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INVENTÁRIO
MAPA DE PARTILHA
SENTENÇA
NULIDADE
Sumário
I – Com a entrada em vigor do Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei nº 23/2013, de 5 de Março, a decisão homologatória do mapa de partilha, a ser proferida nos termos do artigo 66º do RJPI, passou a revestir novas características, assumindo a natureza de acto judicial fiscalizador e garante indispensável da legalidade dos actos praticados pelo notário no decorrer do processo. II - Trata-se inclusivamente do momento próprio para o controlo judicial de todo o processado sob a direcção do notário, garantindo efectivamente a tutela jurisdicional dos actos praticados neste âmbito, não permitindo atropelos ou compressões aos direitos que a lei confere a todos e cada um dos interessados em causa. III – Constitui, aliás, o acto jurisdicional final e crucial, configurado pelo novo paradigma do processo de inventário como a principal – e por vezes única – intervenção do juiz no papel de garante da sua correcta tramitação e da inteira salvaguarda do cumprimento da lei, com todo o seu alcance prático e jurídico, obrigando a um rigoroso escrutínio da tramitação seguida até aí, aferindo-se tanto da legalidade substantiva como da regularidade processual, e não permitindo, de modo algum, que um processo de inventário em que se discutem interesses patrimoniais tão relevantes possa ficar sujeito a actuações insindicáveis, infundamentadas e/ou desconformes com o cumprimento do regime legal a que se deve imperativamente subordinar, proferidas por uma entidade não jurisdicional (o notário) e não vinculada ao princípio da independência plasmado no artigo 203º da Constituição da República Portuguesa, tendo em especial consideração a protecção dos direitos e legítimas expectativas daqueles que confiadamente se socorrem do sistema de Justiça para dirimir e disciplinar, dentro da lei, os seus interesses. IV – A reserva jurisdicional de competência no processo de inventário, enquanto garantia da salvaguarda escrupulosa dos direitos dos interessados, obriga a que, em 1ª instância, tenha lugar um efectivo controlo judicial da regularidade dos actos praticados sob a direcção no notário, a ser exercido no momento da intervenção final do juiz, ou seja, na decisão (sentença) homologatória da partilha, prevista no artigo 66º do RJPI, revestindo tal acto jurisdicional fundamental a natureza de uma verdadeira sentença, e como tal devendo ser devidamente compreendido e concretizado, sujeitando-se aos comandos expressamente consignados no artigo 152º, nºs 1 e 2, 153º e, em especial, 607º, nº 2 e 3, do Código de Processo Civil. V - O sistema relativo à tramitação do inventário introduzido pela Lei nº 23/2013, de 5 de Março, não passou por estabelecer qualquer tipo de controlo geral quanto à legalidade dos actos praticados no processo sob a direcção do notário que passasse, de forma anómala e incoerente, pela sua apreciação imediata, em primeira linha, pelo Tribunal de 2ª instância, por via da interposição de recurso de apelação, apartando dessa obrigação processual a entidade que, na lógica do processo e do nosso sistema geral de recursos, deverá fiscalizar, em termos directos e imediatos, a legalidade desses mesmos actos: o juiz do Tribunal de 1ª instância, no momento final em que dispõe de todas as condições para o efeito, isto é, na sentença homologatória da partilha. VI – É nula por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil, a sentença homologatória do mapa de partilha que não apreciou uma nulidade processual suscitada por um interessado respeitante ao incumprimento pelo cabeça de casal do dever de apresentação de contas do cabecelato nos termos do artigo 45º do RJPI e que foi injustificadamente desconsiderada pelo notário. VII - Ao cabeça de casal é imposta a obrigação de apresentar as contas do cabecelato até ao 15º dia que antecede a conferência preparatória, o que quer dizer que aos interessados assiste efectivamente o direito a que tais contas sejam prestadas nesse momento processual, cabendo-lhes inclusive a possibilidade legal da respectiva impugnação, nessa altura e não noutra, abrindo-se dessa forma o inerente incidente do processo de inventário. VIII - O que o legislador procurou avisadamente é que na conferência preparatória, a ter lugar nos termos do artigo 47º do RJPI, todos os interessados já tivessem perfeito conhecimento do estado das contas do cabecelato, as quais poderão influir decisivamente nas decisões a tomar nessa sede, em particular quanto à efectiva composição do passivo a aprovar, independentemente da eventual necessidade ulterior de prestação de outras contas pelo cabeça de casal. IX - Assim sendo, não é legalmente possível passar à fase da conferência preparatória, sem que esteja decidido um eventual incidente de prestação de contas do cabecelato, nos termos do artigo 45º do RJPI, uma vez que o conhecimento daquelas é essencial e decisivo para a discussão da divisão do património e aprovação do passivo, inquinando a ausência (por violação da lei) da primeira fase, todas as restantes que processualmente se seguem.
Texto Integral
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa (7ª Secção).
I – RELATÓRIO.
No âmbito do processo de inventário que corre termos no Cartório Notarial, em que é inventariada A., desempenha funções de cabeça de casal B., e em que são também interessados C. e D., realizaram-se os seguintes actos processuais:
O interessado C., ao ser notificado para se pronunciar nos termos e para os efeitos do artigo 57º, nº 1, do Regime Jurídico do Processo de Inventário (RJPI) – audição dos interessados sob a forma à partilha – apresentou requerimento em que expôs e requereu o seguinte:
- Não foi dado cumprimento ao disposto no artigo 45º do Regime Jurídico do Processo de Inventário (RJPI) – apresentação pelo cabeça de casal das contas do cabecelato, até ao 15º dia que antecede a conferência preparatória.
- Com efeito, o cabeça de casal não apresentou as contas do cabecelato no momento e na forma própria.
- Trata-se de uma formalidade essencial que afecta decisivamente os momentos processuais subsequentes.
Requer que se declare nulo todo o processado no âmbito das conferências, convocando-se nova conferência preparatória e notificando-se o cabeça de casal para, nos termos e nos prazos legais, apresentar a conta do cabecelato.
Em alternativa, caso assim se não entenda, que seja determinada a notificação do cabeça de casal para a apresentar, não prosseguindo os autos a sua marcha até que se cumpra integralmente o disposto no artigo 45º do Regime Jurídico do Processo de Inventário (RJPI).
Mesmo que assim se não entenda, não abdicando o requerente de exigir a prestação de contas da herança por parte do cabeça de casal, face à pertinaz inércia deste nesse âmbito, haverá que abrir o incidente de prestação de contas como apenso aos presentes autos, seguindo em qualquer caso o processo os seus demais termos.
