RESPONSABILIDADES PARENTAIS
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL DOS TRIBUNAIS
REGULAMENTO CE Nº 2201-2003
Sumário


Sumário do Relator:

I. A competência internacional dos tribunais dos Estados-Membros relativa aos processos atinentes às responsabilidades parentais mostra-se estabelecida no Regulamento (CE) nº 2201/2003, de 27 de Novembro (comummente designado por ‘Regulamento Bruxelas II bis’), que assegura o esbatimento das particularidades e especificidades dos direitos nacionais e uniformiza os elementos de conexão relevantes, ditando uma qualificação autónoma desses elementos.

II. Trata-se de instrumento normativo vinculativo e directamente aplicável na ordem jurídica interna, que abrange (independentemente da natureza do tribunal) as matérias civis relativas à atribuição e ao exercício da responsabilidade parental, nomeadamente as matérias concernentes ao direito de guarda e ao direito de visita.

III. O critério geral concernente à competência internacional dos tribunais dos Estados-Membros está estabelecido no art. 8º, nº 1 do Regulamento, aí se prescrevendo que os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal.

IV. O conceito autónomo (próprio do direito da União) e uniforme (transversal e válido em todos os Estados-Membros onde o regulamento vigora) de «residência habitual» remete para a proximidade aos interesses da criança, em ordem à prossecução do seu superior interesse, pois foram esses os interesses tidos em vista com a definição da competência regra para as questões relativas ao exercício das responsabilidades parentais no artigo 8º do Regulamento, e por isso se tem entendido dever considerar-se residência habitual da criança o centro efectivo da sua vida, encontrado de acordo com os elementos disponíveis no momento da entrada do processo em tribunal.

V. Para lá do ponto de partida que constitui a presença física da criança num determinado Estado-Membro, importará ponderar outros factores susceptíveis de demonstrar se essa presença tem, ou não, carácter acidental, temporário ou ocasional ou revelador duma menor pertença comunitária/social/familiar - importa apurar qual o local que revela o grau de integração da criança num ambiente social e familiar a relevar em vista do critério superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade.

VI. Em caso de jovem nascido em 2007, filho de pais solteiros que até aos três anos residiu em Portugal, passando desde então a viver com a sua mãe em França (juntamente com o companheiro desta e irmão uterino), onde frequenta o ensino, deslocando-se a Portugal, onde reside o progenitor e família deste, em períodos de férias (no mês de Agosto, no Natal/passagem de ano, Páscoa e ainda durante outros períodos), é de considerar ser em França que o jovem tem a sua residência habitual ou permanente, tendo aí organizado o seu centro efectivo de vida – e assim que, por força da regra estabelecida no art. 8º, nº 1 do Regulamento Bruxelas II bis, os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para apreciar da pretendida alteração do regime da regulação das responsabilidades parentais quanto à residência do menor.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães(1)

RELATÓRIO

Apelante: Gisela (…)
Apelado: Pedro (..)

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Pedro (…), residente em (…) demandando Gisela (…) residente em França, requereu no juízo local cível de (…) a alteração do regime das responsabilidades parentais relativamente ao filho de ambos, nascido em (…) , com a requerida residente, pretendendo se fixe a residência do jovem em Portugal, à sua (progenitor requerente) guarda e cuidados, com responsabilidades parentais repartidas entre ambos os progenitores, fixando-se regime de visitas e pensão de alimentos a prestar pela progenitora requerida.

Alegou que o exercício das responsabilidades parentais relativamente ao jovem (…) foi regulado no processo nº (..) .7TBPTB do Tribunal Judicial da (..) , tendo no seu âmbito sido fixada a residência do jovem em França, junto da mãe, com estabelecimento de visitas ao progenitor em Portugal (no mês de Agosto e noutros períodos), manifestando ele (jovem), todavia, vontade de regressar a Portugal, para junto do progenitor e avó, com quem residiu até aos três anos de idade, sendo com eles que estabeleceu profundo laço afectivo, sendo menor o vínculo afectivo com a progenitora, que com ele não é afectuosa, além de se mostrar negligente nos cuidados que lhe dispensa (falta de apoio em tarefas escolares e falta de auxílio na preparação de algumas refeições), deixando o mesmo sozinho (sem vigilância) quando se ausenta, não se eximindo de solicitar ao filho a realização, sozinho, de pequenos recados ou tarefas na rua (em cidade como Paris), proibindo-o de brincar e colocando-o amiúde de castigo, sem razão aparente. Mais alega factos tendentes a demonstrar a sua capacidade para proporcionar ao seu filho as condições para o seu desenvolvimento sadio.

