade bancária e genericamente orientado para a prossecução de função de financiamento" (Direito Bancário, página 631 e seguintes).

Mais longe vai José Simões Patrício, que, depois de acentuar que é o direito de aquisição por parte do locatário o elemento essencial do contrato, acaba por considerar o leasing como uma "verdadeira e própria operação de crédito, que não de simples financiamento", louvando a orientação perfilhada no acórdão deste Supremo Tribunal, de 11 de Dezembro de 2003, segundo a qual não pode aceitar-se «sem séria reserva a tese de que o contrato de locação é a matriz e o modelo da locação financeira e do seu regime» dado que isso seria «tomar o nome pela substância e, desse modo, a nuvem por Juno», fazendo tábua rasa da sua função económica que é essencialmente a de forma, modo ou instrumento de financiamento, facultado através do uso do bem escolhido pelo locatário, que a locadora adquire para esse efeito" (Direito Bancário Privado, página 319 e seguintes).

Gabriela Figueiredo Dias, depois de observar que o leasing apareceu e tirou protagonismo à venda a crédito com reserva de propriedade, não deixou de salientar as grandes semelhanças que existem entre ambas as figuras, frisando que "enquanto na compra e venda com reserva de propriedade a coisa (ou o seu domínio) é afectada à garantia do crédito do próprio vendedor, na locação financeira ela é afectada à garantia do crédito de um terceiro que não o fornecedor do bem em causa: a instituição financeira" (Reserva de propriedade, COMEMORAÇÕES DOS 35 ANOS DO CÓDIGO CIVIL - VOLUME III -, páginas 441 a 443).

E isto porque, como sabemos, só bancos e as sociedades de locação financeira (estas são instituições de crédito que têm por objecto principal o exercício da actividade de locação financeira) podem celebrar, de forma regular, na qualidade de locadores, contratos de locação financeira (ut artigos 1°, n° 1 e 4° do Decreto-Lei n° 72/95, de 15 de Abril, com redacção dada pelo Decreto-Lei n° 285/2001, de 03 de Novembro).

Da leitura destes ensinamentos, retiramos a ideia de que a locação financeira nada tem a ver com a locação.

Esta é "o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição" - artigo 1022° do Código Civil.

Uma simples olhadela, fugaz que seja, para o regime jurídico do contrato de locação, suas características, regulamentação das várias vicissitudes ao nível do cumprimento e (ou) incumprimento, transmissão, inter vivos e mortis causa, formas de extinção, dá para perceber quão diferente é a realidade fáctica que lhe está inerente, bem diferente do que acontece com a locação financeira.”

Postas estas considerações sobre tal regime, sublinhe-se a circunstância, desde logo, da especificidade relativa à celebração dos contratos de locação financeira, apenas podendo bancos e sociedades de locação financeira celebrar contratos de locação financeira na posição de locador.

Tais instituições de facto desligam-se da execução do contrato no que na sua vertente económica se refere – por regra todas as despesas, custos, obrigações pecuniárias associadas ao bem correm por conta do locatário, limitando-se o locador a receber as rendas em conformidade com o acordado e desinteressando-se do restante.

Veja-se o que é referido por Gravato Morais, no Manual da Locação Financeira, págs.113 a 116): “o locador adquire o bem e, consequentemente, a sua propriedade, sendo que posteriormente concede (tão só) o seu gozo ao locatário durante um certo período de tempo, permitindo a este, no termo do contrato, a sua compra.

Portanto, durante o período de vigência do contrato de leasing financeiro, o locador permanece o proprietário. No entanto, (…) exime-se a qualquer tipo de responsabilidade decorrente do seu uso, exonerando-se também, entre outros, do risco de perda ou deterioração da coisa. A sua situação não é, pois, similar à de um típico proprietário. É, ao invés, sobre o locatário financeiro que impendem determinados encargos, que normalmente oneram o proprietário da coisa.

(…) o locador, apesar de ser titular de um direito real, não suporta os riscos inerentes ao uso do bem. (…) Não pode dispor isoladamente da coisa dada em locação. Apenas lhe é legítimo ceder a sua posição no contrato de locação financeira e, deste modo, transmitir a propriedade da coisa.

Já o locatário financeiro dispõe de um direito de gozo do bem – portanto um direito de natureza obrigacional – embora onerado com os riscos que normalmente gravam sobre o típico proprietário. No entanto, o locatário não pode vender a coisa, nem provocar a sua destruição, sendo que, por outro lado, o seu gozo deve respeitar o fim estabelecido no contrato.

Portanto, o direito de propriedade do locador comprime-se na exata medida do aumento do dominium utile do locatário. (…) a propriedade do locador tem uma natureza mista: por um lado, garante o risco económico de incumprimento do locatário; por outro, assegura a sua instrumentalidade no tocante à realização do financiamento.