Pelo notário foi proferido o seguinte despacho: “O prazo para a cabeça de casal apresentar as contas, e cujo expediente correria por apenso ao presente processo de inventário, decorreu com a notificação para a conferência preparatória de interessados que teve lugar em 19 de Outubro de 2016, sendo que as respectivas contas deveriam ter sido apresentadas até 15 dias antes de tal diligência, a qual ocorreu em 4 de Janeiro seguinte. Não existindo nos processos de inventário forma de obrigar a que sejam prestadas as contas do cabecelato, podem, no entanto, os interessados propor no tribunal competente a competente acção especial a que alude o artigo 941º do Código de Processo Civil, para o efeito.”.
Interposto, pelo interessado C., recurso contra tal despacho, veio o mesmo a não ser admitido pelo juiz a quo, com a seguinte fundamentação: “No presente processo de inventário intentado ao abrigo da Lei n.° 23/2013, de 05.03 (Regime Jurídico do Processo de Inventário – RJPI), foram os autos remetidos pelo Ex.mo Senhor Notário para esta Instância Local Cível na sequência da admissão de um recurso interposto pelo interessado C.. O aludido recurso versa sobre a decisão do Ex.mo Senhor Notário proferida em 06.09.2017 (fls. 47), no âmbito da qual indeferiu a pretensão do interessado de que fosse notificada a cabeça de casal para a presentar as contas do cabecelato nos termos do artigo 45° do RJPI. Pois bem, o tribunal de 1ª instância da Comarca do Cartório Notarial onde corre o processo de inventário intervirá no processo de inventário, para além do momento em que deva proferir decisão homologatória da partilha (artigo 66° do RJPI), também para conhecer dos recursos que venham a ser interpostos da decisão do notário (cfr. artigos 16°, n° 4, 57°, n° 4). As intervenções do tribunal de primeira instância no que respeita à sindicância das decisões do Notário estão, assim, expressamente previstas na lei, a saber: para conhecer do recurso da decisão do notário que indeferir o pedido de remessa das partes para os meios judiciais comuns – artigo 16°, n° 4; e para decidir da impugnação do despacho determinativo da forma da partilha – artigo 57°, n° 4. Das demais decisões proferidas no âmbito do processo (pelo Notário ou pelo Tribunal) apenas cabe recurso para o Tribunal da Relação, com o recurso que venha a ser interposto da decisão homologatória da partilha – artigos 66°, n° 1, e 76°, n°s 1 e 2 do RJPI, e 644°, n°s 1, 2 e 3 do Código de Processo Civil”.
Em 21 de Junho de 2017, realizou-se Conferência de Interessados, conforme consta da respectiva acta a fls. 47 a 48.
Em 27 de Setembro de 2017 foi proferido despacho de determinativo da partilha, conforme fls. 23.
Em 22 de Novembro de 2017 foi elaborado Mapa Informativo da Partilha, conforme fls. 13.
Em 24 de Janeiro de 2018, foi elaborado Mapa de Partilha conforme fls. 202 a 204.
Foi proferida, em 21 de Junho de 2018, pelo juiz do Juízo Local Cível de Lisboa sentença nos seguintes termos: “Nos presentes autos de inventário, por óbito de A., falecida em 11 de ... de 2..., no qual exerceu funções de cabeça de casal B., tendo verificado o mapa de partilha e julgando o mesmo em conformidade com as disposições legais aplicáveis, decido homologar pela presente sentença a partilha dali constante, adjudicando aos interessados os respectivos quinhões – artigo 66º, nº 1, da Lei nº 23/2013, de 5 de Março. Comunique ao Serviço de Finanças competente para efeitos do artigo 62º, nº 1, do Código de Imposto de Selo. Custas na proporção do recebido – artigo 67º, nº 1, da mesma Lei nº 23/2013”.
Apresentou o interessado C. recurso contra esta decisão, o qual foi admitido como de apelação (cfr. fls. 234).
Juntas as competentes alegações, a fls.220 a 230, formulou o apelante as seguintes conclusões:
1. A douta sentença homologatória da partilha proferida pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo estabelece apenas que “... tendo verificado o mapa da partilha e julgado o mesmo em conformidade com as disposições legais aplicáveis... “ decide “... pela homologação, adjudicando aos interessados os respectivos quinhões...”; 2. Conforme sustenta a que o recorrente considera ser actualmente a melhor Doutrina (Augusto Lopes Cardoso, Partilhas Litigiosas, Volume III, Almedina, Coimbra, 2018, págs. 16 a 19) a sentença homologatória da partilha “...carece de una minuciosa fundamentação (CPCiv., art. 607.º- 3 a 5), sob pena de nulidade (art. 615.º-1-b) e c)); E essa fundamentação tem de conter a apreciação de todos os actos praticados que permitiram a elaboração do mapa de partilha definitivo e das operações de sorteio, vale dizer o rigor dos pressupostos processuais e todos os procedimentos havidos.”.