Citada (art. 42º, nº 3 da Lei nº 141/2015, de 8/09), invocou a requerida, além do mais, a incompetência internacional dos tribunais portugueses, sustentando para tanto que sendo todos (progenitores e filho) de nacionalidade portuguesa, certo é que o menor reside desde os três anos em França, a título permanente, ali frequentando a escola e sendo assistido medicamente, tendo os seus amigos e parte da família (progenitora, companheiro desta e irmão uterino), desenvolvendo aí todas as suas actividades, circunscrevendo-se a ligação a Portugal à passagem do período de férias estivais (passadas com o progenitor), sendo o ordenamento francês aquele que, no momento, está melhor colocado para decidir de acordo com o superior interesse do jovem (que fala fluentemente francês), pois que aí residem todos os que convivem diariamente com ele (professores, médicos, técnicos da segurança social, psicólogos, amigos e restante família), sendo a ligação do menor a França substancialmente mais forte que a ligação que mantém com Portugal.

Apreciando a questão, decidiu o tribunal a quo julgar-se internacionalmente competente para a causa.

Irresignada, apela a requerida, pugnando pela revogação da decisão e substituição por outra que considere os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para apreciar o litígio, terminando as suas alegações extraindo as seguintes conclusões:

- Refere a Meritíssima Juiz do tribunal a quo, que este Tribunal está melhor colocado para proferir a decisão e melhor habilitado para produzir prova, não entendemos, salvo devido respeito por melhor opinião, face ao que vem alegado na petição inicial, como assim poderá ser.
- A grande parte da prova (além dos depoimentos da avó e dos demais familiares do menor) a ser produzida nos autos, terá de ser recolhida em França, onde o menor reside há 8 anos.
- São as instituições Francesas de Saúde e de Segurança social que acompanham o menor diariamente e que dispõe de elementos capazes de sustentar ou abalar a tese do progenitor que não se limita a requerer a guarda porque ele e o menor assim o desejam, mas produz acusações sérias quanto à progenitora.
- É em França que o menor frequenta a escola e é avaliado diariamente pelos professores e técnicos do estabelecimento de ensino,
- O facto de a progenitora admitir que o menor manifesta de desejo de regressar a Portugal também não é fundamento para que o processo seja apreciado cá, porque cá não existem elementos que possam ser apreciados.
- A prova a produzir terá de ser carreada de França, com todas as dificuldades inerentes, o que vai fazer com que o processo se arraste em pedidos de informação e diligências.
- A verdade é que o menor residiu em Portugal até aos 3 anos de idade, com o pai e a avó, e desde aí, reside em França com a progenitora a título permanente,
- Em França funciona todo o centro de vida de menor, é ali que frequenta a escola (sendo um excelente aluno, aliás), é a ali que é assistido medicamente,
- É em França que tem os seus amigos e parte da família composta pela progenitora, o companheiro desta e o meio irmão,
- É ali que desenvolve as suas actividades de tempos de livres.
- Toda a informação relativa ao desenvolvimento do menor, aos cuidados ou, eventual, falta deles, ao seu crescimento, encontram-se em França e são do conhecimento das autoridades e entidades francesas,
- O menor, em Portugal, não tem qualquer tipo de registo desde, pelo menos 2010, data em que foi residir para França,
- A única relação com o nosso país, ocorre quando o menor vem de férias ou para estar com o progenitor.
- E salvo melhor opinião, não se pode concluir que por ter sido dado entrada do processo de incumprimento das responsabilidades parentais em Portugal, se aceitou este tribunal como competente, porque esse processo correu quando o menor estava em França há relativamente pouco tempo em França e a progenitora, entendeu fazer mais sentido, que fosse resolvido em Portugal.
- Decorreram seis anos desde esse incidente e face ao teor da petição inicial e aos factos ali invocados, o tribunal que neste momento estará em condições de melhor acautelar o superior interesse do menor, é o tribunal Francês.
- Todos os que têm convivido diariamente com o menor, como sendo os professores, médicos, técnicos da segurança social, psicóloga, amigos e restante família, se encontram em França,
- Estes estarão em condições de avaliar se, efectivamente, o menor não tem sido alvo dos cuidados de que necessita.
- A ligação do menor com França é substancialmente mais forte do que com Portugal, o menor fala francês fluente, ali tem o seu círculo de amigos, é onde as suas raízes estão alicerçadas.
- Neste momento, é o tribunal francês quem se encontra melhor posicionado para tomar uma decisão justa e criteriosa, que acautele o superior interesse da criança, porque cremos, salvo devido respeito que o superior interesse da criança não é necessariamente e só, a sua vontade.
- Como aliás decorre de inúmeros acórdãos e da legislação aplicável, nomeadamente do regulamento CE n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, que efectivamente o critério deve ser esse, cf acórdão da Relação de Coimbra de 11.10.2017. e Ac. do STJ de 26.01.2017 E ainda citando o acórdão de 17.07.2018 deste Tribunal
- Salvo devido respeito, o Tribunal Português não é o que se encontra nas melhores condições para conhecer e decidir o litígio em causa, pelo que deverá este tribunal, revogar a decisão proferida, declarando o Tribunal a quo incompetente e os autos remetidos ao tribunal Francês competente para o efeito, conforme preceitua o artigo 8.º n.º do regulamento CE.
- A decisão proferida violou os artigos 9º do RGPTC, 8º e 12º do Regulamento CE 2201/2003.

