PROVIDÊNCIA CAUTELAR COMUM
CONCURSO PÚBLICO
Sumário

I - O decretamento de certas providências cautelares, principalmente as antecipatórias, pode criar uma situação de facto em benefício da requerente, com caraterísticas de definitividade, equivalente, na prática, à utilidade retirada da procedência da ação principal, existindo, todavia, alguns mecanismos legais que podem contribuir para compensar este possível efeito.
II - Pretendendo a requerente, no âmbito de procedimento cautelar comum, a anulação da decisão de adjudicação, pela 1.ª requerida/entidade proponente (uma Associação - entidade de direito privado), à 2.ª requerida (uma sociedade comercial), no âmbito de procedimento concursal que tem na sua génese o Regulamento (EU) n.º 1144/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2014 (relativo à execução de ações de informação e de promoção dos produtos agrícolas no mercado interno e em países terceiros), não é, pelo menos diretamente, aplicável ao caso o Código dos Contratos Públicos.
III - Inexistindo base legal para a peticionada anulação da decisão de adjudicação, os únicos direitos que poderão eventualmente emergir da situação alegada no requerimento inicial de (alegada) incorreta interpretação por parte da 1.ª requerida do anúncio, conducente à rejeição da proposta apresentada pela requerente, inserem-se no âmbito da responsabilidade civil, designadamente da “responsabilidade pré-contratual”, instituto que não se circunscreve ao âmbito puramente contratual, sendo de equacionar também em relação a negócios jurídicos unilaterais, incluindo em matéria de concursos públicos.
IV - Quando as especificidades da situação de facto tornem mais difícil o cálculo do quantum indemnizatório dos danos (ressarcíveis), podem ser procuradas respostas através da figura da indemnização pela perda de chance.
V - Considerando que os danos cuja dificuldade de quantificação a requerente invoca nem dizem respeito ao lucro que retiraria do contrato a celebrar com a 1.ª requerida (lucro cessante), mas ao lucro que poderia advir de (hipotéticos) futuros contratos que, eventualmente, poderia vir a celebrar com terceiros que porventura ficassem a conhecer o seu trabalho, executado no cumprimento daquele outro contrato, estamos perante meras expetativas, assentes em conjeturas, que não merecem a tutela do direito, não sendo sequer de considerar como provável a existência do direito a uma indemnização.

Texto Integral

Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO

LMO – Zona de Ideias, Imagem, Comunicação e Marketing, Lda. interpôs o presente recurso de apelação da decisão final que julgou improcedente o procedimento cautelar comum por si intentado contra Associação Agrícola de São Miguel (1.ª Requerida) e Consulai – Consultoria Agroindustrial, Lda. (2.ª Requerida).

No requerimento inicial, a Requerente peticionou, com requerimento de inversão do contencioso: (i) a anulação da decisão de adjudicação, pela 1.ª Requerida Associação Agrícola de São Miguel à 2.ª Requerida Consulai – Consultoria Agroindustrial, Lda., e de todos os atos subsequentes de execução, no âmbito do procedimento concursal que identificou; (ii) a admissão da proposta que apresentou nesse procedimento (iii) e, por conseguinte, a reavaliação de todas as propostas.
Alegou, para tanto e em síntese, o seguinte (omitimos o que se nos afigurou repetitivo ou despiciendo para a compreensão dos fundamentos de facto e de direito):
1.º A requerida Associação agrícola de São Miguel fez publicar em quatro jornais de circulação o anúncio de procedimento concursal com vista à seleção dos organismos responsáveis pela execução do programa UE FREE GRAZING DIARY relativo às ações de promoção dos produtos agrícolas no mercado de países terceiros.
2.º Para tal disponibilizou aos potenciais concorrentes um programa do procedimento (doc. 1) e caderno de encargos (doc. 2).
3.º A ora requerente, LMO – Zona de Ideias, Imagem, Comunicação e Marketing, Lda., em consequência, fez apresentar proposta através de e-mail enviado a 22 de dezembro de 2018 (doc. 3).
4.º A 2 de janeiro de 2019 foi a requerente informada do conteúdo do relatório de análise das propostas (doc. 4) no qual foi decidida a exclusão da sua proposta por ter apresentado proposta com o valor de «[...] 812.500,00€, ao qual acresce IVA à taxa de 18%, o que perfaz montante global de 958.750,00€, logo superior ao parâmetro base a que a proposta se deve vincular, ou seja ao valor máximo pela qual a entidade adjudicante pretende contratar ou seja ao valor de 884.834,00€.
5.º Inconformada, e tendo sido dado prazo para se pronunciar sobre a decisão, a ora requerente apresentou a sua pronúncia a 9 de janeiro de 2019 (doc. 5), invocando, no essencial que o preço a ser tido em conta para efeitos de determinação do preço base (e bem assim do preço da proposta) deveria ser o sem IVA, por se aplicarem subsidiariamente as normas do Código dos Contratos Públicos.
6.º A 15 de fevereiro de 2019 foi a ora requerente informada da “Proposta de Decisão Final” (doc. 6), que aqui se dá por integralmente produzido, e na qual a primeira requerida manteve a sua decisão de exclusão da sua proposta, com os mesmos fundamentos anteriormente aduzidos.
7.º Como iremos demonstrar, toda a linguagem do procedimento e a sua tramitação levam a que a única solução admissível perante as declarações negociais de todos envolvidos é usar como referência interpretativa o Código dos Contratos Públicos.
8.º Razão pela qual a requerente se sente lesada com a sua exclusão no procedimento pré-contratual em causa, tendo o direito a que a sua proposta fosse admitida, e consequentemente avaliada pelo júri do procedimento.
(…) 10.º Não se contesta que a primeira requerida seja uma entidade de privada, que se encontra fora do âmbito de aplicação da diretiva 2014/24/UE, por não ser uma entidade adjudicante (muito embora ela se autointitule assim nos documentos que instruem o procedimento, mormente o “programa do procedimento”!).
(…) 19.º Por isso mesmo, é ilegítimo considerar, como o júri afirmou na sua “proposta de decisão final” que «[...] as normas a que se encontra sujeita são as que resultam da legislação aplicável, na matéria, nomeadamente, o Regulamento Delegado UE 2015/1829, da Comissão de 23 de abril, que complementa o Regulamento n.º 1144/2014, do Parlamento Europeu e do Conselho e Regulamento de Execução UE 2015/1831 da Comissão de 7 de outubro. [...]».
(…) 22.º As únicas normas específicas a que podemos recorrer são as que constam do “programa do procedimento” que constituem um regulamento privado.
23.º Sendo com base nisso, nos princípios da interpretação das normas e das declarações negociais que verificaremos o verdadeiro sentido do conceito de parâmetro base, aspeto relevante para a decisão de exclusão da ora requerente.
24.º Primeiro que tudo, diga-se que, o próprio programa do procedimento menciona que a proposta de conter documento onde conste o preço total a pagar (ponto 6.4, al. i) do programa do procedimento) indicado em algarismos com a menção expressa de que ao mesmo [o preço total a pagar] acresce o IVA à taxa legal em vigor.
25.º Motivo pelo qual, fica claro que, mesmo pelo disposto pelo programa do procedimento, o preço total a pagar não inclui IVA!
26.º De todo o modo, a primeira requerida construiu um procedimento quase totalmente decalcado dos procedimentos de contratação pública.
27.º E nos termos do Código dos Contratos Públicos (artigo 473.º) «[...] Todas as quantias previstas no presente Código, bem como o valor do contrato, o preço base e o preço contratual, não incluem o imposto sobre o valor acrescentado. [...]».
28.º A questão que se prende é saber se, dado o teor do procedimento, deve ser o Código dos Contratos Públicos o diploma a aplicar supletivamente.
29.º Ora, sendo que não estamos perante um procedimento do Código dos Contratos Públicos, o lançamento do ‘concurso’, o respetivo anúncio, e peças do procedimento valem enquanto declaração negocial, nos termos gerais.
30.º E, nessa medida, será necessário aferir qual o verdadeiro sentido da declaração, nos termos do artigo 236.º do Código Civil.
(…) 34.º Assim sendo, no âmbito da doutrina da interpretação das declarações negociais, como iremos demonstrar, ainda que fosse a intenção da primeira requerida incluir o IVA no preço proposto, tal seria manifestamente irrelevante, por constituir uma interpretação que nenhum declaratário normal, na posição da ora requerente, teria.
(…) 48.º Em suma, não existe nenhuma razão de direito para que não seja aplicada a norma do CCP (artigo 473.º), que vale como interpretativa do programa do procedimento.
49.º E, por isso, a decisão do júri do procedimento de excluir a proposta da ora requerente é anulável, por contrariar o programa do procedimento, enquanto interpretado nos termos do artigo 473.º do Código dos Contratos Públicos.
(…) 55.º Sendo um contrato de prestação de serviços cuja execução decorre continuamente ao longo desses três anos.
56.º Ora, estão em causa serviços com uma componente artística e de design que vão afetar a comunicação da primeira requerida com entidades externas.
57.º E nessa medida após se iniciar a execução dos serviços em causa seria muito danoso para a mesma alterar a empresa responsável pela execução dos mesmos serviços.
58.º Logo, a propositura da ação declarativa correspondente não impediria a criação de uma situação de facto consumado na qual apenas seria possível ser ressarcido dos danos patrimoniais ou correspondentes.
59.º Para uma empresa, como é o caso da requerente, cuja atividade depende assenta nos trabalhos de “imagem, comunicação e marketing” (conforme consta inclusive da sua designação!), a perda de um importante palco internacional para demonstrar as suas capacidades impede que a mesma possa obter futuras oportunidades de negócio, cuja quantificação é difícil, ou mesmo impossível!
60.º E nesse sentido a única forma de prevenir os prejuízos decorrentes da atuação da primeira requerida é que se tomem, de imediato, as medidas cautelares constantes do presente requerimento.
61.º Nomeadamente a anulação da decisão de adjudicação, e atos subsequentes, a admissão da proposta excluída, e a reavaliação das propostas apresentadas.
62.º Sob pena de se constituir uma situação de facto consumado que é para a requerente altamente danosa!”.

 Citadas as Requeridas, deduziram oposição, defendendo, em síntese: a inadequação do procedimento cautelar à real pretensão da Requerente (esta defesa foi invocada apenas na oposição apresentada pela 1.ª Requerida, como exceção de erro na forma do processo); a inexistência do invocado direito à anulação da adjudicação; a inexistência do fumus boni iuris, por resultar da leitura do caderno de encargos e do programa do procedimento, com os seus anexos, que o valor máximo pelo qual a 1.ª Requerida efetivamente pretende contratar é de 884.834 €, com referência às ações identificadas no ponto 7.1. do programa do procedimento; a inexistência do periculum in mora; e o maior prejuízo para as Requeridas com o eventual decretamento da providência face ao prejuízo invocado pela Requerente.
Mais pugnaram as Requeridas pelo indeferimento da inversão do contencioso.

