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ABUSO DE DIREITO
Sumário
I - Verifica-se abuso de direito de ação quando agente, de má-fé, e ciente do facto de que não tem o direito de pleitear, usa a justiça como se realmente possuísse tal direito ou utiliza os meios judiciários sem causa razoável ou provável. II - Nenhum contraente é obrigado, sem motivos plausíveis, a renegociar os termos dos contratos firmados e, menos ainda, a aceitar a redução no valor. III - Face à mora da devedor, não se considera defluir de uma atitude de má-fé do credor, que desvie tal posição do interesse para que a lei a gizou, a propositura de providência cautelar que tem como fundamento essa mora contratual e o receio da perda da garantia.
Texto Integral
Proc. 423/19.1T8PVZ.P1
Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto: RELATÓRIO REQUERENTE: B…, divorciado, residente na Rua … n.º .., 3º direito, ….-… Porto. REQUERIDA: C…, divorciada, residente na Rua … n.º …., 1º direito, ….-…, na Maia.
Providência cautelar: Arresto da quota com o valor nominal de € 586.470,00, de que a Requerida é titular no capital social da sociedade comercial denominada D…, UNIPESSOAL, LDA., e imposição a esta sociedade, na pessoa da sua sócia única e gerente, a aqui requerida, da proibição de transmitir para terceiros, por qualquer meio ou forma, as quotas que detém nas sociedades E…, Lda., E1…, Lda. e E2…, Lda.
Para tanto alegou ter celebrado com a requerida, de quem se acha divorciado, contrato de partilha por via do qual foram adjudicados à requerida um conjunto de bens e direitos, entre os quais quotas nas sociedades E…, Lda., E1…, Lda. e E2…, Lda., com obrigação de pagamento de tornas ao requerente dentro de determinado prazo, o que a que requerida não cumpriu, tendo utilizado as quotas para realizar o capital social da sociedade D…, UNIPESSOAL, LDA., de que é única sócia.
Invoca o disposto no art. 396.º, n.º 3 CPC.
Sem citação da requerida, produzida prova, foi proferida decisão, a 18.3.2019, decretando o arresto da quota com o valor nominal de 586.470,00 € de que a Requerida é titular no capital social da sociedade comercial denominada D…, Unipessoal, Lda., indeferindo o demais.
A requerida apresentou oposição, entendendo não existir fundamento para o decretamento da providência, uma vez que nunca se recusou cumprir as obrigações que para si decorrem do negócio celerado com o requerente, estando ambos em renegociação das condições de pagamento, sendo abusiva a posição que este ora manifesta; constitui garantia de cumprimento a existência do imóvel que foi casa de morada da família e que coube à requerida.
O requerente exerceu contraditório.
Por decisão de 6.5.2019, foi julgada improcedente a oposição e mantido o arresto.
São os seguintes os factos aí dados como provados. 1. Requerente e Requerida casaram a 28 de Julho de 2001, sem convenção antenupcial, e sob o regime de comunhão de adquiridos. 2. Do referido casamento, nasceram três filhos: F…, G… e H…. 3. Em Agosto de 2013, e por decisão mútua, Requerente e Requerida separaram-se de facto, deixando de coabitar. 4. No estado de casados mas separados de facto se mantiveram até 31 de Julho de 2017, data em que foi apresentado o pedido de divórcio por mútuo consentimento devidamente instruído para além do respectivo requerimento, com o acordo sobre a regulação das responsabilidades parentais, o acordo sobre o destino da casa de morada de família, bem como a relação de bens comuns do casal. 5. Em 19 de Setembro de 2017 foi decretado, pela Terceira Conservatória do Registo Civil do Porto, o divórcio por mútuo consentimento entre o Requerente e a Requerida. 6. Por forma a regularem a distribuição dos bens comuns do casal, na data de entrada do pedido de divórcio acima referido, o Requerente e a Requerida celebraram um contrato de promessa de partilha no qual atribuíram os valores dos bens comuns do casal para efeitos de partilha, estabeleceram a adjudicação de cada um desses bens, bem como o valor de tornas a pagar a final e respectivos métodos e condições de pagamento. 7. Na data do decretamento do divórcio por mútuo consentimento, e tal como estipulado no contrato de promessa de partilha, Requerente e Requerida celebraram o contrato (definitivo) de partilha, por documento autenticado. 8. No referido contrato de partilha foi fixada, em concreto, a adjudicação à Requerida dos seguintes bens comuns do casal, no montante total de € 753.196,71: a) quota na sociedade E…, Lda. (NIPC ………, com sede na … – Vizela, Braga e capital social de € 5.000,00), com o valor nominal de € 2.500,00 e à qual foi atribuída, por acordo entre ambos e para efeitos de partilha, o valor de € 351.097,54; b) quota na sociedade E1…, Lda. (NIPC ………, com sede na Rua …, Lousada e capital social de € 5.000,00), com o valor nominal de € 2.450,00 e à qual foi atribuída, por acordo entre ambos e para efeitos de partilha, o valor de € 104.842,30; c) quota na sociedade E2…, Lda. (NIPC ………, com sede no … n.º ., Paredes e capital social de € 5.000,00), com o valor nominal de € 2.450,00 e à qual foi atribuída, por acordo entre ambos e para efeitos de partilha, o valor de € 117.249,80; d) plano poupança reforma constituído junto do I… no valor de € 15.796,69; e e) recheio do imóvel que foi casa de morada de família, ao qual atribuíram por acordo e para efeitos de partilha o valor de € 164.210,38. 9. Ao Requerente foram adjudicados os seguintes bens, no montante total de € 211.840,43: a) plano poupança reforma constituído junto do I…, no valor de € 14.832,32; b) obrigações I1…, no valor de € 181.408,11; e c) certificados de tesouro comercializados pelo IGCP, no valor de € 15.600,00. 10. O único passivo do casal - dívida ao I… pelo mútuo concedido para a aquisição do imóvel que foi casa de morada de família - no valor de € 74.225,30, ficou adjudicado à Requerida. 11. O activo do casal, à data da assinatura do contrato de partilha, tinha o valor global de € 965.037,14, correspondente ao somatório do valor atribuído a cada um dos bens supra elencados e identificados. 12. Tendo em conta o valor dos bens adjudicados ao Requerente e à Requerida e considerando o valor que caberia a cada um no montante global do activo - que seria € 445.405,92 a cada e já deduzido do valor da dívida constituída perante o I… - ficou acordado o pagamento de € 233.565,49 pela Requerida ao Requerente, a título de tornas. 13. Ficou ainda estipulado que o supra referido valor de tornas seria pago pela Requerida ao Requerente da seguinte forma: cinco prestações anuais e sucessivas, sendo as primeiras quatro prestações no valor de € 50.000,00 e a quinta prestação no valor de € 33.565,49. 