Tais funções não são incompatíveis entre si. Pelo contrário, completam-se. Parece ser claro que a primeira finalidade assinalada está presente no quadro negocial da locação financeira: o interesse do locador consiste no pagamento da quantia por si antecipada, desconsiderando uma eventual restituição da coisa no termo do contrato (ou mesmo na sua vigência). A propriedade do bem visa assegurar, portanto, o capital adiantado. Por outro lado, também não pode deixar de se reconhecer o papel de intermediário financeiro do locador, que assume apenas e tão só os riscos que a este normalmente competem (ou seja, os de incumprimento e de insolvência do devedor), mas que, em simultâneo, concede ao locatário a mera disponibilidade da coisa que lhe pertence”. 

No caso em concreto, tenha-se presente a alegação da A. quando, na resposta à excepção deduzida pelos RR., refere que é a A. quem procede aos pagamentos de todas as despesas, nomeadamente, as despesas inerentes ao condomínio, incluindo as de reparações nas partes comuns, ou directamente à Administração do Condomínio ou pelo locador que faz posteriormente o respectivo débito na conta da A., invocando ainda que “neste contexto, o locador Banco Popular, S.A. não tem qualquer interesse em reagir relativamente a eventuais deliberações ainda que nulas, que acarretem o pagamento de obras relativamente a partes comuns do edifício onde se insere a fracção autónoma objecto do contrato de locação, já que o mesmo faz repercutir o valor desses pagamentos sobre a Autora, debitando tal valor na conta associada ao contrato de locação”.

Referem os Srs. Conselheiros, em posição maioritária, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça supra referido que: “Por outro lado, sendo o Locador o proprietário da fracção autónoma, será este o convocado para as Assembleias de Condóminos, e onde poderá tomar posição sobre as deliberações que possam afectar a sua fracção, bem como o imóvel do qual é condómino.

Caso este não queira comparecer a tais Assembleias poderá ser representado por qualquer outra entidade, nomeadamente, e o que se mostra razoável, no locatário, onde este poderá reagir contra qualquer violação do regime condominal.

Se quiser reagir contra qualquer deliberação tomada em Assembleia de Condóminos e que possa afectar a fracção, e caso obtenha anuência para tal, poderá obter procuração do locador para intentar a competente acção judicial.

Caso contrário, se o locatário tivesse legitimidade para impugnar as deliberações tomadas em Assembleia de Condóminos, poderia pedir a anulação de uma deliberação em que o locador tivesse estado presente e com a qual tivesse concordado.”

Mas afigura-se que, pelo contrário, ao locador será indiferente o teor de deliberações como as que estão em causa nos autos, porquanto, e como bem refere a A. nas suas conclusões, qualquer despesa aprovada irá sempre repercutir-se na esfera jurídica do locatário.

Assim, o que não se afigura razoável é não permitir ao locatário tal intervenção e consequente legitimidade para reagir nos termos do art.º 1433º do Código Civil.

Caso tal actuação venha a afectar o direito do locador, sempre poderá este reagir contra o locatário.

Deste modo, entende-se que o regime legal especialmente previsto para a locação financeira permite concluir pela legitimidade da A., na senda do que se tem estado a referir.

Senão, vejamos:

Aos condóminos compete pagar os encargos com a conservação e fruição das partes comuns dos edifícios e serviços de interesse comum, nos termos estabelecidos pelo art.º 1424º do Código Civil.
Esta regra geral sofre alterações à luz do regime aplicável à locação financeira.

Nos termos do artigo 1º do DL n.º149/95 de 24 de Junho, com a última redacção conferida pelo DL n.º 30/2008, de 25/02, a “Locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados.”

No artigo 9º, n.º 1 do mesmo normativo legal reiteram-se as obrigações decorrentes do contrato para o locador, ínsitas na sua própria definição jurídica:
“a)- Adquirir ou mandar construir o bem a locar;
b)- Conceder o gozo do bem para os fins a que se destina;
c)- Vender o bem ao locatário, caso este queira, findo o contrato;”
E no n.º 2 da mesma disposição prevê-se que:
“2 Para além dos direitos e deveres gerais previstos no regime da locação que não se mostrem incompatíveis com o presente diploma, assistem ao locador financeiro, em especial e para além do estabelecido no número anterior, os seguintes direitos:
a)- Defender a integridade do bem, nos termos gerais de direito;
b)- Examinar o bem, sem prejuízo da actividade normal do locatário;
c)- Fazer suas, sem compensações, as peças ou outros elementos acessórios incorporados no bem pelo locatário.”