Foi proferido despacho (em 26-04-2019) pelo tribunal recorrido, mencionando-se que o estado dos autos já permitia o imediato conhecimento do mérito da causa, havendo que assegurar o contraditório quanto à matéria identificada pela 1.ª Requerida como exceção (inadequação do meio processual).
De seguida, a Requerente pronunciou-se, pugnando pela improcedência das objeções colocadas pela 1.ª Requerida.

Foi então proferida a decisão final recorrida (com dispensa da realização da audiência final, por se ter considerado que a matéria de facto relevante, atento o sentido da decisão, não era controvertida), cujo dispositivo tem o seguinte teor:
“Em face do exposto, julgo o presente procedimento cautelar improcedente por não provado e, em consequência, não decreto a requerida providência, ficando prejudicado, naturalmente, o pedido de inversão do contencioso.
Custas a cargo da Requerente”.

Inconformada, a Requerente veio interpor o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
“I. Como bem afirma o M. Juiz a quo não nos encontramos perante um concurso público, na aceção do disposto no Código dos Contratos Públicos, mas sim um concurso público na aceção do artigo 463.º do Código Civil, enquanto subcategoria da “Promessa Pública” prevista no artigo 469.º do Código Civil.
II. De facto, o anúncio foi publicado em quatro jornais de circulação, tendo sido fixado nas peças do procedimento o critério de adjudicação, que definiria qual das propostas a adjudicar.
III. É manifesto que tal situação preenche a previsão do artigo 459.º, n.º 1 respeitante à promessa pública. De facto, o anúncio assume a promessa de adjudicar à melhor proposta, com base nos critérios anteriormente fixados (critério de adjudicação), que serão aplicados com base num procedimento previamente regulados (pelo programa do procedimento).
IV. Portanto, o anúncio é uma declaração negocial enquadrada enquanto “concurso público”, modalidade especial de “promessa pública” nos termos conjugados dos artigos 459.º e 463.º do Código Civil.
V. A parte final do n.º 1 do artigo 459.º indica que o promitente fica vinculado desde logo à promessa, o que significa que a promessa pública gera na esfera jurídica do promitente a obrigação jurídica de cumprir a promessa.
VI. Reflexamente, na esfera jurídica dos recetores da promessa gera-se o direito respetivo de verem as suas propostas avaliadas de acordo com as regras constantes das peças do procedimento, e que seja adjudicada a melhor proposta, nesses termos.
VII. Não estamos perante uma situação pré-contratual cuja sindicância se limita ao aferimento da responsabilidade civil nos termos da culpa in contrahendo, mas sim no âmbito do incumprimento de um negócio jurídico unilateral, cuja consequência a jusante seria a celebração de um contrato final.
VIII. Por isso, na escolha do cocontratante, a primeira requerida não está ao abrigo de uma total liberdade contratual, dado que a vontade negocial cristalizou-se no conteúdo da promessa pública emitida.
IX. Logo, o anúncio, e restantes peças do procedimento, são uma verdadeira declaração negocial constitutiva de um negócio jurídico unilateral.
X. Tendo a recorrente o direito a que a sua proposta seja avaliada de acordo com as regras decorrentes das peças do procedimento.
XI. Também a decisão de adjudicação não configura uma mera “obrigação preliminar” tendente à escolha do contratante.
XII. Constitui, sim, uma verdadeira declaração negocial, que corresponde à aceitação da proposta apresentada.
XIII. Dessa conjugação de proposta e aceitação resulta, nos termos da lei civil, um contrato que engloba as obrigações decorrentes das peças do procedimento e da proposta apresentada.
XIV. Essas obrigações já decorrem por efeito da adjudicação, nos termos do artigo 223.º, n.º 2, dado que das peças do procedimento não se estabelece forma para o contrato, e por isso o contrato escrito apenas teve por objetivo a consolidação do negócio e não a criação de obrigações jurídicas ex novo.
XV. A decisão de adjudicação enquanto declaração negocial está sujeita às regras gerais a respeito dos vícios da declaração negocial, nos termos gerais.
XVI. A recorrida emitiu uma declaração negocial (adjudicação) assente no facto de a proponente CONSULAI ser a única proposta admitida no concurso, por exclusão da proposta da ora recorrente.
XVII. Situação que vai contra o disposto no programa do concurso e nas restantes peças do procedimento, decidindo-se adjudicar com base em pressupostos erróneos.
XVIII. Esta circunstância é enquadrável como erro na declaração, nos termos do disposto no artigo 247.º do Código Civil.
XIX. A vontade no caso presente deve ser aferida de forma objetiva. Com a publicação do anúncio e correspondentes peças do procedimento o declaratário (a ora recorrida) obriga-se a que a sua vontade negocial seja firmada com base num procedimento de natureza objetiva, aberto à concorrência de mercado.
A recorrida AASM limita, por negócio jurídico unilateral (promessa pública), a exteriorização da sua vontade negocial pelo conteúdo dessa mesma promessa pública, que corresponde à vontade real do declarante.
XX. Se a declaração negocial de adjudicação for emitida em desrespeito pelas peças do procedimento existe uma divergência clara entre a vontade declarada e a vontade real, que decorre dessas mesmas peças do procedimento, tornando a declaração negocial anulável nos termos do artigo 247.º do Código Civil.
XXI. Motivo pelo qual, salvo o devido respeito, o M. Juiz a quo enferma em erro quando afirma que «[...] inexiste qualquer norma que comine tal decisão [de adjudicação] com o vício de invalidade [...]».
XXII. Mais se diga que a jurisprudência respeitante ao regime da promessa pública (na modalidade de concurso público) reforça a nossa posição.
XXIII. O Tribunal da Relação de Lisboa afirmou, em acórdão datado de 8 de julho de 2004, que «[...] Por isso propendemos para uma interpretação restritiva do art. 463º nº 2, de modo a que nos concursos da mencionada natureza – aqueles em que a atribuição do prémio depende de uma mera constatação de conformidade com uma realidade objetiva – a decisão sobre a concessão do prémio não pertença exclusivamente ao promitente ou ao júri designado, de sorte que, quando a mesma não respeite a realidade conhecida e demonstrada, possa ser objeto de impugnação judicial [...]» (sublinhado nosso).
XXIV. Neste trecho, o TRL assume objetivamente que nos concursos públicos (modalidade de promessa pública) é legítima a destruição de um ato contrário à promessa anteriormente feita.
XXV. E nesse sentido, no mesmo acórdão se disse que «[...] ao apelante é permitido discutir judicialmente a decisão proferida [...] e obter por essa via [...] a revogação da penalização determinada por essa mesma decisão.».
XXVI. Ou seja, em situações idênticas, a violação das regras constantes da promessa pública é sindicável judicialmente”.
Terminou a Apelante, pugnando pela procedência da apelação, com a revogação da decisão recorrida, “por erro na interpretação e aplicação das normas jurídicas e, em consequência:
a) Que se reconheça a existência do direito a que a sua proposta seja avaliada no procedimento, em consonância com o regime dos artigos 459.2 e 463.2 do Código Civil.
b) Que seja ordenado ao tribunal a quo a continuação do procedimento cautelar, com a correspondente produção de prova necessária à prova dos restantes requisitos de aplicação das providências”.

Foi apresentada alegação de resposta pela 1.ª Requerida, em que defendeu a improcedência do recurso, concluindo nos seguintes termos (transcrevemos apenas a parte útil):
(…) 3. Ou seja, perante a evidência que no seu requerimento inicial não tinha invocado qualquer norma habilitante que cominasse de anulabilidade o ato que impugna, vem agora a recorrente, de novo e apenas em sede de motivação do seu recurso, invocar agora como fundamento de anulabilidade da decisão de adjudicação, o art.º 247º do código civil, o que não é processualmente admissível e que deverá determinar a improcedência do presente recurso;
(…) 6. Ora, é agora pacífico nos presentes autos que o regime jurídico que rege a relação entre a recorrente e a aqui recorrida é o constante do Código Civil, nomeadamente as regras sobre as relações contratuais e pré-contratuais;
(…) 12. E deste não resulta qualquer preceito que comine de anulabilidade ou nulidade o comportamento ou as decisões tomadas pela aqui requerida;
13. Nem mesmo do agora invocado art. 247.º do Código Civil se poderá extrair a consequência pretendida pela recorrente;
14. Isto porque, em momento algum do requerimento inicial foi pela recorrente alegado, demonstrado, indiciado ou provado a existência de erro na declaração, nos termos previstos no artigo 247.º do Código Civil (…);
15. Mas, mesmo que se admitisse a apreciação deste novo fundamento em sede de recurso - o que também não se concede, a verdade é que não existe na situação sub judice qualquer erro na declaração ou na formação da vontade, ou sequer margem de aplicação daquela norma do código civil;
16. Admitir a sua aplicação é defender que todo e qualquer incumprimento contratual é suscetível de ser anulado e não ressarcido; que deixa de fazer sentido colocar cláusulas de execução específica nos contratos promessas, pois assim bastaria anular alguma venda em sentido contrario ao estipulado no contrato promessa; é admitir que no caso de uma "promessa pública", o concorrente estaria mais protegido do que o contraente de um contrato promessa, por exemplo, o que não faz sentido nem encontra qualquer arrimo na letra ou no espirito da lei;
17. Mas a verdade é que, no presente caso, aquelas decisões não são assentes em qualquer erro por parte da aqui recorrida: pelo contrário, a decisão de excluir a proposta da recorrente é a que corresponde à vontade real da recorrida, no sentido de contratar a prestação daqueles serviços pelo preço máximo de 884.834,00C;
18. Ou seja, a vontade real, a que efetivamente foi e é pretendida pela recorrida, foi vincular-se a um máximo de gasto com a prestação daqueles serviços no montante ali indicado e não mais do que ali previsto, estando naquele valor contemplado o respetivo IVA. Isto foi já demonstrado sobejamente nos presentes autos;
19. Quer isto dizer que existe total coincidência entre a vontade real e a vontade declarada pela aqui recorrida, não havendo qualquer motivo de anulação da mesma;
(…) 22. Qualquer outra interpretação daquela cláusula que faça aumentar o valor do gasto que a recorrida teria que suportar com aqueles serviços é contrária à vontade real da declarante, aqui recorrida, pelo que padeceria de erro e seria anulável;
(…) 24. Acresce ainda que, considerando que o instituto do erro na declaração visa a proteção do declarante e não do declaratário, será este e não aquele quem tem legitimidade e interesse para invocar aquele fundamento de anulação da sua declaração, pelo que também por aqui não assiste razão à recorrente;
25. Por fim, importa notar que, mesmo que se trate de uma promessa pública, o que não se concede, a verdade é que estamos ainda no âmbito de um procedimento pré-contratual, onde as propostas depois de rececionadas, são analisadas para aferir se cumprem os requisitos impostos pelas peças do procedimento e, depois de admitidas, pontuadas conforme os critérios de avaliação previamente definidos para o fim a que se destinam, de modo a poder a recorrida escolher a melhor proposta;
(…) 28. Ou seja, mesmo que resultasse provado tudo quanto a requerente alega no seu requerimento inicial - o que não se concede, a verdade é que a cominação nunca poderá ser a anulação das decisões tomadas pela aqui requerida, por inexistir fundamento legal, mas apenas e tão só, quanto muito, um incumprimento pré-contratual que poderia conferir à requerente o direito a ser indemnizada nos termos do art.º 227º do Código Civil, o que claramente não é matéria para ser debatida, discutida e apreciada em sede da presente providência cautelar;
29. Por tudo isto e porque é manifestamente inexistente o direito invocado pela recorrente na anulação da decisão de adjudicação tomada pela aqui requerida, falha assim, como atrás se viu, um dos pressupostos base para o decretamento de uma qualquer providência cautelar, razão pela qual o Despacho aqui recorrido não merece censura, devendo ser mantido integralmente, rejeitando-se o presente recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

***

II - FUNDAMENTAÇÃO

Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC).
Face ao teor das conclusões da alegação de recurso, a única questão a decidir é a de saber se, sem necessidade de ulterior produção de prova, é (ou não) de concluir pela verificação do primeiro dos (invocados) requisitos das providências requeridas: o direito à anulação da decisão de adjudicação (pela 1.ª Requerida à 2.ª Requerida) no âmbito do procedimento concursal e à admissão e avaliação da proposta da Requerente no referido procedimento.

