COMPRA E VENDA
VENDA DE COISA ALHEIA
LOCAÇÃO FINANCEIRA
Sumário


1 - Celebrado entre as partes um contrato de compra e venda de um veículo automóvel, a respetiva propriedade não chegou a transferir-se para o comprador e, por isso, a venda do bem realizada pelo vendedor, a favor daquele, que era propriedade de outrem, traduziu-se na venda de uma coisa alheia.
2 - Sendo nulo o contrato de compra e venda do veículo, com os efeitos retroativos, como previsto no n.º 1 do artigo 289º do Código Civil, em consequência, é também nulo o contrato de locação financeira porquanto falta um dos seus pressupostos essenciais à sua celebração, que é a aquisição do veículo pelo locador para o poder dar em locação.

Texto Integral



Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I – Relatório
1. Banco BB, SA., instaurou acção declarativa sob a forma de processo comum contra CC – Comércio e Reparação de Veículos, Lda., e DD, SA., pedindo que seja declarada a nulidade dos contratos de compra e venda e de locação financeira referentes ao veículo automóvel da marca IVECO, Modelo Daily 3.0 HPT 35C18V 3520x2100, de matrícula …-GO-…, com fundamento em venda de bens alheios, nos termos do artigo 892.º do Código Civil, com a consequente restituição de tudo o que foi prestado, isto é, o montante de € 29.000,00, acrescidos dos respectivos juros de mora desde 01/04/2010.

2. Para tanto, alegou, em síntese, que no exercício da sua actividade comercial, celebrou com a 1ª R. um contrato de compra e venda tendo por objecto o veículo automóvel de matrícula …-GO-…, pelo preço de €29.000,00, ao qual foi deduzido o montante de €5.180,00, por valores existentes em dívida perante o A.. No mesmo dia, através de um contrato de locação financeira, cedeu o gozo do referido veiculo à 2ª R., mediante o pagamento mensal de 60 rendas, a primeira no valor de €5.000,00 e as restantes de €493,64, ficando esta última com opção de compra do veículo. Porém, posteriormente verificou, mediante a consulta da certidão de registo automóvel, que em momento algum a propriedade esteve registada a favor da 1ª R., porque esta nunca teve a propriedade do veículo.

3. A 1ª R. deduziu oposição, defendendo-se por impugnação motivada, alegando, em síntese, que no início de Fevereiro de 2010 foi contactada pelo 2º R. com intuito deste adquirir o veículo em causa, para o que deu logo de entrada o valor de € 5.000,00, e informando-a de que iria recorrer ao crédito para pagamento do restante, mas posteriormente transmitiu-lhe que o “crédito” que iria realizar era um leasing, imposto pela financeira e que o veículo teria que ser facturado à financeira, como veio a suceder, tendo o veículo sido entregue à 2ª R. em 09/03/2010.
Acrescentou que, em finais de 2010, após a celebração dos contratos de compra e venda e de locação financeira, a 2º R. entrou em contacto com a 1ª R. propondo vender-lhe o mesmo veículo de matrícula …-GO-… que havia adquirido, devido a problemas de liquidez, tendo em conformidade a 1ª R. emitido uma declaração a assumir o pagamento restante do leasing. Mais alegou que nunca teve qualquer relação contratual estabelecida com o A.. Pede, em conformidade, que a acção seja julgada improcedente por não provada, e a ré absolvida dos pedidos contra si formulados.

4. A 2ª R., não constituiu mandatário, não apresentou contestação, nem interveio de qualquer outra forma no processo.
Procedeu-se à realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador, fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Realizada a audiência de julgamento veio a ser proferida sentença, que julgando a acção improcedente, absolveu as RR. do pedido.

