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CONTRABANDO DE CIRCULAÇÃO
REGRA FISCAL
Sumário
I - A livre circulação de mercadorias não é sinónimo de ausência de regras, incluindo as comunitárias, ou circulação sem controlo ou vigilância. II - Ao aprovar o RGIT, cuja entrada em vigor ocorreu muito depois da adesão de Portugal à Comunidade Europeia, o legislador previu expressamente a circulação de mercadorias em violação de leis aduaneiras de circulação interna ou comunitária.
Texto Integral
Proc n.º 35/13.3FAPRT.P1
Tribunal de Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Local Criminal do Porto - Juiz 7
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
No âmbito do Processo Comum Singular n.º 35/13.3FAPRT, a correr termos no Juízo Local Criminal do Porto, Juiz 7, foi o arguido B… julgado e, por sentença de 29-06-2018, condenado pela prática de um crime de contrabando de circulação, p. e p. pelo art. 93.º, n.º 1, do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 8 (oito euros), num total de € 720 (setecentos e vinte euros).
*
Inconformado, o arguido e recorrente B… interpôs recurso, solicitando a revogação da sentença recorrida, invocando, quanto à matéria de facto, que a decisão padece de “insuficiência da prova produzida para condenar o arguido” e de erro notório na apreciação da prova produzida, vícios que invoca por referência à previsão do art. 410.º, n.º 2, als. a e c), do CPPenal, e que considera que determinaram a violação do princípio in dubio pro reo, e, quanto à matéria de direito, que a norma que tipifica o crime imputado é obsoleta face à adesão de Portugal à União Europeia.
Apresenta nesse sentido as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
«1 – Ao Arguido B… foi-lhes aplicada a pena de 90 dias de multa à taxa diária de 8,00€ , o que perfaz o montante global de 720,00 €, por ter incorrido na prática de um crime de contrabando de circulação , p. e p. pelo art.º 93 n º 1 do R.G.I.T . Acontece que, 2 - não se conforma o Arguido com , aliás, douta, decisão e dela interpõe o presente recurso com os fundamentos supra expostos e as conclusões aqui vertidas . 3 - Ora, como consta a fls. (- ) da , aliás , douta Sentença , o Meritíssimo Juiz fundou a sua convicção para proferir a decisão relativa aos fundamentos de facto no depoimento das testemunhas C… e D… – elementos da G.N.R , os quais refere que confirmaram o teor do auto de noticia e que descreveram sem qualquer dúvida “ que o autor dos factos presenciados e aqui imputados era o ora arguido “ . Sucede que, 4 - ouvidos os depoimentos das referidas testemunhas gravados respetivamente no habilus das 15:15:50 às 15:54:45 horas do dia 09/04/2018 e no habilus das 15:15:50 às 15:54:45 horas do dia 09/04/2018 , e conjugando tais depoimentos com os docs. juntos aos autos pela DSAFA em 12/06/2018, facilmente este Tribunal concluirá que não corresponde integralmente à verdade que aqueles agentes policiais descreveram sem qualquer dúvida “ que o autor dos factos presenciados e aqui imputados era o ora arguido “ .Vejamos, 5 - consoante se pode ouvir do registo no habilus das 15:15:50 às 15:54:45 horas do dia 09/04/2018 o agente C…, após tentar descrever a localização exata de intervenção, onde se veio apurar que os factos afinal ocorreram na comarca de Gondomar , refere que na viatura seguiam duas pessoas , lembra-se de ter falado com o condutor , mas , não se recorda se foi este que foi consigo à mala da viatura verificar a mercadoria apreendida . Por sua vez, 6 - o capitão B…, cujo o depoimento está gravado no habilus das 15:15:50 às 15:54:45 horas do dia 09/04/2018 refere que ambos os ocupantes da viatura eram investigados, não se recorda se algum dos ocupantes assumiu a culpa .Contudo, 7 - este agente policial referiu que o Arguido encontrava-se indiciado em vários processos em investigação pelo mesmo tipo de crime , o que motivou o despacho do Meritíssimo Juiz a notificar a DSAFA para informar se ali se encontrava em investigação mais algum processo em que o Arguido fosse investigado. Ora,
8 - a DSAFA juntou aos autos os docs. a 12/06/2018 , dos quais resulta que o Arguido só estava indiciado pela prática dos fatos que lhe são imputados nestes autos , como , aliás, resultou provado no ponto 11 da matéria provada da douta sentença . Isto para dizer que,
9 - ouvidos os depoimentos das testemunhas C… e D… gravados no habilus das 15:15:50 às 15:54:45 horas do dia 09/04/2018 e no habilus das 15:15:50 às 15:54:45 horas do dia 09/04/2018 , se concluirá que os depoimentos destas testemunha não foram tão coerentes como é dito na douta Sentença , aliás , pelo contrário , se concluirá que o Capitão D… ( depoimento gravado no habilus das 15:15:50 às 15:54:45 horas do dia 09/04/2018 ) afirmou que o Arguido tinha vários processos pelo mesmo tipo de crime , o que se veio a verificar que não corresponde à verdade. Mais,
10 - não tendo o Capitão D… ( depoimento gravado no habilus das 15:15:50 às 15:54:45 horas do dia 09/04/2018 ) afirmado se algum dos ocupantes da viatura intercetada assumiu a culpa , ou melhor , a propriedade da mercadoria apreendida , não resulta do seu depoimento que a mesma seja da propriedade do Arguido somente pelo facto da viatura em que a mesma era transportada seja propriedade deste .Vejamos,
11 - o Arguido B… vinha acusado da prática de um crime de contrabando de circulação p. e p pelos arts. º 93 n º 1 do RGIT , por referência aos artigos 4, 5, 7, 8, 9, 35, 36, 46, 101, 108, 109, 110 e 111 Código dos Impostos Especiais de Consumo , aprovado pelo D.L 73/10 de 21/06 conjugado com a Portaria n º 1295/07de 01/10 , PELO ÚNICO FACTO DE NO DIA E HORA INDICADO NA ACUSAÇÃO PÚBLICA CONDUZIR A SUA VIATURA , na qual se encontravam 10 caixas de cartão , com 50 volumes de tabaco , sem qualquer estampilha fiscal comprovativa de legal introdução dos cigarros no consumo nacional e não tinham os dizeres legais obrigatórios relativos aos malefícios para a saúde na língua portuguesa e a identificação do fabricante e respetivo preço . Ora, 12 - atente-se e saliente-se que a única intervenção do Arguido B… nos factos relatados na Acusação Pública se limitam à condução da viatura .. – .. - PM , com o material acima descrito , e na companhia de E…, o qual pese embora tivesse sido constituído Arguido nos autos , quanto a este os mesmos foram ordenados arquivar . Aliás,
13 - como constam dos vários apensos que compõem os presentes autos , foram realizadas diversas diligências pelos agentes policiais à residência e local de trabalho do Arguido B… de forma apurar se o mesmo se dedicava à prática do crime de contrabando de circulação . Acontece que,
14 - nas várias diligências efectuadas quer à residência do Arguido B…, como ao local de trabalho deste , ou melhor nos vários locais em que este desenvolve actividade comercial , não foi detectado pelos agentes policiais qualquer anormalidade , nem foi possível visualizar qualquer conduta ilícita praticado por aquele , conforme consta dos relatórios juntos aos autos. Pelo que, 15 - como consta do último paragrafo de fls. 5 do despacho de arquivamento e acusação, o único fundamento para acusar o aqui Arguido B… foi o facto deste conduzir uma viatura , que era da sua propriedade e que no seu interior trazia tabaco em desconformidade com a legislação, e tal posição do Tribunal , manteve-se em se de Julgamento . Na verdade ,
16 - muito se estranha que tendo as testemunhas – C… e D…, que efectuaram a intervenção do Arguido B… e E…, seguido a viatura em que estes circulavam até ao local da intercepção, e não tenham verificado quem é que carregou o tabaco que se encontrava dentro da carrinha ???.É que,
17 - com o devido respeito , não se compreende porque é que nos autos não está junto o relatório de tal vigilância , nem estas testemunhas tenham conseguido em declarações prestadas em Julgamento descrever tal facto importante para a descoberta da verdade , pois , saber quem carregou o tabaco existente na viatura interceptada pelos agentes policiais , e sobretudo a quem foi entregue tal tabaco era na verdade imprescindível paraa descoberta da verdade . Porquanto,
18 - acusar o Arguido B…, e sobretudo condená-lo pelo único facto de conduzir a viatura , no qual se encontrava o tabaco em desconformidade com a lei é de tudo desproporcional e violador da lei, mormente do princípio in dúbio pro reo , já que , do depoimento dos agentes ( gravados respetivamente no habilus das 15:15:50 às 15:54:45 horas do dia 09/04/2018 e no habilus das 15:15:50 às 15:54:45 horas do dia 09/04/2018 ) que efetuaram a intervenção e seguiram a viatura não descreveram onde o tabaco foi carregado , por quem foi carregado e aquando a intervenção se alguém assumiu a culpa . Assim,
19 - como consta da douta Sentença , por iniciativa do Tribunal foi ordenada a inquirição da testemunha E…, ou seja , a pessoa que acompanhava o Arguido no dia dos factos , o qual , após várias faltas , ainda que justificadas , depôs no dia 22/06/2018 , encontrando-se o seu depoimento gravado no habilus das 16:24:42 às 16:39:23 do dia 22/06/2018 . Ora,
20 - ouvido o depoimento da testemunha E… gravado no habilus das 16:24:42 às 16:39:23 do dia 22/06/2018 facilmente este Venerando Tribunal da Relação concluirá que não resulta do mesmo o constante da douta Sentença . Pois ,
21 - ainda que o meritíssimo Juiz refira que o depoimento desta testemunha não tenha sido “ totalmente esclarecedor e credível “ , a verdade é que , ouvido o depoimento da testemunha E… gravado no habilus das 16:24:42 às 16:39:23 do dia 22/06/2018 se verifica que este afirmou que foi ele que pediu ao Arguido para se deslocar com ele ao local onde foi carregada a mercadoria , que o transporte foi efetuado a seu pedido , sendo que ia pagar as despesas do transporte ao Arguido . Aliás,
22 - mais esclareceu a testemunha E…, cujo depoimento gravado no habilus das 16:24:42 às 16:39:23 do dia 22/06/2018 , que a mercadoria lhe foi entregue a ele , e era ele que tinha a obrigação de a entregar a terceiro . Assim,
23 - com o devido respeito , e a mais merecida vénia , mas , a verdade é que do depoimento da testemunha E… resulta que ao dar como provados os pontos 1 , 2, 3 , 4 , 7 , 9 e 10 dos factos provados procedeu o Meritíssimo a uma apreciação errada da prova produzida . Pois,