Factos provados

Na decisão recorrida foram considerados (indiciariamente) provados os seguintes factos (aditámos o que consta entre parenteses retos, para melhor esclarecimento):

1. A Primeira Requerida é uma entidade privada.

2. A Primeira Requerida fez publicar em quatro jornais de circulação o anúncio de
«PROCEDIMENTO CONCURSAL COM VISTA À SELEÇÃO DOS ORGANISMOS RESPONSÁVEIS PELA EXECUÇÃO DO PROGRAMA “UE FREE GRAZING DIARY” RELATIVO ÀS AÇÕES DE PROMOÇÃO DOS PRODUTOS AGRÍCOLAS NO MERCADO DE PAÍSES TERCEIROS –
CANADÁ
QUEIJO E PRODUTOS LÁCTEOS»,
disponibilizando aos potenciais concorrentes um programa do procedimento e caderno de encargos (nos termos constantes dos documentos a fls. 10-21, completado na versão a fls. 98v.-115v.) [constando designadamente do programa do procedimento que:
(…) 2. Entidade adjudicante
2.1. A entidade adjudicante é a Associação Agrícola de são Miguel – AASM.
2.2 O processo do concurso é constituído pelo Aviso, Caderno de Encargos e Programa de Procedimento, disponível em suporte digital e em papel.
3. Órgão que tomou a decisão de contratar
No âmbito do Regulamento Delegado UE 2015/1829, da Comissão de 23 de abril, que complementa o Regulamento n.º 1144/2014, do Parlamento Europeu e do Conselho relativo à execução de ações de informação e de promoção dos produtos agrícolas no mercado interno e em países terceiros, a Associação Agrícola de S. Miguel, enquanto proponente obriga-se a selecionar o organismo responsável pela execução do programa simples.
4. Órgão competente para a prestação de esclarecimentos
4.1. A entidade competente para a prestação de esclarecimentos é a Associação Agrícola de S. Miguel — AASM.
4.2 O pedido de esclarecimento deverá ser dirigido à entidade referida no ponto anterior utilizando o seguinte email: assm.cua@mail.telepac.pt.
5. Esclarecimentos, retificação e alteração das peças do concurso
5.1. Os esclarecimentos necessários à boa compreensão e interpretação das peças do procedimento devem ser solicitados pelos interessados, por escrito, no primeiro terço do prazo fixado para apresentação das propostas e, no mesmo prazo devem apresentar uma lista na qual identifiquem, expressa e inequivocamente, os erros e as omissões das peças do procedimento por si detetados.
5.2. Até ao termo do segundo terço do prazo fixado para a apresentação das propostas o órgão competente para o efeito no ponto 4 prestará os esclarecimentos solicitados.
5.3. O órgão competente para a decisão de contratar pronuncia-se sobre os erros e as omissões identificados pelos interessados, considerando-se rejeitados todos os que, até ao final daquele prazo, não sejam por ele expressamente aceites.
5.4. Os esclarecimentos, as retificações e as listas com a identificação dos erros e omissões detetados pelos interessados são juntos às peças do procedimento que se encontrem patentes para consulta, devendo todos os interessados que as tenham adquirido ser imediatamente notificados desse facto.
5.5. Os esclarecimentos prestados e as retificações efetuadas, fazem parte integrante das peças do procedimento a que dizem respeito e prevalecem sobre estas em caso de divergência.
6. Modo e prazo de apresentação das propostas
6.1. A proposta e os documentos que a acompanham terão de ser apresentados, até às 16h30m (hora dos Açores) do décimo quinto (15) dia, contados da data da última publicação do aviso em jornais de circulação diária.
6.2. Os documentos que constituem a proposta são obrigatoriamente redigidos em língua portuguesa;
6.3. Na proposta o concorrente manifesta a sua vontade de contratar e indica as condições em que se dispõe a fazê-lo;
6.4. A proposta deve conter as seguintes indicações:
i. Documento onde conste o preço total a pagar (indicado em algarismos com a menção expressa de que ao mesmo acresce o IVA à taxa legal em vigor);
ii. Nota Justificativa do preço proposto.
6.6. A proposta tem que ser assinada pelo concorrente ou seus representantes legais;
7. Aspetos da execução do contrato submetidos à concorrência
7.1. É fixado como parâmetro base (valor máximo pelo qual a entidade adjudicante pretende contratar) a que a proposta se deve vincular o montante de 884.834,00€, repartido pelas ações seguintes tendo em conta o anexo Detailed Budget Table, que constitui anexo 1 ao presente programa de procedimento:
Ação 1 - Estratégia de comunicação
Ação 2 - Desenvolvimento de website, vídeo promocional e campanha de marketing digital.
Ação 3 - Produção de material promocional
Ação 4 - Campanha promocional Outdoor
Ação 5 - Organização de workshops
Ação 6 - Organização de promoções nos pontos de venda
Ação 7 - Organização de visita dos media aos Açores
Ação 8- - Participação no Festival Montreal en Lumière
(…) 12.   Critério de adjudicação
12.1 A adjudicação será feita à proposta economicamente mais vantajosa para a entidade adjudicante, determinada pela melhor relação qualidade/preço, tendo em conta os seguintes fatores de avaliação: (…)
(…) 14. Legislação aplicável
Regulamento Delegado UE 2015/1829, da Comissão de 23 de abril, que complementa o Regulamento n.º 1144/2014, do Parlamento Europeu e do Conselho e Regulamento de Execução UEE 2015/1831, da Comissão, de 7 de outubro.”
E na cláusula primeira do caderno de encargos, que: “O presente caderno de encargos contém as cláusulas a incluir no contrato a celebrar no âmbito do procedimento com vista à seleção do organismo responsável pela execução do programa EU Free Grazin Diary relativo às ações de promoção dos produtos agrícolas no mercado de países terceiros – Canadá – no que concerne à promoção do queijo e produtos lácteos.”]

3. A Requerente apresentou a sua proposta através de e-mail enviado a 22 de dezembro de 2018 (fls. 21v.-56).

4. A 2 de janeiro de 2019 foi a Requerente informada do conteúdo do relatório de análise das propostas, no qual foi decidida a exclusão da sua proposta por ter apresentado proposta com o valor de «(...) 812.500,00€, ao qual acresce IVA à taxa de 18%, o que perfaz montante global de 958.750,00€, logo superior ao parâmetro base a que a proposta se deve vincular, ou seja ao valor máximo pela qual a entidade adjudicante pretende contratar ou seja ao valor de 884.834,00€» (fls. 57-59v.).

5. Inconformada, e tendo sido dado prazo para se pronunciar sobre a decisão, a Requerente apresentou a sua pronúncia a 9 de janeiro de 2019, invocando, no essencial, que o preço a ser tido em conta para efeitos de determinação do preço base, e bem assim do preço da proposta, deveria ser o preço sem IVA, por se aplicarem subsidiariamente as normas do Código dos Contratos Públicos (fls. 60-61v.).

6. A 15 de fevereiro de 2019 foi a Requerente informada da “Proposta de Decisão Final”, na qual a Primeira Requerida manteve a sua decisão de exclusão da sua proposta com os mesmos fundamentos anteriormente aduzidos (fls. 62-69);

7. A proposta da Segunda Requerida veio a ser aceite pela Primeira Requerida, em razão do que subscreveram em 29 de março de 2019 o escrito particular que denominaram de “Contrato de prestação de Serviços”, tendo por objeto o programa do procedimento e caderno de encargos (fls. 116-119).