14. Vencendo-se a primeira prestação no dia 31 de Dezembro de 2017 - 3 meses após a assinatura do contrato de partilha - e as seguintes no mesmo dia e mês dos 4 anos subsequentes (2018, 2019, 2020 e 2021). 15. Sobre o valor das tornas em dívida à data do contrato de partilha ficou, ainda, acordado que a Requerida pagaria juros anuais, à taxa de 3%, a pagar na data de vencimento de cada uma das prestações anuais. 16. No que diz respeito ao imóvel que foi casa de morada de família, ficou estabelecido a sua partilha nos termos e condições fixadas no contrato de promessa de partilha, isto é, foi-lhe atribuído o valor de € 192.500,00, fixando-se que o mesmo seria adjudicado à Requerida, por escritura e no prazo máximo de 3 anos a contar da liquidação total do valor de tornas supra referidas. 17. Em consequência, e sendo o imóvel que foi casa de morada de família um bem comum do casal, ficou acordado que a Requerida pagaria ao Requerente o montante de € 96.250,00, correspondente à sua meação. 18. Valor este a título de tornas pela atribuição da casa de morada de família à Requerida e distinto das tornas devidas pela adjudicação dos outros bens comuns do casal. 19. A adjudicação (futura) do imóvel que foi casa de morada de família à Requerida ficou acordada nos seguintes termos: adjudicação a realizar no prazo máximo de 3 anos a contar da liquidação total pela Requerida das tornas relativas aos outros bens comuns do casal que lhe foram adjudicados mas, apenas e só, após liquidação integral do valor de € 96.250,00, a pagar em quatro prestações, sendo a primeira no valor de € 17.000,00, com vencimento a 31 de Março de 2022; segunda prestação no valor de € 26.416,66, com vencimento em 31 de Dezembro de 2022; terceira prestação no valor de € 26.416,66, com vencimento em 31 de Dezembro de 2023 e quarta prestação no valor de € 26.416,66, com vencimento em 31 de Dezembro de 2024. 20. Até à partilha efectiva do imóvel que foi casa de morada de família a favor da Requerida ficou esta última com o direito ao uso e usufruto exclusivo do mesmo, assumindo todas as despesas inerentes. 21. Na sequência da assinatura do contrato de partilha, a Requerida fez as alterações registrais necessárias para que os bens que lhe foram adjudicados constassem como seus e apenas em seu nome. 22. Foi o que aconteceu com as quotas das sociedades E…, Lda., E1…, Lda. e E2…, Lda.. 23. Pouco tempo após a assinatura do contrato de partilha - não mais que três meses! – a Requerida abordou o Requerente antecipando que não iria conseguir cumprir com os demais pagamentos a que estava adstrita, solicitando que fossem realizadas novas negociações e eventual novo acordo. 24. A referida partilha demorou mais de 3 anos a ser negociada e preparada e a ficar definitivamente estabelecida, reflectindo a vontade de ambos devidamente ponderada. 25. Só após alguma insistência da parte do Requerente é que a Requerida procedeu ao pagamento da primeira prestação devida em 9 de Janeiro de 2018. 26. Quanto ao pagamento da 1ª prestação, a Requerida apenas transferiu € 45.606,33, isto porque ao valor efectivamente devido, isto é, € 50.000,00 acrescido de € 1.676,74 a título de juros, deduziu o montante relativo à pensão de alimentos dos meses de Setembro a Dezembro de 2017 - a que o Requerente estava adstrito em relação aos filhos comuns (€ 150,000 por cada filho, € 450,00 por mês) – e outras despesas relativas aos filhos bem como deduziu um montante relativo a rendas pelo uso pelo Requerente, em igual período, de um imóvel da sociedade E…, Lda. 27. No que diz respeito à 2ª prestação, com vencimento no dia 31 de Dezembro de 2018, a Requerida apenas transferiu para o Requerente o montante de € 10.000,00, apesar do valor estipulado ser € 50.000,00 acrescido de € 5.206,56 a título de juros. 28. Também na segunda prestação a Requerida deduziu ao respectivo valor, o montante da pensão de alimentos devida pelo Requerente e relativa ao ano 2018, o valor das rendas do ano 2018 da casa por si habitada e uma série de despesas relativas aos filhos, num total de dedução de € 13.451,27. 29. Com a dedução operada pela Requerida, ficou ainda a faltar da segunda prestação o montante de € 31.755,29. 30. Sem justificação ou fundamento, ao menos aceitável, para tal comportamento. 31. As quotas adjudicadas por contrato de partilha foram utilizadas pela Requerida para realizar o capital social de uma sociedade por quotas unipessoal, denominada D…, Unipessoal, Lda, com NIPC ……… e com sede na Rua … n.º …., 1º direito, na Maia. 32. Sociedade essa constituída em 19 de Setembro de 2018 que tem como sócia única e gerente a Requerida e que tem um capital social de € 586.470,00, integralmente subscrito e realizado em espécie, com as quotas das quais aquela era titular nas sociedades E…, Lda., E1…, Lda. e E2…, Lda., que lhe haviam sido adjudicadas pelo contrato de partilha e às quais foram atribuídos os seguintes valores para efeitos de constituição do capital social . € 340.000,00 à quota na E…, Lda; . € 122.010,00 à quota na E1…, Lda; e . € 124.460,00 à quota na E2…. 33. Foram constituídas mais duas sociedades comerciais – a E3…, Lda. (constituída em 11 de Abril de 2014) e a E4…, Lda. (constituída em 7 de Dezembro de 2016) - constituídas na constância do casamento de ambos, que o Requerente desconhecida e que não foram incluídas no contrato de promessa de partilha nem no contrato de partilha definitivo celebrado entre ambos. 34. As referidas sociedades têm o mesmo objecto social que a sociedade E…, Lda., E1…, Lda. e E2…, Lda., isto é, comércio, representações e assistência técnica de produtos diversos, nomeadamente material de equipamentos ópticos e prestação de serviços ópticos, bem como os mesmos gerentes, a aqui Requerida e J…. 35. Estas como as outras são lojas franchisadas à K…. 36. A Requerida fez com que as sociedades supra referidas em 33) fossem originariamente constituídas tendo como sócias formais a sua sócia de sempre J… (também sócia nas outras sociedades) e a sociedade E…, Lda. 37. Em ambas as sociedades sendo gerentes desde o início a Requerida e a sua sócia J…. 38. Em 07/11/2018 a sócia J… cedeu parte da sua quota na sociedade E4…, Lda. à já referida D…, Unipessoal, Lda.. 39. O que também virá a suceder na E3…, Lda., quando tal convier à Requerida. Oposição 40. Foi estabelecido no início de 2018 entre as partes um processo com vista a renegociar os valores do contrato de partilha que passavam por uma nova proposta da Requerida em que a mesma pagaria ao Requerente 150.000,00 €.