2. Mais, certeiramente aponta o supra referido autor que “... as “decisões interlocutórias proferidas” pelo Notário, quando oportunamente “impugnadas” no decurso da tramitação, têm obrigatoriamente de ser apreciadas precisamente na decisão homologatória da partilha, esta, sim, proferida pelo Juiz de 1ª instância. Só então a apreciação/decisão ganhará carácter jurisdicional para que, então, possa haver “impugnação” de 2ª instância, e isso então conjuntamente “no recurso que vier a ser interposto da decisão de partilha”, recurso este de apelação que terá diversos objectos.”;
3. A Douta sentença recorrida não se encontra adequadamente fundamentada e, designadamente, nada diz sobre o Douto despacho proferido pelo Ilustre Notário Senhor Dr. A. A. S. (de 6 de Setembro de 2017, a fls...), o qual é também objecto do presente recurso, nem se debruça sobre a preterição no processo de inventário sub judice do disposto no artigo 45° do RJPI;
4. Em consequência, a Douta sentença recorrida é nula, por violação dos disposto nas alíneas b), c) e d) do n° 1 do artigo 615° do CPC, devendo, pois, ser pelas Instâncias decretada a nulidade da mesma e sendo substituída por outra, na qual se cumpram efectivamente todos os pressupostos e requisitos legalmente exigidos;
5. O thema decidendum no presente recurso são também as consequências jurídico-processuais da preterição no processo de inventário do disposto no artigo 45º do RJPI;
6. Sendo essa a questão suscitada no requerimento do ora recorrente de fls..., e limitando-se o Douto despacho recorrido a concluir que “Não existindo nos processos de inventário forma de obrigar a que sejam prestadas as contas do cabeçalato, podem no entanto os interessados propor no tribunal competente acção especial a que alude o artº 941º do Código de Processo Civil, para o efeito.” é o mesmo nulo, porquanto o Ilustre Senhor Dr. Notário não se pronunciou sobre questões que devia apreciar, tendo em conta o requerido pelo ora recorrente e as normas legais aplicáveis (artigo 615º, nº 1, alínea d) do CPC);
7. Deve, pois, o Douto despacho recorrido ser substituído por Douta sentença que efectivamente se pronuncie sobre o thema decidendum;
8. Resulta dos autos de processo de inventário não só que a cabeça-de-casal não apresentou a conta do cabecelato nos prazo e momento processuais legalmente previstos, como que nunca para tal foi, directa ou indirectamente, notificada pelo Ilustre Senhor Dr. Notário;
9. No âmbito do processo de inventário a apresentação da conta do cabecelato constitui uma formalidade essencial, que afecta decisivamente os momentos processuais subsequentes e, particularmente, a formalização final da partilha e sua homologação, que é afinal a decisão final da causa;
10. Deve aplica-se ao caso sub judice o disposto no artigo 417º do CPC, aplicável ex vi o disposto no artigo 82º do RJPI, pelo que sobre a cabeça-de-casal pesa o dever processual de colaboração para a descoberta da verdade, acrescendo este pois à sua obrigação substantiva de prestar contas da herança, nos termos do disposto no artigo 2.093º do Código Civil;
12. Para tanto, deveria a cabeça-de-casal ter sido notificada para apresentar a conta do cabecelato, enquanto interpelação admonitória para cumprir as suas obrigações, substantivas e adjectivas, com todas as necessárias e adequadas cominações, incluindo a ameaça de imposição de multa processual;
13. A preterição da dita formalidade constitui uma nulidade processual de que o Ilustre Senhor Dr. Notário e as Instâncias têm forçosamente de tomar conhecimento, declarando nulo todo o processado no âmbito das conferências e subsequentemente a estas, determinando a convocação de nova conferência preparatória e a notificação da cabeça-de-casal, para, nos termos e prazo legais, apresentar a conta do cabecelato;
14. Ainda que assim não se entendesse, sem conceder, sempre se dirá que para efeitos da determinação da forma da partilha, efectivo preenchimento dos quinhões, tornas e demais temas processuais subsequentes à conferência de interessados, até à decisão homologatória final, permanece em todo o caso imprescindível a apresentação da conta do cabecelato, pelo que sempre deverá determinar-se a nulidade do processado subsequentemente e a notificação da cabeça-de-casal para a apresentar, nos termos e com as adequadas cominações legais, não prosseguindo os autos a sua marcha até que se cumpra integralmente disposto no artigo 45º do RJPI;
15. Mesmo que assim não se entendesse, sem conceder e o que só por mera hipótese académica se concebe, como obviamente o ora recorrente requerente não abdica de exigir a prestação de contas da herança por parte da cabeça-de-casal, sendo que em face da pertinaz inércia desta nesse âmbito, incumprindo reiterada e integralmente o que a Lei lhe exige em sede de prestação de contas, sempre haveria que forçar a sua apresentação nos termos processuais adequados, o que antes de mais deveria ter ocorrido mediante o pertinente incidente de prestação de contas, correndo como apenso aos presentes autos;
16. Apenas em tese final, se nenhum destes esforços surtisse efeito, poderia porventura lançar-se mão da remessa do processo para os meios judiciais comuns, ordenando-se a suspensão do processo de inventário enquanto tais matérias permaneçam pendentes de decisão (artigo 16º do RJPI), o que em qualquer circunstância e entendimento, sempre sem conceder, motiva ao menos a nulidade do processado após o Douto despacho recorrido;
16. Ao não agir e determinar desta forma, por alguma das alternativas expostas e nomeadamente no Douto despacho recorrido, o Ilustre Senhor Dr. Notário interpretou incorrectamente e violou o disposto no artigo 45º do RJPI, o que, decretada a nulidade do Douto despacho, deve ser suprido pelas Instâncias no sentido do supra alegado, mediante as adequadas e pertinentes decisões.
Não houve resposta.
II – FACTOS PROVADOS. Os indicados no RELATÓRIO supra.
III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS.
São as seguintes as questões jurídicas que importa dilucidar:
Inventário. Sentença homologatória da partilha. Âmbito, natureza e finalidades. O novo paradigma introduzido pelo Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei nº 23/2013, de 5 de Março. Arguição de nulidade da sentença (artigo 615º, nº 1, alíneas c) e d), do Código de Processo Civil). Regra da substituição ao tribunal recorrido consignada no artigo 665º, nº 1, do Código de Processo Civil. Incumprimento, pelo cabeça de casal, da obrigação prevista no 45º do Regime Jurídico do Processo de Inventário (RGPI). Nulidade processual. Consequências. Passemos à sua análise:
Nos termos do artigo 45º, nº 1, do Regime Jurídico do Processo de Inventário (RGPI): “O cabeça de casal deve apresentar a conta do cabecelato até ao 15º dia que antecede a conferência preparatória, devidamente documentada, podendo qualquer interessado proceder, no prazo de cinco dias, à sua impugnação”.
Acrescenta o nº 2 desta disposição legal que: “Compete ao notário decidir sobre a impugnação prevista no número anterior”.
Na situação sub judice, o cabeça de casal não deu cumprimento à obrigação legal estabelecida no preceito, não apresentando as contas do cabecelato no prazo definido na norma transcrita, conforme resulta aliás da simples leitura dos autos.
O interessado, ora recorrente, suscitou a nulidade decorrente do incumprimento dessa obrigação processual, requerendo concretamente que:
- se declarasse nulo todo o processado no âmbito das conferências, convocando-se nova conferência preparatória e notificando-se o cabeça de casal para, nos termos e nos prazos legais, apresentar a conta do cabecelato.
- em alternativa, caso assim se não entendesse, se determinasse a notificação do cabeça de casal para a apresentar, não prosseguindo os autos a sua marcha até que se cumpra integralmente o disposto no artigo 45º do Regime Jurídico do Processo de Inventário (RJPI).
- mesmo que assim se não entendesse, não abdicando o requerente de exigir a prestação de contas da herança por parte do cabeça de casal, face à pertinaz inércia deste nesse âmbito, pronunciou-se no sentido de que se abrisse o incidente de prestação de contas como apenso aos presentes autos, seguindo em qualquer caso o processo os seus demais termos.
Pelo notário foi proferido o seguinte despacho, datado de 6 de Setembro de 2017: “O prazo para a cabeça de casal apresentar as contas, e cujo expediente correria por apenso ao presente processo de inventário, decorreu com a notificação para a conferência preparatória de interessados que teve lugar em 19 de Outubro de 2016, sendo que as respectivas contas deveriam ter sido apresentadas até 15 dias antes de tal diligência, a qual ocorreu em 4 de Janeiro seguinte. Não existindo nos processos de inventário forma de obrigar a que sejam prestadas as contas do cabecelato, podem, no entanto, os interessados propor no tribunal competente a competente acção especial a que alude o artigo 941º do Código de Processo Civil, para o efeito.”.