24 - remetendo-nos ao caso em apreço pergunta-se em que prova com certeza jurídica se alicerçou o Tribunal para dada como provado que o Arguido ao conduzir a viatura de sua propriedade , acompanhado da testemunha E… e transportando no seu interior a mercadoria apreendida praticou um crime de contrabando de circulação .Porquanto,
25 - ainda que o Meritíssimo Juiz a quo tenha entendido não valorar o depoimento das testemunhas de defesa , e sobretudo tenha entendido que do depoimento da testemunha E… resultou só que este confirmou que acompanhava o Arguido e não assumiu a propriedade da mercadoria , o que não resulta do seu depoimento gravado no hablius das 16:24:42 às 16:39:23 do dia 22/06/2018 , o certo é que , da conjugação dos depoimentos desta testemunha com as testemunhas C…, D… e E…, o que resulta é que o Arguido , acompanhado daquela testemunha E…, conduzia a viatura intercetada , sendo que no seu interior se encontrava a mercadoria apreendida, porém , não se fez prova de que tal mercadoria fosse da propriedade do Arguido , aliás , entendemos mesmo que prova foi feita de que a mercadoria apreendida não era da propriedade do Arguido , como resulta do depoimento da testemunha E…, gravado no habilus a 16:24:42 às 16:39:23 do dia 22/06/2018. Assim sendo,
26 - entendemos que condenar o Arguido pela prática de um crime de contrabando de circulação , quando não foi produzida prova concreta de que a mercadoria apreendida era da sua propriedade do Arguido , suportando-se a sua condenação no simples facto de conduzir e ser proprietário da viatura onde se encontrava a mercadoria apreendida , ocorreu uma clara violação do princípio in dúbio pró reo , o que constituiu uma clara violação do art.º 410 n º 2 alínea a) do C.P.P. e art.º 32 da C.R.P. Pois ,
27 - no nosso ordenamento jurídico , está soberanamente consagrado o principio da presunção de inocência , estabelecido no art.º 32 da C.R.P , segundo o qual ninguém pode ser punido ou sujeito a uma pena ou sanção acessória sem que a sua culpabilidade fique demonstrada inequivocamente e sem margem de duvidas , Ora ,
28 - contrariando tal disposição do direito positivo e inequívoco o tribunal a quo não aplicou o principio com rigor , qualidade e inquestionabilidade. Errou dessa forma na apreciação da prova, violou também o art º 410 n º 2 alínea c) do C.P.P., deveria o Arguido ser absolvido. Ademais,
29 - é de tudo descabida e contraditória a motivação do Meritíssimo Juiz , já que , se por um lado refere que foi dado como não provado que a testemunha E… veio dizer que não “ sabia o que era transportado no veículo do Arguido , afirmando ainda que não era dono nem responsável por tal transporte nem pela mercadoria transportada . “, o que não resulta do depoimento deste gravado no habilus a 16:24:42 às 16:39:23 do dia 22/06/2018 , por outro lado , considerou o depoimento deste como puco esclarecedor e credível.
30 - O certo é que, confrontando o texto da decisão, conjugado com as regras da experiência comum, cremos poder concluir, que no caso, se evidencia da sentença recorrida, uma deficiência na sua construção e estruturação, quer quanto à decisão, quer quanto aos seus fundamentos, já que condenar o Arguido por actos que se deu como provado que também foram praticados pela sua ex-mulher é de tudo contraditória e ilegal.
31 - Assim , cremos estar perante uma situação de erro notório na apreciação da prova, vício previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410º/2 C P Penal, o que se arguiu e invoca para os devidos efeitos legais , sendo que um dos vícios previstos nesta norma é do conhecimento oficioso do tribunal.
32 - Erro notório, que deve se entendido como aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade, que é patente. Verifica-se erro notório quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que normalmente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, tudo por forma susceptível de ser alcançada pelo cidadão comum minimamente prevenido ou, ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto, positivo ou negativo, contido no texto da decisão recorrida. Ademais, 33 - não fundamentou devidamente o Meritíssimo Juiz o porquê de não ter dado credibilidade ao depoimento da testemunha E… gravado a 16:24:42 às 16:39:23 horas do dia 22/06/2018 , e até mesmo tenha referido que deste depoimento resulta , o que ouvido o depoimento não resulta , o que configura uma violação do art.º 374 n º 2 do C.P.P.
34 - No caso concreto, caindo aquela materialidade, dada como provada com base em erro notório na apreciação dos depoimentos dos agentes policiais gravados no habilus a 15:15:50 às 15:54:45 e 16:04:19 às 16:21:39 do dia 09/04/2018 e da testemunha E… gravado no habilus a 16:24:42 às 16:39:23 horas e nenhuma outra prova, tendo sido produzida, com virtualidade para demonstrar a verificação dos elementos do tipo legal do crime de contrabando de circulação , e está este Tribunal habilitado a decidir, concluindo, pela não verificação, dos elementos subjectivos e objectivos do crime pelo qual o Arguido foi condenado.
35 - Pois, com o merecido respeito veja-se que a fls. (- ) dos autos , juntos pelo DSAFA consta que o Arguido não é investigado por mais nenhum processo além dos presentes autos , o que descrebiliza o depoimento do capitão D…, gravado no habilus a 16:04:19 às 16:21:39 do dia 09/04/2018, pelo que a dúvida deveria ter funcionado a favor do Arguido, e não o foi, Assim,
36 - como já se disse , resulta claro que a douta sentença padece do vicio previsto no art º 410 n º 2 alínea a ) do C.P.P., já que , condena o Arguido suportando-se nos depoimentos contraditórios dos agentes policiais gravados no habilus a 15:15:50 às 15:54:45 e 16:04:19 às 16:21:39 do dia 09/04/2018 , o que é também claramente violador do principio da inocência previsto no art.º 32 da C.R.P.
37 - Assim, temos que afirmar o vício do erro notório na apreciação da prova, que não consente, fundada e razoavelmente, a afirmação dos factos integradores do elemento subjectivo, do crime de contrabando de circulação. Porquanto,
38 - com o devido respeito , mas , entende o Arguido que prestou declarações , consoante está gravado no habilus a 14:15:21 às 15:15:48 de forma clara e coerente , apresentado a sua versão dos factos, a qual ,aliás, foi corroborado pelas testemunhas de defesa F… e G… gravados no habilus a 16:21:41 às 16:29:05 horas e 16:29:06 às 16:36:21 horas do dia 09/04/2018 e até mesmo pela testemunha E…, cujo o depoimento está gravado a 16:24:42 às 16:39:23 horas do dia 22/06/2018 . Além do mais,
39 - veja-se que como consta da douta Sentença apenas podem ser qualificadas como crime de contrabando de circulação as condutas em que o valor da prestação tributária devida seja superior a 15.000,00€ , ou não havendo lugar a prestação tributária , a mercadoria objeto da infração seja de valor aduaneiro superior a 50.000,00€ , nos termos do art.º 93 n º 1 do RGIT. Isto para dizer que,
40 - para condenar o Arguido pela prática de um crime de contrabando de circulação , e não pela prática de uma contraordenação era necessário que a contagem da mercadoria apreendida tivesse sido objetiva , o que conforme resulta de fls. 25 e 26 do processo da Direção - Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo junto como apenso dos presentes autos não sucedeu . Pois,
41 - como é referido na informação da Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais a fls. 25 e 26 do apenso a estes autos , não existe informação do valor transacional do tabaco apreendido . Mais,
42 - não é conhecido o país de exportação do tabaco apreendido . Pelo exposto,
43 - verifica-se que a contagem do tabaco / determinação do valor da mercadoria apreendida não foi feita com base em critérios objetivos , dado que o valor de cada maço de tabaco apreendido foi calculado por referência ao valor de cada maço tabaco idêntico . Ora,
44 - “tabaco idêntico“ significa tabaco análogo , ou seja , o significado de “ análogo “ é similar , semelhante . Assim,
45 - tendo o valor da contagem da mercadoria sido feita com base em “ tabaco idêntico “ , tal significa que o valor de 16.569,69 € que lhe foi atribuído não é objetivo. Porquanto, 46 - não correspondendo o valor de cada maço de tabaco que esteve na origem da contagem da mercadoria apreendida ao valor de cada maço de tabaco apreendido , não podia o Meritíssimo Juiz dar como provado o ponto 8 da matéria de facto provada , e ão devia ter condenado o Arguido na prática de um crime de contrabando de circulação , mas , antes considerado que este praticou uma contraordenação , como , aliás , ocorreu no inicio dos presentes autos . Pois , 47 - é corolário do princípio in dúbio pro reo o princípio da certeza jurídica , isto é , o princípio in dúbio pro reo é um princípio fundamental no nosso Processo Penal, que decorre da presunção constitucional de inocência e consiste em: na dúvida sobre os factos a provar, o tribunal decide em favor do arguido (absolvição, não agravação, atenuação, etc.). Mais,
48 - O princípio «in dubio pro reo é um princípio geral do processo penal, pelo que a sua violação conforma uma autêntica questão-de-direito que cabe, como tal, na cognição do STJ. Nem contra isto está o facto de dever ser considerado como princípio de prova: mesmo que assente na lógica e na experiência (e por isso mesmo), conforma ele um daqueles princípios que (…) devem ter a sua revisibilidade assegurada, mesmo perante o entendimento mais estrito e ultrapassado do que seja uma «questão-de-direito» para efeito do recurso de revista» – Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.ª ed. (1974), Reimpressão, Coimbra Editora, 2004, págs. 217-218; cf., ainda, Cristina Líbano Monteiro, In Dubio Pro Reo, Coimbra, 1997, e Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 437. Isto é,
49 - O princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa, assim , não tendo a contagem da mercadoria apreendido se suportado em critérios objetivos , mas , foi obtido por aproximação , impunha-se na dúvida quanto ao valor da mercadoria , ao Meritíssimo Juiz aplicar a lei em favor do Arguido , e absolve-lo da prática do crime de contrabando de circulação e condenado na prática de uma contraordenação, não o tendo feito verifica-se uma clara violação do princípio in dúbio pro reo , por ter procedido a uma errada apreciação da prova produzida.
