PRINCÍPIO DO PEDIDO
ARRENDAMENTO
EXTINÇÃO
OBRAS
Sumário

I – A sentença será nula se condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que é pedido, pois que, de acordo com o princípio do dispositivo, compete às partes delimitar o thema decidendum, não tendo o juiz que avaliar se naquele caso concreto se adequaria outra providência que não a requerida.
II – Devendo cingir-se ao âmbito do pedido e da causa de pedir, estando em causa uma dívida de valor e sendo o pedido composto por diversas parcelas, nada obsta a que a sentença condene em montante que tenha por referência o valor global peticionado.
III – A caducidade do contrato de arrendamento dá-se na data em que se verifica o facto que a determina e opera ipso iure.
IV - A extinção do contrato de arrendamento por perda da coisa locada prevista no art. 1051º, alínea e) do Código Civil ocorre quando, objectivamente, o local tenha perdido as aptidões mínimas necessárias para ser usado, ou seja, não é necessária a supressão física absoluta do imóvel, bastando para tanto o desaparecimento das respectivas qualidades que torne inviável a sua utilização para os fins convencionados no contrato.
V – Não se verifica perda da coisa locada quando as anomalias que afectam o imóvel locado demonstradas nos autos não permitem afirmar a necessidade de obras de demolição, esventramento e reconstrução, para além de estar provado que, não obstante as escassas condições de integridade do imóvel e a necessidade de obras profundas para a sua reposição em condições de cabal utilização, tal não impediu o locatário de nele permanecer e exercer a actividade que vinha desenvolvendo no estabelecimento comercial ali instalado.
VI – Sobre o senhorio recai o dever de facultar ao inquilino o gozo do prédio arrendado para os fins a que se destina, cabendo-lhe executar todas as obras de conservação, ordinárias ou extraordinárias, requeridas pelas leis vigentes ou pelo fim do contrato, salvo estipulação em contrário, podendo o locatário exigir que o senhorio as execute, nos termos dos artigos 1031º, alínea b), 1074º, n.º 1 e 1111º, n.º 2 do Código Civil.
VII - Se o senhorio não executar as obras necessárias para manter o imóvel adequado à finalidade, incumpre uma obrigação contratual e o arrendatário poderá resolver o contrato, nos termos previstos no artigo 1083.º, n.º 5 do Código Civil.
VIII - A constituição em mora no cumprimento do dever legal de realização de obras de conservação e manutenção exige a interpelação pelo credor, nos termos gerais do artigo 805º, n.º 1 do Código Civil.
IX – Ainda que não esteja demonstrada a existência de interpelação ou a recusa do senhorio a realizar as obras necessárias, sabendo-se que este não autorizou as obras de adaptação do estabelecimento às regras sanitárias e de higiene, que por sua vez não eram viáveis sem intervenção em todo o imóvel, tendo ele conhecimento das anomalias existentes desde 2004 e que vieram a determinar o seu encerramento, tal significa que o arrendatário deixou de poder gozar a coisa por motivo estranho à sua pessoa ou à dos seus familiares, circunstância que lhe confere o direito a resolver o contrato, nos termos do art. 1050º, alínea a) do Código Civil, independentemente de qualquer incumprimento, ou responsabilidade, da contraparte.
X - O dever de indemnizar pressupõe a mora do devedor (senhorio), que por sua vez pressupõe a interpelação, judicial ou extrajudicial, acompanhada do estabelecimento de um prazo, pelo que na ausência de demonstração da existência de mora, a conduta omissiva não pode ser tida como ilícita ou culposa, pressuposto este da indemnização.

Texto Integral

Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
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I – RELATÓRIO
A. intentou contra C. e D. a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário pedindo a declaração de resolução do contrato de arrendamento para comércio por vício impeditivo do gozo do locado por culpa exclusiva dos réus e a condenação destes no pagamento de uma indemnização pelos lucros cessantes, correspondente ao valor anual de € 20 542,20, desse a data da propositura da acção até à data em que o autor perfaz 65 anos, no montante de € 184 479,90 (cento e oitenta e quatro mil quatrocentos e setenta e nove euros e noventa cêntimos) e pelos danos não patrimoniais, em valor não inferior a € 5 000,00 (cinco mil euros).
Alega para tanto, muito em síntese, o seguinte:
· O autor é arrendatário de um estabelecimento comercial que adquiriu por trespasse em 16 de Janeiro de 1978, instalado no rés-do-chão de um edifício composto por rés-do-chão com quintal e pátio e dois andares, descrito na Conservatória do Registo Predial de Odivelas sob a ficha n.º 1.../ da freguesia de Caneças;
· Em 26 de Abril de 2010, por escritura pública celebrada no Cartório Notarial de Pedro Nunes Rodrigues, o prédio onde se encontra a funcionar o estabelecimento comercial foi vendido pelas proprietárias a C. e esposa, actuais senhorios, pagando actualmente uma renda de € 24,94;
· Desde há cerca de 10 anos que o locatário pretende fazer adaptações no locado às novas exigências de higieno-sanitárias e de segurança alimentar e dos clientes, sem conseguir consenso seja com as anteriores senhorias, seja com os actuais senhorios;
· O autor comunicou aos réus a necessidade de efectuar obras urgentes e necessárias para a continuação da laboração do estabelecimento, que neste momento já só funciona em 30% da sua capacidade, sendo que tais obras não podem ser efectuadas sem intervir nos pisos superiores do imóvel;
· O imóvel ameaça ruína e tal foi comunicado por carta registada em 3 de Fevereiro de 2011 e em 1 de Março de 2011, sem qualquer obtenção de solução;
· Foi concedido ao autor o prazo de 90 dias para a realização das obras necessárias, o que é inviável, pelo que lhe sobra apenas encerrar o estabelecimento;
· O autor e a sua família dependiam do rendimento adveniente da exploração do estabelecimento, resultando afectados os seus rendimentos com o respectivo encerramento, o que lhe causa prejuízos patrimoniais e não patrimoniais face à desocupação profissional que sofrerá.
Os réus contestaram suscitando incidente de verificação do valor da causa e a excepção de ilegitimidade activa singular, entendendo que o autor se devia fazer acompanhar pela mulher, com quem é casado segundo o regime da comunhão geral de bens, sendo que o local arrendado se destina a loja de venda de frutas, hortaliças e artigos de pastelaria e, na parte adaptável, a habitação do locatário, pelo que se torna necessária a intervenção do cônjuge.
Mais alegaram que a recusa do recebimento das rendas por parte das anteriores senhorias decorre do facto de o trespasse não ter sido comunicado, no prazo, pela forma e para os devidos efeitos legais, pelo que o negócio em causa seria inválido; mais sustentam que, ainda que devesse o autor ser reconhecido como arrendatário, o contrato de arrendamento caducou por perda da coisa locada; o locado passou a ser destinado a café em momento que os réus desconhecem e não reúne condições para tanto; ao momento do trespasse o autor sabia que não poderia realizar quaisquer obras sem a autorização do senhorio, sendo que face ao congelamento das rendas este não tinha condições para as realizar; aos actuais senhorios o autor nunca comunicou a urgência na realização de obras.
Sustentam ainda os réus que as obras a realizar seriam obras de recuperação e reconstrução de todo o prédio, logo técnica e economicamente incomportáveis, face ao valor da renda paga, pelo que a sua exigência constitui um abuso de direito.
No mais impugnam parcialmente os factos alegados pelo autor referindo que o estabelecimento continua aberto ao público e que nunca incorreram em incumprimento contratual perante aquele, entendendo que não há fundamento para a resolução do contrato de arrendamento, tanto mais que este caducou por perda da coisa locada, para o que os réus em nada contribuíram, para além de o autor ter destinado o locado a fim diverso do previsto no contrato.
Pugnam pela procedência das excepções deduzidas e, assim se não entendendo, pela improcedência da acção, pedindo ainda a condenação do autor, como litigante de má fé, no pagamento de multa adequada e em indemnização à parte contrária não inferior a € 15 000,00.