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Factos Não Provados . A referida partilha tenha demorado 4 anos a ser negociada e preparada. . J… esteja a actuar por conta da aqui Requerida. . Na 1.ª prestação a Requerida tenha deduzido o montante relativo à pensão de alimentos de cada um dos filhos quanto aos meses de Janeiro a Agosto e o montante relativo às rendas pelo uso pelo Requerente de um imóvel da sociedade E…, Lda. quanto ao mesmo período. . O contrato promessa de partilha tenha sido negociado e assinado num clima de grande turbulência emocional da Requerida; . Esta não tenha ponderado devidamente nem tenha confirmado de forma fidedigna os valores de avaliação das sociedades. . O processo de renegociação dos valores da partilha tenha ultrapassado o mês de Fevereiro de 2018. . A quantia de 150.000,00 € que a Requerida propôs de novo fosse a pagar imediatamente. . Já quando Requerente e Requerida eram casados tenha existido a ideia de agrupar as quotas das sociedades numa sociedade que parqueasse as participações sociais. . Tenha sido esta a razão pela qual a D… foi criada. . A Requerida não tenha entrado na E3… e na E4… devido a um período conturbado da sua vida familiar e da sua estabilidade emocional.
Desta sentença recorre a requerida, visando a sua revogação, com base nos argumentos que conclui da seguinte forma: 1. Em primeiro lugar a sentença recorrida não faz qualquer alusão ao depoimento de parte prestado pelo Requerente B…. 2. A aqui Recorrente solicitou o depoimento de parte do Requerente à matéria dos artigos 4º a 7º, 10º a 13º e 40º da Oposição. 3. Ora conforme resulta da gravação da audiência de julgamento o Requerente confessou o vertido nos artigos 6º (“logo a 4 de Janeiro de 2018 a Requerida comunicou ao Requerente que estava a apurar o valor das despesas a deduzir à prestação de € 50.000,00 “) e 7º da Oposição (“a Requerida apenas deduziu os valores da prestação de alimentos de Setembro a Dezembro de 2017 e a renda do imóvel que o Requerido habita do mesmo período de tempo (Setembro a Dezembro de 2017) e outras despesas suportadas pela Requerida e que eram da responsabilidade do Requerente”). 4. Deve assim ser considerado como provado os factos constantes do artigo 6.º da Oposição. 5. De notar que foi em face da confissão do Requerente constante do artigo 7.º da Oposição que o tribunal considerou como não provado o artigo 27º da PI (“Na 1.ª prestação a Requerida tenha deduzido o montante relativo à pensão de alimentos de cada um dos filhos quanto aos meses de Janeiro a Agosto e o montante relativo às rendas pelo uso pelo Requerente de um imóvel da sociedade E…, Lda. quanto ao mesmo período”). 6. No seu depoimento de parte o Requerente confessou de forma expressa que na proposta apresentada pela Requerida esta proponha um pagamento imediato de € 150.000,00 (artigo 12º da Oposição). 7. Por outro lado, a sentença recorrida é nula atento o vertido na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC: “É nula a sentença quando: d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar...”. 8. Ora a aqui Recorrente alegou na sua oposição que existiu da parte do Requerente abertura e predisposição para renegociar e alterar o contrato de partilha (facto esse confirmado pelo próprio apesar de referir que esse processo de negociações não ultrapassou o mês de Fevereiro de 2018) pelo que é manifesto o abuso de direito do Requerente ao intentar a providência cautelar. 9. A sentença recorrida pura e simplesmente não se pronuncia sobre a questão do abuso de direito e dai a flagrante nulidade da sentença recorrida nos termos do artigo 615.º n.º 1 alínea d) do CPC. 10. Devendo ser suprida em sede de recurso esta nulidade que decorre da total omissão de pronúncia. 11. Entende a recorrente que é manifesta a existência de abuso de direito bastando citar a este respeito o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/11/2013 no Processo 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1 in www.dgsi.pt (…)[1]. 12. Por último e conforme já constava do seu requerimento de oposição entende a aqui Recorrente que não se verificam os requisitos para que fosse decretada a providência cautelar. 13. Na verdade da sentença recorrida (bem como da petição inicial de arresto) não está alegado um único facto que indicie a vontade da Requerida no sentido de dispor ou alienar a quota objecto do arresto. 14. Citando acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20/09/2018 no Processo 8499/18.2T8LSB-A.L1-6 (…)[2]. 15. Por último a sentença recorrida é contraditória pois ao contrário do alegado pelo Requerente além da quota arrestada a aqui Recorrente possui um outro importante activo: a fracção autónoma identificada pela letra “C” correspondente ao primeiro andar, destinado a habitação, do tipo T3, que faz parte integrante do prédio urbano situado na Rua …, nº …., da freguesia da Maia, descrito na CRP sob o n.º 825 e inscrito na matriz sob o artigo 5452.º. 16. Ou seja, a quota nunca é nem nunca foi o único activo da Recorrente! Sendo certo que em momento algum é alegado um único facto de que a Recorrente pretenderia vender a quota que possui na sociedade D…, Unipessoal, Lda. 17. Na verdade e conforme alegado em sede de oposição o Recorrido no referido contrato de partilha não acautelou qualquer ónus de reserva de propriedade até ao pagamento integral do preço ou a constituição de penhor sobre as referidas quotas também até pagamento integral do preço. 18. E não o fez pois sabia que tinha sempre a garantia da propriedade da Recorrente sobre o imóvel que foi a casa de morada de família! 19. Violou a sentença recorrida o vertido nos artigos 391º, 392º e 393º do CPC.