50 - A consequência será o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretas, se não for possível decidir da causa, artigo 426º/1 C P Penal.
51 - É claro e evidente que a decisão ora recorrida viola de forma clara o Princípio in dúbio pró reo constitucionalmente consagrado , porquanto , impõe tal principio que não se condene qualquer cidadão quando da prova produzida em Audiência de Julgamento resulte a séria dúvida de que tenha praticado o crime de que é acusado . Ora,
52 - como já se disse , para condenar o Arguido suportou-se o Meritíssimo Juiz unicamente nas declarações das testemunhas C… e D… no habilus das 15:15:50 às 15:54:45 horas do dia 09/04/2018 e no habilus das 15:15:50 às 15:54:45 horas do dia 09/04/2018 e no facto da viatura que transportava a mercadoria apreendida era da propriedade do Arguido , o qual a conduzia . Pois, 53 - no caso vertente, o Tribunal “a quo” optou por se suportar numa versão dos factos interessada , prestada unicamente pelas testemunhas C… e D… no habilus das 15:15:50 às 15:54:45 horas do dia 09/04/2018 e no habilus das 15:15:50 às 15:54:45 horas do dia 09/04/2018, não valorando o depoimento , ou melhor apreciando de forma errada o depoimento da testemunha E… gravado a 16:24:42 às 16:43:09 horas do dia 22/06/2018 , pelo que assim entendemos que a decisão proferida está em clara violação com o principio in dúbio pró reo . Pois , veja-se que,
“ a lei impõe, pois, como critério e base essencial da fundamentação da decisão em matéria de facto, o «exame crítico das provas». “ O "exame crítico" das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular - a fundamentação em matéria de facto - , mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de "exame crítico" apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito. “. É que,
54 - a obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e do seu exame crítico, destina-se, a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência.
55 - Exige-se assim que - em caso de condenação - o tribunal explicite as razões que o levaram a convencer-se de que o arguido praticou os factos que deu como provados ou - em caso de absolvição -, os motivos pelos quais, não obstante a produção de prova, não conseguiu apurar factos suficientes para imputar ao arguido o ilícito de que vinha acusado.
56 - Como se salienta no Ac. do Tribunal Constitucional nº 573/98[12] a decisão, sobre a matéria de facto tem de «estar substancialmente fundamentada ou motivada - não através de uma mera indicação ou arrolamento dos meios probatórios, mas de uma verdadeira reconstituição e análise crítica do iter que conduziu a considerar cada facto como provado ou não provado»."
57 - Ora, na situação em apreço, das provas produzidas, segundo as regras da experiência comum, deveriam ditar outro factualismo apurado, que mais não fosse em obediência ao princípio in dubio pro reo, e dessa forma deveria o Arguido ter sido absolvido. Pois, veja-se que,
58 - é entendimento que “ o sistema de livre apreciação da prova consagrado no art.º 127 do C.P.P. (por contraposição ao sistema de prova legal) manifesta-se sob dois prismas: - de um lado, o juiz há-de decidir de acordo com a sua íntima convicção, formada do dinâmico confronto das provas arroladas pela acusação e pela defesa e daquelas que, ele próprio e oficiosamente, entender por bem produzir e conhecer; - de outro, tal convicção há-de ser formada com base em regras técnicas e de experiência (e bom senso) comum sem, contudo, qualquer sujeição a critérios de valoração de cada um dos meios probatórios, legalmente pré-determinados.
59 - Porém, esta liberdade de apreciação que o Julgador tem, não se confunde com arbitrariedade, sendo que, o juiz não pode ignorar os depoimentos produzidos em audiência ou a prova documental existente e decidir como lhe aprouver, de forma imotivada, como entendemos, com o devido respeito, que foi o ocorreu in casu .Por outro lado,
60 - como acima exposto , valorou , também o Meritíssimo Juiz erradamente o valor da mercadoria apreendida , já que tendo sido a sua contagem feita com o recurso a métodos indiretos , porquanto , o seu valor foi calculado com base no valor de maço de tabaco idênticos , ao considerar provado que o seu valor é de 16.569,69€ , procedeu a uma apreciação errada da prova produzida .
61 - Lembremo-nos ora que nos termos do artº 412º, nº 3, als. a) e b) do CPP, quando o Recorrente impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, deve especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as provas que impõem decisão diversa da recorrida. Assim,
62 - julgou mal o Tribunal da 1 ª Instância os pontos 1, 2, 3, 4, 7, 9 e 10 dos factos provados , já que da conjugação dos depoimentos das testemunhas C… e D… no habilus das 15:15:50 às 15:54:45 horas do dia 09/04/2018 e no habilus das 15:15:50 às 15:54:45 horas do dia 09/04/2018 com os docs. juntos pela DSAFA a 12/06/2018 com o depoimento da testemunha E… gravado no habilus a 16:40:42 às 16:39:23 horas do dia 22/06/2018 . Por outro lado,
63 - como resulta de fls. 25 e 26 do processo apenso da Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o consumo foi mal julgado o ponto 8 da matéria de facto dada como provada . Ora,
64 - as provas produzidas imponham decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido, entendendo que se decidiu ao arrepio e contra a prova produzida , além de que o tribunal valorou a prova produzida contra as regras da experiência. 65 - Ademais, sempre prescindir , veja-se que há quem entenda que atento a livre circulação imposta pelo mercado da comunidade europeia o crime de contrabando de circulação é hoje um crime obsoleto. Pois,
66 - o crime de contrabando de circulação era um crime que radicava na presunção de que as mercadorias suscetíveis de se constituírem seu objeto não tinham sido submetidas às competentes formalidades de despacho, presunção esta ilidível pelo agente, não sendo um crime de contrabando puro, mas , um crime cuja moldura penal era a mesma do crime de contrabando de importação ou exportação, na medida em que podiam constituir-se como seu objecto tanto mercadorias nacionais como estrangeiras . Ou seja,
67 - as mercadorias que se podiam constituir o objecto do crime de contrabando de circulação eram mercadorias cuja circulação para efeitos aduaneiros não era livre no interior do país . Porém,
68 - o princípio da livre circulação de mercadorias , sob o ponto de vista aduaneiro encontra-se hoje consagrado no Tratado da União Europeia, como princípio básico em que radica a União Europeia, não se lhe podendo opor normas nacionais , como, por exemplo, as Portarias nº 9/80, de 05/01, o DL nº 21/90, de 16/01 e o DL nº 35/91, de 18/01 que impõem restrições a essa circulação. Assim,
69 - há quem defenda que por aplicação do princípio do primado do direito comunitário, estando por isso tacitamente revogados os artigos 691º a 694º do Regulamento das Alfândegas e o universo da legislação aduaneira encontra-se definido pelo artº 1º do CAC, dele não constando nenhuma norma que elenque mercadorias e as submeta a condicionalismos de circulação de natureza aduaneira no interior do território aduaneiro da UE. Pelo que,
70 - há quem defenda que “ admitindo por hipótese académica que era possível a imposição desse tipo de condicionalismos a nível nacional, uma mercadoria dessa natureza proveniente do território de um qualquer Estado-Membro seria susceptível de se constituir como objecto do crime de contrabando de circulação logo que entrasse em território nacional, no caso de não se fazerem acompanhar dos documentos ou sinais prescritos por essa mesma legislação, no que constituiria uma limitação à sua circulação, contrária aos Tratados; - a norma do artigo 93º do RGIT, que tipifica o crime de contrabando de circulação é hoje uma norma obsoleta por se radicar em princípios outrora estabelecidos por legislação nacional que se encontra tacitamente revogada como consequência da nova realidade derivada da adesão plena de Portugal à União Europeia, sendo também uma norma inútil, por falta de objecto.” Isto para dizer que,
71 - além da mercadoria apreendida não ser da propriedade do Arguido B…, também atento o entendimento supra exposto , ainda que o fosse , o que só se coloca por mera hipótese académica , tal conduta poderá não ser considerado crime , já que o art.º 93 do RIGT viola as normas comunitárias de livre circulação de mercadorias . Além do mais, 72 - desde já cumpre referir que não se entende que o valor da mercadoria apreendida na viatura conduzida pelo Arguido B… causou um prejuízo para o Estado no montante de cerca de 16.569,69€ , já que aquando a detenção houve sérias dúvidas que o valor da mercadoria ultrapasse o montante de 15.000,00€ .Daí que, 73 - salvo o devido respeito , no caso do Arguido B… nunca lhe poderia ser imputada a prática do crime de contrabando de circulação p. e p. pelo art .º 93 n.º 1 da Lei n º 15/2001 de 05/06 , porquanto a mercadoria em causa não tem valor superior a 15.000,00€. Assim sendo, 74 - desde já deve ser considerado não preenchidos os requisitos legais do citado artigo 93 n º 1 do RGIT, porquanto , como consta mesmo de fls. 25 e 26 do apenso junto aos autos , onde a Direção Geral de Alfândega e dos Impostos Especiais sobre o consumo refere “No caso de apurar que o tabaco apreendido é de origem nacional ou comunitária não são devidos direitos aduaneiros “. Ora, 75 - como consta daquela informação não foi possível apurar qual o país de origem do tabaco apreendido , daí que , não se sabendo a origem da mercadoria apreendida não podia o Meritíssimo Juiz ter entendido que a mesma não era de origem nacional ou comunitária, ao fazê-lo procedeu a errada apreciação da prova . Por outro lado, 76 - resulta que o Arguido vem acusado da prática de um crime de contrabando de circulação p. e p pelos arts. º 93 n º 1 do RGIT, por referência aos artigos 4, 5, 7, 8, 9, 35, 36, 46, 101, 108, 109, 110 e 111 Código dos Impostos Especiais de Consumo, aprovado pelo D.L 73/10 de 21/06 conjugado com a Portaria n º 1295/07de 01/10 sem que seja indicado um único elemento de prova concreto que demonstre que ele introduziu ou comercializou tabaco que não foi manifestado junto das entidades devidas .Na verdade,
77 - para se imputar a prática de tal crime ao Arguido era necessário que das diligências de prova efetuadas nos autos resultasse que foi presenciado o Arguido a introduzir ou comercializar mercadorias que não estejam em conformidade com as leis aduaneiras , o que não foi.