5. Inconformada com a sentença interpôs o A. o presente recurso, o qual motivou, concluindo do seguinte modo:
A. Resultou efectivamente provada a celebração de um contrato de compra e venda de um veículo automóvel de marca IVECO, modelo Daily 3.0 HPT 35C18V 3520x2100, com a matrícula …-GO-…, no dia 9 de marco de 2010, entre o Autor, ora Apelante e a Apelada CC, Lda..
B. Com efeito, a celebração do contrato de compra e venda supra mencionado destinava-se à celebração de um contrato de locação financeira sobre o dito veículo automóvel entre o Autor e a sociedade comercial DD, S.A., o que sucedeu e resulta como facto provado.
C. Ficou igualmente provado que a 1ª Ré, ora Apelada, é uma sociedade comercial com o objecto social de exploração de um stand de automóveis, que se dedica essencialmente, à compra de diversos veículos automóveis para revenda a terceiros.
D. Deste modo, tendo ficado assente tal facto, não poderia resultar de outro modo que o Tribunal a quo considerasse e aceitasse como igualmente provado que, tal como alegado pelo ora Apelante, os stands automóveis, em regra, não registam a seu favor a propriedade dos veículos, sendo este um facto público e notório que não carece de prova nos termos do disposto no Artigo 421.º, n.º 1 do Código de Processo Civil (adiante designado apenas de CPC).
E. O Tribunal a quo considerou, erradamente, como não provado que o Apelante terá ficado na expectativa que a Apelada lhe fornecesse toda a documentação necessária para averbar a propriedade do veículo a seu favor, bem como a locação financeira celebrada com a sociedade DD.
F. Ora, conforme prova documental junta com a petição inicial do Apelante, e a qual foi ignorada pelo Tribunal a quo, os contratos de compra e venda e de locação financeira foram efectivamente celebrados, sendo certo que, o Apelante, enquanto instituição de crédito, não iria certamente promover pela celebração de tais contratos se subsistissem dúvidas quanto à sua plena eficácia.
G. Por outro lado, haverá que ter em consideração as relações comerciais existentes entre o Apelante e a ora Apelada, sempre baseadas nos ditames da transparência e boa-fé contratual.
H. A testemunha Evaristo M… assim o refere: “(…) nós estamos de boa-fe, nós esperamos que os próprios stands nos enviem a documentação para nós tratarmos de registar o carro em nosso nome ou fazer reserva de propriedade, conforme os casos” (min. 06:44 a 06:52).
I. Ora, ao contrário do que refere o Tribunal a quo, se assim não sucedesse, todas as relações comerciais celebradas e a celebrar estariam feridas de constante má-fé e desconfiança, o que não é de todo o que se pretende no nosso ordenamento socioeconómico.
J. Mais, o Tribunal a quo desconsiderou o reportado pela testemunha Evaristo M… a este propósito: “(…)sim, sim Sra. Dra., o banco confia no ponto de venda. O banco tem um comercial que trata dessas, de todos os assuntos com o ponto de venda.” (min. 09:05 a 09:15).
K. As decisões das instituições financeiras, no que concerne à viabilidade ou não da concessão de determinado crédito passam sempre uma análise cuidada de toda a documentação apresentada pelo cliente junto do parceiro comercial daquelas e de sistema antifraude.
L. No caso em apreço, foi o que sucedeu, sendo certo que toda a documentação apresentada pela Apelada se encontrava válida e em conformidade com os procedimentos adoptados pelo Apelante.
M. Tal facto é reforçado pela testemunha Andreia C… e que o Tribunal a quo igualmente desconsiderou: “(…) O carro não era do stand. Reunimos os documentos todos pronto como é normal para empresas para particulares, reunimos os documentos todos como eu já disse, comprovativo de morada, fotocópias dos documentos das pessoas ou da empresa, IES, modelo 22, comprovativos de morada, recibos de ordenados, o normal. E, envia-se para as financeiras, como foi enviado para a BB. A financeira analisa os documentos, a viabilidade do negócio e aceita ou não aceita. Em qualquer negócio funciona assim.” (min. 22:25: a 23:09).
N. Não se poderá ignorar que entre a Apelante e a Apelada foi celebrado um contrato de compra e venda, sendo certo que, conforme resulta de prova documental patente nos autos, a Apelada emitiu uma factura à ordem da Apelante pelo pagamento do veículo automóvel.
O. Novamente, ditam as regras da lógica e da experiência que, caso o Apelante tivesse identificado, ab inicio, algum problema com o veículo ou com a documentação, não teria liquidado à Apelada a quantia que liquidou com vista à aquisição do veículo destinado a dar em locação à Apelada DD.
P. No que concerne à validade do contrato de compra e venda, o Apelante nunca teve os documentos da viatura que lhe permitissem registar a propriedade do veículo em seu nome, pese embora fosse efectivamente o proprietário do veículo adquirido, facto que – como é óbvio – a Apelada conhecia já que foi esta que vendeu o veículo ao Apelante.
Q. Por outro lado, também a Apelada, que posteriormente adquiriu à sociedade DD, locatária, sabia que estava a adquirir de quem não era proprietário do veículo.
R. Em bom rigor, bem sabia a Apelada da existência dos negócios anteriores subjacentes, nomeadamente o contrato de compra e venda que celebrou com o Apelante e o contrato de locação financeira que o Apelante celebrou (ainda sem lograr proceder ao seu registo) com a sociedade DD.
S. Resulta, assim, provado que o Apelante demonstrou claramente, através da sobeja prova documental que apresentou, e a qual foi totalmente desconsiderada pelo Tribunal a quo, que se tornou proprietária do veículo automóvel em apreço, pois mediante o pagamento de um preço (€ 29.000,00) adquiriu o bem.
T. De salientar igualmente que o registo de tal propriedade tem o efeito meramente de conceder publicidade aos actos que são praticados, não tendo, por isso, um efeito constitutivo da propriedade.
U. Assim, o Tribunal a quo, ao ter considerado como provado que é facto notório que os stands de automóveis não registam a seu favor a propriedade dos veículos que comercializam e pretendem vender, deveria igualmente ter considerado como provado que o Apelante, ao ter transferido o preço da compra do veículo à Apelada, e recebido a respectiva factura, que o veículo se tornou sua propriedade.
V. Na verdade, a consideração de tal facto como provado, apenas pode assentar no conhecimento, também ele notório para o Tribunal, de que os stands que se dedicam à venda de automóveis a terceiros estão munidos dos documentos que habilitam os adquirentes dos veículos a poder registá-los em seu nome.
W. Acresce ainda que o Tribunal a quo não andou bem quando expressa que o Apelante não logrou demonstrar que a Apelada tenha incumprido alguma disposição contratual, ou que tenha agido de má-fé.
X. Com efeito, não só a Apelada actuou abusivamente, como de clara má-fé, pois não só não entregou ao Apelante a documentação automóvel em falta, como era sua obrigação, como ademais re-comprou o veículo de quem sabia não ser seu proprietário para, depois, proceder à venda de um bem a terceiro sem que a situação documental e registral estivesse sanada ou devidamente acautelada.
Y. A este respeito, atente-se no que foi declarado pela testemunha Andreia C… (7:18), que supra se citou, e que sempre imporia que os factos dados como não provados teriam necessariamente que ser considerados como provados.
Z. Por outro lado, o Tribunal a quo ignorou o teor e a força probatória de outra prova documental essencial, não sendo o princípio da livre apreciação da prova bastante para justificar tal preterição.
AA. O Tribunal a quo não teve em consideração, em momento algum da douta sentença proferida o teor da missiva remetida pela Apelada ao Apelante e na qual assume a responsabilidade pelo pagamento das rendas acordadas no âmbito da execução do contrato de locação financeira.
BB. Assim, não pode o Tribunal a quo constatar, sem mais, que o Apelante não logrou demonstrar, de forma alguma, incumprimento contratual, sendo certo que tal ficou demonstrado, quer por via de prova documental, quer por via de prova testemunhal.
CC. Não andou, pois, bem o Tribunal a quo ao considerar que não estamos perante uma nulidade por venda de um bem alheio.
DD. Sendo um dos efeitos da compra e venda a transmissão da propriedade da coisa, nos termos do Artigo 879.º, alínea a) do Código Civil, e tendo em conta o exposto supra, nunca a sociedade DD e, consequentemente, a Apelada, estariam em condições de transmitir a propriedade do veículo em apreço.
EE. Só pode concluir-se estarmos perante uma venda de bens alheios, nos termos do Artigo 892.º do Código Civil, sendo o respectivo contrato nulo.
FF. Cita-se, a este propósito, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra , de 19-02-2008, no processo 283/04.7TBSAT.C1: ”1. Celebrado entre as partes um contrato de compra e venda de um veículo automóvel, a respectiva propriedade não chegou a transferir-se para o comprador e, por isso, a venda do bem realizada pelo vendedor, a favor daquele, que era propriedade de outrem, com reserva de propriedade, em benefício de entidade financiadora, traduziu-se na venda de uma coisa alheia”.
Nessa conformidade, estamos perante nulidade dos contratos de compra e venda com fundamento no disposto no Artigo 892.º do Código Civil e, consequentemente, do contrato de locação financeira celebrado na sequência daquele.