Enquadramento jurídico

Como é sabido, os procedimentos cautelares, em geral, consistem em medidas que são requeridas e decretadas tendo em vista acautelar o efeito útil da ação (intentada ou a intentar), mediante a composição dos interesses conflituantes, mantendo ou restaurando a situação de facto antes da eventual realização efetiva do direito.
Neste sentido, como explicava Antunes Varela, “As denominadas providências cautelares visam precisamente impedir que, durante a pendência da acção declarativa ou executiva, a situação de facto se altere de modo a que a sentença nela proferida, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou perto dela. Pretende-se deste modo combater o periculum in mora (o prejuízo da demora inevitável do processo), a fim de que a decisão se não torne numa decisão puramente platónica” - in “Manual de Processo Civil”, 2.ª edição, Coimbra Editora, pág. 23.
Nas palavras de Rita Lynce de Faria, “Através da figura da tutela cautelar o sistema jurídico português pretende garantir o direito a uma tutela jurisdicional efectiva, evitando que a demora razoável de uma acção judicial inutilize uma eventual sentença favorável, fazendo com que o tempo corra em prejuízo daquele que tem razão”. (“A tutela cautelar antecipatória no processo civil português – um difícil equilíbrio entre a Urgência e a Irreversibilidade”, Revista do CEJ n.º 1 2018, págs. 39-63).
A ligação com uma ação principal é evidenciada pelo disposto no art. 364.º, n.º 1, o qual estabelece que “Exceto se for decretada a inversão do contencioso, o procedimento cautelar é dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de ação declarativa ou executiva”.
Como decorre deste normativo, salvo nos casos de inversão do contencioso, a providência cautelar pressupõe necessariamente um outro processo (principal ou definitivo) já pendente ou que vai ser instaurado; e porque surge para servir o fim deste processo, a relação entre a providência cautelar e o processo é “instrumental”, de “instrumentalidade hipotética”, o que significa que a providência cautelar é emitida na pressuposição ou na previsão da hipótese de vir a ser favorável ao autor a decisão a proferir no processo principal.
Daí que as providências cautelares não devam ser utilizadas para resolver questões de fundo, que só nas ações adequadas podem ser decididas, pois o processo cautelar não tem por razão de ser corrigir situações, mas sim prevenir lesão que venha a ser grave e dificilmente reparável.
Atentemos, de novo, nas palavras de Rita Lynce de Faria:
“Por este motivo, a tutela cautelar actua através do binómio procedimento cautelar/acção principal. Através do primeiro, permite-se ao juiz decretar uma medida urgente e provisória que garanta a efectividade do direito do requerente. Através da segunda, permite-se um conhecimento justo e ponderado, cuja decisão se acabará por substituir à providência cautelar.
Ora, esta função da tutela cautelar, instrumental relativamente a uma outra acção designada de principal, foi tradicionalmente desempenhada através providências com um mero conteúdo de conservação da situação de facto na pendência da acção, de forma a garantir que a sentença final, quando chegasse, encontrasse circunstâncias idênticas àquelas que existiriam se esta tivesse sido proferida instantaneamente. Consistiam, desta forma, em medidas judiciais urgentes, provisórias e não invasivas da esfera jurídica do requerido, que assumiam um papel instrumental mas neutro relativamente à futura sentença da acção principal. Eram as chamadas providências cautelares conservatórias.
(…) Acontece que este acautelamento da posição do requerente através das providências cautelares nem sempre permite dar resposta ao risco de inefectividade do seu direito. Assim acontece pelo facto de o perigo decorrente da pendência da acção principal poder adoptar uma configuração diferente da tradicional. Em certos casos, o perigo de inefectividade resulta, não de uma possível alteração das circunstâncias na pendência da acção principal que inviabilize a futura execução do direito declarado, mas da simples manutenção da insatisfação do direito decorrente da dilação na declaração do direito. Está em causa um pericolo di tardività, nas palavras de CALAMANDREI. Consequentemente, quando a sentença favorável chegar, poderá ser executada, mas nenhuma utilidade terá.
Nas circunstâncias descritas, a providência cautelar apenas poderá dar resposta ao perigo da pendência da acção principal através da antecipação dos efeitos da futura sentença dessa acção. Neste caso, a actuação da tutela cautelar não se circunscreve a uma manutenção do status quo, impondo-se uma alteração desse estado de coisas por meio da satisfação antecipada do direito do requerente cautelar. São as chamadas providências cautelares antecipatórias.
Em suma, mais do que um perigo na demora judicial, as providências cautelares antecipatórias actuam perante um perigo da demora judicial.
A distinção entre estes dois tipos de providências assenta, desta forma, na comparação do conteúdo da providência cautelar com o da acção principal. As medidas antecipatórias caracterizam-se por uma identidade de conteúdo com a futura sentença procedente da acção principal, satisfazendo antecipadamente o direito da requerente” (obra citada, págs. 41-42).

No presente processo, a pretensão da Requerente é claramente antecipatória (tendo também requerido a inversão do contencioso), em termos tais que, para o caso de não ser invertido o contencioso, o pedido a deduzir na (eventual) ação principal a intentar poderia ser decalcado do formulado no presente procedimento cautelar (correspondente às providências requeridas). A única diferença seria que enquanto neste a decisão teria natureza provisória, na ação teria natureza definitiva.
Estamos também perante uma pretensão que, a ser atendida, vai determinar uma das situações descritas por Rita Lynce de Faria “em que, por diferentes motivos, e não obstante a caducidade da medida e o regime de responsabilidade do requerente, a providência cautelar acaba por, no plano de facto, permanecer indefinidamente a regular a situação das partes, não obstante a não instauração da acção principal ou a sua improcedência. A providência cautelar, apesar de ter caducado, continua indefinidamente a produzir efeitos cuja remoção de facto não encontra salvaguarda no plano jurídico.
Temos, neste caso, providências cautelares definitivas no plano de facto, apesar de assentes num conhecimento sumário da lide. Fica, assim, desequilibrado o aparente equilíbrio em que o risco próprio da tutela cautelar encontrou segurança, passando o requerido a ser o suporte das vantagens que o sistema oferece ao requerente, não encontrando ambas as partes protecção equivalente.
(…) A situação acabada de descrever, embora possível, em maior ou menor medida, em qualquer tipo de providência, encontra o seu terreno fértil, por excelência, no âmbito das providências cautelares antecipatórias, pelo facto de o estado de facto criado definitivamente conceder a uma das partes utilidade equivalente à da sentença na acção principal.
Para delimitar estas situações, podem identificar-se dois grupos de causas diferentes: em primeiro lugar, aquelas em que os efeitos criados pela providência não são susceptíveis de remoção in natura; em segundo lugar, aqueles em que, apesar de estarem em causa efeitos passíveis de reversão através de indemnização, o sistema jurídico, devido aos exigentes requisitos de que faz depender o dever de o requerente indemnizar, acaba por afastar essa possibilidade. Em ambos os casos, a providência caduca mas os seus efeitos permanecem.
(…) A impossibilidade da reversão torna-se patente sobretudo nas situações em que a utilidade da providência decretada se esgota num momento concreto, transformando-a numa forma autosuficiente de tutela. O afastamento do periculum in mora para o requerente ocorre através de um acto isolado que esgota o interesse do titular do direito, não tendo qualquer função para o futuro.
Por seu turno, a insuficiência da reversão in natura resulta da impossibilidade de a indemnização em dinheiro dar a resposta a certo tipo de danos não patrimoniais que a providência que caducou tenha provocado. A decretação de uma providência cautelar pode desencadear danos ao requerido de vária ordem, inclusive danos não patrimoniais. Assim, por exemplo, a ordem para a cessação da comercialização de um medicamento pelo requerido pode determinar a respetiva falência, com graves danos para o requerido, que muitas vezes vão para além dos meramente patrimoniais.
Por último, a excessiva onerosidade da reversão ocorre naqueles casos em que a implementação da medida cautelar tenha determinado custos de montante muito elevado, exigindo a anulação da situação de facto criada um dispêndio desproporcionado de recursos. Ou nas situações em que o montante dos danos causados ao requerido seja dificilmente quantificável, como acontece com frequência quando a providência determina danos relacionados com a perda de clientela.
O segundo grupo de casos de irreversibilidade de facto da tutela cautelar que venha a caducar deve-se a uma opção legislativa no sentido de restringir as situações em que o requerente é responsável pelos danos causados ao requerido que suportou os efeitos de uma providência que veio a caducar” (obra citada, págs. 51-52).
Esta autora procura elencar os mecanismos legais que podem contribuir para atenuar ou compensar este efeito possível das providências cautelares antecipatórias, apresentando designadamente como mecanismo mais relevante a via da “definitividade jurídica”:
A possibilidade de o juiz, em sede cautelar e perante a possível definitividade da medida, poder proferir de imediato decisão jurídica definitiva, sem necessidade de posterior acção principal para evitar a caducidade da providência, constituiria solução para a situação de desequilíbrio que agora nos ocupa.
(…) Por uma parte, o facto de, no procedimento cautelar o juiz adquirir convicção segura acerca da existência do direito torna a acção principal inútil, porque repetitiva. Neste contexto, e assistindo ao juiz um dever de gestão processual cujo objectivo é o de garantir o andamento célere do processo e a justa composição do litígio em prazo razoável, ser-lhe-ia legítimo concluir que o formalismo subsequente da acção principal já não se justifica. Embora a actual figura da inversão do contencioso consagre solução diferente, a excepcionalidade da circunstância de que aqui tratamos, traduzida na possível irreversibilidade dos efeitos cautelares e consequente violação do due process of law do requerido, justifica a solução preconizada.
Acresce que, por outra parte e no rigor dos princípios, quando o requerente solicita a decretação de providência cautelar antecipatória de efeitos irreversíveis, aquilo que está a requerer ao juiz, ainda que sob a veste de uma medida cautelar, é uma providência definitiva.” (artigo citado, págs. 55-56).
Embora esta solução nos pareça arrojada, concordamos que, em certos casos, poderá constituir o melhor caminho a seguir, mas pela via da inversão do contencioso, com a prolação de decisão definitiva, imbuídos dos princípios enformadores do processo civil, mormente, se necessário, o da adequação formal (cf. art. 547.º do CPC).
Resta saber se o caso dos autos poderá justificar o decretamento das providências requeridas, em que a pretensão da Requerente comporta um pedido típico duma ação constitutiva, de efeitos que nos parecem ser irreversíveis. Para tanto, importa apreciar do acerto da decisão recorrida, ao considerar que não se verificava o primeiro dos requisitos necessários para o decretamento das providências, mais precisamente que não assistia à Requerente o direito à anulação da decisão de adjudicação à 2.ª Requerida no âmbito do procedimento concursal (nem, aliás, para a procedência dos correspondentes pedidos, na perspetiva da inversão do contencioso), sendo esta a questão que nos ocupa.

Atentemos, pois, nos requisitos das providências cautelares não especificadas, conforme emergem do disposto no art. 362.º do CPC:
“1. Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado.
2. O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor.
3. Não são aplicáveis as providências referidas no nº 1 quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas na secção seguinte.
4. Não é admissível, na dependência da mesma causa, a repetição de providência que haja sido julgada injustificada ou tenha caducado.”
Sem olvidar o preceituado no art. 365.º, n.º 1, do CPC: “Com a petição, o requerente oferece prova sumária do direito ameaçado e justifica o receio da lesão”.
E também no art. 368.º, n.º 1, do mesmo Código: “A providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão”.
Como explica a referida autora, “Da natureza instrumental da função cautelar, ainda que associada aos efeitos da antecipação da sentença da acção principal, decorre naturalmente que os pressupostos para a decretação de uma providência cautelar antecipatória não são diferentes dos exigidos para a decretação das outras medidas cautelares. Do nosso CPC, aliás, nesta matéria, não decorre qualquer peculiaridade no que se refere a este tipo de providências cautelares.
Deste modo e em termos sumários, pode concluir-se que do regime jurídico da tutela cautelar decorrem, como pressupostos gerais para a decretação de uma providência: o fumus boni iuris, o periculum in mora, a adequação e a proporcionalidade (…).
Diria, no entanto, que o intérprete não pode ser alheio a uma maior gravosidade da natureza antecipatória da providência cautelar na esfera jurídica do requerido, razão suficiente para uma maior cautela e exigência relativamente aos pressupostos de decretação comuns a toda a tutela cautelar” (artigo citado, pág. 42).
Assim, o decretamento de uma providência cautelar não especificada depende da concorrência dos seguintes requisitos:
a) que muito provavelmente exista o direito tido por ameaçado - objeto de ação declarativa/executiva (que o requerente poderá ser dispensado de intentar, no caso de inversão do contencioso), ou que venha a emergir de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor; é a aparência ou verosimilhança do direito do requerente carecido de tutela - fumus boni iuris;
b) que haja fundado receio de que outrem, antes de proferida decisão de mérito - ou porque a ação não está sequer proposta ou porque ainda se encontra pendente -, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito; é o perigo de ocorrência de lesão grave e dificilmente reparável se acaso a providência não for decretada - periculum in mora;
c) que ao caso não convenha nenhuma das providências tipificadas nos arts. 393.º a 427.º do CPC;
d) que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efetividade do direito ameaçado;
e) que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar.