Opõe-se o requerente à procedência do recurso, alinhando os argumentos que assim sintetiza: A) A Recorrente no recurso por si apresentado alega a existência de uma confissão por parte do Recorrido, supostamente verificada no respectivo depoimento de parte, fundamentando tal confissão com base em gravação de audiência de julgamento e insurgindo-se, em consequência, quanto à não alusão a esse mesmo depoimento na Douta Sentença recorrida. B) A referida confissão nunca existiu, facto que pode ser comprovado pela acta da audiência de julgamento do dia 2 de Maio de 2019, nem a Recorrente a requereu, nos termos do art. 463º do CPC, como lhe competia, não estando a mesma sequer reduzida a escrito. C) Acresce ainda que, a Recorrente bem sabe que não existiu qualquer confissão, motivo pelo qual não indicou o momento exacto da gravação em que a mesma se terá verificado, em clara violação do disposto no art. 640º n.º 1 e 2 a) do Código de Processo Civil (CPC), devendo, por conseguinte, ser rejeitada liminarmente a parte do Recurso em que é referida a (inexistente) confissão do Recorrido fundada em gravação da audiência de julgamento. D) No que diz respeito à invocada nulidade da Douta Sentença recorrida, nos termos do disposto no art. 615º n.º 1 d) do CPC, por omissão de pronúncia sobre o alegado abuso de direito do Recorrido, cumpre referir que a questão controvertida que se discutiu nos autos em apreço foi a admissibilidade, ou não, do arresto da quota da qual a Recorrente é única titular no capital sociedade D…, Unipessoal Lda., ao abrigo do disposto no art. 391º n.º 1 e 392º n.º 1 do CPC. E) Provado ficou que o Recorrido detém um crédito sobre a Recorrente – uma vez que, com o incumprimento da 2ª prestação se venceram todas as prestações previstas no contrato de partilha e devidas por aquela, por se tratar de uma obrigação de prazo certo – que há um justo receio do Recorrido perder a garantia patrimonial do seu crédito – pois que a Recorrente concentrou as quotas partilhadas numa só sociedade para assim dificultar o pagamento da dívida que tem, sendo este o único bem que se lhe conhece de valor significativo e suficiente para pagamento do crédito do Recorrido – e que a Recorrente ocultou do Recorrido a existência de mais duas sociedades constituídas na pendência do casamento que não foram contabilizadas na partilha após divórcio, falece assim a questão do abuso de direito, nos termos do disposto no art. 608º n.º 2 do CPC. F) Todavia, refira-se que a existir abuso de direito, o mesmo foi levado a cabo pela Recorrente ao pretender a renegociação de um acordo aceite por si de livre vontade e que demorou mais de 3 anos a estar concluído, informando simplesmente o Recorrido que não tinha capacidade para cumprir o mesmo, impondo condições com a intenção oculta de não cumprir com o acordado, às quais o Recorrido não acedeu por direito. G) Por último, a Recorrente incorre em manifesto erro de facto e de direito ao referir que possui um outro bem além da quota arrestada, que seria a fracção autónoma que foi casa de morada de família. H) Ora, a sobredita fracção foi adquirida na pendência do casamento entre Recorrente e Recorrido e ainda não foi partilhada, permanecendo assim bem comum. I) A Recorrente quanto muito poderia invocar uma propriedade sobre a sua meação na sobredita fracção - meação essa que, diga-se, ainda não existe, pois a casa que foi casa morada de família permanece indivisa por ainda não ter sido partilhada – cujo valor seria de € 96.250,00 (conforme avaliação atribuída no contrato de partilha ora celebrado), valor este que se revela insuficiente para garantia do crédito do Recorrido que ascende a € 177.888,75. J) Deve assim, em conformidade, improceder o recurso interposto pela Recorrente e manter-se o arresto da quota da qual a Recorrente é única titular no capital sociedade D…, Unipessoal Lda.
Questões a decidir, em conformidade com as conclusões do recurso apresentado pela requerida e segundo a sua ordem lógica:
I - Da nulidade por omissão de pronúncia quanto ao abuso de direito;
II – Da alteração da factualidade provada/não provada e do abuso do direito.
III – Dos fundamentos do arresto.
I – Da nulidade por omissão de pronúncia (art. 615.º, n.º 1 al. d) CPC.
Não se pronuncia a sentença sobre a factualidade relativa à existência de negociações entre as partes com vista à alteração dos termos do acordo que tivessem sido bruscamente interrompidas com a propositura do presente processo.
Nessa medida, para a recorrente, o recurso à providência cautelar constituiria um abuso de direito de ação e a sentença seria nula por omissão de pronúncia por não ter apreciado tal tema.
Vejamos, porém, se poderemos concluir assim.
II – Da alteração da factualidade
A recorrente considera, neste tocante, dever ser dada especial relevância ao depoimento do requerente para dar como provada a circunstância por si alegada e segundo a qual, a 4.1.2018, a requerida teria comunicado ao requerente estar a apurar o valor das despesas a deduzir à prestação de € 50.000, 00.
Também considera que, em função do depoimento de parte do requerente, se deve dar como provado ter a requerida efetuado a proposta de pagamento imediato de € 150.000, 00.
Aqui chegados, imposta verificar, antes de mais, se estas duas circunstâncias, com as demais já apuradas, encerram em si a virtualidade de paralisar o direito do requerente em obter providência capaz de acautelar o efeito útil dos seus direitos contratuais e a resposta é, a todos os títulos, negativa, o que torna inútil dar-se como provada ou não provada a matéria da oposição.
Sobre o uso abusivo do processo nos debruçamos no ac. desta Relação, datado de 22.10.2018, Proc. 528/11.7TVPRT.P1[3].
Tivemos então ocasião de expor o seguinte
«Esse direito potestativo [tutela judicial efetiva e acesso dos cidadãos aos tribunais] é inegável.
Trata-se do direito de ação judicial[4] que, no caso dos tribunais administrativos está previsto no art. 268.º, n.ºs e ss. da Const., sendo reafirmado no art. 2.º, n.º 1CPTA.