O autor deduziu réplica em que aceitou a correcção do valor da acção e pretendeu fazer intervir na acção a mulher; mais aduziu que a sua qualidade de inquilino sempre foi reconhecida por AL., até à data do seu óbito, em Agosto de 1995, que emitiu os correspondentes recibos, que passaram depois a ser emitidos pela filha, JL, sendo que apenas em Julho de 1999 passou a depositar as rendas; mais refere que foi autorizado, em 1981, a fazer obras e a vender artigos alimentícios no local, ali fazendo restaurante, com actualização da renda para Esc. 3 000$00.
Em sede de réplica, o autor veio ampliar a causa de pedir e o pedido relativamente ao valor dos lucros cessantes atenta a idade da mulher, que fixam em € 308 133,00 e ainda € 5 000,00 a título de indemnização devida à mulher, por danos não patrimoniais; mais peticionam a condenação dos réus como litigantes de má fé, no pagamento de uma indemnização não inferior a € 2 500,00.
Os réus apresentaram réplica pugnando pela inadmissibilidade parcial da réplica, pela improcedência do pedido da sua condenação como litigantes de má fé, concluindo quanto mais como na contestação.
Em 3-02-2016 foi proferido despacho convidando o autor a suprir a preterição de litisconsórcio necessário (cf. fls. 274 e 275 dos autos), convite a que o autor acedeu vindo deduzir incidente de intervenção principal provocada chamando a intervir nos autos B., intervenção admitida conforme despacho proferido em 26 de Abril de 2016 (cf. fls. 188).
A interveniente principal, regularmente citada, veio declarar fazer seus os articulados apresentados pelo autor (cf. fls. 293 dos autos).
Em 15 de Junho de 2016 foi proferida decisão que fixou o valor da causa em € 189 479,90 (cf. fls. 295).
Em 7 de Novembro de 2016 realizou-se audiência prévia em que foi proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento dos articulados (cf. fls. 314 e 315).
Em 14 de Dezembro de 2016, os réus apresentaram articulado em que alegam que o custo das obras necessárias para a recuperação do imóvel seria de € 1 500,00 por metro quadrado de intervenção, ascendendo a um total de € 437 695,50, com IVA, sendo que metade desse valor será para intervenção no locado, dando ainda conta que o estabelecimento foi encerrado há cerca de um ano pela ASAE, sendo que desde há 10 anos o locado não tinha condições para que lá funcionasse o estabelecimento.
Por sua vez, em 21 de Dezembro de 2016, o autor e a interveniente principal apresentaram articulado em que esclareceram que o objecto do arrendamento é o rés-do-chão do prédio identificado, com 158,04 m2 e que serviu de habitação até 1996, mas também como restaurante, marisqueira e actualmente funcionava como café e snack-bar, estabelecimento de bebidas, enunciando o estado de degradação em que este se encontra, as respectivas causas e as obras necessárias para a sua recuperação, cujo custo estimam em € 71 700,00.
A ampliação da causa de pedir e do pedido foi admitida por despacho proferido em 6 de Março de 2017 (cf. fls. 416).
A réplica e a tréplica foram parcialmente admitidas (cf. fls. 417).
Fixado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova foi realizada a audiência final vindo a ser proferida sentença, em 19 de Janeiro de 2018, que julgou a acção parcialmente procedente e determinou o seguinte:
· Declarar a resolução do contrato de arrendamento referido nos autos e a restituição do arrendado aos réus;
· Condenar os réus a pagar aos autores a título e indemnização a quantia a liquidar em execução de sentença correspondente à perda líquida de rendimento mensal que os demandantes sofrerem em virtude do encerramento do estabelecimento comercial referido nos autos, entre 17.1.2013 e a data em que cada um complete 66 anos e 3 meses, no limite da indemnização já peticionada;
· Absolver os réus do mais peticionado.
· Não condenar qualquer das partes por litigância de má-fé;
· Condenar as partes no pagamento das custas na medida do respectivo decaimento, que provisoriamente se fixa em 50% para cada uma.”
É desta sentença que os réus recorrem, concluindo assim as respectivas alegações:
1ª Os AA reclamaram uma indemnização, a título de lucros cessantes, equivalente ao valor anual de 20 542,20 euros desde a propositura da ação até à data em que o A marido perfizesse 65 anos;
2ª A douta sentença condenou em quantia a liquidar em execução de sentença correspondente à perda líquida de rendimento mensal que os demandantes sofrerem em virtude do encerramento do estabelecimento comercial referido nos autos, entre 17.1.2013 e a data em que cada um complete 66 anos e 3 meses, ou seja, em quantidade superior e em objecto diverso do pedido, o que inquina a sentença de nulidade, nos termos da alínea e) do nº1 do artº 615º do CPCivil, pois que foi para além da idade requerida pelos AA e incluiu neste limite a A. mulher, quando apenas se limitava à idade do A. marido, destacando-se que a A. mulher não consta no instrumento de arrendamento comercial e o seu matrimónio com o A. homem ocorreu posteriormente ao firmamento de tal contrato.
3ª Desde, pelo menos, 2004, que não era viável, de facto e legalmente, a manutenção em funcionamento do estabelecimento sem que nele fossem realizadas as obras de adaptação higiénico sanitárias e de segurança alimentar necessárias a viabilizar a exploração do estabelecimento, por força da entrada em vigor do DL 168/96, que impunha novos requisitos de funcionamentos que o estabelecimento não cumpria.
4ª Foram, aliás, os AA intimados para realizarem tais obras de adaptação pela Câmara Municipal de Odivelas, e não foram as mesmas executadas, pelo que o estabelecimento se manteve a funcionar no desrespeito das condições higiénico-sanitárias e de segurança obrigatórias para aquele tipo de estabelecimento.
5ª Como se refere no douto acórdão do STJ (processo 655/06.2TBCMN.GI.S1) “como critério distintivo para aferir do carácter total ou parcial da perda da coisa, deve atender-se ao fim que era dado ao locado, podendo dizer-se que existe perda total quando o mesmo deixa de poder ser usado para o fim convencionado, não sendo de exigir a sua destruição total”, o que foi o que ocorreu com o locado, pelo que, desde, pelo menos, 2004 que o arrendamento em causa se encontra caducado por perda da coisa, por ter deixado de poder ser usada para o fim convencionado., nos termos do artº 1051º, alínea e) do CCivil.
6ª Os RR adquiriram o imóvel em 2010, por 150 mil euros, tendo sido, logo após a sua aquisição, sido confrontados pelos AA para realizarem no locado obras profundas e dispendiosas, o que para um imóvel centenário, com 3 pisos e muito degradado (facto 14), diz a experiência e senso comuns que não são nunca inferiores a 100,000 euros, sendo que, na verdade ascenderiam a valores de 437.695,50, para a totalidade do imóvel, e de 218.847,75, para o estabelecimento (factos não provados 83 e 84). Inobstante as obras acima referidas, estas se distinguem daquelas que foram exigidas pela ASAE aos AA, vez que estas últimas, parte já tinham sido autorizadas pela antiga Senhoria desde os idos de 27.05.1981 e parte eram de exclusiva responsabilidade dos AA., sem mencionar que todas elas não precisavam de concordância ou autorização dos RR., conforme o artº 49º do DL 168/97, combinado com o disposto no artº 34º do DL 328/86, de 30 de Setembro;
7ª Exigir a realização de obras de tal vulto, em 2011, aos RR, logo após terem adquirido o imóvel por 150 mil euros, quando os AA pagavam uma renda de 29,94 euros, tornam “….é indubitável que esta desproporção entre o valor das obras e das rendas se mostra excessiva, pelo que a exigência aos senhorios da realização de obras no locado naquele montante viola o mais elementar princípio de justiça caindo na previsão do abuso de direito constante do artº 334º do C.Civil “ (Ac. Do STJ, acima citado), pelo que a recusa dos RR em executar tais obras não é censurável, nem constitui violação das suas obrigações, enquanto locador. Tal exigência dos AA., atingem gravemente o equilíbrio contratual e se caracteriza em manifesta ilegalidade, sem mencionar a evidente ausência de boa-fé.