A propósito do primeiro pressuposto - existência do direito ameaçado (direito cuja efetividade a providência requerida deve ser adequada a assegurar) -, defende também Rita Lynce de Faria, muito avisadamente, “que o grau de convicção sobre a existência do direito do requerente a gerar no espírito do julgador deverá ser especialmente forte e exigente dentro da margem que a “forte probabilidade” do art. 368.º, n.º 1, do CPC, encerra.” (artigo citado, pág. 43).
Para esta autora, um de dois tipos de atenuantes que funcionariam de forma preventiva à produção de efeitos irreversíveis pela tutela cautelar, evitando-os (as atenuantes ex ante), é precisamente a exigência de uma verosimilhança especialmente forte, o que justifica nos seguintes termos:
“Muito embora a decretação de uma providência cautelar se baste com a existência de um fumus boni iuris, assente numa prova meramente sumária do direito do requerente, esta menor exigência relativamente à prova efectiva do direito do requerente não significa uma prova superficial baseada numa simples verosimilhança das alegações do requerente. Na verdade, e ainda que o julgador não adquira a convicção sobre a existência do direito, o n.º 1, do art. 368.º, refere-se a uma probabilidade forte. O que significa que a summaria cognitio cautelar admite graus e que o legislador situa esse grau num patamar exigente.
Ora, neste pressuposto, não parece excessivo afirmar que, traduzindo-se este grau de conhecimento numa convicção interior do juiz no procedimento cautelar, ainda que passível de fundamentação, este se deverá munir de uma convicção especialmente forte antes de decretar qualquer providência cautelar antecipatória de efeitos irreversíveis, assim permitindo minimizar o risco de dano definitivo causado por uma medida idealmente provisória.
Assim o exige o princípio da proporcionalidade. Na medida em que a única medida cautelar adequada a afastar determinado periculum in mora do requerente seja uma providência cautelar antecipatória, restará ao julgador actuar sobre as restantes variáveis do instituto cautelar em que exista margem para minimizar os danos provocados. Assim sucede com o grau de conhecimento do juiz. Na medida em que seja respeitada a urgência do procedimento cautelar, o juiz deverá procurar munir-se da maior convicção possível da existência do direito nas circunstâncias de risco de irreversibilidade”. (artigo citado, pág. 54).
Vejamos, então, se, em face dos factos alegados, é de considerar verificada a forte probabilidade da existência de um concreto direito ameaçado (a tutelar pelas providências requeridas).

Na perspetiva da Requerente, tendo sido promovido pela 1.ª Requerida, conforme anúncio publicado, procedimento concursal com vista à seleção dos organismos responsáveis pela execução do programa UE FREE GRAZING DIARY relativo às ações de promoção dos produtos agrícolas no mercado de países terceiros, a proposta por si (Requerente) apresentada foi indevidamente excluída pela 1.ª Requerida, por a mesma ter entendido (mal) que o valor anunciado já incluía IVA e, consequentemente, que o valor proposto pela Requerente era superior ao valor máximo previsto; o entendimento da 1.ª Requerida violaria as boas regras de interpretação do anúncio do procedimento, pois o preço indicado no anúncio não podia deixar de ser o preço sem IVA, assistindo, assim, à Requerente o direito à anulação da decisão de adjudicação à 2.ª Requerida e de todos os atos de execução subsequentes, bem como o direito a ver aceite e apreciada a sua proposta, sem prejuízo da proposta concorrente daquela, o que não se compadece com a demora normal da ação declarativa atento o prazo máximo de 3 anos de execução da prestação de serviços de promoção em causa.
Como arrimo legal para os direitos que se arroga, invocou a Requerente, no requerimento inicial, o art. 236.º do CC e o art. 473.º do CCP (Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro). Na sua alegação de recurso, invocou ainda o disposto nos artigos 459.º, n.º 2, e 463.º, n.º 2, ambos do CC.
Na decisão recorrida, considerou-se que não assistia à Requerente o primeiro requisito necessário para o decretamento das providências requeridas (nem, aliás, para a procedência dos correspondentes pedidos, na perspetiva da inversão do contencioso), mais precisamente o direito à anulação da decisão de adjudicação à 2.ª Requerida no âmbito do procedimento concursal, o que foi fundamentado com as seguintes considerações (sublinhado nosso):
«Em termos gerais, a providência cautelar caracteriza-se por ser o meio de tutela indicado a evitar a demora inevitável de determinada ação judicial (periculum in mora) de modo a dar cobertura a um direito sempre que, num juízo sumário (summaria cognitio), se conclua não só pela probabilidade séria da sua existência mas também pelo fundado receio da sua lesão de difícil reparação (fumus boni iuris), considerações estas positivadas no art. 362º/ 1 do CPC (“Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado”).
Pressuposto base é, pois, a existência de um direito que urge acautelar através da concreta providência requerida (portanto, adequada ao fim a que se destina).
No caso dos autos, a Requerente sente-se injustamente preterida na apreciação da sua proposta no procedimento concursal em causa por entender que observou os critérios exigíveis, mormente o critério formal do valor proposto abaixo do teto anunciado (excluído de IVA), em razão do que a proposta não devia ter sido liminarmente excluída. E, nesta decorrência, pretende que o Tribunal, através da presente providência, reponha o status quo ante, ou seja, que determine, ainda que provisoriamente atenta a natureza do procedimento cautelar (e sem embargo da também requerida inversão do contencioso), a anulação da decisão de adjudicação à Segunda Requerida, que determine a admissão da proposta e que imponha à Primeira Requerida a sua apreciação.
Uma primeira observação prende-se com a adequação da providência ao fim pretendido pela Requerente: ao contrário da posição defendida pela Primeira Requerida no seu extenso argumentário (artigos 1º a 57º da oposição), consideramos que inexiste qualquer incompatibilidade a este nível. Não estamos, desde logo, perante um erro na forma do processo ou no meio processual na aceção normativa a que alude o art. 193º do CPC (determinante de nulidade processual), pois não existe outro procedimento legal tendente à concreta pretensão da Requerente (ação comum, ação especial, ação executiva, procedimento cautelar especificado, incidente, etc.), isto é, na perspetiva processual, e independentemente da apreciação material. Por seu turno, não acompanhamos o entendimento de que o pedido não é consentâneo com o procedimento cautelar mas apenas com a ação declarativa comum, pois a inerente natureza provisória da providência, aliada à urgência do procedimento, não impede, antes possibilita, em abstrato, que se declare um determinado vício e a operacionalidade dos inerentes efeitos jurídicos.
Situação diversa é saber se, materialmente, assiste à Requerente o direito suscetível de permitir, aliado aos demais requisitos, a pretendida providência.
Ora, escamoteado o requerimento inicial, verificamos que a Requerente considera que a exclusão da sua proposta inquina a respetiva decisão, tornando-a anulável. Isto é, a Requerente faz corresponder a violação do seu direito subjetivo ao vício da anulabilidade da decisão.
Todavia não lhe assiste razão!
Com efeito, sem prejuízo de toda a argumentação da Requerente - de que o valor do IVA não deve ser considerado para efeitos do valor máximo pretendido contratar (parâmetro base) – certo é que não estamos perante um concurso público, desde logo porque a Primeira Requerida é uma entidade privada (conforme, de resto, salienta a própria Requerente no artigo 10º do requerimento inicial)... nem a decisão sindicada configura um ato administrativo.
Assim, e sem prejuízo de todo o contexto subjacente ao procedimento concursal relativo à execução de ações de informação e de promoção dos produtos agrícolas no mercado interno e em países terceiros (tendo como pano de fundo os instrumentos internacionais nele mencionados) e, inclusivamente, da nomenclatura nele utilizada (ex: entidade adjudicante, concorrentes, adjudicar, etc.), verificamos que a Primeira Requerida – no âmbito da liberdade contratual [art. 405º nº 1 do Código Civil (CC)] – emitiu publicamente uma proposta a um número indeterminado de possíveis interessados no sentido de avaliar as propostas apresentadas de acordo com critérios predefinidos e, uma vez eleita a proposta mais vantajosa, e de vir a emitir uma declaração negocial concordante e concludente (adjudicar).
Tratando-se de um modelo concursal – repetimos, no âmbito da liberdade contratual – a Primeira Requerida está a vinculou-se a aceitar e apreciar propostas com vista à subsequente concretização do negócio jurídico através da verdadeira e única declaração negocial qua tale (“a adjudicação será feita...”). Ou seja, o anúncio do procedimento não corporiza a declaração negocial necessária à formação do contrato (não estamos sequer no domínio do art. 225º do CC), mas tão só e apenas uma série de obrigações preliminares tendentes à escolha do contraente (a formalização, a jusante, ocorreu através do escrito particular de 29 de março de 2019 que os contraentes denominaram de “Contrato de prestação de Serviços”).
Estamos claramente, pois, no domínio de uma fase pré contratual.
Nesta medida, ainda que a decisão de não aceitação da proposta apresentada pela Requerente carecesse de fundamento no espírito do procedimento concursal – isto é, em violação desse dever a cargo da Primeira Requerida e previamente anunciado pela mesma – a consequência legal nunca poderia a destruição da decisão do júri (por força da anulação), acarretando a destruição, a jusante, do negócio jurídico, por falta de qualquer norma habilitante (os vícios da anulabilidade e da nulidade carecem de previsão legal expressa ou, neste último caso, de violação de disposição legal de caráter imperativo – art. 294º do CC).
E não só inexiste qualquer norma que comine tal decisão com o vício da invalidade, como também o art. 227º do CC estabelece, pela positiva, que a culpa in contrahendo determina, apenas, responsabilidade civil pela via sucedânea (indemnização).
Ou seja, qualquer violação no domínio pré contratual não pode projetar-se no negócio jurídico celebrado em si mesmo (tal como se estivéssemos perante, por hipótese, um qualquer ato administrativo ferido de vício no procedimento).
Acompanhamos, assim, o entendimento das Requeridas (na ótica da impugnação motivada e não enquanto exceção perentória) de que a eventual violação do direito da Requerente de ver aceite a sua proposta (tal como a Primeira Requerida se vinculara) não lhe permite sindicar a decisão final no âmbito do procedimento e, concomitantemente, o direito de obrigar a Primeira Requerida a apreciá-la, restando-lhe, tão só e apenas, o trilho da responsabilidade civil (que, por seu turno, não encontra eco na presente providência cautelar).
Deste modo, e sem necessidade de aduzir quaisquer outras considerações, impõe-se a imediata improcedência do presente procedimento cautelar (mostrando-se prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas nos autos – art. 608º nº 2 do CPC), com custas a cargo da Requerente (art. 527º nºs 1 e 2 do CPC), sendo a taxa de justiça atendida a final, na ação respetiva, caso venha a ser instaurada (art. 539º nºs 1 e 2 do CPC)».
Conforme resulta desta citação, é patente que na decisão final recorrida não foram considerados os artigos 459.º e 463.º do CC, invocados apenas na alegação de recurso, sendo certo que isso não obsta a que tenhamos de ponderar se, por via da sua aplicação, é de reconhecer como muito provável a existência dos direitos invocados pela Requerente (cf. art. 5.º, n.º 3, do CPC).
Portanto, impõe-se ponderar se, no pressuposto hipotético de que a interpretação sufragada pela Apelante é acertada (pois que, face à oposição das Requeridas, sempre dependeria de prova a produzir a interpretação da vontade real da 1.ª Requerida, Apelada), os factos alegados, mormente à luz dos citados normativos, permitem concluir pela probabilidade séria/forte da existência do direito invocado: à anulação da decisão de adjudicação e subsequente a admissão da proposta que apresentou e, ulterior, reavaliação de todas as propostas. Evidentemente, a anulação da decisão de adjudicação apresenta-se como pressuposto necessário do mais requerido: só assim o procedimento concursal retornará à fase anterior.