Apresentado pela parte interessada o inerente recurso imediato contra esta decisão do notário, veio o mesmo a ser rejeitado por não caber recurso de apelação autónoma da mencionada decisão, a qual teria que ser impugnada juntamente com o recurso contra a sentença homologatória da partilha, em estreita conformidade com o disposto no artigo 76º, nº 2, do RJPI.
Acontece ainda que, aquando da prolação da sentença homologatória da partilha, em 21 de Junho de 2018, ao abrigo do disposto no artigo 66º, nº 1, do RJPI, o juiz a quo optou por não se referir a tal omissão, bem como à arguição de nulidade apresentada pelo interessado e à decisão do notário que a desatendeu, ignorando-as, nenhuma referência lhes dirigindo, desconsiderando portanto todo o seu conteúdo e alcance prático.
Nesta sequência, e no âmbito do presente recurso de apelação, veio o ora apelante arguir a nulidade da sentença homologatória da partilha, com a invocação do preenchimento das alíneas c) e d) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil.
Apreciando, em primeiro lugar, da invocada nulidade da sentença de homologação da partilha:
A principal questão que se coloca na presente apelação reside em saber se, aquando da prolação da sentença homologatória da partilha em conformidade com o disposto no artigo 66º do RJPI, o juiz a quo se encontrava, ou não, obrigado a tomar conhecimento da nulidade processual consistente no incumprimento pelo cabeça de casal da obrigação de apresentação das contas do cabecelato, nos termos do artigo 45º do RJPI, bem como no despacho que sobre a mesma incidiu, proferido pelo notário responsável pela tramitação do inventário e que redundou, basicamente, na consideração da sua absoluta irrelevância para a tramitação processual, como se não revestisse o menor significado ou interesse.
O mesmo é questionar se no actual Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei nº 23/2013, de 5 de Março, competirá ao juiz que profere a sentença homologatória do mapa de partilha verificar, nesse momento processual, da regularidade da tramitação dos autos, sindicando-a, e, em especial, conhecer das irregularidades que tenham sido expressamente invocadas pelos interessados que se consideram prejudicados pelas mesmas.
Isto, naturalmente, para além da verificação da legalidade substantiva subjacente à divisão do património e da liquidação do passivo que é, e sempre foi, incontroversa. Vejamos:
A nosso ver, com a entrada em vigor do Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei nº 23/2013, de 5 de Março, a decisão homologatória do mapa de partilha, a ser proferida nos termos do artigo 66º do RJPI, passou a revestir novas características, assumindo a natureza de acto judicial fiscalizador e garante indispensável da legalidade dos actos praticados pelo notário no decorrer do processo.
Trata-se inclusivamente do momento processual próprio para ser realizado o controlo judicial de todo o processado praticado sob a direcção do notário, garantindo efectivamente a tutela jurisdicional sobre tais actos, não permitindo atropelos ou compressões aos direitos que a lei confere a todos e cada um dos interessados em causa.
Não se trata, apenas e portanto, de mais um acto processual praticado pela entidade jurisdicional no culminar de um processo conduzido sob a égide de um juiz (como acontecia anteriormente à aprovação do RJPI), mas da prática do acto jurisdicional final e crucial, configurado pelo novo paradigma do processo de inventário como a principal – e por vezes única – intervenção do juiz no papel de garante da sua correcta tramitação e inteira salvaguarda do cumprimento da lei, com todo o seu alcance prático e jurídico.
Neste especial contexto, a sua prolação obriga a um rigoroso escrutínio da tramitação seguida até aí, aferindo-se tanto da legalidade substantiva como da regularidade processual, e não se permitindo, de modo algum, que um processo de inventário em que se discutem interesses patrimoniais tão relevantes possa ficar sujeito a actuações insindicáveis, infundamentadas e/ou desconformes com o cumprimento do regime legal a que se deve imperativamente subordinar, proferidas por uma entidade não jurisdicional (o notário), tendo em especial consideração a protecção dos direitos e legítimas expectativas daqueles que confiadamente se socorrem do sistema de Justiça para dirimir e disciplinar, dentro da lei, os seus interesses.
Não havendo, por hipótese, o processo de inventário respeitado os termos legais pré-definidos, não faz sentido eximir o juiz de 1ª instância, no momento em que é chamado a proferir sentença (homologatória da partilha), da especial obrigação dessa verificação de índole jurídica, ordenando os procedimentos necessários e adequados para que o inventário se torne conforme com o quadro legal que o disciplina.
Tal como é enfatizado no Parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República de 12 de Dezembro de 2012, sobre a Proposta de Lei n.º 105/XII, que antecedeu a Lei 23/2013, de 5 de Março: “(…) algumas normas da Proposta suscitaram dúvidas quanto à sua constitucionalidade (…). O que está em causa é a alegada violação do princípio constitucional da reserva jurisdicional (…), não só porque pode entender-se que o juiz perde o controlo geral do processo, que passa para o notário, mas também porque este último passa a realizar verdadeiros julgamentos e facto e de direito, apreciando a prova documental e testemunhal apresentada, exercendo, nessa medida, verdadeiros poderes jurisdicionais, que a Constituição reserva exclusivamente aos tribunais. (…) essas indicadas dúvidas ou desconformidade podem suavizar-se ou ultrapassar-se com o poder de homologação da partilha que o art 66° da Proposta confere ao juiz. Com o despacho que, a final, tem de proferir, o juiz deve verificar a legalidade de todos os atos praticados, validando-os e confirmando-os ou não e conferindo-lhes depois força de sentença. (…) Com a presente proposta, qualquer questão litigiosa ou indevidamente decidida pelo notário, acabará sempre e em última instância (por maioria de razão se as partes assim o desejarem com uma impugnação ou com um recurso) por ser apreciada e escrutinada por um juiz”.