Mas o certo é que “o direito de ação não é absoluto. Uma ação pode ser intentada dolosamente, sem quaisquer fundamentos ou com alegações falsas, apenas para incomodar ou causar danos”[5].
Assim, diz-se que a boa-fé civil não tem apenas efeitos no campo substantivo, mas também no campo processual e, aqui, convoca-se o instituto do abuso de direito[6].
O abuso de direito acha-se assinalado no art. 334.º CC que dispõe: É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Delineemos em primeiro lugar o espetro do instituto para depois sindicar da sua pertinência normativo-reguladora dos interesses em causa, i.é, a sua concretização quanto ao direito de ação judicial.
Qualquer direito subjetivo – e também o de exercício da tutela judicial - não poderá ser exercido sem a observância de regras de utilização que constituem simultaneamente os seus limites de imanência interna e que os relativizam reconvertendo-os ao sentido global de racionalidade de todo o sistema jurídico.
É o que sucede com o chamado abuso de direito, princípio que hoje já não se confunde com a ancestral teoria dos atos emulativos, segundo a qual seria ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular apenas visasse lesar interesses de outrem, e passou a exprimir-se pela ideia de que cada direito só é elaborado ou tutelado pela ordem jurídica para certo interesse (v.g. Santoro-Passarelli), ou para certo fim socialmente relevante (v.g. Josserand), ou de há-de obedecer, no seu exercício, a uma norma implícita ou explícita de correcção, de lealdade, de moralidade, a uma lei acima da lei (...entre nós Vaz Serra e Manuel de Andrade...), ou ainda de que ele é "uma intenção normativa que apenas subsiste na sua validade jurídica enquanto cumpre concretamente o fundamento axiológico-normativo que a constitui[7].
O controlo do exercício da autodeterminação do direito subjetivo não se esgota no jogo do abuso de direito, mas faz apelo a outras "normas em branco", como sejam a boa-fé e os bons costumes, princípios cogentes que, contudo, se fazem entrar geralmente na definição do que é abuso de direito, caracterizando-se este como "o exercício do poder formal realmente conferido pela ordem jurídica a certa pessoa, mas em aberta contradição, seja como o fim (económico ou social a que esse poder se encontra adstrito), seja com o condicionalismo ético-jurídico (boa-fé, bons costumes) que, em cada época histórica, envolve o seu reconhecimento"[8]. É, aliás, esse o conteúdo que lhe é reconhecido no mencionado art. 334.º C.C.
Densificando um pouco mais o conceito de abuso de direito, veremos que ele se concretiza, em regra, em três situações diferentes.
1. A primeira respeita às situações de clássica atuação emulativa, o exercício gratuito do direito com o único e manifesto propósito de negar interesses dos outros, revelando-se, em contrapartida uma falta de interesse objetivo para o exercente.
2. A segunda quando o exercente visa a afirmação de interesses próprios mas em que se patenteia uma lesão ponderosa (mas de todo escusada) de interesse alheio (ainda que não dolosa).
3. Por último, conclui-se existir abuso de direito sempre que se atuam direitos aos quais não está associada qualquer vantagem real para o seu titular mas em que a atuação se projeta externamente constituindo (ainda que não intencionalmente) desvantagem para outrem[9].
Destarte, o que há que averiguar, em cada caso concreto, é se a prossecução do direito subjetivo há-de ser indiferente aos prejuízos que resultem para terceiros e se o agente pode prosseguir tal móbil impunemente por tais prejuízos laterais. Isto sem curar de averiguar se o prejuízo se verifica efetivamente, bastando a previsibilidade da sua ocorrência e relevando a efetiva produção do bem apenas em sede de indemnização, que não é, como é consabido, a sanção primordial do exercício abusivo do direito. Essa sanção é, pura e simplesmente a ilegitimidade do direito e seu o não reconhecimento pela ordem jurídica na parte em que se revele ilegítimo[10].
Esta é, classicamente, a configuração do abuso de direito[11].
Claro está que, dando origem a uma ação autónoma, o abuso de direito em matéria processual pode ter como efeito a indemnização dos prejuízos causados[12].
A doutrina alemã[13] agrupa em quatro os casos de aplicação da boa-fé no processo:
- proibição de consubstanciar dolosamente posições processuais (situações de tu quoque, por exemplo, a parte não pode beneficiar de um não decurso de um prazo quando impediu dolosamente a notificação que interrompia o prazo);
- proibição de venire contra factum proprium;
- proibição de abuso de poderes processuais (caso da chincana e arrastamento injustificado do processo);
- supressio (ex., o interessado faz valer uma queixa muito depois de verificados os factos pertinentes).
Enquanto a litigância de má-fé tem de ser considerada intra-processualmente, no processo onde ocorre, o abuso de direito é fundamento de uma ação própria e, substancialmente, apresenta especificidades relativamente à má-fé processual:
- vale qualquer violação de boa-fé;
- dolosa, negligente ou, até, puramente objectiva[14];
- exigem-se danos, atuais, futuros ou eventuais;
- qualquer pessoa é responsabilizável, incluindo as coletivas;
- todos os danos são considerados[15].
Explicitando o que pode entender-se por abuso de direito no campo processual, Marta Borges[16] propõe uma classificação que considere o “abuso macroscópico” e o “abuso microscópico”[17], ou seja, a circunstância em que se abusa do processo globalmente considerado, em que a própria propositura da ação ou a defesa se encontram ab initio viciadas, dos casos em que se abusa de instrumentos processuais específicos (como incidentes processuais ou recursos), sendo o abuso macroscópico do processo oabuso do direito de ação, isto é, aqueles casos em que o sujeito propõe a ação funcionalizando-a a interesses ou escopos distintos daqueles que justificaram a concessão do direito. Como casos mais flagrantes podemos destacar aqueles em que o autor intenta a ação com o único propósito de “perturbar” a contraparte (lesando-lhe o crédito ou o bom nome e causando-lhe danos não patrimoniais), prejudicar terceiros mediante a simulação da existência de um litígio, ou ainda defraudar a lei para a alcançar de um objetivo ilegal (art. 612º CPC).