Apreciando.
O procedimento de concurso em apreço nos autos tem na sua génese o Regulamento (EU) n.º 1144/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2014, relativo à execução de ações de informação e de promoção dos produtos agrícolas no mercado interno e em países terceiros. Este Regulamento, em traços gerais, veio estabelecer as condições nas quais as ações de informação e de promoção dos produtos agrícolas e de determinados produtos alimentares à base de produtos agrícolas executadas no mercado interno ou em países terceiros («ações de informação e de promoção»), podem ser financiadas, no todo ou em parte, pelo orçamento da União. O objetivo geral destas ações de informação e de promoção consiste em reforçar a competitividade do setor agrícola da União. Para tanto, prevê-se, no art. 7.º, quem podem ser as entidades proponentes, aí se incluindo organizações de produtores e associações destas. A Comissão procede à avaliação e à seleção das propostas de programas simples recebidas em resposta ao convite à apresentação de propostas pelas entidades proponentes. Prevendo o n.º 1 do art. 13.º que:
“1. A organização proponente seleciona, mediante um procedimento de concurso organizado pelos meios adequados, os organismos que executarão os programas simples selecionados, para garantir, nomeadamente, a eficácia da execução das ações.
A Comissão fica habilitada a adotar atos delegados nos termos do artigo 22.º que estabeleçam as condições específicas que regem o procedimento de concurso dos organismos de execução a que se refere o primeiro parágrafo”.
Por sua vez, o Regulamento Delegado (UE) 2015/1829 da Comissão, de 23 de abril de 2015, veio complementar o Regulamento (UE) n.º 1144/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, prevendo, no seu art. 2.º, sob a epígrafe “Seleção de organismos responsáveis pela execução dos programas simples”:
1. As entidades proponentes devem selecionar organismos responsáveis pela execução dos programas simples que garantam a melhor relação qualidade/preço. Ao fazê-lo, devem tomar todas as medidas necessárias para evitar situações em que a execução imparcial e objetiva da ação seja comprometida por motivos relacionados com interesses económicos, afinidades políticas ou nacionais, relações familiares ou afetivas, ou qualquer outra comunidade de interesses («conflito de interesses»).
2. Se a entidade proponente for um organismo de direito público, na aceção do artigo 2.º, n.º 1, ponto 4, da Diretiva 2014/24/UE, deve selecionar os organismos responsáveis pela execução dos programas simples em conformidade com a legislação nacional que transpõe a referida diretiva.
Quer o Tribunal recorrido, quer as partes, reconhecem que a 1.ª Requerida, uma pessoa coletiva de direito privado, não é uma entidade adjudicante para efeitos do disposto nos artigos 1.º e 2.º do Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo DL n.º 18/2008, de 29-01 (CCP), o qual procedeu à transposição das Diretivas n.ºs 2004/17/CE e 2004/18/CE, ambas do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março, alteradas pela Diretiva n.º 2005/51/CE, da Comissão, de 7 de Setembro, e retificadas pela Diretiva n.º 2005/75/CE, do Parlamento Europeu e da Comissão, de 16 de Novembro.
Podemos acrescentar que também não é um organismo de direito público, na definição do art. 2.º, n.º 1, ponto 4, da referida Diretiva 2014/24/EU, que é a seguinte:
«Organismos de direito público», os organismos que apresentem todas as seguintes características:
a) Foram criados para o fim específico de satisfazer necessidades de interesse geral, sem caráter industrial ou comercial;
b) Têm personalidade jurídica; e
c) São maioritariamente financiados pelo Estado, por autoridades regionais ou locais ou por outros organismos de direito público, ou a sua gestão está sujeita a controlo por parte dessas autoridades ou desses organismos, ou mais de metade dos membros nos seus órgãos de administração, direção ou fiscalização são designados pelo Estado, pelas autoridades regionais ou locais ou por outros organismos de direito público;”
Aliás, esta Diretiva 2014/24/EU, relativa aos contratos públicos, revoga precisamente a Diretiva 2004/18/CE, tendo merecido transposição na legislação nacional, através dos seguintes diplomas:
- Lei n.º 96/2015, de 17-08, que regula a disponibilização e a utilização das plataformas eletrónicas de contratação pública e transpõe o artigo 29.º da Diretiva 2014/23/UE, o artigo 22.º e o anexo IV da Diretiva 2014/24/UE e o artigo 40.º e o anexo V da Diretiva 2014/25/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, revogando o Decreto-Lei n.º 143-A/2008, de 25 de julho;
- Decreto Legislativo Regional n.º 27/2015/A, de 29-12, que aprova o regime jurídico dos contratos públicos na Região Autónoma dos Açores;
- Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de agosto, que procede à nona alteração ao Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, e transpõe as Diretivas n.ºs 2014/23/UE, 2014/24/UE e 2014/25/UE, todas do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014 e a Diretiva n.º 2014/55/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril de 2014;
- Portaria n.º 57/2018 de 26 de fevereiro, que regula o funcionamento e a gestão do portal dos contratos públicos, denominado «Portal BASE», e aprova os modelos de dados a transmitir.
Atente-se no que dispõem os artigos 1.º e 2.º do referido Decreto Legislativo Regional:
“Artigo 1.º
Objeto e âmbito
1 - O presente diploma aprova o Regime Jurídico dos Contratos Públicos na Região Autónoma dos Açores, transpondo, parcialmente, e para o ordenamento jurídico regional, a Diretiva 2014/24/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro, relativa aos contratos públicos e define a disciplina aplicável à contratação pública e o regime substantivo dos contratos públicos que revistam a natureza de contrato administrativo.
2 - O regime de contratação pública definido pelo presente diploma é aplicável à formação dos contratos públicos na Região Autónoma dos Açores, entendendo-se por tal todos aqueles que, independentemente da sua designação e natureza, sejam celebrados pelas entidades adjudicantes regionais referidas no artigo seguinte.
3 - O presente diploma não prejudica a aplicação das normas que integram o regime jurídico da contratação pública e o regime substantivo dos contratos públicos constantes do Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, na sua atual versão em vigor.
Artigo 2.º
Entidades adjudicantes regionais
1 - Para os efeitos do disposto no presente diploma, são entidades adjudicantes regionais:
a) A Região Autónoma dos Açores;
b) As autarquias locais dos Açores;
c) Os institutos públicos regionais.
2 - São, ainda, entidades adjudicantes regionais, quando sediadas na Região Autónoma dos Açores:
a) As fundações públicas;
b) As associações públicas;
c) Quaisquer pessoas coletivas que, independentemente da sua natureza pública ou privada, tenham sido criadas especificamente para satisfazer necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial, e sejam maioritariamente financiadas pelas entidades referidas nas alíneas anteriores ou no número anterior, estejam sujeitas ao seu controlo de gestão ou tenham um órgão de administração, de direção ou de fiscalização cuja maioria dos titulares seja, direta ou indiretamente, designada por aquelas entidades;
d) Quaisquer pessoas coletivas que se encontrem na situação referida na alínea anterior relativamente a uma entidade que seja, ela própria, uma entidade adjudicante nos termos do disposto nessa mesma alínea;
e) As associações de que façam parte uma ou várias das pessoas coletivas referidas nas alíneas anteriores ou no número anterior, desde que sejam maioritariamente financiadas por estas, estejam sujeitas ao seu controlo de gestão ou tenham um órgão de administração, de direção ou de fiscalização cuja maioria dos titulares seja, direta ou indiretamente, designada pelas mesmas.
3 - Para os efeitos do disposto na alínea c) do número anterior, são consideradas pessoas coletivas criadas especificamente para satisfazer necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial, aquelas cuja atividade económica se não submeta à lógica do mercado e da livre concorrência.
4 - Às entidades adjudicantes regionais referidas no n.º 1 são aplicáveis as regras da contratação pública previstas no Código dos Contratos Públicos para a formação de contratos públicos por parte das entidades adjudicantes referidas no n.º 1 do artigo 2.º desse Código.
5 - Às entidades adjudicantes regionais referidas no n.º 2 são aplicáveis as regras da contratação pública previstas no Código dos Contratos Públicos para a formação de contratos públicos por parte das entidades adjudicantes referidas no n.º 2 do artigo 2.º desse Código”.
A 1.ª Requerida também não é uma entidade adjudicante regional. Trata-se, sim, de uma entidade proponente para efeitos dos referidos Regulamentos europeus.
O procedimento concursal que promoveu não é disciplinado pelo Código dos Contratos Públicos.