Não resulta dos autos que tenham sido apresentadas contra-alegações.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Delimitação do objecto do recurso – questão a apreciar.

Considerando a decisão recorrida (a base ou ponto de partido de todos os recursos) e as conclusões das alegações da apelante, a questão a decidir circunscreve-se a apreciar da competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer da presente acção de alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais relativamente a criança/jovem a residir com a mãe em França e em que é pedido pelo progenitor que o menor passe a residir consigo, em Portugal.
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FUNDAMENTAÇÃO

Fundamentação de facto

Em vista da apreciação da questão, hão-de considerar-se (porque revelados dos autos) os seguintes factos:

1. R. C. nasceu em .. de … de 2007 e é filho de de P. C. e de G. P., ambos solteiros, o primeiro residente em Ponte da Barca, Portugal e a segunda em …, França.
2. O exercício das responsabilidades parentais do R. C. encontra-se regulado no âmbito do processo nº 132/08.7TBPTB do extinto tribunal judicial de Ponte da Barca, tendo-se estabelecido o exercício em comum, por ambos os progenitores, das responsabilidades parentais e fixado a residência do R. C. junto da progenitora a residir em França, fixando-se regime de visitas de modo a que o R. C. estivesse com o progenitor no mês de Agosto e, alternadamente, uma semana no Natal/passagem de ano, bem como nas férias da Páscoa e ainda durante seis períodos de uma semana cada um, a acordar previamente com antecedência mínima de 15 dias.
3. A família paterna do R. C. reside em Portugal.
4. O R. C. reside com a mãe em França desde os três anos de idade, com ambos residindo o companheiro da mãe e o irmão uterino do R. C., aí frequentando o jovem estabelecimento de ensino, deslocando-se a Portugal nos períodos de férias que passa com o progenitor.

Fundamentação de direito

Sendo a União Europeia um espaço de liberdade, de segurança e de justiça, que garante a livre circulação das pessoas, reconhecendo aos cidadãos dos Estados-Membros a cidadania europeia, circunstâncias que potenciam a plurilocalização dos litígios, entende-se o cuidado tido pelos órgãos da União na adopção de regras normativas relativas à repartição do poder de julgar entre os tribunais dos vários Estados-membros.