A autora acaba por definir o abuso de direito processual como o exercício do direito desviado do interesse que lhe é imanente e que justificou a sua atribuição, sendo abusiva qualquer situação subjetiva processual que se desvie manifestamente desse interesse, independentemente da consideração de fins internos ou externos ao processo. Assim, no abuso macroscópico curar-se-á de saber se a concreta atuação dos litigantes se desvia do escopo do processo globalmente considerado – cuja finalidade é a justa resolução do litígio e a pacificação social.
Assim considerado, o abuso de direito que integra a culpa in agendo, no que à responsabilidade aquiliana concerne (a responsabilidade contratual está afastada in casu), acabará por verificar-se se estiverem verificados os pressupostos dos arts. 498.º e ss. CC, onde avulta, desde logo, o fato ilícito e culposo (doloso ou negligente).
A ilicitude pode revestir uma de duas formas: violação de direitos de outrem ou violação de normas que visam proteger esses direitos.
Na definição de ilicitude, o desfecho da ação proposta, maxime a improcedência, não envolve necessariamente uso ilegítimo da tutela jurisdicional. Em caso de improcedência, apenas se poderá concluir que o direito não existia, mas isso não obsta a que o autor tivesse, de facto, o direito à discussão judicial mas, esse direito não é infinito: haverá que conjugá-lo, à luz das regras sobre colisão de direitos – artigo 335.º do Código Civil – com o direito de fundo da outra parte (…) de modo que, a atuação levada a cabo ao abrigo de um direito e que cause danos a outrem, atingindo os direitos do lesado ou normas destinadas a proteger interesses alheios, não fica, automaticamente, justificada: depende da ponderação dos direitos em presença[18].
Em concretização desta noção geral, surgem várias situações, a primeira das quais respeita à culpa por danos patrimoniais prolongados, com as quais se abrangem “todas as situações nas quais as iniciativas processuais do agente tenham efetivas consequências no património do lesado”, como sucede quando “o agente por má vontade ou para pressionar o lesado, intente uma ação sem fundamento relativa a um imóvel e proceda ao registo. Com isso, pode impedir a comercialização do imóvel, causando danos em cadeia”[19].
Um exemplo destes casos encontra-se no art. 374.º/1 CPC: Se a providência for considerada injustificada ou vier a caducar por facto imputável ao requerente, responde este pelos danos culposamente causados ao requerido, quando não tenha agido com a prudência normal.
Assim configurado, o abuso de direito acaba por ser o fundamento ilícito que poderá estar na origem da obrigação de indemnizar a cargo do lesante, a ser ponderada nos quadros da responsabilidade civil extracontratual[20].
A figura é tratada no direito anglosaxónico como vexatious action and abuse of regulatory procedure[21].
O próprio Tribunal Europeu dos Direitos do Homem conhece a figura que consta no art. 35, par. 3 a), relativo às condições de admissibilidade de uma ação naquele tribunal: O Tribunal declarará a inadmissibilidade de qualquer petição individual formulada nos termos do artigo 34° sempre que considerar que: a) A petição é incompatível com o disposto na Convenção ou nos seus Protocolos, é manifestamente mal fundada ou tem caráter abusivo, definindo a falta de fundamento e o caráter abusivo do modo seguinte:
«O conceito de “abuso”, na aceção do artigo 35.º, n.º 3, alínea a), deve ser entendido no seu sentido comum de acordo com a teoria jurídica geral, ou seja, o exercício prejudicial de um direito para fins diferentes daqueles para os quais foi concebido. Assim, qualquer conduta de um recorrente que seja manifestamente contrária à finalidade do direito de ação individual, tal como previsto no Convenção e impede o bom funcionamento do Tribunal ou o bom funcionamento do processo constitui um abuso do direito de ação».[22]
Densificando o conceito, o tribunal tipifica o abuso de direito de ação em cinco categorias: uso de informação enganosa; uso de linguagem ofensiva; violação da obrigação de manter confidenciais os procedimentos de resolução amigável; pedido manifestamente vexatório ou desprovido de qualquer propósito real; e todos os outros casos que não podem ser listados exaustivamente.
No direito francês, a procédure abusive au tribunal tem sido objeto de vasto tratamento doutrinário. No tratado de responsabilidade civil, Baudouin considera que a primeira situação de abuso de ação surge quando agente, de má-fé, e ciente do fato de que não tem o direito de pleitear, usa a justiça como se realmente possuísse tal direito. Utiliza os meios judiciários sem causa razoável ou provável[23].
Ilustrando as aplicações jurisprudenciais mais frequentes, refere a denúncia caluniosa, o uso de procedimentos com propósito dilatório, a vingança e a pura finalidade de prejudicar terceiros.
De todo o conjunto de asserções relativas ao abuso de direito de ação que acabamos de expor resultam os seguintes pontos comuns que tomamos como enunciados gerais de um tabestand não escrito do que seja o abuso de direito de ação:
- o exercício gratuito do direito com o único e manifesto propósito de negar interesses dos outros, revelando-se, em contrapartida uma falta de interesse objetivo para o exercente (ex. a vingança e a pura finalidade de prejudicar terceiros);
- a afirmação de interesses próprios mas em que se patenteia uma lesão ponderosa (mas de todo escusada) de interesse alheio (ainda que não dolosa);
- o exercício do direito desviado do interesse que lhe é imanente e que justificou a sua atribuição, sendo abusiva qualquer situação subjetiva processual que se desvie manifestamente desse interesse;
- ação por má vontade ou para pressionar o lesado (ex., a ação sem fundamento relativa a um imóvel e registo da mesma, com isso podendo impedir a comercialização do imóvel, causando danos em cadeia);
- pedido manifestamente vexatório ou desprovido de qualquer propósito real;
- a parte que lançou mão da tutela judiciária viu denegada a sua pretensão;
- a improcedência de uma qualquer pretensão exercida através dos mecanismos judiciários não significa, necessariamente, que o pedido era infundado.»
Na situação que nos ocupa, não existe dúvida de que entre as partes foi estabelecido um contrato, em 19.9.2017, por via do qual a requerida deveria entregar ao requerente a quantia global de € 233.565,49, em quatro prestações anuais, a iniciar em dezembro de 2017 (acrescendo juros de 3% anuais).
Está fora de dúvida que a prestação de dezembro de 2018 – parcialmente paga em janeiro deste ano – se encontra ainda em grande parte por satisfazer.