8ª De todo o modo, a realização de obras de adaptação do estabelecimento às exigências higiénico-sanitárias e de segurança alimentar legalmente prescritas, e intimadas pela Câmara Municipal de Odivelas aos AA (facto 32 e 33) não eram de realização obrigatória pelas então Senhorias, anteproprietária aos RR, nem careciam de autorização destas, pois cabia aos RR executarem-nas e, para tanto, não precisavam da autorização das Senhorias (facto 32 e 33), conforme ao disposto no artº 1111º do Código Civil e artº34º do DL 328/86, aplicável ex vi do artº 48º do DL 168/97, e por se tratarem de obras exigidas por lei, nos termos do artº 49º do DL 168/97, pelo que não há que imputar às anteriores Senhorias qualquer responsabilidade pela não execução de obras no imóvel, e de omissão dos seus deveres de então locadoras (artº 486º do C. Civil).
9ª Os RR. sucederam às anteriores Senhorias nos direitos e obrigações destas relativamente ao contrato de arrendamento, mas não sucederam nem para eles foi transmitida a responsabilidade contratual imputável às anteriores Senhorias pelos eventuais e supostos incumprimentos contratuais culposos destas ocorridos em data muito anterior à aquisição pelos AA do imóvel em causa nos autos, pois se trata de uma responsabilidade subjectiva, fundada na culpa (artº798º do C. Civil) apenas imputável a quem, concretamente, incumprir, isto é, apenas eventualmente imputável às anteriores Senhorias, uma vez que foram estas que, desde 2004, pelo menos, terão supostamente faltado à sua obrigação de realização das obras, conforme alagado pelos AA.
10ª A indemnização a que os AA foram condenados, a título de lucros cessantes não resultam diretamente da resolução do contrato, mas da hipotética continuação da atividade dos AA., presumindo-se que os AA continuariam a sua atividade, isto é, não há um nexo de causalidade entre o fecho e o dano previsível (artº 563º do C. Civil), são lucros que presumem que os AA continuariam a sua atividade não fora o fecho do estabelecimento, e não derivam diretamente e apenas do fecho do estabelecimento, mas de um trabalho futuro que se presume, e, diga-se, agora em melhores condições: terão os lucros sem o trabalho!
11ª Acresce que, sendo o contrato anual, a indemnização, a ser devida, sempre teria de ser computada até ao termo do contrato, e não para além dele, e nunca até ao fim da vida ativa do A., como este pediu, ou até à idade da reforma dos AA, como a sentença fixou (artºs 496º e 563º, ambos do Ccivil).
12ª De todo o modo, em caso algum são os RR devedores de qualquer indemnização aos AA pela omissão de realização de obras, pelas razões supra elencadas nas conclusões 7ª e 9ª.
13ª Tal decisão do Tribunal a quo, na realidade é maculada, inclusive, por manifesta inconstitucionalidade, de um lado quando interfere na liberdade dos RR disporem livremente de sua propriedade estipulando uma indemnização que chega a um valor superior ao do próprio imóvel (quando a renda era de apenas 24,94 euros), gerando, na prática, uma espécie de desapropriação indireta e sem interesse público onde, nem com a venda do imóvel se conseguiria pagar a indemnização e, de outro lado, também é inconstitucional por interferir na autonomia da vontade e liberdade das partes que, contratualmente, expressamente fizeram constar no instrumento de arrendamento a possibilidade de denunciar o contrato conforme seus termos e cláusulas legais (tendo a decisão ferido este princípio, a lei e a Constituição, ao criar um vínculo obrigatório entre os outrora contratantes até os 66 anos e 3 meses dos AA, quando o contrato, repita-se, permitia a quebra desse vínculo anualmente). Tanto é assim, que o próprio A quis expressamente pôr fim ao contrato de arrendamento, conforme carta de 3.2.2011, antes mesmo de ter o estabelecimento interditado pela ASAE.
14ª A sentença fere o princípio constitucional da igualdade material entre as partes, posto que a obrigação atribuída aos RR Recorrentes de realização de obras em valores acima dos 100.000,00 euros, imensamente superiores a irrisória renda paga pelos AA Recorridos, de apenas 24,94 inegavelmente acolhe o abuso de direito pleiteado por estes últimos, em um exercício inadmissível de posições jurídicas, que fere a boa-fé e os seus deveres colaterais, à exemplo da lealdade, da ética, zelo, respeito e probidade, considerando o exercício regular dos direitos, o que foi inobservado pelos AA.
Termos em que, por violação dos art.ºs 615, n1, al.e) do CPC; art.ºs 334º; 496º; 563º; 798º; 1051, al. e); 1111º , todos do CC; art.ºs artº 34º do DL 328/86, e art.ºs 48º 49º do DL 168/97, e nos mais de direito que V. Exªs doutamente suprirão, de ser declarada a nulidade da sentença por condenar em quantidade maior e diversa do pedido, ou, assim se não entendendo, revogada por violação dos preceitos e razões supra indicados.
Os autor e interveniente principal/recorridos não deduziram contra-alegações.
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II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação (cf. A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª edição, pág. 95).
Na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635º, n.º 3, do CPC), contudo o respectivo objecto, assim delimitado, pode ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (cf. n.º 4 do mencionado art. 635º). Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não podendo o tribunal ad quem pronunciar-se sobre questões novas (cf. A. Abrantes Geraldes, op. cit., 2016, 3ª edição, pág. 97).
Assim, perante as conclusões da alegação dos réus/apelantes, o objecto do presente recurso consiste na apreciação das seguintes questões:
· Nulidade da sentença por condenação além do pedido;
· Da caducidade do contrato de arrendamento por perda do locado;
· Do incumprimento por parte do senhorio quanto à realização de obras de conservação;
· Da indemnização decorrente do incumprimento do contrato;
· Inconstitucionalidade material por violação do direito de propriedade dos recorrentes e da igualdade material entre as partes.
Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provados os seguintes factos:
· Por escritura pública outorgada 16.1.1978, FP e LP declararam, pelo preço 120 000$00, trespassar ao A., que aceitou, com todo o seu activo e livre de passivo, incluindo os respectivos direitos ao arrendamento, licenças e alvarás, o estabelecimento comercial de frutas, hortaliças e artigos de pastelaria, instalado no R/c, ou loja, do prédio urbano sito ..., em Caneças.
· Pelo alvará n.º 692 de 12.6.1953 da Câmara Municipal de Loures foi concedida a PN licença sanitária para explorar um estabelecimento de café ..., em Caneças.
· Em 1.2.1978 o alvará referido em 2. foi averbado a favor de A..
· Por apresentação de 26.4.2010 está inscrita a favor dos réus a aquisição, por compra, a JL e MLV do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Odivelas sob o nº.1.../ da freguesia de Caneças, sito ... e composto de R/c com quintal e pátio e dois andares (corrigiu-se o lapso manifesto quanto à inscrição da aquisição da favor dos autores, porquanto resulta do documento de fls. 26 e 27 que tal aquisição foi registada a favor de C. casado com D.).
· Por escritura pública outorgada a 26.4.2010, pelo preço de € 150 000, JL e MLV declararam vender a A., que declarou comprar, o prédio urbano sito ... em Caneças, descrito na Conservatória do Registo Predial de Odivelas sob o nº... daquela freguesia.
· Por escritura pública outorgada a 3.4.1943, JL, na qualidade de administrador de bens de sua mulher, AL, declarou entregar em arrendamento a PN, que aceitou, o R/c ou loja do prédio pertença de sua mulher sito ...., em Caneças, destinado a loja de venda de frutas, hortaliças e artigos de pastelaria, sem a respectiva indústria, e, na parte adaptável, a habitação do locatário. A renda estipulada foi de 140$00, correspondendo 80$00 à parte destinada a habitação e 60$00 à parte destinada a negócio, a ser paga adiantadamente no 1º dia útil do mês imediatamente anterior àquele a que disser respeito. Foi ainda convencionado que ficavam expressamente proibidas todas e quaisquer obras no arrendado sem consentimento da senhoria, dado por escrito, e que as obras consentidas só poderiam ser feitas nos termos e condições do consentimento prestado.
· Em 16.1.1978 foi averbada à escritura referida em 6. a menção de que o arrendatário passava a ser A., por força da escritura de trespasse referida em 1..
· Na sequência da última actualização a renda foi fixada em € 24,94.
· O A. nasceu a 13.9.1954 e a A. a 17.12.1961.
· Os AA. casaram entre si em 9.8.1980, segundo o regime da comunhão geral de bens.