Sobre esta matéria cumpre aludir ainda ao acórdão do Tribunal Constitucional de 13 de Dezembro de 2017 (relatora Joana Fernandes Costa), publicitado in www.jusnet.pt, onde se salienta que: “O conjunto de competências acima sumariamente descritas ( as legalmente assumidas pelo notário) permite concluir que, não obstante ter levado a cabo uma verdadeira desjudicialização do processo de inventário, concretizada através da transferência para os notários de uma parte substancial da tramitação do processo, o legislador continuou a confiar aos tribunais a resolução de todas as questões de maior complexidade fáctica e/ou jurídica suscitadas no respectivo âmbito, assim como manteve sob reserva de jurisdição a prática dos actos directamente conformadores da posição jurídica das partes, como seja a decisão homologatória do acordo de interessados que ponha termo ao processo e, em particular, a decisão homologatória da partilha. Pelo significado que poderá, à partida, assumir na caracterização da componente jurisdicional do processo de inventário, é conveniente que nos debrucemos mais detidamente sobre esta última decisão. Em termos que se poderão ter por relativamente consensuais, pode dizer-se que a decisão homologatória da partilha é uma decisão da competência própria do juiz, que consubstancia o acto constitutivo que culmina toda a actividade desenvolvida no âmbito do processo que, até esse momento, correu termos perante o notário, através do qual se atribui aos interessados a titularidade exclusiva dos direitos sobre os bens incluídos no acervo, hereditário ou conjugal, que passaram a caber-lhes, conformando, dessa forma, a respectiva esfera jurídica”.
Há que reconhecer, contudo, que este aresto afasta-se da conclusão por nós perfilhada quando, dando notícia da divisão doutrinária existente neste tocante,acaba por concluir que “...não se encontrando expressamente prevista a possibilidade de, no âmbito da decisão homologatória da partilha, serem sindicadas pelo tribunal, tanto no plano fáctico como no plano do direito aplicável, as decisões com que o notário pôs termo aos incidentes suscitados perante si – tudo aponta, ao invés, para que se considere tal faculdade excluída do tipo de controlo judicial naquele momento exercitável sobre os actos pretéritos do processo...”.
Seguindo outrossim a posição de que ao juiz de 1ª instância, aquando da prolação da sentença homologatória da partilha, não assiste competência para sindicar os actos praticados ao longo do processo, mas apenas a partilha stricto sensu, vide Filipe César Marques, in “A Homologação da Partilha”, publicado na Revista Julgar, nº 24, Setembro/Dezembro de 2014, a páginas 151 a 163, onde é referido que: “...decorre da estrutura dada pelo legislador ao diploma que existem dois decisores em 1ª instância, com competências distintas, é certo, mas claramente identificadas no artigo 3º, nºs 4 e 7 – o notário tem uma competência genérica e ampla, ao passo que o juiz apenas tem competência para “praticar os actos que, nos termos da presente lei, sejam da competência do juiz”. Ora, ao juiz foram conferidos poderes de decisão em sede de recurso, no âmbito dos quais pode apreciar as decisões do notário, e poderes próprios no processo, que se traduzem na prolação da decisão de homologação da partilha. É no exercício destes, e não nos de recurso, que o juiz é chamado a proferir a decisão homologatória da partilha, pelo que não é lógico que possa nesse momento apreciar da regularidade dos actos praticados pelo notário ao longo do processo. Aliás, por isso o legislador atribui competência para apreciar o recurso das decisões interlocutórias ao Tribunal da Relação, e não ao juiz de primeira instância. Por último, no que toca ao elemento histórico, não podemos esquecer que o legislador expressamente quis afastar o poder de “controlo geral do processo” que anteriormente chegou a ser consagrado, pelo que não se compreenderia que ao mesmo tempo que afasta o controlo do juiz, pretenda permitir que este aprecie todas as decisões interlocutórias. Conclui-se, portanto, que também quanto às decisões interlocutórias não pode o juiz pronunciar-se no momento da prolação da decisão homologatória da partilha”.
De todo o modo, e com influência na questão concreta que nos ocupa, este mesmo autor acaba por reconhecer que compete ao juiz de primeira instância, nesta fase processual (sentença homologatória da partilha), conhecer “das nulidades que sejam válida e tempestivamente arguidas pelos interessados no processo” (cfr. página 158 do artigo doutrinário citado);
Ainda neste sentido – de que se discorda - vide o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27 de Junho de 2018 (relator Aristides Almeida), publicitado in www.jusnet.pt.
Pode ler-se nesse aresto: “não podemos esquecer que o legislador expressamente quis afastar o poder de controlo geral do processo que anteriormente chegou a ser consagrado, pelo que não se compreenderia que ao mesmo tempo que afasta o aquele controlo por parte do juiz, pretenda permitir que este aprecie todas as decisões interlocutórias”.
Corroborando tal entendimento, vide também o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30 de Março de 2017 (relator Eduardo Petersen Silva), publicitado in www.jusnet.pt, no qual se afirmou: “Porventura também ciente das questões de constitucionalidade que se adivinhavam, o processo de inventário não foi totalmente desjudicializado, como se intencionou em vários passos do complicado e longo processo legiferante, mas a divisão de competência entre o notário e o tribunal é expressamente assumida (artigo 3º) sendo a competência do tribunal quase residual e dificilmente autorizando que se fale numa chancela judicial integrada na decisão homologatória da partilha constante do mapa e das operações de sorteio previstas no artigo 66º. A intervenção do tribunal surge mais ligada porém à decisão das questões mais complexas de facto e de direito, por iniciativa do notário ou a requerimento das partes, nos termos do artigo 16º”.
Ao invés desta posição doutrinária, perfilhamos o entendimento expresso in “Regime Jurídico do Processo de Inventário Anotado” de Carla Câmara e outros, 2017, 3ª edição, a páginas 367 e 369 a 370, onde se salienta assertivamente: “Não está vedado ao juiz que enuncie os actos que, em sede notarial, devam ser praticados, ou que supra as irregularidades que aquele detecte, inclusive em questões incidentais e decisões interlocutórias até então proferidas, que se tenham reflectido nas operações de partilha. Para além disso, deverá o juiz, como é óbvio, suscitar e decidir nulidades que sejam do conehcimento oficioso (v.g. falta de citação, nulidade da citação edital, erro na forma de processo e falta de vista ou exame ao Ministério Público como parte acessória – artigo 202º do Código de Processo Civil ex vi artigo 82º)”. «Importa atentar, quanto ao que deva entender-se pela intervenção judicial nesta fase e, assim, quanto à natureza e limites da intervenção judicial neste momento, na necessidade de não se perder de vista que a opção legislativa pela referida dualidade de intervenientes, pelo formato a atribuir ao processamento do inventário, designadamente, no que toca à intervenção do tribunal e à articulação entre a função notarial e a função jurisdicional, foi sendo sedimentada à luz da necessidade de expurgar qualquer anátema de inconstitucionalidade do diploma. Assentando a decisão da partilha no despacho determinativo da forma da partilha, no mapa da partilha e nas operações de sorteio, que suportam a decisão final, destinando-se esta a homologar tais operações, tal intervenção judicial assume verdadeira característica de sentença (e não de mera formalidade, como acontecia quando todos aqueles actos eram praticados pelo Juiz que se limitava a conferir chancela ao que anteriormente praticara nos autos). Impende sobre o Juiz o dever de verificar a legalidade da partilha, do ponto de vista substantivo (cumprimento das disposições legais substantivas) e processual (nulidades e excepções de conhecimento oficioso)”.