O Regulamento (CE) nº 2201/2003, de 27 de Novembro (comummente designado por ‘Regulamento Bruxelas II bis’, por ‘Regulamento Bruxelas II-A’ e/ou ‘Novo Bruxelas II) (2), relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental (que revoga o Regulamento (CE) nº 1347/2000) (3), estabelece os elementos de conexão relevantes para determinar a competência internacional dos tribunais dos Estados-Membros relativamente aos processos concernentes às responsabilidades parentais (uma das matérias nele tratadas), assegurando o esbatimento das particularidades e especificidades dos direitos nacionais e uniformizando os elementos de conexão relevantes, ditando uma qualificação autónoma desses elementos.

Instrumento normativo vinculativo e directamente aplicável na ordem jurídica interna (4) cuja aplicabilidade no caso é evidente, considerando a plurilocalização dos interessados em Estados-Membros da União Europeia – todos cidadãos europeus (nacionais portugueses), o requerente progenitor residente em Portugal e a requerida progenitora e o filho residentes em França – e a matéria a dirimir, qual seja o estabelecimento da residência do jovem com um dos progenitores no âmbito de processo de alteração da regulação das responsabilidades parentais – o Regulamento trata (além do mais) da competência dos tribunais dos Estados-Membros em matéria de responsabilidades parentais, estas aí definidas de forma ampla como compreendendo o conjunto dos direitos e obrigações conferidos a uma pessoa singular ou colectiva por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor relativo à pessoa ou aos bens de uma criança (artigo 2º, nº 7 do Regulamento), abrangendo (independentemente da natureza do tribunal) as matérias civis relativas à atribuição e ao exercício da responsabilidade parental (art. 1º, nº 1, b) do Regulamento), nomeadamente as matérias concernentes ao direito de guarda e ao direito de visita (art. 1º, nº 2, a) do Regulamento).

O critério geral concernente à competência internacional dos tribunais dos Estados-Membros está estabelecido no art. 8º, nº 1 do Regulamento, aí se prescrevendo que os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal (5).

O princípio fundamental é, pois, o de que ‘o foro mais adequado é o tribunal competente do Estado-Membro de residência habitual da criança’, conceito de «residência habitual» que tem sido cada vez mais utilizado como factor de conexão em instrumentos internacionais, especialmente em direito da família, que não se mostra definido no Regulamento, devendo o seu significado ser interpretado de acordo com os objectivos e finalidades do Regulamento, sendo de realçar que a interpretação da expressão não pode ser determinada por referência a conceito utilizado em qualquer lei nacional, antes lhe devendo ser ‘atribuído um significado «autónomo» nos termos e para os efeitos da União Europeia’ (6).

Decidiu já o Tribunal de Justiça da União Europeia que o conceito de ‘«residência habitual» do menor, na acepção do artigo 8º, nº 1 do regulamento, deve ser interpretado no sentido de que essa residência corresponde ao local que revelar uma determinada integração do menor num ambiente social e familiar’, devendo para esse fim ser tidas em consideração, ‘nomeadamente, a duração, a regularidade, as condições e as razões da permanência no território de em estado-Membro e da mudança da família para esse Estado, a nacionalidade do menor, o local e as condições da escolaridade, os conhecimentos linguísticos, bem como os laços familiares e sociais que o menor tiver no referido estado’, incumbindo ao ‘órgão jurisdicional nacional determinar a residência habitual do menor tendo em conta o conjunto das circunstâncias de facto relevantes em cada caso concreto’ (7).

Num outro caso em que foi chamado a pronunciar-se, o TJUE ponderou (considerandos 42 e 44 a 49 do acórdão de 22 de Dezembro de 2012 no processo C-479/10 PPU (8):