78 - Nesta conformidade, o Tribunal a quo andou mal ao condenar o Arguido, já que não fez uma correcta interpretação e aplicação das disposições legais contidas nos artigos 129 , e 377 todos do C.P.P. , art.º 93 n º 1 do RGIT e do Tratado da União Europeia.»
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O Ministério Público respondeu ao recurso do arguido, defendendo que o mesmo deve ser julgado totalmente improcedente.
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Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer onde acolheu a posição do Ministério Público na resposta ao recurso, pugnando igualmente pela respectiva improcedência.
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É do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados, motivação e qualificação jurídica constantes da decisão recorrida (transcrição):
«FACTOS PROVADOS
1.- No dia 19 de Março de 2012, pelas 23h00, na Rua …, em …, concelho de Gondomar, o arguido B… detinha e transportava no veículo de matrícula .. - .. - PM, de sua propriedade, dez caixas de cartão que continham no seu interior cinquenta volumes de tabaco manufacturado, em invólucros/embalagens apropriados, sendo que cada volume de tabaco continha dez maços de cigarros que por sua vez continham vinte cigarros, num total de 100.000 cigarros, ostentando tais invólucros/embalagens a marca “305´s”, as quais foram apreendidas.
2.- A marca 305´s, diz respeito a produtos de tabaco e é propriedade da empresa “H…”, com sede em …, Florida, nos Estados Unidos da américa, tendo como legal representante a “I…”, com sede em …, Espanha.
3.- Tais invólucros/embalagens não tinham qualquer tipo de estampilha fiscal comprovativa de legal introdução dos cigarros no consumo nacional e não tinham os dizeres legais obrigatórios relativos aos malefícios para a saúde na língua portuguesa, nem a identificação do fabricante e o respectivo preço.
4.- O arguido não trazia consigo qualquer documento de acompanhamento ou qualquer outro documento comercial, nomeadamente factura ou guia de remessa, ou qualquer outro documento justificativo da legal produção, aquisição, circulação, detenção e introdução no consumo dos respectivos volumes de tabaco ou qualquer outro documento comprovativo de pagamento do respectivo imposto especial de consumo em território nacional, que se verificou não ter sido pago.
5.- As estampilhas especiais para tabaco (selos) são emitidas pela Imprensa Nacional da Casa da Moeda, discriminadas por classes de preços, consoante o produto em causa, a solicitação dos agentes económicos importadores e com base em requisição previamente visada pela autoridade aduaneira.
6.- A aposição de tal estampilha comprova o pagamento dos direitos aduaneiros, à entrada do produto no país, e é legalmente obrigatória a sua aposição nas embalagens de venda ao público de tabaco manufacturado para consumo no território nacional antes da sua introdução no consumo, de modo a não permitir a sua reutilização.
7.- Assim, sobre o tabaco apreendido incidia o valor de €16.569,69 (dezasseis mil e quinhentos e sessenta e nove euros e sessenta e nove cêntimos) a título de prestação tributária, que não foi paga, correspondendo cada maço de tabaco ao preço de venda ao público de €3,70, conforme tudo consta da contagem fiscal de fls. 25-27.
8.- O arguido sabia a natureza supra descrita da mercadoria que detinha e transportava e que não podia naquelas circunstâncias deter e circular ou transportar o mencionado tabaco que não havia sido manifestado/declarado junto das entidades de controlo/instâncias aduaneiras competentes e não havia sido sujeito às imposições tributárias devidas, no valor de €16.569,69, com a aposição da devida estampilha fiscal, e que não continha os dizeres legais obrigatórios relativos aos malefícios para a saúde na língua portuguesa, nem a identificação do fabricante e o respectivo preço, sabendo ainda que não a podia transportar sem os competentes documentos de transporte.
9.- Ainda assim o arguido quis agir da forma descrita, o que fez, causando um prejuízo ao Estado correspondente ao valor da prestação tributária não paga, apurada no valor de €16.569,69.
10.- O arguido agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e penalmente punível e, por isso, censurável.
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11.- O arguido não possui antecedentes criminais registados no atual certificado junto aos autos, cujo teor aqui se reproduz; mas teve já um outro processo penal por crime de contrabando de circulação de tabaco, por factos de 2010, no qual beneficiou da suspensão provisória em 2015, com injunções, que foram cumpridas, e sendo o citado processo entretanto arquivado em 2016, tal como se extrai de fls. 448 e de fls. 452-779.
12.- O arguido é casado, já explorou um café, o que sucedia na altura dos factos, é empresário do ramo dos produtos alimentares, declarando auferir cerca de € 864,00 mensais; a mulher é administrativa e ganha cerca de €600/700,00 mensais; vivendo em casa própria, adquirida com recurso ao crédito bancário, sendo a prestação de cerca de €300,00 mensais; como habilitações literárias tem licenciatura; tem dois filhos menores a cargo.
FACTOS NÃO PROVADOS
1.- O arguido foi abordado pela entidade policial e fiscalizado no Porto.
Não resultaram ‘não provados’ quaisquer outros factos com relevância para a causa.
MOTIVAÇÃO DE FACTO
Como se sabe, vigora entre nós o princípio da livre apreciação da prova, incluindo da prova testemunhal - cfr. o art. 127.º do CPP.
Este princípio significa que o tribunal deve julgar segundo a sua consciência e segundo a convicção que formou, face às provas produzidas e tendo em conta a perceção direta que a imediação, o contraditório e a oralidade conferem.
Todos estes elementos constituem um acervo de informação verbal e não verbal rica, imprescindível e incindível para a apreciação e valoração (racional e crítica) da prova produzida, de forma a permitir a sua motivação e controlo.
Tendo em atenção tudo o que ficou dito, no seu critério de livre apreciação o tribunal pode mesmo considerar provado um facto afirmado no depoimento de uma única testemunha, embora perante ele tenham deposto, em sentido contrário, várias testemunhas.
Por outro lado, um depoimento prestado, sujeito à crítica do juiz, pode ser considerado todo verdadeiro ou todo falso, mas podem, também, ser aceites como verdadeiras certas partes, negando-se crédito a outras - cfr. ENRICO ALTAVILLA, Psicologia Judiciária, vol. II, Coimbra, 3.ª ed., p. 12; bem como sobre esta temática, entre muitos outros, Fernando Pereira Rodrigues, in A Prova Em Direito Civil, Coimbra Editora, 2011; Rosa Vieira Neves, in A Livre Apreciação da Prova e a Obrigação de Fundamentação da Convicção, Coimbra Editora, 2011; Luís Filipe Pires de Sousa, in Prova Testemunhal, Almedina, 2013; Luís Filipe Pires de Sousa, in Prova Por Presunção no Direito Civil, Almedina, 2013; os estudos de Luís Filipe Pires de Sousa e Alberto Augusto Vicente Ruço, in Julgar, Número Especial, Coimbra Editora, 2014; Helena Cabrita, in A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra Editora, 2015; Patrícia Silva Pereira, in Prova Indiciária no âmbito do Processo Penal, Almedina, 2016; Alberto Augusto Vicente Ruço, in Prova e Formação da Convicção do Juiz, Almedina-CJ, 2016; e Cláudia Sofia Alves Trindade, in A Prova de Estados Subjetivos no Processo Civil, Almedina, 2016.