· Em carta datada de 27.5.1981, dirigida ao A., AL, na qualidade de senhoria, fez constar que “tomei conhecimento que o Sr. queria fazer obras por sua conta na casa de comércio e habitação que me trás de renda e que o Sr. trespassou em tempos de outro meu inquilino. O prédio é sito ...  em Caneças” e, por solicitação do demandante contida em carta de 19.5.1981, consentiu que ele realizasse na loja ocupada pelo estabelecimento dito em 1., as seguintes obras: “fazer nova casa de banho no pátio para os clientes, forrada de azulejos; restaurar a outra que já tem; renovar as instalações de água; renovar as instalações de electricidade; renovação do barracão; substituir portas e janelas antigas por modernas e novas; fazer nova cozinha com chaminé rústica com duas clareiras”.
· Pela mesma carta AL comunicou ao A. que podia “vender artigos alimentícios: isto é fazer restaurante” e que por acordo entre ambos a renda era actualizada para 3 000$00.
· Com data de 3.2.2011, por intermédio de advogado, o A. remeteu aos RR. uma carta registada com AR, por eles recebida, nos termos da qual, além do mais, propunha uma reunião a fim de se tratar dos seguintes assuntos: 1 - forma de pagamento da renda; 2 – obras a realizar no locado, com interrupção ou não do contrato de arrendamento; 3 – possibilidade de pôr fim ao contrato de arrendamento por acordo.
· O imóvel em que se localiza o estabelecimento dito em 1. é uma construção centenária com três pisos, muito degradada, uma vez que não sofreu obras de conservação ao longo de anos, e cuja recuperação implica a execução de obras profundas e dispendiosas.
· No imóvel em que se localiza o estabelecimento dito em 1) as janelas dos andares estão partidas, com portas e vidros a cair, e os telhados, com telhas partidas, metem água, que passa pelo chão em tábua de soalho de madeira e se infiltra pelas paredes em tabique.
· O R/c ocupado pelo estabelecimento referido em 1., tal como o resto do edifício em que se insere, está muito degradado, sendo que as paredes e tectos apresentam sinais de infiltrações, azulejos soltos e estuque com buracos, o chão está desgastado, as canalizações estão em más condições e tem uma instalação sanitária desactivada.
· As obras de recuperação da área do imóvel ocupado pelo estabelecimento comercial dito em 1) não podem ser realizadas sem intervenção nos pisos superiores do prédio.
· As circunstâncias referidas em 14., 15., 16. e 17. registam-se, pelo menos, desde 2004.
· Os RR. têm conhecimento das circunstâncias referidas em 14., 15., 16., 17. e 18..
· As obras de adaptação higieno-sanitária e de segurança alimentar necessárias a viabilizar a exploração do estabelecimento do A. não podem ser efectuadas sem intervir no imóvel em que ele funciona.
· Por ofício de 29.3.2011, na sequência de declaração prévia para efeitos de registo, nos termos do artº.24 do DL 234/2007 de 19.6, a CM Odivelas notificou o A. de que a mesma estava em condições de ser aceite, tendo por isso sido anexada ao correspondente processo de licenciamento, e de que, em 90 dias, devia instruir procedimento de licença, entregando: projecto de arquitectura, certidão da conservatória do registo predial e parecer favorável da autoridade de saúde.
· Os RR. não se dispõem a autorizar a realização de quaisquer obras pelo A. no espaço ocupado pelo estabelecimento dito em 1., nem a colaborar com ele para o efeito.
· Não é viável a manutenção do funcionamento do estabelecimento referido em 1. no local aí indicado sem que nele sejam realizadas as obras mencionadas em 20..
· A instrução do processo de licenciamento aludido em 21. carece da junção de documento de autorização à realização das obras pelos proprietários do imóvel.
· Em 12.1.2013, após inspecção, a actividade do estabelecimento referido em 1. foi suspensa pela ASAE, por incumprimento das condições de higiene, designadamente: inexistência de água quente e de meios para a obter; inexistência de máquina de lavar loiça; deficiente ventilação da instalação sanitária e desprendimento de cheiros da mesma; inexistência de procedimentos de controlo de pragas e/ou infestantes; e tecto do armazém em mau estado de conservação, com perigo de queda e/ou desprendimento.
· O A. comunicou à ASAE o encerramento da actividade em 17.1.2013..
· Os AA. trabalhavam no estabelecimento referido em 1., tirando dele rendimentos com que proviam ao seu sustento.
· Com o encerramento do estabelecimento referido em 1. o A. deixou de ter a ocupação profissional que desenvolveu desde 1978 e ficou privado dos rendimentos por ela proporcionados.
· O estabelecimento referido em 1. ocupa 158,04 m2 do prédio em que se localiza.
· O A. deixou de habitar no local dito em 1. em 1996.
· O A. explorava no local dito em 1. um café e snack-bar.
· Em data não concretamente apurada da primeira década dos anos 2000, a CM Odivelas intimou o A. para executar obras de adaptação do estabelecimento que explorava às exigências higieno-sanitárias e de segurança alimentar legalmente prescritas.
· Entre as obras de adaptação aludidas em 32. contavam-se: a adequação das instalações sanitárias existentes, com execução de wc para clientes e wc para pessoal; substituição do revestimento de paredes e pavimentos, degradados e desadequados; remoção e reconstrução do tecto, degradado; criação de percurso de marcha a frente no circuito alimentar, inexistente; substituição de caixilharias, por inadequadas; instalação de ventilação para a máquina de café, inexistente; substituição dos balcões frigoríficos, por deficiente funcionamento; e substituição do lava-loiça.
· O imóvel dito em 1. precisa de obras de reparação da cobertura.
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O Tribunal a quo julgou não provados os seguintes factos:
35) Que desde sensivelmente 2001 o A. pretendesse fazer as necessárias obras de adaptação do espaço referido em 1) às exigências higieno-sanitárias e de segurança alimentar legalmente impostas para o seu estabelecimento e às necessidades dos respectivos clientes.
36) Que o A. tenha solicitado às então titulares do imóvel consentimento para realizar as obras aludidas em 32) e 33) e que elas o tenham recusado.
37) Que o A. tenha procurado quer junto dos RR., quer junto das anteriores proprietárias do imóvel, obter uma solução de consenso para a resolução dos problemas de degradação do mesmo.
38) Que o A. tenha dado conhecimento aos RR. de que as obras aludidas na carta referida em 13) eram urgentes, prementes, inadiáveis e necessárias para a continuação da laboração do estabelecimento.
39) Que em 3.2.2011 o estabelecimento instalado no prédio referido em 4) só funcionasse a 30% da sua capacidade, devido à degradação do imóvel em que se localiza e à falta de condições das instalações.
40) Que, quando chove intensamente, as águas tenham de ser recolhidas por baldes no interior do estabelecimento.
41) Que o imóvel em que se localiza o estabelecimento comercial referido em 1) ameace ruir.
42) Que os RR. se tenham recusado a realizar as obras que lhes foram solicitadas pelo A.
43) Que para que o A. possa dar cumprimento ao solicitado pelo ofício referido em 21) careça de colaboração dos RR.
44) Que o piso superior ao do estabelecimento esteja cheio de cães e gatos, cuja urina escorre para o tecto deste quando chove intensamente.
45) Que a ocupação do piso superior ao do estabelecimento por cães e gatos provoque um ambiente nauseabundo e insalubre neste.
46) Que, em resultado da sua actividade, em volume de vendas, o A. tenha declarado nas Finanças, em 2009, €68 474,27, em 2008, € 73 145,51 e, em 2007, € 47 277,33.
47) Que a actividade desenvolvida pelo A. tenha uma rendibilidade de cerca de 30%.
48) Que com o encerramento da sua actividade o A. deixe de auferir € 20 542,20 por ano.
49) Que a circunstância dita em 28) afecte a forma do A. encarar a vida e o futuro.
50) Que a falta de renovação de materiais e de condições de conforto tenham afastado os clientes do estabelecimento.
51) Que a insistência das actividades económicas da câmara municipal tenha levado ao descrédito do serviço.
52) Que a maledicência das anteriores proprietárias, as queixas e as acções judiciais, o desprezo dos RR. e verificar in loco a degradação de um espaço onde tem decorrido grande parte da sua vida tenha provocado grande instabilidade e incerteza de vida aos AA., comportando sofrimento e tristeza sentida no seu seio familiar, de amigos e clientes.