Por sua vez, a lei estabelece para o locatário as obrigações decorrentes do artigo 10º do DL 149/95: 
“Posição jurídica do locatário
1 São, nomeadamente, obrigações do locatário:
a)- Pagar as rendas;
b)- Pagar, em caso de locação de fracção autónoma, as despesas correntes necessárias à fruição das partes comuns de edifício e aos serviços de interesse comum;
c)- Facultar ao locador o exame do bem locado;
d)- Não aplicar o bem a fim diverso daquele a que ele se destina ou movê-lo para local diferente do contratualmente previsto, salvo autorização do locador;
e)- Assegurar a conservação do bem e não fazer dele uma utilização imprudente;
f)- Realizar as reparações, urgentes ou necessárias, bem como quaisquer obras ordenadas pela autoridade pública;
g)- Não proporcionar a outrem o gozo total ou parcial do bem por meio da cessão onerosa ou gratuita da sua posição jurídica, sublocação ou comodato, excepto se a lei o permitir ou o locador a autorizar;
h)- Comunicar ao locador, dentro de 15 dias, a cedência do gozo do bem, quando permitida ou autorizada nos termos da alínea anterior;
i)- Avisar imediatamente o locador, sempre que tenha conhecimento de vícios no bem ou saiba que o ameaça algum perigo ou que terceiros se arrogam direitos em relação a ele, desde que o facto seja ignorado pelo locador;
j)- Efectuar o seguro do bem locado, contra o risco da sua perda ou deterioração e dos danos por ela provocados;
k)- Restituir o bem locado, findo o contrato, em bom estado, salvo as deteriorações inerentes a uma utilização normal, quando não opte pela sua aquisição.

2 Para além dos direitos e deveres gerais previstos no regime da locação que não se mostrem incompatíveis com o presente diploma, assistem ao locatário financeiro, em especial, os seguintes direitos:
a)- Usar e fruir o bem locado;
b)- Defender a integridade do bem e o seu gozo, nos termos do seu direito;
c)- Usar das acções possessórias, mesmo contra o locador;
d)- Onerar, total ou parcialmente, o seu direito, mediante autorização expressa do locador;
e)- Exercer, na locação de fracção autónoma, os direitos próprios do locador, com excepção dos que, pela sua natureza, somente por aquele possam ser exercidos;

f)- Adquirir o bem locado, findo o contrato, pelo preço estipulado”
Já no artigo 9º do Decreto-Lei n° 10/91, de 09 de Janeiro, pelo qual se alargou o regime da locação financeira ao domínio da habitação se previa:
"1 Nas situações de propriedade horizontal, o locatário assume, em nome próprio, todos os direitos e obrigações do locador relativos às partes comuns do edifício, suportando as despesas de administração, participando e votando nas assembleias de condóminos e podendo, nelas ser eleito para os diversos cargos.
2 Exceptua-se do disposto no número anterior tudo aquilo que implique a disposição de partes comuns ou alteração do título constitutivo".

Com a publicação do Decreto-Lei n° 265/97, de 2 de Outubro, pretendeu-se estabelecer “(…) um regime jurídico uniforme para o contrato de locação financeira, independentemente do respectivo objecto", como resulta do Preâmbulo do diploma, pelo que despareceu a referência expressa aos direitos e deveres do locatário financeiro de uma fracção integrada numa propriedade horizontal e se estabeleceu o que no art.º 10º supra citado se refere.

Deste modo, excluídos da actuação do locatário estão somente os direitos “(…) que, pela sua natureza, somente por aquele possam ser exercidos"; sendo uniforme na Jurisprudência que entre estes se encontra o que vinha previsto no n.º 2 do art.º 9º do Decreto-Lei n° 10/91 - a disposição de partes comuns ou alteração do título constitutivo. Veja-se, a propósito da alteração do título constitutivo o Ac. Do Supremo Tribunal de Justiça de 20 Dez. 2017, Processo n.º 1524/12.2TVLSB.L1.S1.  

Atente-se no que a este respeito refere Sandra Passinhas, A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, 2ª Ed., pág. 215: “Apesar da imperfeição da redacção do regime vigente, e das dúvidas que tem suscitado a sua aplicação, parece-nos que o sentido da lei se manteve, e que o locatário tem direito de participar nas reuniões da assembleia, onde exercerá o direito de voto. Esta solução encontra apoio no texto legal, quando a alínea e), do artigo 10º, determina que o locatário exerce os direitos próprios do locador.

A solução que propugnamos justifica-se pelo fim próprio do contrato de leasing: o financiamento do interessado. O leasing é um contrato de financiamento. As sociedades de locação financeira são instituições que não se dedicam à gestão da propriedade nem à actividade produtiva; por isso, não têm interesse na conservação da propriedade do bem e, muito menos, em assumir o papel de proprietário. A propriedade desempenha um papel fundamentalmente instrumental do financiamento, não sendo um fim em si mesmo. Daí que, no termos do contrato, normalmente, se verifique a aquisição da coisa pelo locatário (artigo 10º, n.º 2, alínea e)).”

Destas considerações resulta o entendimento, como defendido pela A. nas suas conclusões, que o locatário financeiro tem a “propriedade económica” da coisa locada.

No mesmo sentido da legitimidade do locatário, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto  de 23/2/2012, Proc. n.º 5564/10.8TBMTS.P1, este por sua vez igualmente com um voto de vencido.
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DECISÃO:
Por todo o exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, julgando-se a A. parte legítima, devendo em consequência os autos prosseguir os seus termos.
Custas pelos Apelados nos termos do art.º 527º, n.º 1 e n.º 2 do Código de Processo Civil.
Registe e notifique.



Lisboa, 1/10/2019
(posse dos subscritores a 5/9/2019)



Vera Antunes
Maria Manuela Espadaneira Lopes
Fernando Manuel Barroso Cabanelas