6. Não se mostram juntas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, importa decidir as seguintes questões:
(i) Da impugnação da matéria de facto;
(ii) Da nulidade dos contratos de compra e venda e de locação financeira celebrados com a 1ª e 2ª R., respectivamente.
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III – Fundamentação
A) - Os Factos
A.1. Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. O autor é uma instituição de crédito cujo objecto social se traduz no exercício da actividade bancária, compreendendo todas as operações acessórias, conexas ou similares compatíveis com essa actividade e permitidas por lei;---
2. No início do ano de 2010, a segunda ré contactou o autor no sentido de celebrar um contrato de locação financeira de veículo automóvel;---
3. Na sequência do descrito em 2), e no seguimento da respectiva aprovação do crédito, autor e primeira ré celebraram, na data de 9 de Março de 2010, um contrato nos termos do qual o primeiro declarou comprar, e a segunda declarou vender, um veículo automóvel de marca IVECO, modelo Daily 3.0 HPT 35C18V 3520x2100, com a matrícula …-GO-…, pelo preço de €29.000,00;---
4. Na mesma data referida em 3), autor e segunda ré celebraram entre si um acordo escrito denominado contrato de locação financeira, tendo por objecto o veículo automóvel referido em 3), mediante o qual o primeiro cedeu o gozo do veículo à segunda, contra o pagamento mensal de sessenta rendas, a primeira no valor de €5.000,00 e as restantes de €493,64, ficando esta última com opção de compra do veículo pelo montante de €580,00;---
5. O contrato referido em 4) é constituído pelas condições particulares, condições gerais, por auto de recepção de equipamento e autorização de débito em conta, junto aos autos a fls. 17- 20, que aqui se dá por inteiramente reproduzido;---
6. Por ter valores em dívida perante o autor, em 23 de Março de 2010 a primeira ré solicitou ao autor que ao valor de €29.000,00 fosse deduzido o montante de €5.180,00, tendo sido transferido para a conta da primeira ré o montante de €23.694,00;--
7. Em Outubro de 2011, o autor tomou conhecimento que a primeira ré havia adquirido o veículo em causa à segunda ré, assumindo perante esta o pagamento das rendas do contrato de locação financeira;---
8. Em 8 de Outubro de 2008, o veículo referido em 3) foi registado a favor da sociedade EE, Comércio de Veículos Industriais SA;---
9. Em 16 de Dezembro de 2008, o mesmo veículo foi registado a favor da sociedade FF Crédito Especializado;---
10. Em 24 de Maio de 2011, o mesmo veículo foi registado a favor do Banco GG, SA;---
11. Em 10 de Novembro de 2011, o mesmo veículo foi registado a favor da sociedade HH, Unipessoal, Lda., e, no mesmo dia, a favor de II;---
12. Em 30 de Novembro de 2011, o mesmo veículo foi registado a favor do Banco JJ SA;---
13. Em 8 de Abril de 2014, o mesmo veículo foi registado a favor da sociedade KK – Comércio de Consumíveis para a indústria alimentar, Lda.;---
14. A primeira ré é uma sociedade comercial que explora um stand de automóveis, dedicando-se, entre outros, à compra de veículos automóveis para revenda;--
15. Os stands automóveis, por regra, não registam em seu nome a propriedade dos veículos que adquirem para venda a terceiros;---
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A.2. E não se consideraram provados os seguintes factos:
A. Que, tendo o autor questionado a primeira ré sobre se a propriedade do veículo automóvel melhor identificado em 3) estaria registada a seu favor, esta tenha respondido afirmativamente, alegando apenas que em termos registrais não figuraria como proprietária;---
B. Que o autor ficou na expectativa que a primeira ré lhe fornecesse a documentação necessária para averbar a propriedade do veículo referido em 3) a seu favor, bem como a locação financeira celebrada com a segunda ré;-
C. Que a primeira ré ia protelando a situação, dizendo ao autor que a documentação estava pendente e que iria regularizar a situação, o que nunca veio a suceder;---
D. Que os factos descritos no ponto 6) da factualidade provada tenham ocorrido na mesma data de 9 de Março de 2010;---
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B) – O Direito
1. Da impugnação da matéria de facto
1.1. Nas conclusões do recurso a recorrente tece diversas considerações quanto à prova produzida nos autos, que, alegadamente não terá sido valorada devidamente pelo tribunal, acabando por concluir que, com base no depoimento da testemunha Andreia Correia, os factos dados como não provados teriam necessariamente que ser considerados provados.
Na sentença a referida factualidade, constante dos pontos A) a D) foi considerada como não provada, com os seguintes fundamentos:
«Não se provaram os factos constantes nas Letras A), B) e C), por insuficiência de prova nesse sentido, desde logo na medida em que o autor não logrou juntar qualquer interpelação por escrito para que a primeira ré lhe fornecesse a documentação alegadamente em falta. No mais, tomou-se em consideração o testemunho de Andreia C…, que negou que, enquanto administrativa da ré, alguma vez tivesse contactado por telefone ou outro meio com o autor a propósito de alguma solicitação (ou insistência) de que lhe fossem enviados os documentos do veículo em causa para efeitos de ser averbada a reserva de propriedade, mais acrescentando que estranhou que o autor tenha aceitado a concessão do crédito ao cliente quando, à data, havia uma reserva de propriedade a favor de uma outra financeira. Por seu turno, Evaristo M…, funcionário do autor, relatou apenas que costumam ser os stands a enviar a documentação relativa ao veículo, sendo com base naquela informação que concedem ou rejeitam a concessão do respectivo crédito, e que, no caso concreto, o autor aceitou conceder o crédito e transferir o montante respeitante ao preço do veículo por “confiar” no stand (explicação que se afigura inverosímil, considerando que as decisões das instituições financeiras, em especial relativamente a concessão de créditos, são tomadas após uma cuidada avaliação do risco, não se baseando, de acordo com as regras da experiência comum, numa simples relação de confiança com a outra parte, por muito sólida que seja), reconhecendo ainda assim que não houve o necessário cuidado, por parte do autor, na avaliação da situação concreta.---
Não se provaram outros factos por ausência de qualquer prova nesse sentido (excluindo-se qualquer referência a afirmações conclusivas, de direito e/ou irrelevantes para a decisão a proferir, designadamente com base na sua natureza meramente instrumental, a considerar, apenas, em sede de motivação da matéria de facto, efectuando-se a selecção dos factos relevantes de acordo com as regras da repartição do ónus da prova).---»