Diz a requerida ter comunicado ao requerente que se achava a apurar as despesas que deveria abater, o que sucedia já depois do vencimento da prestação.
Admitamos, por hipótese de trabalho, que comunicou este facto ao requerente, sem mencionar qualquer grandeza de valores.
Admitamos também que lhe propôs pagar de imediato determinada quantia em desconformidade com o acordado antes.
Esta alegação não suscita qualquer consequência jurídica no sentido por si propugnado
Se, por um lado, os contratos devem ser integral e pontualmente cumpridos (art.763.º CC), impunha-se que, ao tempo da oposição à providência – em abril de 2019 - pretendendo ver considerada abusiva a atitude de propositura da mesma, a requerida indicasse os valores a descontar a fim de se verificar nesta sede se, face à grandeza dos mesmos perante o valor residual em dívida da sua parte, se mostraria, eventualmente, desprovido de sentido e até desproporcional o arresto das quotas sociais.
Por outro, a requerida não cumpriu uma das prestações, o que importou o vencimento das restantes – art. 781.º CC -, donde se conclui, para já, estar afastada aquela desproporcionalidade.
Também dizer-se que, no início do ano passado e nos primeiros meses deste ano foi estabelecido um processo negocial com vista a “renegociar os valores do contrato de partilha” é também, em si, absolutamente inócuo.
Desde logo, porque nenhum contraente é obrigado, sem mais, a renegociar os termos dos contratos firmados, menos ainda é a parte obrigada a aceitar a redução no valor total na ordem dos 21% alegados (como seria, segundo alega a requerente, com a proposta de pagamento imediato da quantia de € 150.000,00). A menos que a contraparte alegue e demonstre especial situação de impossibilidade ou dificuldade de cumprimento, o que de todo não foi feito.
Assim, face à mora da devedora, não se vê como possa considerar-se defluir de uma atitude de má-fé do credor, que a desvie do interesse para que a lei a gizou, a propositura de providência cautelar que tem como fundamento essa mora contratual e o receio da perda da garantia.
Os limites do direito de ação estão, pois, absolutamente salvaguardados.
Improcede, assim, a pretensão de exercício abusivo do direito, sendo inútil considerar nula a sentença por omissão de pronúncia relativamente a matéria julgada ora improcedente
III – Dos requisitos do arresto
As providência cautelares são medidas que têm em vista acautelar o efeito útil de uma acção de que são dependentes, acção essa já proposta ou a propôr. Têm, pois, uma finalidade de instrumentalidade hipotética com base na ideia de que a composição final do litígio venha a ser favorável ao requerente.
O requerente tem de alegar e demostrar a probabilidade séria da existência de um direito, isto é, a verosimilhança dessa mesma existência (fumus bonis iuris) - objecto da providência e o fundado receio de que a demora na solução do pleito lhe causará um prejuízo irreparável ou de difícil reparação - finalidade da providência.
Estes elementos serão aferidos mediante a prova sumária que não será aprofundada mas terá de ser consistente (summaria cognitio).
O arresto encontra o seu fundamento substantivo nos arts. 619.º a 622.º, 817.º a 826.º, 605.º e ss., 821.º e ss. Código Civil.
Trata-se de um meio de conservação da garantia patrimonial dos credores que consiste na apreensão de bens do devedor. O requerente terá que alegar e provar que os bens a arrestar constituem a única garantia patrimonial do crédito invocado e o justo receio de dissipação e a consequente perda da garantia.
Na situação dos autos, a quota em apreço não é o único bem na disponibilidade da requerida. Assiste-lhe a meação da casa de morada de família, sendo que este imóvel foi avaliado pelas partes em € 192.500,00, cabendo à requerida metade deste valor, i.é, € 96.250,00.
O requerente invoca um crédito que ascende a mais de € 150.000,00.
Certo que a requerida recebeu outros bens e direitos com a partilha, mas trata-se de bens facilmente perecíveis e dissipáveis (mormente os móveis), cabendo-lhe também débito que não é despiciendo.
Sendo assim – a ausência de outros bens capazes de, por si, satisfazerem o crédito em apreço-, o primeiro dos requisitos está verificado.
O segundo – justo receio (e afastada a aplicabilidade do n.º 3 do art. 396.º CPC, como sucedeu em primeira instância) – resulta dos factos apurados em 23 a 25 (o incumprimento pouco tempo depois de findas longas negociações) e 31 a 33 e 36 a 40 (a facilidade na constituição e profusão de sociedades comerciais em cujo capital são empregues quotas de outras sociedades num crescendo que justifica o receio de dissipação do ativo).
Refira-se, por último, ser incompreensível o que alegou a apelante para evitar a providência: não ter o requerente procurado acautelar oportunamente o mesmo desiderato de outro modo, mormente constituindo reserva de propriedade a seu favor. E isto porque a regra nas obrigações é a da confiança no cumprimento pontual das obrigações por banda de todos os contraentes, sem obrigação de cautelas prévias que garantam ou forcem o adimplemento.