Afastada a aplicação, pelo menos direta, deste Código, vejamos se os invocados artigos 459.º e 463.º do CC dão resposta à questão em apreço.
Preceitua o artigo 459.º, sob a epígrafe “Promessa pública”, que:
“1. Aquele que, mediante anúncio público, prometer uma prestação a quem se encontre em determinada situação ou pratique certo facto, positivo ou negativo, fica vinculado desde logo à promessa.
2. Na falta de declaração em contrário, o promitente fica obrigado mesmo em relação àqueles que se encontrem na situação prevista ou tenham praticado o facto sem atender à promessa ou na ignorância dela”.
A este respeito escreveu Mário Júlio de Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, 5.ª edição, Almedina, págs. 371-372, que as promessas públicas, previstas neste artigo, incluídas entre os negócios unilaterais, “constituem uma figura diferente das ofertas ao público. Estas últimas analisam-se em propostas de contrato dirigidas a uma generalidade de pessoas indeterminadas – ou seja, a todos os que pretendam contratar nas condições indicadas pelo proponente -, através de anúncios nos jornais, exposição de mercadorias em montras com indicação dos preços, etc. (cf. o art. 230.º, n.º 3)”. Acrescentando, na nota de rodapé (1), que “A oferta ao público, por sua vez, não se confunde com a proposta dirigida a pessoa determinada, posto que desconhecida ou cujo paradeiro se ignore, embora o art. 225.º permita que seja feita mediante anúncio em jornal. Cumpre também distinguir as verdadeiras ofertas ao público dos meros convites a contratar, que se destinam precisamente a provocar ou suscitar propostas da parte do público (ex.: o catálogo enviado pelo comerciante aos seus clientes). A destrinça entre as ofertas ao público e os simples convites a contratar é por vezes difícil na prática, devendo em última análise atender-se aos usos e às circunstâncias de cada caso.”
Por seu turno, estatui o art. 463.º, sob a epígrafe “Concursos públicos”:
“1. A oferta da prestação como prémio de um concurso só é válida quando se fixar no anúncio público o prazo para a apresentação dos concorrentes.
2. A decisão sobre a admissão dos concorrentes ou a concessão do prémio a qualquer deles pertence exclusivamente às pessoas designadas no anúncio ou, se não houver designação, ao promitente”.
Conforme também referido por Almeida Costa, na obra citada, pág. 374, o Código Civil, previu neste normativo, ao lado das puras e simples promessas públicas, os “concursos públicos com promessa de prémio (concursos artísticos, literários, científicos, etc.. A particularidade destes reside no facto de o prémio ser prometido unicamente aos que se candidatem a recebê-lo; não bastando, além disso, que o candidato ao prémio efectue a sua prestação, pois ainda se torna necessário que ele lhe seja atribuído pelo júri designado no anúncio ou, na sua falta, pelo promitente (art. 463.º, n.º 2).”
Face ao objetivo ou finalidade do procedimento concursal em causa nos autos, é manifesto que o mesmo não se reconduz à previsão do art. 463.º, posto que não se trata, obviamente, de oferecer uma determinada prestação como prémio de um concurso. A 1.ª Requerida não pretendeu com o procedimento promovido oferecer nenhum prémio. Pretendeu selecionar um “organismo” a fim de com ele celebrar um determinado contrato.
Também por isso nos parece que o caso não é de enquadrar na previsão do art. 459.º: a 1.ª Requerida não quis prometer uma determinada prestação a quem se encontrasse em determinada situação ou praticasse certo facto (positivo ou negativo); a prestação a que se vincularia, de pagamento do preço, apenas emergiria do contrato a celebrar, com a entidade que viesse a ser selecionada, ainda que o conteúdo desse contrato já fosse, no essencial, adiantado pela 1.ª Requerida.
Na sentença recorrida, considerou-se que se estava ainda numa fase pré contratual, não corporizando o anúncio do procedimento a declaração negocial necessária à formação do contrato e não se estando sequer no domínio do art. 225.º do CC (atinente ao anúncio público da declaração), mas, tão só e apenas, perante «uma série de obrigações preliminares tendentes à escolha do contraente (a formalização, a jusante, ocorreu através do escrito particular de 29 de março de 2019 que os contraentes denominaram de “Contrato de prestação de Serviços”)».
Mais se entendeu que, ainda que a decisão de não aceitação da proposta apresentada pela Requerente carecesse de fundamento no espírito do procedimento concursal, a consequência nunca poderia ser a destruição da decisão do júri (por força da anulação), pois “não só inexiste qualquer norma que comine tal decisão com o vício da invalidade, como também o art. 227º do CC estabelece, pela positiva, que a culpa in contrahendo determina, apenas, responsabilidade civil pela via sucedânea (indemnização)”.
Com efeito, a obrigatoriedade da realização de procedimento concursal decorre do referido Regulamento (EU) n.º 1144/2014. Mas é dada “margem de manobra” à entidade proponente para a organização desse concurso, cabendo-lhe definir os “meios adequados” em ordem a selecionar, de acordo com o critério fixado no Regulamento Delegado - e expressamente indicado no anúncio em apreço nos autos - da “melhor relação qualidade/preço”, os organismos a contratar para execução dos programas simples selecionados, com vista a “garantir, nomeadamente, a eficácia da execução das ações”.
Estando também prevista a sujeição a sanções administrativas relativas aos programas simples, conforme consta do art. 5.º do referido Regulamento Delegado:
“1. Em caso de irregularidade, é imposta à entidade proponente uma sanção administrativa correspondente ao pagamento do dobro da diferença entre o montante inicialmente pago ou pedido e o montante efetivamente devido.
2. Em caso de falta grave, em especial de recorrência de irregularidades, a que se refere o n.º 1, ou de incumprimento grave das obrigações que lhe incumbem no processo de seleção dos programas ou no seu funcionamento, a entidade proponente é excluída do direito de participar nas ações de informação e de promoção durante um período de três anos a contar da data em que a infração foi apurada.”
Ora, sem prejuízo de eventuais sanções administrativas, concordamos que, no plano do direito civil, uma atuação “irregular” por parte de entidade proponente poderá, em abstrato, ser sancionada, através de convocação da figura da responsabilidade pré-contratual, consagrada, em termos gerais, no art. 227.º do CC: sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte, “o comportamento dos contraentes terá de pautar-se pelos cânones da lealdade e da probidade”, tanto na “fase negociatória” (preparação do conteúdo do acordo) como na ulterior “fase decisória” (emissão das declarações de vontade: a proposta e a aceitação – cf. arts. 224.º ss. do CC). Assim se tutelando “directamente a fundada confiança de cada uma das partes em que a outra conduza as negociações segundo a boa fé; e por conseguinte, as expetativas legítimas que a mesma lhe crie, não só quanto à validade e eficácia do negócio, mas também quanto à sua futura celebração. Convirá salientar, porém, que o alicerce teleológico desta disciplina ultrapassa a mera consideração dos interesses particulares e causa. Avulta, com especial evidência, a preocupação de defesa dos valores sociais da segurança e da facilidade do comércio jurídico.” (Almeida Costa, obra citada, págs. 237-238).
De salientar que não obstante as expressões “culpa in contrahendo” ou “responsabilidade pré-contratual” remetam para a formação de um contrato, a doutrina e a jurisprudência vêm observando que este instituto não se circunscreve ao âmbito puramente contratual, também sendo de equacionar em relação a negócios jurídicos unilaterais, designadamente em matéria de concursos públicos (pelo que até seria mais rigoroso falar-se em responsabilidade pré-negocial – cf. Almeida Costa, obra citada, pág. 236, nota de rodapé 2).
Tudo ponderado, estamos em crer que o procedimento concursal em apreço se reconduz a um convite a contratar, um convite feito, conforme se afigura inteiramente justificado, com detalhe, adiantando o conteúdo do contrato que haveria de ser celebrado, ao ponto de a (hipotética) violação culposa das regras definidas no próprio procedimento (mormente com a suposta indevida exclusão da Requerente), ser, em tese, passível de fazer a 1.ª Requerida incorrer em responsabilidade civil pré-contratual.
Mas, mesmo que, hipoteticamente, à Requerente assistisse razão quanto à interpretação que faz dos termos do procedimento, de forma alguma descortinamos, atenta a inexistência de base legal, que da atuação da 1.ª Requerida pudesse resultar o direito que aquela se arroga à anulação da decisão de adjudicação já tomada, com a subsequente admissão da proposta que apresentou e reavaliação de todas as propostas.

A tese de erro, agora avançada, na alegação de recurso, em ordem a providenciar um suporte legal para a anulabilidade da decisão de adjudicação não tem qualquer cabimento, em face da factualidade alegada no requerimento inicial. Não obstante a liberdade deste tribunal na interpretação e aplicação das regras de direito (cf. art. 5.º, n.º 3, do CPC), a verdade é que deparamos com uma total ausência de factos que, a provarem-se, permitiriam considerar que, conforme previsto no art. 247.º do CC, a 1.ª Requerida, ao efetuar a adjudicação à 2.ª Requerida, incorreu em erro, em virtude do qual a vontade por si declarada não correspondia à sua vontade real, e muito menos que a 2.ª Requerida, declaratária, conhecia ou não devia ignorar a essencialidade, para a declarante, do elemento sobre que incidiu o erro.
O único “erro” que se prefigura como hipoteticamente possível, em face dos factos alegados pelas partes, poderá ter sido o da Requerente, ao interpretar os termos do procedimento/anúncio, mas nada permite considerar, antes pelo contrário que, em virtude desse erro, a vontade por si declarada, ao fazer a proposta que fez, não correspondia à sua vontade real e que teria feito uma proposta de valor inferior, passível de ser considerada na ótica interpretativa da 1.ª Requerida.
Enfim, o regime do erro não permite de todo resolver o caso, não se descortinando base legal para o direito invocado.