1.2. Ora, tendo sido dado como provada a celebração entre o A. e a 1ª R. do contrato de compra e venda da viatura em causa, que a A. celebrou com a 2ª R. o contrato de locação financeira, que o A. procedeu ao pagamento do preço da compra do veículo que lhe foi facturada e que os stands de automóveis, por regra não registam em seu nome a propriedade dos veículos que adquirem para venda a terceiro (cf. pontos 3, 4, 6 e 15) , e concluindo-se da factualidade provada que não foram logo entregues à A. os documentos necessários ao averbamento da propriedade do veículo em seu nome, parece-nos evidente, por corresponder à normalidade das situações, e a relação de confiança inerente a este tipo de negócios que a testemunha Evaristo M… referiu, que o A. terá ficado à espera que a 1ª R (vendedora) lhe fornecesse a documentação necessária para proceder aos registos de aquisição e de locação financeira.
Não há qualquer elemento de prova que aponte no sentido de que o A. sabia que o veículo não pertencia à 1ª R. e que mesmo assim o tivesse querido adquirir, pelo que é plausível que o banco tenha actuado com base na boa fé, confiante nas relações estabelecidas com a 1ª R..
Assim, o ponto B) dos factos não provados deve ser aditado aos factos provados, assim como a parte final do ponto C), de onde resulta que a 1ª R. nunca entregou a dita documentação ao A.
Quanto à demais factualidade, não vemos elementos de prova suficientes que a suportem, nem a mesma adquire relevância para a decisão da causa.