Dispositivo
Pelo exposto, julgam os juízes deste Tribunal da Relação improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Porto, 9.9.2019
Fernanda Almeida
António Eleutério
Isabel São Pedro Soeiro
_______________ [1] Seguem-se nas conclusões partes do acórdão citado. [2] Seguem-se nas conclusões partes do acórdão citado. [3] Disponível http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/4e86378747cf2d9980258354003b0e8b?OpenDocument [4] Salvo casos excecionais, sendo o direito de ação inerente ao Estado de direito e um veículo para a discussão do direito material subjetivo, não é por se decidir na ação que este direito afinal não existe que deixa de se reconhecer que o direito de ação foi plena e corretamente exercido. Situações excecionais, justificativas de responsabilidade, são aquelas em que o direito de ação é exercido com abuso de direito, de que é afloramento a litigância de má fé, e as que caraterizam a culpa in agendo.- Ac. RP, de 24.11.2016, Proc. 982/14.5T8PRT.P1. [5] Menezes Cordeiro, Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Ação e Culpa “In Agendo”, 2016, p. 38. [6] O princípio da boa-fé não é exclusivo do direito substantivo, também pode ser violado numa perspectiva da actuação processual, mormente, pelo recurso a juízo através de acções ou procedimentos cautelares abusivos. – Ac. STJ, de 4.11.2008, Proc. 08A3127. Entre nós, a cláusula geral da boa-fé processual vem a ser consagrada expressamente pela reforma operada pelo DL 329-A/95, de 12 de Dezembro, passando o Código de Processo Civil a dispor no aditado art. 266º-A que “as partes devem agir de boa fé e observar os deveres de cooperação” [cfr. atualmente art. 8.º]. [7] Castanheira Neves, Questão de facto-questão de direito, I, Coimbra, 1967, p. 523. [8] A. Varela, RLJ, 114, 72 e ss. [9] Vide, quanto a esta tripla distinção, Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, Almedina, 1983, págs. 44-45. [10] Orlando de Carvalho, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, 1981, p. 36. [11] Os casos concretos viriam, posteriormente, a permitir o desdobramento do conceito em venire contra factum proprium, inalegabilidade formal, suppressio, tu quoque e desequilíbrio no exercício. Todos eles traduzem concretizações de uma ideia tradicional: a da proibição do abuso do direito, apelando ao adensamento de um princípio clássico: a boa-fé – M. Cordeiro, Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas, disponível em https://portal.oa.pt/comunicacao/publicacoes/revista/ano-2005/ano-65-vol-ii-set-2005/artigos-doutrinais/antonio-menezes-cordeiro-do-abuso-do-direito-estado-das-questoes-e-perspectivas-star/ [12] Assim, Pedro de Albuquerque, Responsabilidade Processual por Litigância de Má-Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Actos Praticados no Processo, p. 2006, p. 152. [13] Descrita por M. Cordeiro, cit, p. 141 e ss. No campo legal, apenas o CPC francês contém, norma relativa ao abuso de ação. O art. 32.º-1 do Code de Procedure Civile dispõe: Celui qui agit en justice de manière dilatoire ou abusive peut être condamné à une amende civile d'un maximum de 10 000 euros, sans préjudice des dommages-intérêts qui seraient réclamés. [14] Na litigância de má-fé não é assim: antes da reforma processual introduzida pelo DL 329-A/95, de 12 de Dezembro, era entendimento constante da jurisprudência e da doutrina que o art.º 456º do Cód. de Proc. apenas sancionava as condutas dolosas. Após a revisão processual de 1995, o quadro normativo em matéria de litigância de má-fé passou a ser bem mais exigente, impondo a repressão e punição não só de condutas dolosas, mas também as gravemente negligentes (anterior art.º 456º, n.º 2, e actual 542º, n.º 2, do CPC) – Ac. STJ, de 2.6.2016, Proc. 1116/11.3TBVVD.G2.S1. [15] M. Cordeiro, ibidem, p. 146. [16] Algumas Reflexões em Matéria de Litigância de Má-Fé, Dissertação de Mestrado, na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Civilísticas, com Menção em Direito Processual Civil, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2014, p. 31 e ss. [17] A autora segue de perto o ensinamento de Helena Najjar Abdo, O Abuso do Processo, Revista dos Tribunais, 2007. [18] M. Cordeiro, Litigância…, p. 200. [19] Ibidem, p. 201. [20] No ac. RP, de 24.11.2016, Proc. 982/14.5T8PRT.P1, distinguiu-se o abuso de direito da responsabilidade civil: a) O exercício abusivo dentro dos contornos da cláusula geral do abuso de direito (art.º 334º do Código Civil) -- é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito --- de que a litigância de má fé é um afloramento; e b) Responsabilidade civil nos termos gerais, no âmbito da denominada culpa in agendo, pressupondo que a atuação processual ilícita sancionada tenha efeitos que transcendam os autos em que o problema se coloque, destacando-se a culpa por danos patrimoniais prolongados (de que é exemplo o art.º 374º, nº 1), por danos morais e por atuações processuais complexas ou com intervenção de terceiros. No processo que deu origem a este acórdão debatia-se a questão da propriedade, o registo da propriedade e os efeitos deste registo relativamente ao R. Aí escreveu-se, entre o mais, o seguinte: Nestas circunstâncias e tendo o direito de ação a autonomia a que já nos referimos relativamente ao direito subjetivo que através dela se defende ou se pretende ver reconhecido, seria um absurdo jurídico limitar o exercício da ação à certeza deste direito. Já ensinava Alberto dos Reis que o litigante pode até ignorar se tem ou não o direito que, pela ação ou recurso pretende exercer. Na verdade, o vencimento ou perda das causas depende às vezes de bem pouco; quantas a omissão duma formalidade ou diligência judicial; ou o não ter sido satisfeita no prazo legal, fazem perder uma causa fundada na mais evidente e clara justiça? Quantos pontos de direito há opinativos, que nem a lei, nem a prática de julgar têm fixado? [21] Aí se incluindo, por exemplo, o uso do processo como forma de coerção ou de obtenção de uma vantagem colateral não relacionada com o processo – assim, decisão do tribunal de Arizona, de 8.7.1982, em Nienstedt v. Wetzel, 133 Ariz. 348 (Ariz. Ct. App. 1982), decisão disponível em https://www.courtlistener.com/opinion/1165424/nienstedt-v-wetzel/ Nesta decisão, o tribunal apelou a um princípio geral segundo o qual "One who uses a legal process, whether criminal or civil, against another primarily to accomplish a purpose for which it is not designed, is subject to liability to the other for harm caused by the abuse of process." De acordo com este princípio, para estabelecer responsabilidade por abuso de processo deve haver uma demonstração de que o réu (1) usou um processo legal contra o demandante; (2) principalmente para realizar uma finalidade para a qual o processo não foi projetado; e, (3) o dano foi causado ao autor por tal uso indevido do processo. [22] Tradução nossa. Original: The concept of “abuse” within the meaning of Article 35 § 3 (a) must be understood in its ordinary sense according to general legal theory – namely, the harmful exercise of a right for purposes other than those for which it is designed. Accordingly, any conduct of an applicant that is manifestly contrary to the purpose of the right of individual application as provided for in the Convention and impedes the proper functioning of the Court or the proper conduct of the proceedings before it constitutes an abuse of the right of application, in Guia Prático dos Critérios de Admissiblidade, 28 de fevereiro de 2017, p. 37, em https://www.echr.coe.int/Documents/Admissibility_guide_ENG.pdf [23] J.L. Baudouin et P. Deslauriers, La responsabilité civile, 5 e éd., Cowansville (Qc), Yvon Blais, 1998, p. 138.