53) Que, em Setembro de 2002, as titulares do imóvel não tenham autorizado o A. a realizar quaisquer obras interiores ou exteriores, incluindo a remoção da porta de um armário.
54) Que pelo ofício 015820 de 8.7.2002 da CM Odivelas, o A. tenha sido notificado para apresentação de projecto.
55) Que por notificação de 7.1.2004 o A. tenha sido notificado pela CM Odivelas para proceder a obras.
56) Que por ofício de 1.6.2004 o A. tenha sido notificado pela CM Odivelas para proceder a obras.
57) Que por comunicação de 16.2.2005 a CM Odivelas tenha participado ao A. uma vistoria a 23 de Fevereiro.
58) Que por notificação de 10.12.2010 o A. tenha sido notificado pela CM Odivelas para a execução de obras.
59) Que em Agosto de 2002 o A. tenha solicitado autorização para a execução de obras, a qual lhe foi negada.
60) Que em 23.9.2004 o A. tenha pedido à CM Odivelas para interceder junto das senhorias, sem resposta.
61) Que em 28.6.2008 o A. tenha participado à CM Odivelas que as instalações de infra-estruturas comuns do edifício estavam num avançado estado de degradação.
62) Que, além do referido em 33), fosse necessário criar circuito de entrada de alimentos, armazenamento, tratamento e confecção, serviço ao cliente, lavagem de aparatos e arrumação, armazenamento e saída de lixos e modificações na iluminação.
63) Que entre as obras de adaptação aludidas em 32) estivessem: a construção de vestiário para funcionários; delimitação de espaço para despensa, com revestimentos adequados e instalação de caixilharia para ventilação; colocação de tectos falsos devidamente fixados, com equipamento de iluminação, detecção de incêndios e ventilação forçada, execução de bancada de preparação de alimentos/bebidas; colocação de bacia lava mãos para funcionários, com comando podal; e colocação de balcão de serviço a clientes.
64) Que o custo das obras referidas em 33), 34) e 63) seja de € 71 700.
65) Que chova no interior do estabelecimento.
66) Que o tecto do estabelecimento esteja abatido e tivesse parcialmente desabado.
67) Que as instalações de águas e esgotos do estabelecimento não funcionem.
68) Que as caixilharias existentes no estabelecimento não ofereçam resistência à intrusão e ao som e estejam num avançado estado de decomposição.
69) Que no estabelecimento existam inúmeras espécies de animais infestantes.
70) Que a instalação eléctrica do estabelecimento seja antiga.
71) Que os rebocos das paredes do estabelecimento estejam a desprender-se.
72) Que das paredes do estabelecimento imane grande humidade e cheiros.
73) Que mais de 80% do espaço aludido em 1. estivesse vedado ao público e só seja feita a utilização do café e armazém.
74) Que o agregado familiar dos AA. seja composto por eles e uma filha maior.
75) Que para além da exploração do estabelecimento o A. nunca tenha tido outra ocupação.
76) Que fosse unicamente com os lucros da exploração do estabelecimento que os AA. e a sua família subsistiam.
77) Que o trespasse referido em 1. não tenha sido comunicado aos então proprietários do imóvel no prazo e pela forma prescrita.
78) Que após o trespasse referido em 1. os donos do imóvel aí mencionado nunca tenham aceitado o recebimento de rendas ao A.
79) Que à data do trespasse dito em 1. o local onde funcionava o estabelecimento já não reunisse condições para o desenvolvimento da respectiva actividade.
80) Que o A. tenha demolido as únicas escadas de acesso a um dos pisos do imóvel referido em 1., bem como uma construção existente no logradouro do mesmo, dessa forma contribuindo para a degradação do prédio.
81) Que as obras de que o imóvel carece importem em € 300 000.
82) Que as obras de que o imóvel carece importem entre € 1 500 a € 2 000/m2.
83) Que as obras necessárias à recuperação do imóvel aludido em 1) sejam as descritas no orçamento de fls.339 e ss., importando em € 437 695,50.
84) Que as obras necessárias à recuperação do espaço ocupado pelo estabelecimento referido em 1. Importem em€ 218 847,75.
85) Que desde pelo menos 2001 o imóvel não reúna condições de habitabilidade e de uso comercial.
86) Que à data de instalação do estabelecimento dito em 31) no espaço mencionado em 1. este já não reunisse condições para nele poder funcionar um estabelecimento de tal natureza.
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3.2. – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Da aplicação da lei processual no tempo
A presente acção foi intentada em 20 de Junho de 2011.
A sentença foi proferida em 19 de Janeiro de 2018.
Em 1 de Setembro de 2013 entrou em vigor o Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 (cf. art. 8º deste diploma legal).
O art. 5º, n.º 1 da Lei 41/2013, de 26-06 tornou imediatamente aplicável às acções declarativas pendentes, o disposto no Código de Processo Civil aprovado em anexo a tal lei, sem prejuízo do disposto nos números seguintes desse normativo.
No que aos recursos diz respeito, o art. 7º, n.º 1 da Lei n.º 41/2013, de 26-06 veio esclarecer que o regime dos recursos decorrente do DL 303/2007, de 24 de Agosto, com as alterações então introduzidas, com excepção do disposto no n.º 3 do art. 671º do CPC, é aplicável aos recursos interpostos de decisões proferidas a partir da entrada em vigor da Lei 41/2013, de 26-06.
Tendo presente a data da prolação da decisão recorrida e a data da entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2013, atender-se-á ao disposto neste Código para apreciação das questões suscitadas em sede de recurso.
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Da Nulidade da Sentença prevista no art. 615º, n.º 1, alínea e) do Código de Processo Civil
Os recorrentes imputam à sentença recorrida a nulidade decorrente de condenação em quantidade superior ao pedido, que fundamentam na circunstância de o Tribunal a quo tê-los condenado no pagamento aos autores de uma indemnização a liquidar em execução de sentença, correspondente à perda líquida de rendimento mensal que os demandantes sofrerem devido ao encerramento do estabelecimento comercial, entre 17 de Janeiro de 2013 e a data em que cada um complete 66 anos e 3 meses de idade, no limite da indemnização já peticionada, sendo que os autores apenas peticionaram tal indemnização até aos 65 anos de idade do autor marido, para além do que o contrato de arrendamento apenas por este foi celebrado.
A senhora juíza a quo proferiu despacho admitindo o recurso interposto mas não se pronunciou sobre a arguida nulidade, como se lhe impunha, atento o disposto nos art.ºs 641º, n.º 1 e 617º do CPC.
A omissão de despacho do juiz a quo sobre as nulidades arguidas não determina necessariamente a remessa dos autos à 1ª instância para tal efeito, cabendo ao relator apreciar se essa intervenção se mostra ou não indispensável – cf. A. Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 149.
Tendo presente a natureza da questão suscitada e o enquadramento que deve merecer, não se justifica a baixa do processo para a pronúncia em falta, passando-se desde já ao conhecimento da suscitada nulidade.
As decisões judiciais podem estar feridas na sua eficácia ou validade por duas ordens de razões: por erro de julgamento dos factos e do direito; por violação das regras próprias da sua elaboração e estruturação ou das que delimitam o respectivo conteúdo e limites, que determinam a sua nulidade, nos termos do art. 615.º do Código de Processo Civil.
Dispõe o art. 615º, n.º 1 do CPC o seguinte:
1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”
Para a correcta interpretação deste preceito importa distinguir entre nulidades de processo e nulidades de julgamento, sendo que apenas a estas últimas se aplica o normativo em referência.
É nula a sentença que, violando o princípio do dispositivo quanto à conformação objectiva da instância, não respeite os limites impostos pelo art. 609º, n.º 1 do CPC, condenando ou absolvendo em quantidade superior ao pedido ou em objecto diverso do pedido.
Tal como decorre do n.º 1 do art.º 609º do CPC, a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir. Significa isto que compete às partes delimitar o thema decidendum, não tendo o juiz que avaliar se naquele caso concreto se adequaria outra providência que não a requerida – cf. A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pág. 728.
Assim, a sentença deve cingir-se ao âmbito do pedido e da causa de pedir, não podendo o juiz condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que é pedido, ou seja, não pode pronunciar-se sobre mais do que o que foi pedido ou sobre coisa diversa daquela que foi pedida, constituindo tal regra um corolário do princípio do dispositivo.