1.3. Deste modo, procede parcialmente o recurso quanto à matéria de facto, determinando-se o aditamento ao elenco dos factos provados do seguinte ponto (com a consequente eliminação desta matéria dos factos não provados):
16. O autor, na sequência do contrato referido em 3) e do pagamento à 1ª R. do veículo ficou a aguardar que a 1ª R. lhe fornecesse a documentação necessária ao averbamento da propriedade do veículo, bem como da locação financeira celebrada com a 2ª R, mas aquela nunca lha entregou.

2. Da nulidade dos contratos
2.1. Com a presente acção pretende o A. obter a declaração de nulidade do contrato de compra e venda do veículo automóvel identificado nos autos, que adquiriu à 1ª R., bem como a consequente nulidade do contrato de locação financeira que celebrou com a 2ª R., em virtude de o veículo que lhe foi vendido não ser pertence da 1ª R., nem esta o haver adquirido posteriormente, o que inviabilizou o registo daquela aquisição e do leasing, pretendendo, deste modo a devolução do valor pago pela aquisição do veículo.
A acção tem, por conseguinte, como fundamento o regime da venda de bens alheios, previsto no artigo 892º do Código Civil, onde se prescreve a nulidade da venda, com os efeitos previstos no artigo 289º, n.º 1, do mesmo código.