Adoptando idêntica interpretação legal, vide Augusto Lopes Cardoso, in “Partilhas Litigiosas”, Volume III, Almedina, 2018, páginas 17 a 18, onde o autor enfatiza que: “...a resposta só pode ser uma: o Juiz, agora, tem de proceder exactamente nos mesmos termos em que procede um Juiz em qualquer processo ao proferir a sentença de 1ª instância, por muito que se tenha almejado esconder a natureza da actuação jurisdicional pelo não uso da expressão que caracteriza a sua prolação. É uma sentença que finaliza o processo em 1ª instância, a que se chamou “decisão homologatória da partilha”. Quer isso dizer que esta “homologação” carece de uma minuciosa fundamentação (Código de Processo Civil, artigo 607º, nº 3 a 5), sob pena de nulidade (artigo 615º, nº 1, alíneas b) e c)). E essa fundamentação tem de conter a apreciação de todos os actos praticados que permitiriam a elaboração do mapa de partilha definitivo e das operações de sorteio, vale dizer o rigor dos pressupostos processuais e todos os procedimentos havidos” (...) “seria um absurdo jurídico que se tivesse querido significar que das decisões do Notário só haveria “recurso” para a 2ª instância, isto sem que a 1ª instância se tivesse primeiro pronunciado (...) e a correcta hermenêutica é, portanto, a de que “as decisões interlocutórias proferidas” pelo Notário, quando oportunamente “impugnadas” no decurso da tramitação, têm obrigatoriamente de ser apreciadas precisamente na decisão homologatória da partilha, esta sim, proferida pelo Juiz de 1ª instância”. Só então a apreciação/decisão ganhará carácter jurisdicional para que, então, possa haver “impugnação” de 2ª instância, e isso então conjuntamente “no recurso que vier a ser interposto da decisão de partilha”, recurso este de apelação que terá diversos objectos. Quer isto dizer que a decisão homologatória da partilha tem hoje um âmbito e uma exigência muitíssimo maiores, pois, para além de, como se disse, usar como fundamentação a apreciação de toda a tramitação para aferir da sua plena legalidade, vai ter de julgar cada um dos incidentes que geraram decisões notariais interlocutórias oportunamente impugnadas e que ficaram a aguardar a análise do Juiz na altura procedimental devida”.
Ora, concordando-se com os autores citados, não se nos afigura concebível, nem compreensível ou aceitável, que o processo de inventário que corre os seus termos perante o notário, entidade não directamente vinculada ao princípio da independência plasmado no artigo 203º da Constituição da República Portuguesa, não comporte a possibilidade de controlo judicial (em 1ª instância), rigoroso e efectivo dos actos praticados em desconformidade com as disposições legais aplicáveis, mormente quando as respectivas nulidades processuais sejam invocadas atempadamente pelos interessados com legitimidade para o efeito.
Tal escrutínio deverá ser realizado no momento crucial da intervenção judicial necessária no processo de inventário, ou seja, aquando da prolação pelo juiz do despacho de homologação da partilha, nos termos do artigo 66º do RJPI.
A referenciada ideia da “repartição de competências entre o juiz de 1ª instância e o notário encarregue da tramitação dos autos”, gizadano sentido apontado supra e tendo por pretexto o teor do artigo 3º, nºs 4 e 7, do RJPI, descura, desrespeitando, um aspecto essencial do novo figurino do processo de inventário, tal como foi concebido pela Lei nº 23/2013, de 5 de Março.
Com efeito, a reserva jurisdicional de competência deste processo, enquanto garantia da salvaguarda escrupulosa dos direitos dos interessados, obriga a que, em 1ª instância, tenha lugar um efectivo controlo judicial da regularidade do mesmo, a ser exercido no momento da intervenção final do juiz, ou seja, na decisão (sentença) homologatória da partilha, prevista no artigo 66º do RJPI.
Tal acto jurisdicional fundamental reveste, para todos os efeitos, a natureza de uma sentença e como tal terá que ser devidamente compreendido e concretizado.
Não se trata de uma decisão meramente tabelar, fraccionada ou centrada sobre um segmento decisório específico, parcelar e de âmbito circunscrito ou direccionado apenas sobre uma questão jurídica localizada (in casu, a legalidade da divisão de bens e da aprovação do passivo).
Tal acto de natureza jurisdicional, enquanto verdadeira sentença que é, deverá necessáriamente obedecer, com o inerente rigor e desenvolvimento, aos comandos expressamente consignados no artigo 152º, nºs 1 e 2, 153º e, em especial, 607º, nº 2 e 3, do Código de Processo Civil.
O que significa que o sistema relativo à tramitação do inventário introduzido pela Lei nº 23/2013, de 5 de Março, não passou por estabelecer qualquer tipo de controlo geral quanto à legalidade dos actos praticados no processo sob a direcção do notário que passasse, de forma anómala e incoerente (quiçá mesmo absurda, na impressiva terminologia utilizada por Augusto Lopes Cardoso, in obra citada e no trecho transcrito supra), pela sua apreciação directa e imediata pelo Tribunal de 2ª instância, por via da interposição de recurso de apelação, apartando dessa obrigação processual a entidade que, na lógica do processo e do nosso sistema geral de recursos cíveis, deverá fiscalizar, em termos directos e imediatos, a legalidade desses mesmos actos: o juiz do Tribunal de 1ª instância, no momento final em que dispõe de todas as condições para o efeito, isto é, na sentença homologatória da partilha.
A este interpretação não se opõe o artigo 6º do RJPI, no qual apenas se define a competência geral do notário para dirigir todas as diligências do processo de inventário e a competência especial do juiz de 1ª instância para a prática dos actos que a lei lhe cometer.
Tal disposição não visou, de forma alguma, excluir a possibilidade de controlo judicial, em 1ª instância, da legalidade do processado que não foi dirigido pelo juiz.
Ou seja, do preceito legal citado não resulta que deixou de existir um momento final no processo de inventário – momento esse sintomaticamente qualificado como sentença – em que o juiz de 1ª instância deve verificar da legalidade do processado praticado sob a égide do notário que, como se sabe, não configura nem detém a natureza de uma entidade de jurisdicional, nem sequer se encontra especialmente vocacionado para o conhecimento específico destas matérias, em especial quando as mesmas assumem carácter acentuadamente conflituante.