Destarte, conforme acima adiantámos, antevê-se que os únicos direitos que poderão eventualmente emergir da situação descrita, a vingar a interpretação propugnada pela Requerente (o que, insiste-se, não é de todo oportuno avaliar, considerando que não foi produzida prova em ordem à interpretação da vontade da 1.ª Requerida), se inserem no âmbito da responsabilidade civil.
Mas sempre sem olvidar que a obrigação de indemnizar por culpa in contrahendo, qualquer que seja o facto típico que a justifique, depende da produção de um dano e dos demais elementos constitutivos da responsabilidade civil¸ mormente do nexo de causalidade adequada, conforme salientado no acórdão do STJ de 14-07-2010, na revista n.º 3684/05.0TVLSB.L1.S1 - 2.ª Secção (sumário disponível em www.stj.pt).
É sabido que a lei consagra, mormente no art. 562.º do CC, o princípio geral da reconstituição natural: a obrigação de indemnizar abrange a cobertura dos danos de forma a que se reconstitua a situação anterior à lesão. Que danos? Os danos emergentes, os lucros cessantes, os danos futuros (cf. art. 564.º do CC). Mas apenas aqueles “que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”, conforme expressamente previsto no art. 563.º do CC, que consagra a doutrina da causalidade adequada, formulada por Galvão Telles nos seguintes termos: “Determinada acção ou omissão será causa de certo prejuízo se, tomadas em conta todas as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção ou omissão se mostrava à face da experiência comum, como adequada à produção do referido prejuízo, havendo fortes probabilidades de o originar.” (citado por Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, volume I, 4.ª edição, pág. 578).
A este respeito, exemplificativamente, veja-se o referido acórdão do STJ de 14-07-2010: “X - A prova do nexo causal – sendo necessário estabelecer uma ligação positiva entre a lesão e o dano, através da previsibilidade deste em face daquela (art. 563.º do CC) - como um dos pressupostos da obrigação de indemnizar, cabe ao credor. XI - O processo de determinação do nexo de ligação do facto ao dano comporta duas fases: (i) numa, a inicial, averigua-se no plano naturalístico se certo facto concreto é ou não efectivamente condicionante de um dano; (ii) noutra, posterior, determina-se se esse facto, considerado em abstracto e em geral, é ou não apropriado a provocar tal dano”. 
Ante a impossibilidade de reconstituir o estado anterior à lesão, ou quando a reconstituição natural não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor, é devida uma indemnização em dinheiro (art. 566.º, do CC).
E, como é sabido, o n.º 2 do art. 566.º do CC consagra, a respeito do cálculo do montante da indemnização pecuniária, a teoria da diferença: “O montante da indemnização pecuniária mede-se pela diferença entre a situação (real) em que o lesado se encontra e a situação hipotética em que ele se encontraria se não tivesse ocorrido o facto gerador do dano.” (Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, pág. 582).
Em particular, no caso de responsabilidade pré-contratual, a doutrina e jurisprudência têm convergido no sentido de considerar que, em princípio, tal responsabilidade se circunscreve aos limites do interesse contratual negativo (ou de confiança), podendo, porém, em certos casos, mormente se a culpa in contrahendo estiver na violação do dever de conclusão de um contrato, a responsabilidade abranger a cobertura do interesse contratual positivo.
Tudo isto é pacífico, cumprindo ainda acrescentar que diversas situações, cujas particularidades de facto tornam mais difícil o cálculo do quantum indemnizatório dos danos (ressarcíveis), têm sido apreciadas na jurisprudência, com os contributos da doutrina, sendo equacionadas soluções, mormente através da figura da indemnização pela perda de chance.
Veja-se a lição de Júlio Vieira Gomes: «Admitimos, no entanto, um espaço ou dimensão residual da perda de chance no Direito português vigente: referimo-nos a situações pontuais, tais como a situação em que ocorre a perda dum bilhete de lotaria, ou em que se é ilicitamente afastado dum concurso ou de uma fase posterior dum concurso. Trata-se de situações em que a chance já se “densificou” o suficiente para, sem se cair no arbítrio do juiz, se poder falar no que Tony Weir apelidou de “uma quase propriedade”, um “bem”». Finalmente, registe-se que não é sequer necessário recorrer à perda de chance como auxiliar de quantificação do dano, já que, entre nós, o lucro cessante, uma vez demonstrada a sua verosimilhança, pode ser fixado pelo tribunal, segundo critérios de equidade.” Acrescentando ser importante deixar claro que «o que está em discussão é muito mais do que o mero reconhecimento de uma nova modalidade do dano. A aceitação deste dano comporta uma nova visão da causalidade e até alterações de monta relativamente às funções desempenhadas pela responsabilidade civil.». – in “Sobre o Dano de Perda de Chance”, Direito e Justiça, Vol. XIX, Tomo 2, 2005, págs. 9-47, pág. 44.
Também Carneiro de Frada se pronunciou sobre esta problemática: «Um outro exemplo dá-o o dano conhecido por “perda de chance”, praticamente por desbravar entre nós. Entre as suas áreas de relevância encontra-se a da responsabilidade médica: Se o atraso de um diagnóstico diminuiu em 40% as possibilidades de cura do doente, quid juris? Já fora desse âmbito, como resolver também o caso da exclusão de um sujeito a um concurso, privando-o da hipótese de o ganhar? (…)
Uma das formas de resolver este género de problemas é a de considerar a perda de oportunidade um dano em si, como que antecipando o prejuízo relevante em relação ao dano final (apenas hipotético, v.g., da ausência de cura, da perda do concurso, do malograr das negociações por outros motivos), para cuja ocorrência se não pode asseverar um nexo causal suficiente. Mas então tem de se considerar que a mera possibilidade de uma pessoa se curar, apresentar-se a um concurso ou negociar um contrato consubstancia um bem jurídico tutelável. Se no plano contratual, a perda de oportunidade pode desencadear responsabilidade de acordo com a vontade das partes (que erigiram essa “chance” a bem jurídico protegido pelo contrato), no campo delitual esse caminho é bem mais difícil de trilhar: a primeira alternativa do artigo 483 n.º 1 não dá espaço e, fora desse contexto, tudo depende da possibilidade de individualizar a violação de uma norma cujo escopo seja precisamente a salvaguarda da “chance”.
Ainda assim, surgem problemas, agora na quantificação do dano, para o qual um juízo de probabilidade se afigura indispensável. Derradeiramente, não podendo ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados (cfr. o art. 566 nº 3)» - in “Direito Civil - Responsabilidade Civil - O Método do Caso”, Almedina, 2006, págs. 103-104.
Lembramos ainda as palavras de Patrícia Costa: “Temos também os casos de oportunidade de vitória em processos judiciais, procedimentos administrativos e concursos privados. São os casos, por exemplo, em que um mandatário judicial, por esquecimento, não propõe uma acção antes de o direito do seu cliente prescrever, ou não contesta a acção no prazo devido e leva a que os factos alegados pela contraparte sejam considerados confessados, ou não interpõe recurso da decisão que foi desfavorável ao seu cliente. (…) Ou os casos em que um concorrente, num concurso público, é afastado ilicitamente do concurso pelo promotor do mesmo. Ou os casos em que um trabalhador não é admitido a um concurso interno, com vista à sua promoção, por ter sido irregularmente avisado do mesmo. Em todos estes casos, a obtenção do benefício está subordinada ao êxito de um procedimento (judicial, administrativo ou privado) e, nomeadamente, depende da maneira que uma entidade (o juiz, a administração ou o empresário) aprecia determinados factos, aplica certas regras e realiza concretas valorações. São casos em que não se pode afirmar, com absoluta segurança, que o conteúdo da decisão judicial, administrativa ou privada teria sido distinto caso não tivesse interferido o facto ilícito, mas em que se sabe com certeza suficiente que a vítima perdeu uma oportunidade de obter uma decisão favorável”. - https://www.verbojuridico.net/doutrina/2011/patriciacosta_danoperdachance.pdf 
Na jurisprudência, exemplificativamente, veja-se o acórdão do STJ de 01-07-2014, no processo n.º 824/06.5TVLSB.L2.S1, disponível em www.dgsi.pt, conforme se alcança das seguintes passagens do respetivo sumário:
«1. A figura da “perda de chance” visa superar a tradicional dicotomia: responsabilidade contratual versus responsabilidade extracontratual ou delitual, summa divisio posta em causa num tempo em que cada vez mais se acentua que a responsabilidade civil deve ter uma função sancionatória e tuteladora das expectativas e esperanças dos cidadãos na sua vida de relação, que se deve pautar por padrões de moralidade e eticidade, como advogam os defensores da denominada terceira via da responsabilidade civil.
2. A perda de chance relaciona-se com a circunstância de alguém ser afectado num seu direito de conseguir uma vantagem futura, ou de impedir um dano por facto de terceiro. A dificuldade em considerar a autonomia da figura da perda de chance no direito português, resulta do facto de ser ligada aos requisitos da responsabilidade civil extracontratual – art. 483º, nº1, do Código Civil – mormente ao nexo de causalidade.
Com efeito, um dos requisitos da obrigação de indemnizar, no contexto da responsabilidade civil ex contractu, ou ex delictu, é que exista nexo de causalidade entre a conduta do responsável e os danos sofridos pelo lesado por essa actuação culposa.
3. Para que se considere autónoma a figura de “perda de chance” como um valor que não pode ser negado ao titular e que está contido no seu património, importa apreciar a conduta do lesante não a ligando ferreamente ao nexo de causalidade – sem que tal afirmação valha como desconsideração absoluta desse requisito da responsabilidade civil – mas, antes, introduzir, como requisito caracterizador dessa autonomia, que se possa afirmar que o lesado tinha uma chance [uma probabilidade, séria, real, de não fora a actuação que lesou essa chance], de obter uma vantagem que probabilisticamente era razoável supor que almejasse e/ou que a actuação omitida, se o não tivesse sido, poderia ter minorado a chance de ter tido um resultado não tão danoso como o que ocorreu. Há perda de chance quando se perde um proveito futuro, ou se não se evita uma desvantagem por causa imputável a terceiro.
4. Não devem assimilar-se os planos do dano e da causalidade, com implicação na perspectiva de excluir como dano autónomo a perda de chance, nem esta figura deve ser aplicada, subsidiariamente, quando se não provou a existência de nexo de causalidade adequada entre a conduta lesiva por acção ou omissão e o dano sofrido, já que existe sempre uma álea, seja quando se divisa uma vantagem que se quer alcançar, ou um risco de não conseguir o resultado desejado.
5. No caso de perda de chance não se visa indemnizar a perda do resultado querido, mas antes a da oportunidade perdida, como um direito em si mesmo violado por uma conduta que pode ser omissiva ou comissiva; não se trata de indemnizar lucros cessantes ao abrigo da teoria da diferença, não se atendendo à vantagem final esperada».

Volvendo ao caso dos autos, constata-se que a Requerente foi particularmente parca na alegação dos danos causados pela situação descrita. Assim, depois de alegar que “a propositura da ação declarativa correspondente não impediria a criação de uma situação de facto consumado na qual apenas seria possível ser ressarcido dos danos patrimoniais ou correspondentes”, limitou-se a afirmar que: «Para uma empresa, como é o caso da requerente, cuja atividade depende assenta nos trabalhos de “imagem, comunicação e marketing” (conforme consta inclusive da sua designação!), a perda de um importante palco internacional para demonstrar as suas capacidades impede que a mesma possa obter futuras oportunidades de negócio, cuja quantificação é difícil, ou mesmo impossível!»
Ou seja, os danos cuja dificuldade de quantificação a Requerente invoca nem dizem respeito ao lucro que retiraria do contrato a celebrar com a 1.ª Requerida (lucro cessante), mas ao lucro que poderia advir de (hipotéticos) futuros contratos que, eventualmente, poderia vir a celebrar com terceiros que porventura ficassem a conhecer o seu trabalho, executado no cumprimento daquele outro contrato. É fácil perceber que estamos aqui no campo das meras expetativas, assentes em conjeturas, que não merecem a tutela do direito.
Não se está perante nenhum dano real, seja atual ou futuro. Muito menos se poderá considerar verificado um nexo causal, ou seja, que um (qualquer) dano tenha sido causado pela atuação da 1.ª Requerida, seja qual for a interpretação do anúncio em apreço. De salientar que nada foi alegado pela Requerente a respeito do previsível lucro com o contrato a celebrar com a 1.ª Requerida, até se podendo, pois, dar o caso de não existir. Portanto, os factos alegados não permitem reconhecer como provável a existência do direito a uma indemnização.

Ainda que, por mera hipótese, pudessem emergir danos (indemnizáveis) da responsabilidade da 1.ª Requerida e não obstante alguma eventual dificuldade em calcular o montante da respetiva indemnização (na comparação das situações patrimoniais a apreciar pela teoria da diferença), nada permite considerar que um tal direito (a indemnização) se encontre ameaçado, muito menos ao ponto de justificar o decretamento das medidas requeridas, as quais não são, como também é óbvio, adequadas a assegurar a efetividade do mesmo.
Destarte, improcedem as conclusões da alegação de recurso.

Vencida a Requerente/Apelante, é responsável pelo pagamento das custas do presente recurso (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC). Considerando a natureza urgente dos autos, a “normalidade” da conduta processual da Apelante, mormente a contenção da alegação de recurso apresentada, e uma vez que o mérito do recurso não assume significativa complexidade, não implicando designadamente a reapreciação de prova gravada, consideramos adequado, ao abrigo do art. 6.º, n.º 7, do CPC, dispensar a Apelante do pagamento da taxa de justiça remanescente.

***

III - DECISÃO

Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, manter a decisão recorrida.
A Apelante vai condenada no pagamento das custas do presente recurso, com dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente.

D.N.

Lisboa, 12-09-2019
Laurinda Gemas
Gabriela Cunha Rodrigues
Arlindo Crua