Como também vem sendo entendido, na busca pela verdade material, mais do que a verdade ontológica ou absoluta, procura-se antes obter a verdade possível dos factos passados, a verdade judicial, prática e processualmente válida, baseada na avaliação e no julgamento sobre factos, de acordo com os procedimentos, os princípios e as regras estabelecidos.
Para a prova dos factos submetidos a julgamento pode recorrer-se à prova direta, quer à prova indireta/indiciária, sendo ambas perfeitamente válidas e legítimas para a aquisição de factos no processo (cfr., entre outros, o art.º 125.º do CPP, bem como o art.º 349.º do Cód. Civil).
Como também se sabe, a existência em todos os processos de uma prova linear e sem contradições é uma utopia, mas, apesar de tal situação, o julgador não fica impedido de formar a sua convicção, mesmo quando possam existir eventuais contradições de prova, desde que tal convicção seja motivada e objetivada.
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A convicção do tribunal fundou-se na apreciação conjunta e combinada de toda a prova produzida em audiência de julgamento e constante dos autos.
Na decisão relativa aos fundamentos de facto foram apreciados os depoimentos das testemunhas/elementos da GNR inquiridos.
As testemunhas C… e D…, elementos da GNR (o autuante e o seu colega), confirmaram o teor do auto de notícia elaborado, esclarecendo como procederam à abordagem ao arguido e à apreensão da mercadoria e à identificação do aqui arguido.
Esclareceram como foi encontrada e apreendida a mercadoria ao arguido.
Depuseram de forma muito coerente, séria e convincente, atenta a razão de ciência e o teor de tais depoimentos, recordando o episódio aqui em causa, sem contradições e imprecisões de grande relevo e sem qualquer motivo sério e relevante para efetivas dúvidas, designadamente, sem qualquer dúvida que o autor dos factos presenciados e aqui imputados era o ora arguido.
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O Arguido prestou declarações sobre os factos e confirmou as suas condições de vida.
Negou uma parte dos factos ilícitos imputados, afirmando que não sabia o que transportava no seu veículo e que o responsável pelo transporte da mercadoria era a pessoa/passageiro que o acompanhava (o outro anterior arguido e agora testemunha E…).
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Foi também tido em conta o depoimento das duas testemunhas arroladas pelo arguido e inquiridas em audiência, seus amigos.
As citadas testemunhas de defesa não presenciaram e desconheciam os factos imputados na acusação.
Relataram sobre um alegado pedido de transporte feito ao ora arguido pelo E…, desconhecendo outros pormenores de tal alegado transporte.
Os seus depoimentos não foram esclarecedores nem foram totalmente credíveis e imparciais, designadamente face ao seu teor, à relação de amizade e de grande proximidade com o arguido e ao testemunho seguro e convincente das 2 testemunhas de acusação, bem como ao teor do auto de notícia, em conjugação com as regras da experiência comum, da normalidade e da lógica.
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Por iniciativa do tribunal, foi também inquirido como testemunha o anterior arguido E…, o qual acompanhava o arguido como passageiro do veículo aquando da fiscalização policial, e quanto ao qual o MP arquivou este processo, como consta do despacho de fls. 780-785.
Tal testemunha veio dizer que só foi fazer companhia ao arguido e que não sabia o que era transportado no veículo do arguido, afirmando ainda que não era o dono nem responsável por tal transporte nem pela mercadoria transportada.
Depôs de forma coerente, mas não foi totalmente esclarecedor e credível.
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Foram também tomados em consideração os documentos e certificados vertidos nos autos, designadamente todos os documentos referidos na acusação, bem como os documentos juntos no decurso do julgamento, incluindo o auto de notícia, o auto de apreensão, as informações fiscais, as certidões judiciais, o relatório final, o registo das suspensões provisórias e o CRC.
O lapso quanto ao local da abordagem policial foi retificado de acordo com as declarações do arguido e os depoimentos das testemunhas de acusação.
A prova do elemento subjetivo do tipo resultou dos factos objetivos provados, do contexto de toda a atuação do arguido e suas declarações, em conjugação com os acima citados documentos e os depoimentos das testemunhas de acusação, bem como as regras da experiência comum, da normalidade e da lógica.
É do conhecimento geral e também dos comerciantes/industriais e operadores económicos que o transporte de mercadorias em veículos só pode ser feito com a necessária habilitação e documentação de suporte, o que constitui uma grande preocupação para as empresas e empresários que se dedicam a tais atividades.
Também não pode ser esquecido que o arguido revelou ser uma pessoa com muita e relevante experiência de vida, em várias áreas de negócio, tendo empresas e gerindo empresas e negócios há muitos anos, com obrigação de conhecer as regras da atividade comercial exercida e das inerentes obrigações fiscais e de contabilidade, sendo tal atividade efetivamente exercida, de forma organizada e já há muitos anos, gerando e envolvendo quantias substanciais de dinheiro.
Também não pode ser esquecido que o contrabando de mercadorias, em especial o contrabando de tabaco, é facilmente cometido e movimenta quantias substanciais de dinheiro, gerando elevados proveitos, o que é conhecido pela generalidade das pessoas, e em especial pelos comerciantes e industriais do setor, incluindo o arguido, o qual foi já visado em anterior processo penal por crime relativo a contrabando de tabaco.
A quantidade, a natureza, o valor e o estado da mercadoria apreendida ao arguido, em plena via pública, de noite e a ser transportada no seu veículo, a falta de documentação do transporte e da mercadoria transportada, a profissão, as atividades desenvolvidas e as habilitações e experiência do arguido, permitem também concluir por uma situação de contrabando doloso por parte do arguido.
A versão do arguido na parte em que negou os factos a si imputados e que foram dados como provados não se nos afigurou credível nem lógica, atento o seu teor e as circunstâncias concretas deste caso. Tal versão também não foi corroborada de forma relevante, isenta e suficiente por qualquer outro meio de prova, como acima indicado, tendo antes sido contrariada pelo testemunho seguro e coerente das testemunhas arroladas na acusação, além do depoimento da testemunha E…, bem como pelo teor do auto de notícia, em conjugação com as regras da experiência comum, da normalidade e da lógica.
Não foi feita prova bastante, segura e imparcial sobre os factos alegados pelo arguido (que não se provaram), provando-se antes outra versão, conforme acima indicado.
Perante toda a prova produzida e o acima exposto, extrai-se que o arguido praticou os factos aqui imputados nos termos em que foram dados por provados, inexistindo qualquer dúvida relevante a tal respeito, ficando afastado o princípio da presunção de inocência e o in dubio pro reo.
Em suma, face ao objeto do processo e à prova produzida, devidamente analisada e conjugada, e considerando as circunstâncias concretas deste caso, bem como as regras da lógica, da normalidade, da ciência e da experiência comum, cremos que outra não pode ser a decisão sobre a matéria de facto.
SUBSUNÇÃO DOS FACTOS AO DIREITO.
A comissão de um crime de contrabando de circulação - art. 93.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias - RGIT, aprovado pela lei n.º 15/2001, de 5 de Junho de 2001.
Vem o arguido acusado da prática do crime previsto e punido pelo art. 93.º, n.º 1, do RGIT.
Pratica tal crime – na modalidade simples – quem, por qualquer meio, colocar ou detiver em circulação, no interior do território nacional, mercadorias em violação das leis aduaneiras relativas à circulação interna ou comunitária de mercadorias, sem o processamento das competentes guias ou outros documentos legalmente exigíveis ou sem a aplicação de selos, marcas ou outros sinais legalmente prescritos, quando o valor da prestação tributária em falta for superior a €15.000,00, ou, não havendo lugar a prestação tributária, a mercadoria objeto da infração for de valor aduaneiro superior a €50.000,00, ou ainda, quando inferiores a estes valores e com a intenção de os iludir, as condutas que lhe estão associadas sejam praticadas de forma organizada ou assumam dimensão internacional.
Como vem sendo entendido, no crime de contrabando de circulação tutela-se o interesse público do Estado no funcionamento do sistema tributário e, reflexamente, os interesses patrimoniais do Estado; exigindo-se que as mercadorias estejam em circulação (cfr., sobre esta temática, entre outros, o estudo dos Drs. Carlos Teixeira e Sofia Gaspar, publicado no Comentário das LPE, volume 2, UCE, 2011, em especial p. 428-430).
Apenas podem ser qualificadas como crime de contrabando de circulação as condutas em que o valor da prestação tributária devida seja superior a €15.000,00, ou não havendo lugar a prestação tributária, a mercadoria objeto da infração seja de valor aduaneiro superior a €50.000,00, nos termos do art.º 93.º, n.º 1, do RGIT.
Exige-se, por outro lado, nos termos dos arts. 2.º, n.º 1, e 3.º do citado RGIT e dos arts. 13.º e 14.º do Cód. Penal, que o agente do crime tenha atuado com dolo, não sendo punida a negligência, que apenas poderá ter relevo para efeito de contraordenação.
Tal norma e o citado crime aduaneiro ainda se mantêm validamente em vigor na ordem jurídica nacional, pois ainda não foram revogados, de forma tácita ou expressa, nem se tornou inútil ou obsoleto, sendo certo que o legislador ainda há pouco tempo alterou tal norma, conforme se extrai da Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, bem como da Lei n.º 82-B/2014, de 31/12, em conjugação com a demais legislação indicada na acusação (cfr. também os autores e obra acima citados), e o previsto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, aprovado pelo DL n.º 73/2010, de 21/06.