2.2. Na sentença entendeu-se que, em face dos factos apurados, havia sido celebrado um contrato de compra e venda entre o A. e a 1ª R., (cf. artigos 874º e 879º do Código Civil, e 463º do Código Comercial), tendo aquela adquirido a esta a viatura em causa para a dar em locação financeira à 2ª R., nos termos previstos no Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, não se suscitando dúvidas nos autos quanto à qualificação jurídica dos negócios em causa.
Porém, no que se reporta às questões de nulidade invocadas, concluiu-se na sentença pela sua inverificação, com os fundamentos seguintes:
«De harmonia com o art. 892.º do CC, “é nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar; mas o vendedor não pode opor a nulidade ao comprador de boa fé, como não pode opô-la ao vendedor de boa fé o comprador doloso”. Acresce ainda o art. 893.ºdo CC, segundo o qual “a venda de bens alheios fica, porém, sujeita ao regime da venda de bens futuros, se as partes os considerarem nesta qualidade”.---
Daqui decorre que o contrato de compra e venda de coisa alheia é ineficaz em relação ao respectivo proprietário, podendo este pedir a declaração da sua nulidade no confronto entre o comprador e o vendedor, além de que a declaração deste vício pode operar oficiosamente, nos termos do art. 286.º do CC.---
A declaração de nulidade tem efeito retroactivo e acarreta a restituição do que tiver sido prestado – art. 289.º do CC – operando a invalidade “ex tunc” relativamente às partes, como também em confronto de terceiros.---
Daqui resulta que, aplicando-se o regime da lei civil, a segunda ré, ao vender o automóvel ao autor sem ter legitimidade ou poder de disposição para o efeito – uma vez que ficou demonstrado que nunca averbou em seu nome a propriedade do veículo automóvel que vendeu ao autor – teria como consequência a nulidade do contrato, pelo que, em abstracto, declarando-se a nulidade do contrato de compra e venda, deveria o autor, aqui comprador, restituir o veículo, e, em simultâneo, a primeira ré, na qualidade de vendedora, restituir o preço pago pelo mesmo.---
Não obstante, e sem prejuízo do supra exposto, em sede própria procedemos à qualificação do contrato de compra e venda como revestindo natureza comercial, em conformidade com o disposto no art. 463.º do C.Com.---
Ora, salvo melhor entendimento, em comércio são permitidas a venda de coisa que for propriedade de outrem, mas o vendedor fica obrigado a adquirir por título legítimo a propriedade da coisa vendida e a fazer a entrega ao comprador, sob pena de responder por perdas e danos – art. 467.º- 2 do C.Com.---
Com efeito, como sustenta a jurisprudência, em regra, só é admitida a venda de bens que o alienante seja proprietário; sendo nula, como vimos, a venda de bens alheios, sempre que o alienante careça de legitimidade para a realizar. No entanto, em sede de direito comercial, é permitida, a venda de coisa alheia, desde que realizada no exercício do comércio, i. é, praticada por comerciantes – art. 467 proémio nº 2 § único do C.Com. Proibir tais vendas seria desconhecer as necessidades reais do comércio, criar um obstáculo perigoso à rapidez e desenvolvimento das suas operações e até ferir o próprio interesse dos comerciantes – cf. Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 02.05.2013, Proc. n.º 2111/03.1TCSNT.L1-8, in www.dgsi.pt.---
Ainda na senda mesmo acórdão, não obstante, ser permitida a compra e venda de coisa alheia, certo é que, em determinadas circunstâncias, não está afastada a regra da nulidade do contrato. O regime do art. 467.º do CCom tem, pois, que compaginar-se com a disciplina civilística da venda de coisa alheia, venda esta que, revestindo qualquer das modalidades, civil ou comercial, pode ser nula ou válida, conforme os casos.---
Revertendo aos autos, da factualidade provada resultou que, efectivamente, nunca a propriedade do veículo automóvel em causa esteve registada a favor da primeira ré, assim se concluindo que a ré não curou de inscrever a aquisição do veículo a seu favor, nem, posteriormente à celebração do negócio, a favor do autor.---
Porém, não resultou provado que o autor tenha questionado a primeira ré sobre se a propriedade do veículo automóvel estaria registada a seu favor, e que esta tenha respondido afirmativamente, alegando apenas que em termos registrais não figuraria como proprietária, ou ainda que o autor tenha ficado na expectativa que a primeira ré lhe fornecesse a documentação necessária para averbar a propriedade do veículo a seu favor, mas que aquela ia protelando a situação, dizendo ao autor que a documentação estava pendente e que iria regularizar a situação.---
Por outras palavras, o autor não logrou demonstrar que a ré tenha incumprido alguma disposição contratual, ou que, tendo vendido um bem que não lhe pertencia, a mesma tenha agido como alienante abusiva, ou de má-fé. Com efeito, não tendo aquela regularizado a situação registal do veículo automóvel, o certo que o autor também não o promoveu.---
Pelo contrário, foi julgado como provado que a ré, enquanto sociedade comercial, se dedica, entre outros, à compra de veículos automóveis para revenda, e principalmente (como aliás o próprio alega na PI) que os stands automóveis, por regra, não registam em seu nome a propriedade dos veículos que adquirem para venda a terceiros, situação de que o autor era, portanto, conhecedor, e estava ao corrente no momento da celebração do contrato, tendo, ainda assim, decidido outorgá-lo, adquirindo o veículo automóvel em causa para posteriormente o locar à segunda ré.---
Tudo conjugado, e salvo melhor entendimento, deverá improceder a invocada nulidade do contrato celebrado entre autor e primeira ré, por venda de bens alheios, com fundamento no art. 892.º do CC, bem como a nulidade do contrato de locação financeira celebrado na sequência daquele, e, por inerência, a respectiva restituição do montante global de €29.000,00.---»