Na situação sub judice, a irregularidade mencionada, perfeitamente clara e ostensiva, invocada no momento processual próprio pelo interessado, ora apelante, teria que ter sido objecto de conhecimento pelo juiz a quo.
Tratava-se de uma questão concreta suscitada nos autos e que competia ao juiz de 1ª instância analisar e decidir no momento de proferir sentença homologatória da partilha, verificando a evidência que a simples leitura dos autos patenteava: o cabeça de casal não havia cumprido a obrigação de apresentação de contas do cabecelato a que se encontrava especialmente adstrito (artigo 45º do RJPI) e o notário encarregue de assegurar o cumprimento da lei neste processo de inventário não tinha considerado relevante tal falta, desvalorizando-a absolutamente e por completo.
Entender o contrário significaria, pura e simplesmente, permitir que o juiz de 1ª instância, ao homologar o mapa de partilha, chancelasse, confirmando acriticamente através da sua inércia, uma conduta contrária àquela que o Regime Jurídico do Processo de Inventário prevê, impõe e obriga a cumprir.
Por outro lado, estabelece o nº 2 do artigo 45º do RJPI que ao notário compete a apreciação, o julgamento e a decisão sobre tal (eventual) impugnação.
Não tem o menor cabimento, perante o novo figurino do inventário e tendo em atenção o princípio da reserva jurisdicional que se lhe impõe, condescender no sentido de desobrigar (implicitamente) o notário de assumir as responsabilidades processuais que, no plano jurídico, lhe estão legalmente atribuídas, não fiscalizando a sua actuação quando esta se mostre desconforme com o enquadramento jurídico aplicável.
Perante os elementos que os autos denunciam torna-se absolutamente claro, inequívoco e inegável que a cabeça de casal deveria ter apresentado as contas do cabecelato no momento processual próprio.
O notário entendeu que tal omissão não produzia qualquer efeito útil, uma vez que a lei não previa forma de obrigar o cabeça de casal a prestar tais contas do cabecelato.
Ou seja, na sua perspectiva, seria totalmente irrelevante e praticamente inconsequente para a tramitação do processo de inventário a violação da obrigação estabelecida na disposição legal transcrita.
Tal postura e decisão da entidade que superintende aos actos do processo de inventário não poderia, de modo algum, escapar ao crivo do juiz de 1ª instância no momento da prolação do despacho de homologação da partilha, exigindo-se uma intervenção activa e crítica relativamente a esta matéria, expressamente trazida à consideração pelo interessado que se sentiu, legitimitamente, prejudicado.
Muito menos se pode admitir ou conceber, do ponto de vista jurídico, que o conhecimento desta decisão do notário, colocada em crise pelo interessado por ela directamente afectado, seja da competência imediata, em primeira linha, do Tribunal de 2ª instância, sem passar pela prévia apreciação do juiz a quo no momento que a lei expressamente consagra para o efeito, isto é, o do artigo 66º do RJPI.
(pronunciando-se em sentido oposto, ou seja admitindo a competência directa dos Tribunais da Relação para o conhecimento das decisões dos notários proferidas em processo de inventário, no momento previsto no artigo 76º, nº 2, do RJPI, vide o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6 de Dezembro de 2018 (relator Pedro Martins), publicitado in www.jusnet.pt).
É certo que a declaração de nulidade da sentença homologatória da partilha em 1ª instância, por omissão do conhecimento de questão de que lhe cumpria conhecer, pode conduzir, afinal, por via do mecanismo de substituição ao tribunal recorrido, previsto no artigo 665º, nº 1, do Código de Processo Civil, a que o Tribunal da Relação conheça, não obstante e mesmo assim, do objecto da apelação e, por inerência, da matéria sobre a qual o juiz a quo nada disse – devendo dizê-lo.
Só que se trata aqui de um efeito processual próprio e autónomo, extensivo e aplicável a todo o tipo de processos, e que nada tem a ver com o regime jurídico exclusivo do processo de inventário, tal como o mesmo se encontra estruturado por força da Lei nº 23/2013, de 5 de Março.
Assim sendo, pelos motivos indicados, a sentença homologatória do mapa de partilha proferida em 21 de Junho de 2018 é nula, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil, o que se declara.
Trata-se, aqui de uma nulidade que afecta formalmente a sentença, nos termos gerais do artigo 615º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil, isto é, omissão de pronúncia de uma concreta e decisiva questão processual que estava obrigado a conhecer.
Não se justificava, no entanto, a notificação das partes nos termos do artigo 665º, nº 3, do mesmo diploma legal, face à sua patente inutilidade, uma vez que o contraditório quanto a esta matéria já estava suficientemente garantido.
Nos termos gerais do artigo 665º, nº 1, do Código de Processo Civil, competirá a este Tribunal superior conhecer directamente da questão omitida pelo juiz a quo, em regime de substituição do tribunal recorrido (que não de mera cassação).
O que passa a fazer-se:
Conhecimento da nulidade processual consistente no incumprimento do cabeça de casal da obrigação de apresentação das contas do cabecelato até ao 15º dia que antecede a conferência preparatória e da sua desconsideração pelo notário com a justificação de que “Não existindo nos processos de inventário forma de obrigar a que sejam prestadas as contas do cabecelato, podem, no entanto, os interessados propor no tribunal competente a competente acção especial a que alude o artigo 941º do Código de Processo Civil, para o efeito.”. Consequências.
A obrigação de prestação de contas por parte do seu cabeça de casal encontra-se legalmente definida no artigo 2093º, nº 1, do Código Civil, onde se prevê que “o cabeça de casal deve prestar contas anualmente”, competindo-lhe distribuir pelos interessados, segundo o seu direito, o saldo positivo apurado, depois de deduzida a quantia necessária para os encargos do novo ano (artigo 2093º, nº 2, do Código Civil).
O incumprimento dessa obrigação pode lugar inclusivamente à remoção do cabeça de casal do cargo, conforme prevê o artigo 2086º, nº 1, alínea c), do Código Civil.
Concretamente, ao cabeça de casal é ainda imposta a obrigação de apresentar as contas do cabecelato até ao 15º dia que antecede a conferência preparatória.
O que quer dizer que aos interessados assiste efectivamente o direito a que tais contas sejam prestadas nesse momento processual, cabendo-lhes inclusive a possibilidade legal da respectiva impugnação, nessa altura e não noutra, abrindo-se dessa forma o inerente incidente do processo de inventário.
Por outro lado, impõe o nº 2 do artigo 45º do RJPI que ao notário compete a apreciação, o julgamento e a decisão sobre tal (eventual) impugnação.
(sobre a competência dos cartórios notariais para o conhecimento da prestação de contas, encontrando-se pendente o processo de inventário e por decorrência do disposto no artigo 45º do RJPI, vide o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30 de Março de 2017 (relator Eduardo Petersen Silva), publicitado in www.jusnet.pt).