Vejamos agora a responsabilidade aqui imputada ao arguido.
No caso sub judice, resulta dos factos provados que o arguido colocou e detinha mercadorias/tabaco em circulação, em território nacional, em violação das respetivas regras de circulação, sem guias/documentos, sem ser manifestado/declarado e sem a estampilha fiscal, e sem pagar a prestação tributária devida, que era superior a €15.000,00.
Estes factos preenchem, pois, o elemento objetivo do tipo-de-ilícito em causa.
Por outro lado, atuou com o dolo exigido pelo tipo, já que, conforme resulta dos factos provados, agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Como vem sendo entendido, as dificuldades económicas das pessoas ou das empresas ou até a impossibilidade de cumprimento da prestação tributária não servem de causa de justificação ou de exclusão da culpa.
Conforme resulta do acima exposto, no presente caso não se verifica qualquer causa de exclusão da ilicitude e/ou da culpa.
Assim, é de concluir que o arguido cometeu o citado crime de contrabando de circulação, sendo responsável por tal crime nos termos acima expostos.
A escolha da pena - art. 70.º do Código Penal.
Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal deve dar preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição - cfr. o art. 70.º do Cód. Penal. Estas finalidades são, como se determina no art. 40.º, n.º 1, do Cód. Penal, a proteção de bens jurídicos e a reintegração da agente na sociedade.
Ora, nos termos do citado art.º 93.º, n.º 1, do RGIT, o crime de contrabando de circulação, na modalidade simples, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 360 dias.
Cumpre, pois, determinar qual o tipo de pena a ser aplicada.
No meu entender, apesar da natureza do bem jurídico protegido pelo tipo, atendendo a que o arguido não tem anteriores condenações penais e olhando ao valor da prestação tributária devida, a pena de multa, por ora, mostra-se idónea a satisfazer de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pelo que será aqui aplicada tal pena.
A medida da pena - art. 71.º do Código Penal.
Analisando o caso sub judice à luz das circunstâncias elencadas no art. 71.º do Cód. Penal, pode referir-se que o arguido se encontra integrado no meio sócio-familiar e profissional em que vive e trabalha.
O arguido não tem antecedentes criminais registados, mas já teve uma anterior suspensão provisória noutro processo penal, já arquivado.
A prestação tributária devida situava-se junto ao mínimo legal para efeitos do crime aqui imputado.
O seu dolo foi direto, com as consequências já acima referidas, estando aqui em causa factos reportados ao ano fiscal de 2012.
Existem algumas necessidades de prevenção geral deste tipo de condutas, atenta a frequência com que são praticadas, designadamente nesta comarca, como resulta das estatísticas oficiais, designadamente, dos vários relatórios fiscais e dos Relatórios Anuais em matéria de Segurança Interna publicados no site do MAI.
Importa salvaguardar o interesse nacional de combate à fraude e à evasão fiscal, garantindo-se o cumprimento do dever de cidadania que impõe que cada contribuinte (particular ou empresa) pague todos os impostos e contribuições que são devidos nos termos legais, e sempre para se obter mais e melhor transparência, igualdade e justiça no sistema fiscal.
Importa salvaguardar a crença da comunidade na validade da norma violada.
Pelo exposto, entendo ser ajustada a aplicação ao arguido de uma pena situada abaixo da média entre o mínimo e o máximo legais, ficando suficientemente afastada do mínimo legal para fazer sentir ao mesmo o grau de censura penal que a sua conduta deve merecer, isto é, uma pena de 90 dias de multa.
Atendendo aos rendimentos e às despesas conhecidas do arguido, idade, ocupação, habilitações e critérios de normalidade - cfr. o art. 47.º, n.º 2, do Cód. Penal, bem como o disposto no art. 15.º, n.º 1, do RGIT (de €1 a €500) -, fixo o montante diário da multa devida em €8,00 (oito euros), pelo que o quantitativo total da multa a ser paga é de €720,00 (setecentos e vinte euros).»
* II. Apreciando e decidindo: Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
As questões que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:
- a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, embora lhe chame “insuficiência da prova produzida para condenar o arguido” (art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPPenal);
- o erro notório na apreciação da prova (art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPPenal);
- o erro de julgamento na apreciação da prova quanto à fixação dos pontos 1, 2, 3, 4, 7, 8, 9 e 10 da matéria de facto provada, aqui se incluindo a violação do princípio in dubio pro reo;
- a qualificação jurídica dos factos, suscitando a dúvida quanto ao valor da mercadoria e a natureza obsoleta da norma que pune o contrabando de circulação face às regras comunitárias de livre circulação de mercadorias.
*
Vejamos.
Inicia o recorrente a sua motivação imputando à decisão recorrida os vícios da “insuficiência da prova produzida para condenar o arguido” e do erro notório na apreciação da prova, com previsão no art. 410.º, n.º 2, do CPPenal.
Numa primeira abordagem pareceria que estava a invocar vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPPenal, a cuja norma expressamente apela.
Todavia, ao longo do seu recurso não concretiza ou desenvolve essa alegação.
É jurisprudência pacífica a que considera que os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPPenal são defeitos que têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, sem apoio em quaisquer elementos externos à mesma, salvo a sua interpretação à luz das regras da experiência comum. São falhas que hão-de resultar da própria leitura da decisão e que são detectáveis pelo cidadão médio, devendo ser patentes, evidentes, imediatamente perceptíveis à leitura da decisão, revelando juízos ilógicos ou contraditórios.
Ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada «quando a decisão de direito não encontre na mesma matéria uma base tal que suporte um raciocínio lógico subsuntivo que permita a conclusão.»[2]
Concretizando:
«III - O vício da al. a) do n.º 2 do art. 410.º do CPP - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada - reside em se não terem considerado provados factos, imprescindíveis para se poderem ter por preenchidos todos os elementos do tipo legal de crime, ou para se considerarem verificados outros factores que moldaram a condenação. Sublinhe-se, que moldaram a condenação, e não, que deviam ter moldado a condenação. Este vício surge quando teria sido preciso que se tivessem dado por provados outros factos para que a condenação tivesse surgido como surgiu.
IV - O vício em questão manifesta-se perante a decisão que foi proferida e não perante uma decisão que o arguido gostaria de ter visto ser proferida. A insuficiência da matéria de facto provada é aferida perante a decisão que foi realmente proferida.»[3]
E quanto ao vício do erro notório da apreciação da prova, sintetiza-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-06-2018[4], que:
«O vício da al. c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP – erro notório na apreciação da prova – tem que decorrer da decisão recorrida ela mesma. Por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum. Mas tem também que ser um erro patente, evidente, perceptível por um qualquer cidadão médio. E não configura um erro claro e patente um entendimento que possa traduzir-se numa leitura que se mostre possível, aceitável, ou razoável da prova produzida.»
No mesmo sentido, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-03-2016 [5], em cujo sumário se firmou a posição de que:
«VIII - O vício de erro notório na apreciação da prova, tem que resultar do texto da decisão recorrida, sem se usar elementos externos à própria decisão – mormente confrontar fotografias, documentos particulares ou declarações de arguido e testemunhas que constem do processo - a não ser factos contraditados por documentos que façam prova plena – documentos autênticos (art. 169.º, do CPP e art. 363.º, n.º 2, do CC).
IX - A versão dos factos acolhida pelo Tribunal da Relação mostra-se compatível com as regras da experiência comum, pois não se vislumbra que a dinâmica do acidente retratada pelo acórdão recorrido não corresponda a algo que, de facto, não possa ter ocorrido ou, dito por outras palavras, que, na perspectiva do padrão do denominado homem comum ou homem médio, surja como um evento inacreditável, inverosímil, completamente desconforme com a realidade da vida.»
Ora, compulsado o texto da decisão recorrida e vista a matéria de facto provada e não provada e respectiva motivação, bem como a decisão de direito que se baseou nesses elementos, há que concluir que a decisão proferida encontra ali suporte bastante e necessário, pois as conclusões de direito a que o Tribunal a quo chega estão suportadas pela matéria de facto provada fixada, e não é apreensível qualquer erro notório na apreciação da prova.
Em suma, da leitura da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não se detecta qualquer falha lógica evidente, qualquer interferência no percurso lógico do texto que seja patente à leitura pelo cidadão mediano e que leve a concluir pela existência que uma qualquer inconsistência ou incoerência lógica, ou mesmo uma contradição de raciocínio.
No fundo, a invocação destes conceitos que no recurso se faz está ligada à ideia de que ocorreu uma errada avaliação da prova e não a uma imputação de verdadeiros erros de lógica da decisão.
Na verdade, na motivação que o recorrente apresenta, não são quaisquer falhas de lógica nos termos configurados pelo art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPPenal que constem da decisão impugnada que o mesmo pretende suscitar perante o Tribunal da Relação. O que o recorrente pretende é substituir a valoração que o Tribunal a quo efectuou da prova produzida pela sua própria valoração.
E por toda a motivação do recurso perpassa esta ideia de que o recorrente não pretendia verdadeiramente invocar qualquer vício lógico da sentença, antes o erro de julgamento na avaliação da prova.