- segundo o artigo 8º, nº 1, do regulamento, a competência do tribunal de um Estado-Membro em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que se desloca licitamente para outro Estado é determinada com base no critério da residência habitual dessa criança no momento em que o processo é instaurado no referido tribunal;
- o regulamento não contém nenhuma definição do conceito de «residência habitual». A utilização do adjectivo «habitual» apenas permite concluir que a residência deve ter uma certa estabilidade ou regularidade;
- segundo jurisprudência assente, decorre das exigências de aplicação uniforme do direito da União e do princípio da igualdade que os termos de uma disposição do direito da União que não contenha qualquer remissão expressa para o direito dos Estados-Membros para determinar o seu sentido e alcance devem normalmente ser interpretados em toda a União Europeia de modo autónomo e uniforme, tendo em conta o contexto da disposição e o objectivo prosseguido pela regulamentação em causa;
- uma vez que os artigos do regulamento que evocam o conceito de «residência habitual» não remetem expressamente para o direito dos Estados-Membros para determinar o sentido e o alcance do referido conceito, essa determinação deve ser feita à luz do contexto das disposições e do objectivo do regulamento, nomeadamente o que resulta do seu décimo segundo considerando, segundo o qual as regras de competência nele fixadas são definidas em função do superior interesse da criança, em particular do critério da proximidade;
- a fim de que este superior interesse da criança seja respeitado da melhor forma, o Tribunal de Justiça já declarou que o conceito de «residência habitual», na acepção do artigo 8º, nº 1, do regulamento, corresponde ao lugar que traduz uma certa integração da criança num ambiente social e familiar. Esse lugar deve ser fixado pelo órgão jurisdicional nacional tendo em conta todas as circunstâncias de facto específicas de cada caso;
- entre os critérios à luz dos quais cabe ao órgão jurisdicional nacional fixar o lugar da residência habitual de uma criança, devem, designadamente, ser referidas as condições e as razões da permanência da criança no território de um Estado-Membro, bem como a sua nacionalidade;
- como o Tribunal de Justiça precisou, por outro lado (…), para determinar a residência habitual de uma criança, além da presença física desta última num Estado-Membro, outros factores suplementares devem indicar que essa presença não tem carácter temporário ou ocasional.

O conceito autónomo (próprio do direito da União) e uniforme (transversal e válido em todos os Estados-Membros onde o regulamento vigora) de «residência habitual» remete para a proximidade aos interesses da criança, em ordem à prossecução do seu superior interesse, pois foram esses os interesses tidos em vista com a definição da competência regra para as questões relativas ao exercício das responsabilidades parentais no artigo 8º do Regulamento, e por isso se tem entendido dever considerar-se ‘residência habitual da criança o centro efectivo da sua vida, encontrado de acordo com os elementos disponíveis no momento da entrada do processo em tribunal’ (9).

Não se estabeleceu um conceito rígido, antes se consagrando um critério adequado a atribuir a competência ao ‘tribunal melhor colocado para conhecer e decidir o litígio que lhe é submetido’, devendo tal posição preponderante ou prevalecente para atribuição de competência internacional ‘resultar não de uma permanência fugaz ou recente, mas antes de uma ligação efectiva, muito próxima à realidade na qual se desenrolam os factos trazidos ao conhecimento do tribunal e nos quais se funda o pedido formulado’, pois que se tem em vista apelar à ‘maior proximidade relativamente ao ambiente familiar, social e cultural do dia a dia da criança’ (10).

Para lá do ponto de partida que constitui a presença física da criança num determinado Estado-Membro, importará ponderar outros factores susceptíveis de demonstrar se essa presença tem, ou não, carácter acidental, temporário ou ocasional ou revelador duma menor pertença comunitária/social/familiar - importa apurar qual o local que revela o grau de integração da criança num ambiente social e familiar a relevar em vista do critério superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade (11).

Conceito adoptado (dada a força de precedente dos Acórdãos do TJUE, radicada no princípio do primado do direito da União e da aplicação uniforme) pela jurisprudência nacional, mormente pelo STJ, sustentando que o conceito deve interpretar-se autonomamente, de acordo com a jurisprudência do TJUE, como o ‘local onde o interessado fixou, com a vontade de lhe conferir carácter estável, o centro permanente ou habitual dos seus interesses, entendendo-se que, para efeitos de determinação dessa residência, é necessário ter em conta todos os elementos de facto dela constitutivos’ (12), traduzindo, em especial, uma ‘ideia de estabilidade do domicílio, assente, designadamente, num conjunto de relações sociais e familiares, demonstrativas da integração na sociedade local’, relevando-se tal estabilização como factor preponderante, pois que é o Estado-Membro em que tal estabilização relacional se verifique aquele que, ‘em princípio, oferece melhores condições para’ apurar de toda a factualidade importante para a decisão (13).