A apresentação das contas do cabecelato pelo cabeça de casal, nos concretos termos previstos no artigo 45º do RJPI, constitui precisamente uma das inovações introduzidas pela Lei nº 23/2013, de 5 de Março.
Trata-se do cumprimento de uma obrigação nova que não tinha previsão no regime processual antecedente, o que demonstra bem a importância e o relevo que o legislador lhe reservou.
Sobre este ponto e justificando a inovação pronuncia-se Augusto Lopes Cardoso, in “Partilhas Litigiosas”, Volume II, Almedina, 2018, página 252-253, nos seguintes termos: “A medida tem a natureza de ser destinada a « preparar» a nóvel « conferência preparatória», pois doutro modo não seria entendível que tenha que cumprir-se ‘até ao 15º dia que antecede’ essa conferência. E porquê esta referenciação? Não o diz a lei, mas pode antever-se que resultará de puro pragmatismo do conhecimento da realidade corrente. Com efeito, se o objectivo cimeiro da conferência preparatória é o de por fim ao inventário por composição de quinhões, sorteio ou alienação de bens, a todos interessará que não fiquem ‘rabos de palha’ que podem representar as contas não prestadas. Dir-se-á que a prestação prepara psicologicamente os interessados ao entendimento, sabido que as contas de cabecelato são frequente motivo de dissídios.(…) O que parecerá sensato, à primeira vista, será, por exemplo, que o Notário, antes de fixar a data, faça notificar o cabeça de casal para que, anunciando a sua intenção de marcar certo dia para a conferência, se disponha a prestar contas com aquela antecedência mínima.”.
Ou seja, o que o legislador procurou avisadamente é que na conferência preparatória, a ter lugar nos termos do artigo 47º do RJPI, todos os interessados já tivessem perfeito conhecimento do estado das contas do cabecelato, as quais sempre poderiam influir decisivamente nas decisões a tomar nessa sede, em particular quanto à efectiva composição do passivo a aprovar e ao exacto e real dos bens a dividir, independentemente da eventual necessidade ulterior de prestação de outras contas pelo cabeça de casal.
Assim sendo, não é legalmente possível que o processo de inventário transite para a fase da conferência preparatória sem que esteja decidido um eventual incidente de prestação de contas do cabecelato, nos termos do artigo 45º do RJPI, uma vez que o conhecimento daquelas é essencial e decisivo para a discussão da divisão do património e aprovação do passivo.
Logo, a indevida ausência, por violação da lei, da primeira fase, inquinará, viciando, todas as restantes que processualmente se seguem (que a não podem, segundo o novo paradigma legal, sequencialmente dispensar).
Não é aceitável, nem compreensível que o notário fundamente com o facto de “não existir nos processos de inventário forma de obrigar a que sejam prestadas as contas do cabecelato” para, desobrigando-se no fundo de fazer aplicar a lei, conformar-se passivamente com o incumprimento da obrigação de apresentação de contas pelo cabeça de casal, com a justificação – que manifestamente não colhe - de que “podem, no entanto, os interessados propor no tribunal competente a competente acção especial a que alude o artigo 941º do Código de Processo Civil, para o efeito”.
Tal actuação contrária à lei, bem como a sua pacífica aceitação ou implícita inconsequência prática, redundariam, através de uma possível generalização, na indesejável postergação continuada de um comando legal imperativo, subvertendo os termos que o processo de inventário deve obrigatoriamente seguir.
O cabeça de casal daria cumprimento à obrigação prevista no artigo 45º do RJPI, se e quando lhe aprouvesse, contando com a complacência da entidade legalmente encarrega de zelar pela observância das disposições legais aplicáveis em matéria de processo de inventário e com o afastamento ou alheamento do juiz de 1ª instância encarregue de proferir a sentença homologatória da partilha, que concluiria – segundo o entendimento contrário ao que se perfilha - não ser da sua competência a apreciação dessa temática, nada dizendo sobre o assunto.
Em breve, se chegaria à conclusão prática de que o cumprimento do artigo 45º do RJPI revestia afinal – em 1ª instância - natureza opcional...
Saliente-se, ainda, que a forma de prestação e apresentação de contas pelo cabeça de casal é aquela que a lei imperativamente determina e não outra, designadamente a que porventura resulte do facto consumado associado ao incumprimento por aquele do disposto no artigo 45º do RJPI.
Pelo que procederá a presente apelação, anulando-se a sentença homologatória da partilha, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil - o que se declarará -, devendo o juiz a quo, antes de mais, remeter os autos ao cartório notarial para que se proceda à notificação do cabeça de casal com vista à prestação das contas do cabecelato, em estreito cumprimento do disposto no artigo 45º do RJPI.
Deverá, nesse sentido, a notificação do cabeça de casal conter a clara advertência quanto à importância do cumprimento dessa específica obrigação legal e das sanções em que poderá incorrer em caso de não acatamento desse seu especial dever.
Refira-se ainda que o vício referido que acarreta a nulidade da decisão do notário – por via do incumprimento do disposto do artigo 45º do RJPI – inquina todos os restantes actos processuais dele dependentes.
Logo, a tramitação do presente inventário deverá ser repetida após o cumprimento pelo cabeça de casal da obrigação de prestação de contas do cabecelato, cuja falta poderá eventualmente ser motivo, plenamente justificado, de remoção do cargo, em conformidade com o disposto no artigo 2086º, nº 1, alínea c), do Código Civil, com o que, finalmente, se reporá a legalidade na tramitação dos presentes autos e o respeito pelo exercício cabal das faculdades que assistem aos interessados.
Procede, nestes precisos termos, a presente apelação.
IV - DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, declarando-se nula por omissão de pronúncia a sentença homologatória do mapa de partilha; conhecendo em regime de substituição (artigo 665º, nº 1, do Código de Processo Civil) do objecto da apelação, revoga-se a decisão recorrida e declara-se a nulidade da decisão proferida pelo notário que não deferiu a nulidade consistente no incumprimento pelo cabeça de casal da obrigação consignada no artigo 45º do RJPI; ordena-se ao juiz a quo que devolva o processo ao notário responsável para que o mesmo proceda à imediata notificação da cabeça de casal para a prestação das contas do cabecelato, em cumprimento do citado artigo 45º do RJPI, prosseguindo de seguida o processo de inventário os seus termos em estreita conformidade com o mencionado supra.
Custas pela cabeça de casal que deu causa ao presente recurso.
Lisboa, 4 de Junho de 2019.
Luís Espírito Santo
Conceição Saavedra
Cristina Coelho