O juiz não pode, por isso, condenar em dívida de valor de montante superior ao pedido, tal como ele se apresenta à data do encerramento da discussão, por via de actualização que tenha em conta a desvalorização da moeda (cf. acórdão n.º 13/96, de 15-10-1996 para uniformização de jurisprudência, DR I-A Série, de 26-11-1996 – “O tribunal não pode, nos termos do artigo 661.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, quando condenar em dívida de valor, proceder oficiosamente à sua actualização em montante superior ao valor do pedido do autor.”), nem, por outra via, pode, no âmbito da responsabilidade extraobrigacional, condenar nos juros de mora devidos desde a citação, nos termos do art.º 805º, n.º 3 do Código Civil, se tal não lhe for pedido pelo lesado (cf. acórdão n.º 9/2015, de 14-05-2015, para uniformização de jurisprudência, DR, I-A Série, de 24-06-2015 –“Se o autor não formula na petição inicial, nem em ulterior ampliação, pedido de juros de mora, o tribunal não pode condenar o réu no pagamento desses juros.”).
De notar, que não releva que o pedido seja formulado por parcelas ou resulte da soma de montantes separados, como sucede quando o autor quantifica vários danos sofridos e pede a sua reparação, sendo jurisprudência pacífica que o limite de cada parcela se reporta ao valor global peticionado – cf. José Lebre de Freitas e Isabela Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª edição, pág. 715; cf. A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, op. cit., pág. 729.
Sobre esta questão refere-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-05-2018, relator Távora Victor, processo n.º 952/12.8TVPRT.P1.S1 acessível na Base de Dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I.P. em www.dgsi.pt:
“A sentença deve manter-se quanto ao seu conteúdo, dentro dos limites definidos pela pretensão do autor e da reconvenção eventualmente deduzida pelo réu, não podendo o juiz proferir sentença que transponha os limites do pedido, quer no que respeita à quantidade, quer quanto ao seu próprio objecto
A limitação contida no normativo em questão – consubstanciada na velha máxima do direito romano ne eat iudex ultra vel extra petita partium - constitui um corolário do princípio dispositivo, numa área que constitui o núcleo irredutível deste princípio. Será, assim, sobre o titular de determinado direito subjectivo que recairá o ónus de escolher, de entre diversas providências possíveis, aquela que melhor satisfaça os seus interesses, sendo o tribunal alheio a essa escolha, que depende única e exclusivamente da vontade do interessado e que uma vez efectuada – através da dedução do pedido – delimitará os poderes do juiz (art. 3.º, n.º 1, do CPC).”; cf. no mesmo sentido ainda que a propósito do valor da causa, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6-07-2017, relatora Fernanda Isabel pereira, processo n.º 344/12.9TBBAO.P1.S1.
Na sua petição inicial, o autor, então ainda desacompanhado da sua mulher, alegou que o encerramento do estabelecimento comercial instalado no locado lhe causaria prejuízos patrimoniais, pois que com o respectivo rendimento sustentava-se a si e à sua família, sendo que em face do volume de vendas dos anos de 2007 a 2009, calculou uma rendibilidade de 30% que entendeu equivalente a € 20 542,20 por ano.
Tendo por referência a sua idade – 56 anos – e, face à legislação então vigente, a perspectiva de uma vida activa por mais 9 anos, fixou a indemnização devida em € 184 479,00 (artigos 28º a 32º da petição inicial).
No entanto, em sede de réplica, o autor veio ampliar o pedido e causa de pedir, referindo que a mulher nasceu em 17-12-1961 e sendo ambos casados em comunhão geral de bens, poderia esta explorar o estabelecimento até à sua idade de reforma, o que ocorrerá 6 anos após a idade de reforma do marido, pelo que pede o valor anual referido multiplicado por 15 anos, num total de € 308 133,00 (artigos 75º a 77º da réplica).
Conforme se consignou no relatório supra, a ampliação do pedido e da causa de pedir foram admitidos.
Assim, quanto à circunstância de ter sido considerada a idade de reforma da mulher, interveniente principal, para efeitos de ponderação do valor da indemnização a fixar em liquidação do julgado, não se vislumbra que o tribunal de 1ª instância tenha incorrido em condenação ultra petitium, independentemente do bem ou mal fundado dessa condenação que se apreciará infra, sendo caso disso.
No que concerne à concreta ponderação da idade da reforma em face da legislação vigente, note-se que o próprio autor menciona, no artigo 31º da petição inicial, que a ponderação de 9 anos como sendo a sua perspectiva de vida activa é efectuada em face da legislação então vigente, o que permite admitir que o seu pedido está balizado pela idade da reforma, seja ela qual for ao momento da decisão, em virtude de eventuais alterações legislativas que entretanto ocorram, ainda que tal não tenha sido expressamente mencionado.
De todo o modo, ainda que assim se não deva entender, sempre se terá de ter em conta que tendo a sentença condenado os réus no pagamento de uma indemnização a liquidar posteriormente correspondente à perda líquida de rendimento mensal decorrente do encerramento do estabelecimento comercial, a calcular desde 17-01-2013 e até à data em que cada um dos autor e interveniente principal complete 66 anos e 3 meses de idade, não deixou de consignar que o valor a apurar não poderá exceder o valor concretamente peticionado pelos demandantes.
Tal significa que, mesmo considerando que a ponderação da idade actual de reforma está para além do concreto pedido formulado para fixação da indemnização devida, sempre se terá de atender ao facto de o valor a apurar nunca poder ultrapassar o montante do pedido, o que se mostra a coberto da jurisprudência uniforme acima mencionada.
Tem-se, assim, por não verificada, a nulidade da sentença por violação do disposto no art. 609º, n.º 1 do CPC.
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Aplicação da Lei Substantiva no Tempo
O Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) foi aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, tendo entrado em vigor, como decorre dos respectivos artigos 1º e 65º, n.º 1, em 28-6-2006.
O artigo 59º, nº 1 do mesmo NRAU preceitua que tal regime “aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias”.
A questão essencial a dirimir nos presentes autos reside em apurar se se verificou a caducidade do contrato de arrendamento comercial e para habitação por perda do locado e/ou se ocorreu fundamento para a respectiva resolução por parte do arrendatário, com fundamento no incumprimento da obrigação de proceder às obras de reparação e conservação do locado e eventual indemnização que lhe seja devida por força dessa resolução.
Atento o estatuído no art. 1028º, n.º 1 do C. Civil, destinando-se a coisa locada a fins diferentes, sem subordinação de uns a outros, observar-se-á, relativamente a cada um deles, o regime respectivo.
Porém, se um dos fins for principal e os outros subordinados, prevalecerá o regime correspondente ao fim principal, sendo os outros regimes aplicáveis na medida em que não contrariem o primeiro e se não mostrem incompatíveis com o fim principal – cf. n.º 3 do referido art.º 1028º.
Prevê-se neste n.º 3 uma outra hipótese de contrato misto em que, atenta a teoria da absorção, o regime correspondente ao fim principal consumirá o regime aplicável ao fim subordinado, a menos que este não contrarie o primeiro e a sua aplicação não se mostre incompatível com o fim principal – cf. José Alberto González, Código Civil Anotado, Volume III – Contratos em Especial, 2014, pág. 181.
Assim, haverá que por interpretação ou por integração, determinar qual o regime que para cada caso melhor corresponde à vontade comum, presumível, hipotética ou conjectural, sendo que para tanto não se deverá atender apenas ao valor locativo de cada uma das partes, mas sim a todas as circunstâncias que permitam determinar a referida vontade comum conjectural dos contraentes na altura do contrato – cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28-03-1996, processo n.º 9531036 referido por José Alberto González, op. cit., pág. 181.
Na situação sub judice está demonstrado que o arrendamento em causa nos autos foi celebrado por escritura pública, em 3 de Abril de 1943, tendo por objecto o rés-do-chão ou loja do prédio sito ..., destinado a loja de venda de frutas, hortaliças e artigos de pastelaria, sem a respectiva indústria, e, na parte adaptável, a habitação do locatário, sendo a renda fixada em Esc. 140$00, correspondendo Esc. 80$00 à parte destinada a habitação e Esc. 60$00 à parte destinada a negócio – cf. ponto 6. dos factos provados.