A questão a decidir não reside na determinação do sentido e alcance decisivo da normatividade aplicável, antes na sua aplicação ao caso concreto – jovem nascido em 2007, filho de pais solteiros que até aos três anos residiu em Portugal, passando desde então a viver com a sua mãe em França (aí reside juntamente com o companheiro desta e irmão uterino), onde frequenta o ensino, deslocando-se a Portugal, onde reside o progenitor e família deste, em períodos de férias (no mês de Agosto, no Natal/passagem de ano, Páscoa e ainda durante outros períodos).

A decisão recorrida considerou relevante a ligação (que teve como forte) do jovem a Portugal, ponderando para tanto que aqui reside o progenitor e restante família, sendo que em França ‘reside somente a mãe, companheiro desta e irmão’, estando o tribunal português ‘melhor colocado para proferir decisão’ tendo em conta que as responsabilidades parentais foram cá reguladas, assim como cá foi tratado incidente de incumprimento, mantendo o menor forte ligação afectiva a Portugal, manifestando mesmo vontade de passar a viver no país, tendo por isso o tribunal português maior facilidade na recolha dos elementos necessários à decisão.

Temos como relevante, face ao critério acima expendido, que o jovem, nascido em 2007, reside com a mãe em França desde os três anos de idade, aí frequentando o ensino. O seu núcleo familiar mais próximo (mormente irmão uterino e o companheiro da mãe) também aí reside.

Tal circunstancialismo evidencia que é em França que o jovem tem a sua residência habitual ou permanente, tendo aí organizado o seu centro efectivo de vida – aí reside com o maior número de membros da família nuclear directa (mãe e irmão) e aí desenvolve a actividade principal dos jovens, qual seja a frequência do ensino. Local de residência e frequência de estabelecimento de ensino cuja estabilidade ao longo dos últimos nove anos demonstra estar comunitária e socialmente inserido, tendo criado aí o seu centro efectivo de vida – as relações de vizinhança, as relações de amizade e as actividades lúdicas, os professores e o quotidiano é vivido por referência a esse centro de vida, desde há anos (por isso estavelmente) organizado.

Não se questiona que o jovem tenha forte ligação afectiva ao nosso País – o que se quer significar é que tal ligação afectiva, ainda que forte, não permite afastar a conclusão de que o centro efectivo de vida do jovem é em França, pois que a residência aí estabelecida não tem carácter acidental, temporário ou ocasional, tendo carácter de estabilidade tal que foi acolhida como a residência do jovem na regulação das responsabilidades parentais que agora se visa alterar.
Pode mesmo afirmar-se, com segurança, que face ao vigente regime de regulação das responsabilidades parentais do jovem R. C. (cfr. facto provado nº 2) a França é o país de residência (com a progenitora) e Portugal o país de visitas (ao progenitor).

Acresce que no caso dos autos a pretensão do progenitor é a de alteração da residência do jovem, pretendendo que a sua residência seja fixada em Portugal, consigo, argumentando não apenas ser essa a vontade do jovem mas ainda que a progenitora mantém com o jovem um vínculo afectivo menos intenso, não sendo com ele afectuosa, mostrando-se negligente nos cuidados que lhe dispensa.
Para lá da ligação efectiva do jovem a França – aí inserido, de modo estável, ao nível comunitário, escolar e familiar –, o superior interesse da criança e, especialmente, o critério da proximidade a tal centro de vida (que permite apurar do tribunal melhor colocado para colher os dados de facto relevantes à apreciação/decisão da pretensão formulada pelo progenitor) apontam decisivamente para que não são os tribunais portugueses os que se situam mais próximos do ambiente familiar, social, cultural e escolar do quotidiano do jovem.

Tanto para apurar da vontade do jovem a propósito da questão como, principalmente, para apurar da alegada negligência materna (materialidade alegada pelo progenitor como fundamento da pretensão formulada), estão mais próximos e melhor colocados os tribunais franceses que os tribunais portugueses.