2.3. O recorrente discorda da conclusão alcançada na sentença, pois, não obstante se ter entendido que ocorreu no caso “venda de coisa alheia”, que o vendedor não veio a adquirir, entendeu-se que a 1ª R. não incumpriu o contrato e não ocorreu a nulidade prevista no artigo 892º do Código Civil.
Ora, lidos os factos, e independentemente do enquadramento jurídico que se dê ao negócio em causa, como sendo de compra e venda “civil” ou “comercial”, parece-nos, desde logo, irrazoável que um tal negócio possa persistir na ordem jurídica.

2.4. De facto, no caso concreto, é manifesto que a 1ª R. vendeu ao A. um bem que não lhe pertencia, como se reconhece na sentença.
Aliás, se dúvidas houvesse quanto a este facto, bastaria atentar-se nos factos descritos nos pontos 9 a 12 da matéria de facto provada, onde a propriedade da viatura surge como registada em nome de terceiros e não da 1ª R..
Diz-se, no entanto, que os stands de automóveis, em regra, não registam a aquisição dos veículos que adquiriram para revenda, o que sendo verdade, não confere o direito de venderem bens de que já não são titulares, o que os documentos juntos aos autos indiciam ter ocorrido no caso em apreço.
De facto, basta atentar na documentação junta com a certidão da Conservatória do registo Comercial de Lisboa, de fls. 26 a 75, para se verificar que o contrato de leasing celebrado entre a HH – Unipessoal, Lda., e a FF, Instituição Financeira de Crédito, SA., se reporta ao mesmo veículo em causa nos presentes autos – de matrícula …-GO-… –, constando do contrato que foi dado em locação financeira, em 23/09/2008, pelo prazo de 49 meses, e que a entidade fornecedora do veículo (aquela que o vendeu à locadora), foi a sociedade “CC – Comércio e Reparação de Veículos, Lda.”, precisamente a aqui 1ª R. (cf. doc de fls. 36), e que só lhe foi posto termo a 17/10/2011, por acordo das partes, mostrando-se efectuado o registo de aquisição a favor da dita HH em 10/11/2011.
Em suma, o veículo não era pertença da 1ª R. à data da venda e os registos e os documentos juntos mostram que a 1ª R. também não veio a adquirir a propriedade do mesmo.
Deste modo, é claro que nos movemos do âmbito de um contrato de compra e venda nulo, face ao que se dispõe no artigo 892º do CC, onde se consigna que: “É nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar; mas o vendedor não pode opor a nulidade ao comprador de boa fé, como não pode opô-la ao vendedor de boa fé o comprador doloso.”
Assim, e não tendo havido convalidação, como previsto no artigo 895º do Código Civil, o negócio é nulo, tendo a declaração de nulidade da venda efeito retroactivo, “… devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado, ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.”(cf. artigo 289º, n.º 1 do Código Civil)
Por conseguinte, em face deste regime, a 1ª R., ao vender a viatura ao A, sem ter legitimidade ou poder de disposição para o efeito, pois não era a proprietária da mesma, dispôs de coisa que lhe não pertencia, celebrando, assim, um negócio inválido, qua lei comina com a nulidade, com a consequência prevista no n.º 1 do artigo 289º do Código Civil.
Note-se que não está apenas em causa o facto de a 1ª R. não ter efectuado o registo de aquisição da viatura em seu nome, o que releva é que a R. vendedora não demonstrou, e nem sequer alegou, que à data da venda era proprietária da mesma, ou que posteriormente a adquiriu. E, não obstante a propriedade se transmitir, em regra, com a celebração do contrato, tal tem como pressuposto que o transmitente seja o proprietário da coisa, o que no caso não ocorreu.
Neste contexto, e tendo em conta o modo como se processam as transacções comerciais deste género, entre os “stands” vendedores de veículos e as adquirentes, empresas financeiras, que os compram, por indicação de terceiros, para os darem a estes em regime de locação financeira, e a relação de confiança com que necessariamente se pautam tais relações comerciais, não vemos como imputar ao A. o facto de não ter verificado que, aquando da aquisição, a viatura não estava registada em nome da 1ª R., nem do facto de ter ficado a aguardar o envio da documentação necessária para averbar a propriedade em seu nome e registar a locação financeira, pode resultar qualquer consequência a demandar o afastamento do regime da nulidade em causa. Caso assim se não entendesse estar-se-ia a presumir que o A., ao adquirir o veículo à 1ª R. sabia que o mesmo não lhe pertencia, conclusão que os factos apurados não permitem sustentar.

