REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
REQUISITOS
OBRIGAÇÃO DE ALIMENTOS
ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
Sumário


I - A acção especial de revisão de sentença estrangeira é uma acção declarativa de simples apreciação na qual se verifica se a decisão estrangeira está, ou não, em condições de produzir efeitos em Portugal.
II - Tal acção não pode ter por objecto a revisão do mérito da sentença a rever mas apenas a sua revisão formal com a verificação dos requisitos previstos no art. 980.º do CPC, de que a fundamentação da sentença revidenda não é pressuposto.
III - Com efeito, fundado no princípio da estabilidade das relações jurídicas internacionais, ficou instituído um sistema de simples revisão formal das sentenças estrangeiras em que o princípio do seu reconhecimento reside na aceitação da competência do tribunal de origem e em que, como regra, a revisão de mérito está excluída.
IV - Recaindo a sentença estrangeira sobre o incumprimento da obrigação alimentar que impendia sobre o recorrente, não estando em causa qualquer matéria que seja da exclusiva competência dos tribunais portugueses, nos termos do art. 63.º do CPC, ou incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, e verificando-se os demais requisitos previstos no art. 980.º do CPC, não merece censura o acórdão recorrido que procedeu à revisão e confirmação da sentença estrangeira.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

      

AA, solteira, maior, C.F. n° 00000000, natural da freguesia de ..., concelho de ..., titular do Cartão de Cidadão n° 00000000 1.... emitido pela República Portuguesa, válido até 25/05/2020, residente em 00000000, R...., .... 20 ... EUA e BB, solteira, maior, C.F. n° 0000000 natural de ........, Estados Unidos da América, titular do Cartão de Cidadão n° 0000000, emitido pela República Portuguesa, válido até 25/05/2020, residente em .........., EUA, intentaram a presente Acção de Revisão de Sentença Estrangeira, contra CC, residente em .... - R.... ........ ...., Estados Unidos da América pedindo que fosse revista e confirmada a sentença proferida em 18 de Outubro de 2005 pelo Tribunal Superior de ..., Divisão de Chancelaria - Secção de Família, Condado de ..., no processo que aí correu termos com o N°: 0000000, em que foi Queixosa/Autora a referida DD e Réu, CC.

O Requerido, CC, deduziu oposição.

  O MP produziu alegações, no sentido de nada obstar à confirmação e revisão da sentença, nos seus precisos termos (fls. 82).

O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 27.11.2018, proferiu a seguinte decisão : Nestes termos, os Juízes desta Relação de Lisboa (la Secção) acordam em julgar procedente a pretensão de revisão e confirmação da sentença transitada em julgado e proferida em 18 de Outubro de 2005 pelo Tribunal Superior de ........, Divisão de Chancelaria - Secção de Família, Condado de ... , no processo que aí correu termos com o N°: 0000000 em que foi Queixosa/Autora a referida DD e Réu, CC — cfr. documento n° 3.

O Requerido, inconformado interpõs recurso de revista, tendo formulados  as seguintes Conclusões :

- O tribunal a quo, ao não especificar os fundamentos de facto e de direito que o levaram a considerar a S.E. suficientemente inteligível, limitando-se a assentar nominalmente o conceito de inteligível, apesar das dúvidas factuais concretas invocadas na Contestação, a Sentença recorrida padece de nulidade, conforme determina o artº 615 n.º 1 b) do CPC.

- Pelo facto de na Sentença recorrida igualmente não terem sido especificados os fundamentos de facto e de direito com base nos quais a S.E. não teria que aplicar, como não aplicou, o direito português nesta questão em que se trata de relações entre os cônjuges, ficamos diante de nulidade de Sentença, pela aplicação da mesma norma invocada no artigo antecedente.

Concluiu formulado o seguinte pedido:

Termos em que, seguindo o que anteriormente foi descrito e no mais de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão deve:

A - Ao abrigo do art.º 662 n.º 1 do CPC ser alterada a decisão proferida pelo douto Tribunal a quo uma vez que a prova documental sustenta uma decisão oposta àquela proferida, ou, se assim se não entender;

B - Ser declarada a nulidade da Sentença recorrida, ao abrigo do art.s 615 n.º 1 b) do CPC seguindo-se o que for de Direito.

  O Ministerio Público junto deste Tribunal deu parecer no sentido da confirmação do acordão  recorrido (fls.127)

      Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

  

        

Fundamentos de facto

Resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 9 de Agosto de 2015, em ........, Estados Unidos da América, faleceu DD , que também usava e era conhecida por DD, no estado de divorciada, natural da freguesia de ..., concelho de ..., com última residência habitual em ....., ....065, Estados Unidos da América — cfr. doc. 1 devidamente traduzido para língua portuguesa e doc. 2 que se dão integralmente por reproduzidos para os devidos efeitos legais.