Se se atentasse apenas no valor locativo de cada uma das partes destinadas a comércio e a habitação tender-se-ia a admitir que esta seria o fim visado prevalecente, dada a maior expressão económica da renda fixada para a parte do locado que lhe é destinada.
No entanto, importa ter presente que o arrendamento em causa foi transmitido ao autor por intermédio de um contrato de trespasse que teve por objecto, precisamente, o estabelecimento comercial de frutas, hortaliças e artigos de pastelaria, instalado no rés-do-chão ou loja do prédio urbano ..., onde se incluiu expressamente o direito ao arrendamento (cf. ponto 1. da matéria de facto provada), o que significa que o locado releva sobremaneira enquanto elemento integrante do estabelecimento comercial nele instalado, sendo certo que a parte destinada a habitação nem sequer é mencionada no negócio.
Por outro lado, está provado que o autor deixou de habitar no locado em 1996 (cf. ponto 30. da matéria de facto), pelo que desde essa data e até à instauração da presente acção e, bem assim, até ao momento em que encerrou o estabelecimento, o que relevava nesta relação arrendatícia era, sem dúvida, a parte atinente ao estabelecimento comercial, tanto mais que foi exactamente a impossibilidade de prosseguir a actividade comercial que ali vinha desenvolvendo que originou a instauração da presente acção e pretensão resolutiva do negócio.
Deve, assim, concluir-se que o interesse primordial das partes aquando da celebração do contrato terá residido no destino do locado a estabelecimento comercial. Aliás, nesse sentido depõe o próprio teor do contrato, de onde se retira que ao momento da sua celebração não existiria tão-pouco, já então, uma parte habitável, porque se alude apenas à habitação do locatário, na “parte adaptável”.
Neste enquadramento, que se afigura o mais consentâneo, o regime a ponderar será o aplicável aos arrendamentos para fins não habitacionais, em prevalência ao previsto para os arrendamentos habitacionais.
O art. 28º, n.º 1 do Lei n.º 6/2006, de 27-02 estipula que aos contratos para fins não habitacionais celebrados antes do DL 257/95, de 30-09 (como é o caso – cf. ponto 6. da matéria de facto) se aplica o disposto no art. 26º, com as especificidades mencionadas nos números seguintes e nos artigos 30º a 37º e 50º a 54º do NRAU.
Tal significa que tais contratos passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades previstas quanto à denúncia e benfeitorias.
Nos termos do art. 12º, n.º 1 do C. Civil “a lei só dispõe para o futuro”.
Porém, de acordo com o n.º 2 da referida disposição legal “quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”.
“As normas jurídicas que determinam o efeito de um facto (de que derivam, portanto, o nascimento, a extinção ou a modificação de uma relação jurídica) referem-se unicamente aos factos futuros dessa espécie. As normas que se referem imediatamente aos próprios direitos, isto é, abstraindo dos factos do seu nascimento ou da sua extinção, do seu conteúdo ou do seu efeito, da sua existência ou da sua inexistência, regem, igualmente, para o futuro, mas abrangem os direitos dessa índole já existentes” – cf. J. Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, vol. I, pág. 47; no mesmo sentido, Fernando Baptista de Oliveira, Contratos Privados – Das Noções à Prática Judicial, Vol. I,  pág. 143.
O arrendamento configura uma situação jurídica duradoura, como tal visada na segunda parte do n.º 2 do art. 12º do C. Civil.
A verificação da perda do locado deve ser aferida por referência à data em que o facto ocorreu, sendo que a disciplina aplicável será a que, nessa matéria, se encontrava em vigor à data da sua verificação, ou seja, a lei vigente ao momento em que ocorre o facto que opera a caducidade – cf. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-05-2011, relator Henrique Antunes, processo n.º 1442/04.8TJLSB.L1.
Com efeito, independentemente da data da celebração e de início de vigência do arrendamento em causa, a disciplina que lhe é aplicável, em matéria de causas de caducidade, será a que estiver em vigor à data do facto determinante da caducidade, isto é, a destruição do locado.
No caso, as condições do locado em que os recorrentes assentam a sua conclusão de que tal caducidade ocorreu, verificam-se desde 2004, data em que estava em vigor o Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Dec.-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro, pelo que serão as normas dele emergente que se hão-de aplicar para a respectiva aferição de tal acto extintivo.
No que concerne às causas de resolução do contrato de arrendamento, será aplicável o regime em vigor à data da propositura da acção, por ser esse o momento decisivo para se apurar se a parte tem o direito que se arroga.
Na verdade, como se refere de modo cristalino no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-05-2012, relator Sousa Leite, processo n.º 66/03.1TBCLB.C2.S1:
“[...] quando a lei nova dispõe sobre os efeitos decorrentes da prática de quaisquer factos, a mesma visa apenas aqueles que se verifiquem após o início da sua vigência, como emanação do princípio à mesma inerente da sua não retroactividade, sendo, portanto, a lei vigente ao tempo da ocorrência dos factos a judiciar, a aplicável no que respeita às causas de resolução do contrato – art. 12º, n.º 2, primeira parte, do CC e Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil do Prof. Baptista Machado, pág. 114/115.
Por seu turno, na petição, que constitui o articulado através do qual tem início a propositura da acção, deve ser enunciada a respectiva causa de pedir e o pedido correspondente à pretensão jurídica que o autor pretende que lhe seja reconhecida pelo órgão jurisdicional ao qual a mesma é dirigida, elementos esses que, a priori, se tornam inalteráveis com a citação do demandado – arts. 467º, n.º 1, als. d) e e), 268º, e 481º, al. b) do CPC.
Temos, portanto, que, estando em causa, na presente acção, normas de direito substantivo atinentes à extinção de um contrato de arrendamento, com fundamento na ocorrência de factos integrativos da sua resolução, ter-se-á de considerar, perante o apontado princípio da estabilidade da instância, o regime em vigor à data da propositura da acção […]”.
Como tal, neste caso, atender-se-á ao regime decorrente do NRAU, na redacção anterior à entrada em vigor da Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, dado que a acção foi interposta em 20 de Junho de 2011.
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Da Caducidade do Contrato de Arrendamento por perda da coisa locada
No presente recurso não vem discutida a qualidade de arrendatário do autor, nem tão-pouco a transmissão da posição contratual de senhorio dos anteriores proprietários para os ora recorrentes, questões que foram decididas na decisão recorrida, tendo-se considerado que o autor/recorrido foi reconhecido pelo anterior senhorio como beneficiário do trespasse referido no ponto 1. da matéria de facto e, bem assim, da transmissão, por via daquele, do contrato de arrendamento.
Mais se considerou que por força da transmissão do direito do locador sobre o bem locado ocorre ipso iure a transmissão da posição contratual daquele no contrato de locação para o adquirente, pelo que são oponíveis ao novo senhorio todos os direitos que o arrendatário tenha em relação ao objecto locado, independentemente do momento em que se tenham verificado as circunstâncias em que o direito se baseia, sendo certo que, neste segmento, os recorrentes se insurgem contra a fixação de uma indemnização imputando-lhes uma responsabilidade pela não realização de obras que deve recair sobre os anteriores proprietários do imóvel.
Sustentam os recorrentes que não devia o tribunal recorrido ter concluído pela resolução do contrato de arrendamento, porquanto antes de esta se verificar, já o contrato de arrendamento se extinguira por caducidade decorrente da perda do locado.
Argumentam que, conforme resultou provado, desde 2004 o imóvel onde está instalado o estabelecimento comercial, é de construção centenária, estando muito degradado, cuja recuperação implica execução de obras profundas e dispendiosas; as paredes e tectos do estabelecimento apresentam infiltrações, azulejos soltos e estuque com buracos, as canalizações estão em más condições e uma instalação sanitária desactivada, assim como se provou que não pode o estabelecimento funcionar sem que sejam realizadas obras de adaptação higieno-sanitárias, sendo que estas tinham já sido autorizadas pela anterior senhoria; mais referem que a intimação da Câmara Municipal de Odivelas dirigida aos autores visava o cumprimento dos novos requisitos legais para os estabelecimentos de restauração e bebidas, previstos no DL 168/97, de 4 de Julho, concluindo que, se não desde 2004, pelo menos desde a primeira década de 2000, ocorreu a caducidade do contrato de arrendamento por o locado não reunir condições para o uso nele previsto.