Ou seja, o recorrente não se centra na imputação de falhas lógicas – as previstas nas alíneas a) e c) do n.º 2 do art. 410.º do CPPenal – ao “texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum”, antes fundamenta a sua impugnação na apreciação de prova produzida no decurso da audiência de discussão e julgamento e cuja análise não é exequível sem o recurso a elementos externos à decisão, mormente a audição da gravação da prova.
Aliás, o recorrente concretiza a sua análise sempre por referência aos elementos de prova produzidos.
Mas ao atingirmos tal amplitude na análise a efectuar em sede de recurso já não estamos no âmbito mais limitado dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPPenal mas sim no da impugnação da matéria de facto por erro de julgamento na apreciação da prova, que o recorrente também invoca e será apreciado de seguida.
Mais uma vez, a jurisprudência é pacífica quando avalia este erro, frequente na invocação de vícios em caso de impugnação de decisões, concluindo de forma uniforme que:
«IV - A discordância entre o que o recorrente entende que deveria ter sido dado como provado e o que na realidade o foi pelo tribunal a quo, não se enquadra no vício de erro notório na apreciação da prova, tal como está na nossa lei estruturado, pelo que, se existe uma discordância, face aos elementos de prova apreciados, entre aquilo que foi dado como provado e aquilo que a recorrente entende não ter resultado da prova produzida - ou que devia ter ficado provado - já estamos no domínio da livre apreciação da prova e não no do erro notório na sua apreciação.
V - Não concretizando o recorrente qualquer incompatibilidade lógica que resulte do texto da decisão (factos provados e respectiva fundamentação), posicionando-se exclusivamente no campo da crítica pessoal quanto às conclusões fácticas a que chegou tanto o Tribunal Colectivo como o Tribunal da Relação após valoração das provas produzidas e percorrendo a motivação da formação da convicção quanto à factualidade dada como provada e não provada, não se vê que a versão factual vertida nos factos dados como provados a que chegou o tribunal a quo, que se mostra claramente fundamentada no seu percurso lógico-racional, se apresente como logicamente inaceitável, manifestamente errada, impossível de ter acontecido ou violadora das regras da experiência comum, forçoso é considerar que inexiste o vício notório na apreciação da prova.»[6]
Em face do exposto, e porque não se detecta que a decisão padeça de qualquer falha de lógico, impõe-se concluir pela improcedência do recurso quanto à invocação dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, als. a) e c) do CPPenal (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro na apreciação da prova).
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O que o recorrente verdadeiramente alega no seu recurso quando à matéria de facto é o erro de julgamento na apreciação da prova quanto aos pontos de facto provados 1, 2, 3, 4, 7, 8, 9 e 10, os quais, entende, deviam ter sido levados ao elenco dos factos não provados.
Ora, resulta do texto do art. 412.º, n.º 3, do CPPenal, não é uma qualquer divergência que pode levar o Tribunal ad quem a decidir pela alteração do julgado em sede de matéria de facto.
As provas que o recorrente invoque e a apreciação que sobre as mesmas faça recair, em confronto com as valoradas pelo Tribunal a quo, ou melhor, com a valoração que esse Tribunal efectuou, devem revelar que os factos foram incorrectamente julgados e que se impunha decisão diversa da recorrida em sede do elenco dos factos provados e não provados.
Ou seja, não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo Tribunal a quo. Na verdade, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações dos arguidos, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios.
Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo não só é vulgar como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto.
É necessário que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido à solução por si pugnada em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada e não à consignada pelo Tribunal.
E na análise da prova que apresenta na sua impugnação da matéria de facto (alargada) tem o recorrente de argumentar fazendo uso do mesmo raciocínio lógico e exame crítico que se impõe ao Tribunal na fundamentação das suas decisões, com respeito pelos princípios da imediação e da livre apreciação da prova.
Esta ideia sobressai do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-11-2017, onde se afirmou[7]:
«I - Há uma dimensão inalienável consubstanciada no princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º, do CPP. A partir de um raciocínio lógico feito com base na prova produzida afigura-se, de modo objectivável, ter por certo que o arguido praticou determinados factos. Exige-se não uma certeza absoluta mas apenas e só o grau de certeza que afaste a dúvida razoável, a dúvida suscitada por razões adequadas. O que há-de ser feito mediante uma «valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão e das máximas da experiência comum».
II - Percorrido este caminho na fundamentação, a impugnação dos factos há-de ser feita com a indicação das concretas provas que imponham decisão diversa da recorrida sob pena de tal impugnação redundar em mera discordância acerca da apreciação da prova desses mesmos factos, respeitável decerto, mas sem consequências de índole processual.»
E esta posição está igualmente associada à ideia – que é preciso não perder de vista – de que o reexame da matéria de facto não de destina a realizar um segundo julgamento pelo Tribunal da Relação, mas tão-somente a corrigir erros de julgamento em que possa ter incorrido a 1.ª Instância.
Neste sentido, que é pacífico, decidiu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-09-2017[8]:
«I - O reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso não constitui, salvo os casos de renovação da prova, uma nova ou uma suplementar audiência, de e para produção e apreciação de prova, sendo antes uma actividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento – art. 412.º, n.º 2, als. a) e b), do CPP.
II - O recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida.
III - O n.º 2 do art. 374.º do CPP, não é directamente aplicável às decisões proferidas, por via de recurso, pelos tribunais superiores, mas só por via de aplicação correspondente do art. 379.º (ex vi artigo 425.º, n.º 4), razão pela qual aquelas decisões não são elaboradas nos exactos termos previstos para as sentenças proferidas em 1.ª instância, uma vez que o seu objecto é a decisão recorrida e não directamente a apreciação da prova produzida na 1.ª instância, e que embora os Tribunais de Relação possam conhecer da matéria de facto, não havendo imediação das provas o tribunal de recurso não pode julgar nos mesmos termos em que o faz a 1.ª instância.
IV - Em matéria de reexame das provas, o tribunal de recurso apenas está obrigado a verificar se o tribunal recorrido valorou e apreciou correctamente aquelas, razão pela qual se entender que a valoração e apreciação feitas se mostram correctas se pode limitar a aderir ao exame crítico efectuado pelo tribunal recorrido.»
Contextualizado, de forma sumária, o quadro legal e jurisprudencial em que assenta o reexame da matéria de facto pelos Tribunais da Relação, passemos à análise em concreto da impugnação da matéria de facto apresentada pelo recorrente.
Procura o recorrente descredibilizar a prova que fundamentou o núcleo dos factos essenciais e que se baseou nos depoimentos dos militares da GNR que abordaram o arguido no âmbito de uma operação de fiscalização de estava em curso, visando, entre outros, o arguido, pegando em questões acessórias – o que se percebe perfeitamente ouvindo a gravação de tais depoimentos – e procurando apontar faltas de rigor, que não se reconhecem na audição global, e não truncada, dos depoimentos, extraindo daí ilações para fragilizar tal prova.
A verdade é que o próprio arguido reconhece objectivamente os factos, confirmando nesse aspecto o depoimento dos militares da GNR que o fiscalizaram. Apenas não admitiu que soubesse o que transportava, afirmando não se ter preocupado em saber se havia documentação, pois a mercadoria era do seu acompanhante, a testemunha E…, que lhe pediu o favor de fazer o transporte.
Ao longo do recurso o recorrente batalha muito para demonstrar que não é o proprietário do tabaco. Contudo, não só não lhe é imputada tal titularidade como a lei não a exige, mas apenas que o agente coloque ou detenha em circulação, no interior do território nacional, mercadorias em violação das leis aduaneiras relativas à circulação interna ou comunitária de mercadorias, sem o processamento das competentes guias ou outros documentos legalmente exigíveis ou sem a aplicação de selos, marcas ou outros sinais legalmente prescritos, o que se veio a verificar ter ocorrido, pois os maços de tabaco não vinham acompanhados de qualquer guia ou outros documentos destinados a seguir o transporte e não tinham apostas as estampilhas demonstrativa do cumprimento das obrigações tributárias.
E objectivamente não é controversa a ocorrência desta factualidade.
E em termos subjectivos?
Os militares da GNR afirmaram que esta abordagem ocorreu no âmbito de operação em curso, em que era visado, logo, suspeito, entre outros, o arguido, e por isso foi interceptado.
Era o arguido que ia a conduzir e o veículo era seu, assim, o reconheceu o próprio em julgamento.
As justificações do arguido para procurar demonstrar que não sabia o que transportava (cinco mil maços de cigarros com vinte cigarros cada um, ou seja, cem mil cigarros nas palavras da testemunha C…) ou que a mercadoria estava em situação irregular no território nacional são totalmente inverosímeis, desde logo porque o arguido já teve um processo pela prática do crime de contrabando de circulação de tabaco, por factos praticados em 2010, tendo ocorrido suspensão provisória do processo com a aplicação de injunções (facto provado 11.).
Não é crível que alguém que já passou por essa situação, repita a ingenuidade ou bondade, na versão do arguido, e se preste a fazer um transporte de mercadoria que desconhece, sem se assegurar que os documentos adequados o acompanham e sem combinar os custos da deslocação, pelo menos entre Portalegre e o Porto (ida e volta), e definir os ganhos, acabando por ter um processo crime e não receber nada em troca, nem os custos que suportou, mas tudo aceitando com uma passividade que não convence, por não corresponder ao normal comportamento de qualquer pessoa no seu lugar.
O arguido declarou ser empresário há quase vinte anos e revelou ser uma pessoa bem ciente das obrigações que impendem sobre o transporte de mercadorias, actividade que admitiu já ter realizado, embora não de modo profissional.