2.5. E a solução não é diferente pelo facto de estarmos perante uma venda comercial (cf. artigo 463º do Código Comercial), pois, embora seja permitida a compra e venda de coisa alheia, certo é que, em determinadas circunstâncias, não está afastada a regra da nulidade do contrato, pois o regime do artigo 467º do Código Comercial tem que compaginar-se com a disciplina civilística da venda de coisa alheia, venda esta que, revestindo qualquer das modalidades, civil ou comercial, pode ser nula ou válida, conforme os casos (cf. neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 02/05/2013 (proc. n.º 2111/03.1TCSNT.L1-8), disponível em www.dgsi.pt, que, aliás vem citado na sentença).

2.6. No que se reporta ao contrato de locação financeira, regulado no Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, entende-se como tal “… o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados.” (cf. artigo 1º)
Desta noção, tal como previsto na alínea a) do artigo 9º do referido diploma, resulta a obrigação do locador adquirir ou mandar construir o bem a locar bem como conceder o gozo do referido bem para os fins a que se destine.
Ora, sendo nulo o contrato de compra e venda do veículo, com os efeitos retroactivos, como previsto no n.º 1 do artigo 289º do Código Civil, em consequência, é também nulo o contrato de locação financeira porquanto falta um dos seus pressupostos essenciais à sua celebração, que é a aquisição do veículo pelo locador para o poder dar em locação.

2.7. No caso, em consequência da nulidade do contrato de compra e venda, vem pedida a restituição do preço pago pelo A. pela aquisição do veículo, que a 1ª R. recebeu e está obrigada a restituir, nos termos do n.º 1 do artigo 289º do Código Civil.
Assim, tem o A. direito a receber da 1ª R. a quantia paga pela aquisição do veículo objecto do contrato de compra e venda – marca Iveco, de matrícula …-GO-… –, ou seja, o valor de € 29.000,00, acrescidos de juros moratórios, vencidos e vincendos à taxa legal, desde 01/04/2010 (data em que o A. liquidou o preço da compra e venda objecto do contrato declarado nulo), até integral pagamento (cf. artigos 805º e 806º do Código Civil).
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IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência:
a) Revogar a sentença recorrida;
b) Julgar procedente a acção e, consequentemente:
- Declarar a nulidade dos contratos de compra e venda e de locação financeira do veículo automóvel marca IVECO, modelo Daily 3.0 HPT 35C18V 352Dx2100, de matrícula …-GO-…;
- Condenar a 1ª R., a pagar ao A. a quantia de € 29.000,000 (vinte e nove mil euros), acrescida de juros moratórios à taxa legal, desde 01/04/2010, até integral pagamento.
Custas a cargo da apelante.
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Évora, 12 de Setembro de 2019
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(Francisco Xavier)
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(Maria João Sousa e Faro)
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(Florbela Moreira Lança)