2. A falecida DD, também conhecida DD, faleceu sem ter outorgado qualquer testamento ou disposição de última vontade, tendo deixado como únicas herdeiras, as suas duas filhas a seguir indicadas: a) AA, C.F. n° 00000000, solteira, maior, natural da freguesia de ..., concelho de ..., residente em 00000000, R...., .... 20... Estados Unidos da América, aqui indicada como primeira Requerente;

b) BB, C.F. n° 0000000 solteira, maior, natural de ........, Estados Unidos da América, onde reside em ..... ...., Estados Unidos da América, aqui indicada como segunda Requerente — cfr. doc. 2, que se dá integralmente por reproduzida para os devidos efeitos legais.

3. Por sentença proferida em 18 de Outubro de 2005 pelo Tribunal Superior de ........, Divisão de Chancelaria - Secção de Família, Condado de ... , no processo que aí correu termos com o N°: 0000000 em que foi Queixosa/Autora a referida DD e Réu, CC, foi declarado e ordenado o seguinte:

1 - Com a presente o Réu é declarado em infracção dos direitos da litigante por falta de pagamento da pensão alimentícia e amparo à criança de acordo com a Sentença de Divórcio passada em 12 de Abril de 1990.

2 - Descobriu-se que o Réu está em atraso quanto à pensão alimentícia na quantia de $93.500,00 dólares até 30 de Setembro de 2005.

3 - Descobriu-se que o Réu está em atraso quanto ao amparo à criança na quantia de $31.200,00 dólares.

4 - Descobriu-se que o Réu está em falta quanto à distribuição equitativa na quantia de $25.000,00 dólares

5 - Com base nas quantias estabelecidas nos parágrafos 2 até 4 acima, passa-se consequentemente sentença a favor da Queixosa e contra o Réu num total de $149.000,00 dólares. O pedido da Queixosa de juros anteriormente à sentença é negado sem perda de direitos.

6 - Ordena-se ao Réu que pague os honorários e despesas de advogados da Queixosa no montante de $5.250,00 dólares.

7 - O Réu terá até 6 de Dezembro de 2005 para vender ou hipotecar o imóvel em Portugal a fim de satisfazer a sentença e a concessão. A Queixosa deverá cooperar nesses esforços, desde que se lhe dê adequada protecção de que os fundos gerados por tal venda ou hipoteca sejam em primeiro lugar usados para satisfazer a sentença e a concessão de dinheiro. Os pagamentos deverão ser feitos à conta fiduciária dos advogados da Queixosa, que distribuirão os pagamentos de acordo com as determinações desta ordem.

8 - Caso a propriedade não seja vendida nem hipotecadas dentro de sessenta dias, o Réu deverá transferir o seu direito e título do apartamento em Portugal à queixosa para completa satisfação da sentença e concessão de dinheiro  cfr. o documento 3, devidamente traduzido em língua portuguesa.

4. A referida sentença estrangeira  transitou em julgado.

   Fundamentos de direito

O Recorrente não se conformou com a decisão do  Tribunal da Relação de Lisboa que julgou procedente o pedido de revisão e confirmação de sentença estrangeira, já transitada em julgado pelo Tribunal Superior de ........, Divisão de Chancelaria - Secção de Família, Condado de ..., e  interpôs o presente recurso de revista, alegando,  no essencial,  que quando a sentença de divórcio dos pais das Recorridas foi decretado, estas seriam maiores, o que terá ocorrido igualmente quando foi proferida a sentença objecto de revisão; as relações entre pais e filhos são reguladas pela lei nacional dos pais, ou seja, a lei portuguesa, entendendo ser esta a lei aplicável e não ter cabimento a condenação do Recorrente nos valores nela referidos.


Discorda ainda do fundamento invocado no acórdão recorrido, na parte que refere que a matéria de que versa a sentença estrangeira não é da competência exclusiva dos tribunais portugueses, atento ao disposto no art.63.º do CPC.
Em sede de conclusões, alega que o acórdão recorrido, ao não especificar os fundamentos de facto e de direito que o levaram a considerar a S.E. suficientemente inteligível, limitando-se a assentar nominalmente o conceito de inteligível, apesar das dúvidas factuais concretas invocadas na contestação, padece de nulidade, ao abrigo do art.615.º nº1 b) do CPC.

       Nulidade do acórdão recorrido

Começamos por discordar do Recorrente quando alega que o acórdão recorrido é ininteligível, pois o próprio Recorrente compreendeu, sem qualquer dúvida, o sentido da decisão, como decorre das suas intervenções processuais, designadamente das alegações de recurso. O Recorrente deduziu oposição, tendo o processo corrido termos no Tribunal Superior de ........, nas sessões dos dias 22 de Junho, 22 de Setembro e 7 de Outubro de 2005, como consta da sentença estrangeira, fls.21, tendo sido condenado nos termos descritos no ponto n.º3 da matéria de facto, condenação com a qual se conformou, uma vez que a sentença transitou em julgado sem que o Recorrente tivesse concretizado quaisquer dúvidas factuais.