O conjunto dos factos objectivos transmitidos pelos militares da GNR e pelo arguido, em conjugação com a prova documental ponderada na sentença recorrida, face às regras da experiência comum, levam a concluir pela comprovação quer dos elementos objectivos constantes dos pontos 1 a 4 da matéria de facto provada, que na verdade não suscitam grande controvérsia, quer dos subjectivos elencados nos pontos 9 e 10 da factualidade assente, não tendo quer as declarações do arguido quer a demais prova testemunhal produzida infirmado as ilações que aqueles permitiram extrair nos termos indicados.
E o facto de a testemunha E… dizer que foi acompanhar o arguido – sendo que ouvido o respectivo depoimento se comprova ser verdade que disse o que se consignou na sentença ter dito, contrariamente ao referido no presente recurso –, e ao mesmo tempo que o pedido de transporte lhe foi solicitado a si, no que se revelou muito pouco coerente e, por isso, pouco credível, não invalida que o aqui recorrente incorra na prática de todos os factos indicados, pois o comportamento de um não impede a conduta do outro, já que, ao contrário da posição subjacente ao recurso, a propriedade da mercadoria em circulação não é condição para a prática dos factos que constituem os elementos objectivos e subjectivos do crime, referindo a lei apenas a circunstância de o agente colocar ou detiver em circulação.
Quanto aos pontos 7. e 8. da matéria de facto provada, onde se menciona o valor da mercadoria, refere o recorrente que a atribuição do valor do tabaco não foi feita com apoio em elementos objectivos, pois foi calculado com base em tabaco idêntico, razão pela qual a sentença não devia ter reconhecido esse valor.
A explicação que o próprio recorrente dá na alegação de recurso demonstra que o critério foi objectivo e legal, dentro dos vários que a lei prevê, no caso perante a falta de conhecimento do país de origem e de operações de importação legais da exacta mercadoria em causa, não suscitando a concreta atribuição do valor unitário qualquer apreensão face aos preços de comercialização do tabaco.
A verdade é que o recorrente também não trouxe ao processo qualquer elemento objectivo que infirmasse a avaliação realizada nos autos.
Assim, também quanto ao fixado nestes pontos 7. e 8. da matéria de facto provada, e tendo em conta o já anteriormente referido, com pertinência na parcela do ponto 8. que vai além da mera referência ao valor da mercadoria, é de manter o decidido nesta parte na sentença recorrida.
E pelo que se vem expondo, não tem fundamento o argumento do recorrente de que o Tribunal a quo devia ter feito operar o princípio in dubio pro reo.
Nem a decisão recorrida revela que o Tribunal a quo em algum momento ficou em dúvida quanto ao reflexo da prova produzida no sentido a atribuir à factualidade provada e não provada, concretamente que ficou na dúvida se devia ter dado como provados ou como não provados os factos aqui impugnados, nem se reconhece que a prova produzida só podia ter conduzido a tal estado de dúvida.
Pelo contrário, a decisão proferida pelo Tribunal a quo, mostra-se correcta atendendo às razões indicadas na sentença recorrida e às aqui indicadas em complemento, sendo certo, como supramencionado, que a diversidade de hipotéticos cenários de ocorrência dos factos em resultado da prova produzida é a regra dos julgamentos e não implica, por si só, qualquer estado de dúvida, mas apenas a necessidade de justificação pelo Tribunal de julgamento das razões por que atribui relevância a um e não a outro ou outros, obrigação que foi cumprida.
Acolhendo esta perspectiva, decidiu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-01-2014[9] que:
«XVI - O princípio in dubio pro reo, baseado no princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, da CRP), constitui um limite normativo da livre convicção probatória, assumindo uma vertente de direito, passível de controle pelo STJ, quando, ao debruçar-se sobre o conjunto dos factos, procura detectar se se decidiu contra o arguido, não declarando a dúvida evidente, já porque esta resultava de uma valoração emergente do simples texto da decisão recorrida por si ou de acordo com as regras da experiência comum, de acordo com aquilo que é usual acontecer, já por incurso em erro notório na apreciação da prova.
XVII - Se a decisão recorrida não manifestou qualquer incerteza, nem qualquer dúvida acerca das condenações impostas aos arguidos, o tribunal não decidiu «in malam partem», não se verificando violação do dito princípio.»
No caso concreto, a decisão recorrida não violou qualquer norma legal ou constitucional que devesse ter acolhido, sendo de manter na íntegra.
*
Por fim, a questão da qualificação jurídica dos factos está reduzida à discussão da natureza obsoleta da norma que pune o contrabando de circulação face às regras comunitárias de livre circulação de mercadorias, posto que o valor da mercadoria ficou assente em sede de matéria de facto provada, fixado em montante superior a €15.000, não ocorrendo, como tal, qualquer dúvida quanto ao respectivo enquadramento jurídico na previsão do art. 93.º, n.º 1, do RGIT (Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei 15/2001, de 05-06).
O recorrente não aprofunda o argumento apresentado quanto à natureza obsoleta da norma e à consequente não consideração das condutas previstas no art. 93.º do RGIT como crime.
Sobre tal ponto, discorreu-se, correctamente, na sentença recorrida o seguinte:
«Como vem sendo entendido, no crime de contrabando de circulação tutela-se o interesse público do Estado no funcionamento do sistema tributário e, reflexamente, os interesses patrimoniais do Estado; exigindo-se que as mercadorias estejam em circulação (cfr., sobre esta temática, entre outros, o estudo dos Drs. Carlos Teixeira e Sofia Gaspar, publicado no Comentário das LPE, volume 2, UCE, 2011, em especial p. 428-430).
Apenas podem ser qualificadas como crime de contrabando de circulação as condutas em que o valor da prestação tributária devida seja superior a €15.000,00, ou não havendo lugar a prestação tributária, a mercadoria objeto da infração seja de valor aduaneiro superior a €50.000,00, nos termos do art.º 93.º, n.º 1, do RGIT.
Exige-se, por outro lado, nos termos dos arts. 2.º, n.º 1, e 3.º do citado RGIT e dos arts. 13.º e 14.º do Cód. Penal, que o agente do crime tenha atuado com dolo, não sendo punida a negligência, que apenas poderá ter relevo para efeito de contraordenação.
Tal norma e o citado crime aduaneiro ainda se mantêm validamente em vigor na ordem jurídica nacional, pois ainda não foram revogados, de forma tácita ou expressa, nem se tornou inútil ou obsoleto, sendo certo que o legislador ainda há pouco tempo alterou tal norma, conforme se extrai da Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, bem como da Lei n.º 82-B/2014, de 31/12, em conjugação com a demais legislação indicada na acusação (cfr. também os autores e obra acima citados), e o previsto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, aprovado pelo DL n.º 73/2010, de 21/06.»
Aliás, o consignado nos pontos 2 a 6 da matéria de facto provada demonstra o infundado desta perspectiva do recorrente sobre o crime em apreço nestes autos.
Ao invocar as regras comunitárias e a livre circulação de mercadorias está o recorrente a olvidar que a livre circulação de mercadorias não é sinónimo de ausência de regras ou circulação de mercadorias sem controlo ou vigilância.
Mal seria se não se pudesse verificar, desde logo, da origem das mercadorias que circulam em território nacional, por razões ligadas à verificação de condições sanitárias e de saúde pública, mas também ao cumprimento de obrigações fiscais.
E muito mal estaria o legislador, a aceitar-se a tese do recorrente, ao aprovar o Regime Geral das Infracções Tributárias, através da Lei 15/2001, de 05-06, cuja entrada em vigor ocorreu muito depois da adesão de Portugal à Comunidade Europeia, tendo o normativo em apreço sofrido alterações através de Leis do Orçamento de Estado, em 2007 (Lei 67-A/2007, de 31-12) e 2014 (Lei 82-B/2014, de 31-12), ele próprio [o preceito] prevendo a circulação de mercadorias em violação das leis aduaneiras de circulação interna ou comunitária.
A posição defendida pelo recorrente equivale a dizer que por existir livre circulação de pessoas não é possível controlar a identificação de ninguém no espaço comunitário.
Não encontramos fundamento para acompanhar tal entendimento do recorrente, devendo o recurso, também aqui, improceder.
Não ocorrendo qualquer alteração da decisão em termos de matéria de facto e não vingando os argumentos do recorrente em ordem à modificação da decisão em matéria de direito, deve a sentença recorrida manter-se nos seus precisos termos.
* III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em não conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido B… e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça.
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Porto, 26 de Junho de 2019
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora)
Maria Joana Grácio
João Venade
__________ [1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção. [2] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-09-2016, Proc. n.º 405/14.0JACBR.C1 - 3.ª Secção, acessível inwww.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de acórdãos). [3] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-06-2018, Proc. n.º 687/13.4GBVLN.P1.S1 - 5.ª Secção, acessível inwww.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de acórdãos). [4] Proc. n.º 687/13.4GBVLN.P1.S1 - 5.ª Secção, acessível inwww.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos). [5] Proc. n.º 81/12.4GCBNV.L1.S1 - 3.ª Secção, acessível inwww.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos). [6] Acórdão do STJ de 27-04-2017, Proc. n.º 452/15.4JAPDL.L1.S1 - 3.ª Secção, acessível inwww.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos). [7] Proc. n.º 146/14.8GTCSC.S1 - 5.ª Secção, acessível inwww.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos). [8] Proc. n.º 772/10.4PCLRS.L1.S1 – 3.ª Secção, acessível inwww.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos). [9] Proc. n.º 7/10.0TELSB.L1.S1 – 3.ª Secção, acessível inwww.dgsi.pt.