O domínio da língua portuguesa pelo menor e sua ligação a Portugal e à família paterna (que não se questiona) não afasta (muito menos prevalece sobre) a estabilidade do centro de vida do jovem em França – à ligação familiar que aí mantém com a mãe e irmão uterino, alia-se a inserção escolar, de importância decisiva em jovem com doze anos, factores «âncora» que alicerçam e suportam tudo o demais que compõe e constitui o centro permanente ou habitual dos seus interesses.

Conclui-se, pois, atento o critério da «residência habitual» plasmado no art. 8º, nº 1 do Regulamento (CE) nº 2201/2003, de 27 de Novembro, ponderando a factualidade revelado pelos autos, que os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para conhecer da presente acção de alteração das responsabilidades parentais (que o tribunal deve verificar e declarar, mesmo oficiosamente, como prescreve o art. 17º do Regulamento) – infracção das regras da incompetência internacional que gera a incompetência absoluta (art. 96º, a) do CPC) e implica a absolvição da requerida apelante da instância (art 96º, a), 99º, nº 1, 278º, nº 1, a), 576º, nº 1 e 2 e 577, a), todos do CPC).

Sumariando a decisão, nos termos do art. 663º, nº 7 do CPC:

I. A competência internacional dos tribunais dos Estados-Membros relativa aos processos atinentes às responsabilidades parentais mostra-se estabelecida no Regulamento (CE) nº 2201/2003, de 27 de Novembro (comummente designado por ‘Regulamento Bruxelas II bis’), que assegura o esbatimento das particularidades e especificidades dos direitos nacionais e uniformiza os elementos de conexão relevantes, ditando uma qualificação autónoma desses elementos.
II. Trata-se de instrumento normativo vinculativo e directamente aplicável na ordem jurídica interna, que abrange (independentemente da natureza do tribunal) as matérias civis relativas à atribuição e ao exercício da responsabilidade parental, nomeadamente as matérias concernentes ao direito de guarda e ao direito de visita.
III. O critério geral concernente à competência internacional dos tribunais dos Estados-Membros está estabelecido no art. 8º, nº 1 do Regulamento, aí se prescrevendo que os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal.
IV. O conceito autónomo (próprio do direito da União) e uniforme (transversal e válido em todos os Estados-Membros onde o regulamento vigora) de «residência habitual» remete para a proximidade aos interesses da criança, em ordem à prossecução do seu superior interesse, pois foram esses os interesses tidos em vista com a definição da competência regra para as questões relativas ao exercício das responsabilidades parentais no artigo 8º do Regulamento, e por isso se tem entendido dever considerar-se residência habitual da criança o centro efectivo da sua vida, encontrado de acordo com os elementos disponíveis no momento da entrada do processo em tribunal.
V. Para lá do ponto de partida que constitui a presença física da criança num determinado Estado-Membro, importará ponderar outros factores susceptíveis de demonstrar se essa presença tem, ou não, carácter acidental, temporário ou ocasional ou revelador duma menor pertença comunitária/social/familiar - importa apurar qual o local que revela o grau de integração da criança num ambiente social e familiar a relevar em vista do critério superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade.
VI. Em caso de jovem nascido em 2007, filho de pais solteiros que até aos três anos residiu em Portugal, passando desde então a viver com a sua mãe em França (juntamente com o companheiro desta e irmão uterino), onde frequenta o ensino, deslocando-se a Portugal, onde reside o progenitor e família deste, em períodos de férias (no mês de Agosto, no Natal/passagem de ano, Páscoa e ainda durante outros períodos), é de considerar ser em França que o jovem tem a sua residência habitual ou permanente, tendo aí organizado o seu centro efectivo de vida – e assim que, por força da regra estabelecida no art. 8º, nº 1 do Regulamento Bruxelas II bis, os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para apreciar da pretendida alteração do regime da regulação das responsabilidades parentais quanto à residência do menor.
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DECISÃO
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Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar procedente a apelação e, em consequência, em declarar os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para apreciar da pretensão deduzida, absolvendo a requerida apelante da instância.
Custas pelo requerido apelado (sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia).
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Guimarães, 10/07/2019
(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico)