Afigura-se-nos das alegações do Recorrente que este discorda  do teor da decisão revidenda, todavia, como tem sido jurisprudência uniforme, a acção especial de revisão de sentença estrangeira não pode ter por objecto a revisão do mérito da sentença a rever, mas apenas a sua revisão formal com a verificação dos requisitos previstos no art.980.º do CPC, de que a fundamentação da sentença revidenda não constitui pressuposto, ver a título de exemplo, o acórdão do STJ de 27-04-2017, processo n.º 9316.9YRCBR-Sl (IGFEJ) com o seguinte sumário:

I - O sistema de revisão de sentenças estrangeiras, estabelecido nos artigos 978.º e ss. do CPC é um sistema que aponta para um reconhecimento facilitado das sentenças estrangeiras, dependente da mera verificação de determinados pressupostos simples, de ordem formal ou quase formal.

II - Não se trata, propriamente, de um exame da sentença revidenda, no sentido em que o tribunal de revisão não aprecia o seu mérito, ou seja, se naquela sentença o julgamento foi ou não acertado.

Por outro lado, o acórdão recorrido mostra-se devidamente fundamentado de facto e de direito, não se verificando o invocado vício da falta de fundamentação, previsto no art.615.º n.º 1 b) do CPC.

Não se verificam assim as invocadas nulidades do acórdão recorrido.

Revisão e confirmação da sentença estrangeira 

A acção com processo especial de revisão e confirmação de sentença é uma acção declarativa de simples apreciação na qual se verifica se a decisão estrangeira está, ou não, em condições de produzir efeitos em Portugal, averiguando-se, para o efeito, se verificam os requisitos exigidos tal como previstos no art.980.º do CPC, e de que a fundamentação da sentença revidenda não constitui pressuposto. Com efeito, fundado no princípio da estabilidade das relações jurídicas internacionais, ficou instituído um sistema de simples revisão formal das sentenças estrangeiras em que o princípio do seu reconhecimento reside na aceitação da competência do tribunal de origem e em que, como regra, a revisão de mérito está excluída.

Vejamos o caso dos autos

Como consta da decisão recorrida, foi considerado provado, o que consta da decisão objecto de revisão proferida nos EUA, isto é, o incumprimento por parte do Recorrente no que se refere aos pagamentos à mãe das Recorridas, devidamente habilitadas nesses autos, constantes da sentença de divórcio proferida em 12 de Abril de 1990, pagamentos esses que a decisão objecto de revisão fixou em $149.000,00 dólares, que actualmente correspondem a € 130.880,11 euros.

Nessa decisão, foi ainda concedido ao Recorrente um prazo, até ao dia 6 de Dezembro de 2005, para vender ou hipotecar o imóvel em Portugal a fim de satisfazer a sentença, ou seja, para proceder ao respectivo pagamento, e caso o Recorrente não o fizesse, no prazo concedido, foi ainda condenando, na mesma sentença objecto de revisão, a transferir o seu direito e título do apartamento que tinha em Portugal para a queixosa (falecida mãe das Recorridas) para completa satisfação da sentença.

Ora, para que a referida sentença possa ser revista e confirmada em Portugal é necessário que se verifiquem os requisitos enunciados no art.980.º do CPC, a seguir indicados:

Para que a sentença seja confirmada é necessário:

a) que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;

b) que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;

c) que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;

d) que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;

e) que o réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;

f) que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

No caso, não foram suscitadas dúvidas quanto à autenticidade do documento onde consta a sentença estrangeira que foi devidamente traduzido para língua portuguesa, não resultando da mesma qualquer dúvida quanto à inteligibilidade decisão objecto de revisão e confirmação, que transitou em julgado segundo a lei do país onde foi proferida. Não se verifica qualquer excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a Tribunal Português. 

O Recorrente, conforme consta da sentença estrangeira, foi regularmente citada para a acção nos termos da lei do país do tribunal de origem, tendo sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes, conforme consta da mesma sentença a confirmar. Esta provém de tribunal estrangeiro cuja competência não foi provocada em fraude à lei, nem versa sobre matéria de exclusiva competência dos tribunais portugueses. Na verdade, importa sublinhar que, contrariamente ao invocado pelo Recorrente, a decisão revidenda não fixa a pensão a maiores, não versa sobre direitos reais, mas antes recai sobre o incumprimento de obrigação alimentar que impendia sobre o Recorrente, pelo que, não está em causa qualquer matéria que seja exclusiva competência dos tribunais portugueses, nos termos do art.63.º do CPC, ou incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

Foram assim observados todos os requisitos legais previstos no referido art.980.º do CPC para que possa ser revista e confirmada a sentença estrangeira, tal como o foi pelo tribunal recorrido, não merecendo o acórdão proferido qualquer reparo e, como tal, deverá manter-se na íntegra.

Decisão

Face ao exposto julga-se improcedente o recurso interposto e confirma-se o acórdão recorrido

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 19 de Junho de 2019.

Paula Sá Fernandes (Relatora)

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