1. Apelação nº 132/08.7TBPTB-F.G1; Relator: João Ramos Lopes; Adjuntos: José Fernando Cardoso Amaral; Helena Melo
2. Publicado no JO nº L 338 de 23/12/2003, pp 1-28 e rectificado no JO nº L 174 de 28/06/2006, na redacção conferida pelo Regulamento (CE) nº 2116/2004 do Conselho, de 2 de Dezembro de 2004. Regulamento que se encontra em vigor desde 3 de Janeiro de 2005 e aplicável desde 1 de Março de 2005 em todos os Estados-Membros, com excepção da Dinamarca (art. 2º, nº 3).
3. O Regulamento (CE) nº 2201/2003 revogou o Regulamento (CE) nº 1347/2000 em vista de garantir a igualdade de tratamento de todas as crianças e assim abranger todas as decisões em matéria de responsabilidade parental, incluindo as medidas de protecção da criança, independentemente da sua eventual conexão com um processo matrimonial e da existência de vínculo matrimonial entre os progenitores.
4. Artigo 72º do Regulamento (CE) nº 2201/2003 e artigos 1º, 68º e 76º do Tratado que instituiu a Comunidade Europeia.
5. Ressalva o nº 2 do preceito as excepções à regra - situações previstas nos artigos 9º, 10º e 12º do mesmo instrumento normativo, no caso não aplicáveis. O artigo 10º afasta a regra geral nas situações de rapto da criança – situação que se não verifica, pois que a criança acompanha licitamente a progenitora em França. O artigo 9º trata de caso de prolongamento da competência do Estado-Membro da anterior residência habitual da criança nas situações em que a criança se desloca legalmente para outro Estado-Membro e nesse passa a ter residência habitual – quando uma criança se desloca legalmente de um Estado-Membro para outro e passa a ter a sua residência habitual neste último, os tribunais do Estado-Membro da anterior residência habitual da criança mantêm a sua competência durante um período de três meses após a deslocação, para alterarem uma decisão, sobre o direito de visita proferida nesse Estado-Membro antes da deslocação da criança, desde que o titular do direito de visita, por força dessa decisão, continue a residir habitualmente no Estado-Membro da anterior residência habitual da criança. Situação em que não se enquadra o caso dos autos, pois que o pedido não respeita à alteração do regime de visitas nem a alteração de residência do menor ocorreu há menos de três meses. O artigo 12º trata de extensão da competência fixada para as acções de divórcio – situação que também se não verifica nos autos.
6. Guia prático para aplicação do Regulamento Bruxelas II-A, p. 26 (ponto 3.2.3.1), cuja versão electrónica se mostra disponível no sítio https//e-justice.europa.eu (aquele se acedendo pesquisando as publicações da rede judiciária europeia).
7. Ponto 2º do dispositivo do acórdão do TJUE de 2 de Abril de 2009 (Terceira Secção), no processo C-523-07 (proferido no âmbito de pedido de decisão prejudicial suscitado pelo Supremo Tribunal Administrativo da Finlândia). O acórdão está disponível no sítio https//curia.europa.eu.
8. Acórdão do TJUE de 22 de Dezembro de 2012 (Primeira Secção), Mercredi, no processo C-479/10 PPU, disponível no sítio http//cuira.europa.eu.
9. Maria dos Prazeres Beleza, ‘Jurisprudência sobre rapto internacional de crianças’, in revista Julgar, nº 24 (Setembro-Dezembro2014), p. 74.
10. Ana Sofia Gomes, Responsabilidades Parentais Internacionais – Em especial na União Europeia, Quid Juris, pp. 40/41.
11. Citado acórdão do TJUE de 22 de Dezembro de 2012, no processo nº C-479/10.
12. Assim, citando Maria Helena Brito (in Estudos em Memória do Professor Doutor António Marques dos Santos, vol. I, Almedina, p. 323), o acórdão do STJ de 28/01/2016 (Fernanda Isabel Pereira), no sítio www.dgsi.pt/jstj.
13. Acórdão do STJ de 26/01/2017 (Olindo Geraldes), no sítio www.dgsi.pt/jstj.