A sentença recorrida apreciou esta questão nos seguintes termos:
“Numa outra vertente, contra a pretensão resolutiva do contrato de arrendamento deduzida nos autos pelos AA., os RR. invocaram a prévia caducidade do contrato de arrendamento decorrente da perda da coisa arrendada.
Chamando assim à colação a disciplina do artº.1051º, al. e) CC, segundo o qual “o contrato de locação caduca: (…) e) pela perda da coisa locada; (…)”.
Assim, antes de mais, importa indagar se, no caso, ocorreu a perda da coisa locada.
É pacífico na doutrina e na jurisprudência que a perda da coisa locada a que a norma em apreço reporta é apenas a sua perda total, não bastando para integrar o conceito a perda parcial do bem dado em locação.
Por outro lado anota-se que a referida perda total é entendida não apenas no sentido físico e naturalístico da sua destruição integral, - situação que obviamente integra o conceito -, mas essencialmente no sentido da sua perda funcional para os fins do contrato.
Na verdade, como se refere em Ac. STJ de 11.12.2012, disponível in www.dgsi.pt, “o critério de qualificação da perda total ou parcial para efeitos da caducidade do arrendamento não é físico ou naturalístico, antes dependendo do fim a que a coisa se destina, devendo assim considerar-se a perda total quando o arrendado não fica em condições de satisfazer o fim convencionado”.
De facto, é hoje entendimento unânime na doutrina e jurisprudência que como critério distintivo para aferir do carácter total ou parcial da perda da coisa, deve atender-se ao fim que era dado ao locado, podendo dizer-se que existe perda total quando o mesmo deixa de poder ser usado para o fum convencionado, não sendo de exigir a sua destruição total”.
Sendo que “basta a verificação objectiva da perda do locado para se verificar, ope legis, a caducidade do contrato de arrendamento, nos termos do artº.1051º, al. e) CC”.
Nada relevando para o caso a culpa do senhorio, designadamente por omissão da realização de obras de conservação.
É que com a perda da coisa locada, independentemente de qualquer juízo de culpa, a obrigação do senhorio proporcionar ao arrendatário o gozo do imóvel tornar-se objectivamente impossível e portanto extingue-se – cf. artº.790º, nº.1 CC.
É, aliás, por isso que Romano Martinez, in Cessação do Contrato, pág. 323 e ss., referido no Ac. STJ de 4.3.2008, loc. cit., esclarece que a causa de extinção do contrato de arrendamento em referência não consubstancia um caso de caducidade em sentido estrito, mas antes um caso de impossibilidade superveniente do respectivo objecto, que deixa de existir.
Por outro lado é de assinalar que “a perda da coisa locada difere da simples privação temporária do locado que determina a simples suspensão da vida do contrato. E difere precisamente porque no segundo caso, o espaço físico do arrendado continua a existir, mas por alguma ponderosa razão não é possível temporariamente exercer nesse mesmo espaço a finalidade contratada, enquanto na primeira situação (a perda da coisa) é o próprio espaço físico do arrendamento que desaparece” – cf. Ac. RC de 5.3.2013, loc. cit..
A perda da coisa locada distingue-se também da sua perda parcial que identifica as situações em que o arrendatário, podendo ainda gozar, no todo ou em parte, a coisa arrendada para o fim a que contratualmente a mesma foi destinada, vê esse gozo de algum modo diminuído e afectado, por exemplo em razão da degradação avançada do arrendado.
Parafraseando Januário Gomes, in Arrendamentos para Habitação, pág.250, referido no Ac. STJ de 2.7.2005, loc. cit., sublinha-se que “a perda determinante da caducidade é a perda total resultante por ex. de incêndio, terramoto, desabamento, de acção do homem, etc.
E que “em concreto, pode ser discutível o carácter total ou parcial da perda. A apreciação que deve primar pela razoabilidade: haverá perda total quando, objectivamente, o local tenha perdido as aptidões mínimas necessárias para ser usado. À luz da concepção funcional, poderá não ser necessário aguardar que um prédio caia como um baralho de cartas para se concluir pela perda do mesmo”.
No caso dos autos é pacífico que não ocorreu a destruição total ou sequer parcial do arrendado em termos físicos e naturalísticos, não havendo também indícios, ao contrário do que foi aventado pelas partes nos articulados, que o imóvel em que o mesmo se localiza se encontre em risco de ruína.
Na verdade, a invocação de caducidade do contrato pelos demandados estriba-se na degradação da loja dada em arrendamento e do prédio onde ela se situa.
Prédio que é uma construção centenária com três pisos, muito degradada, dado não ter sofrido obras de conservação ao longo de anos, cujas janelas dos pisos superiores estão partidas, com portas e vidros a cair e cujo telhado está danificado, permitindo a entrada de água das chuvas que passa pelo chão de madeira e se infiltra pelas paredes em tabique, determinando o aparecimento nas paredes e tectos da loja do R/c de sinais de infiltrações, azulejos soltos e estuque com buracos.
Além disso é um imóvel cujos materiais de acabamento, como o pavimento do chão do R/c, apresentam grande desgaste e cujas canalizações estão em más condições de funcionamento.
Ora, se bem se vê, em face das considerações acima feitas, o cenário apurado não revela uma situação de perda da coisa locada, mas tão só de uma sua importante degradação.
Como, aliás, o demonstra o facto de à data da interposição da acção e até mais recentemente os AA. manterem em funcionamento no arrendado o estabelecimento comercial que lá instalaram.
E o sugere a falta de notícia de que a Câmara Municipal de Odivelas alguma vez tenha intimado os proprietários para fazer obras no imóvel ou por razões de segurança interditado a sua utilização, o que certamente teria acontecido na iminência da sua derrocada ou falta de segurança e portanto perda de vocação do imóvel para a satisfação das finalidades com que foi edificado – habitação e comércio.
Pelo que se conclui que o contrato de arrendamento referido nos autos não caducou por perda da coisa locada.
Sem prejuízo, ante os termos em que se mostra estruturada a contestação, crê-se oportuno deixar claro que a circunstância de se saber que o estabelecimento comercial do A. há muito não reúne as condições de funcionamento legalmente impostas para a actividade nele desenvolvida, - tendo inclusivamente na pendência da acção visto a respectiva actividade suspensa pela ASAE e conhecido posteriormente o seu encerramento -, nada releva no caso para efeito de aferição da caducidade do contrato de arrendamento por perda da coisa arrendada.
Já que, como linearmente se retira dos factos apurados, a aludida falta de condições de funcionamento do estabelecimento comercial do A. tem como matriz o não cumprimento, - por falta de adaptação e adequação das instalações -, das evolutivas prescrições sanitárias, de higiene e de segurança alimentar legalmente previstas para estabelecimentos de restauração, bebidas e similares e não a falta de segurança do imóvel onde funciona.
Ademais crê-se ser de deixar expresso que o facto de se ter apurado que as obras de recuperação que o imóvel pertença dos AA. carece, para ver restituídas as suas condições normais de gozo e fruição e as suas aptidões, serem profundas e importarem um dispêndio avultado não infirma o que se sustentou quanto à não verificação da caducidade do contrato por perda total da coisa locada.
Uma vez que essa afirmação abstracta de custos e de necessidade de obras não está acompanhada da evidenciação de que o estado de degradação do prédio dos AA. torna inviável, técnica ou economicamente, a sua recuperação ou impõem a sua demolição/esventramento integral, seguida de reconstrução total para recuperação das suas aptidões.
O que significa portanto que os ditos custos e obras não são relacionáveis com uma perda da identidade física do imóvel onde se encontra a loja arrendada aos AA.
Acresce que nada indica também que o estado de degradação que o imóvel e o arrendado apresentam tornem o edifício e a loja existentes inaptos para o fim do contrato, nem definitivamente inutilizáveis para os fins que lhe são próprios.
O que é dizer que a impressão de custos acima referida e a natureza das obras necessárias a corrigir as situações referida em 15) e 16) apenas revelam que existe uma degradação acentuada do prédio por força da qual o arrendatário perdeu parcialmente o gozo do arrendado.”
A apreciação da excepção de caducidade do contrato de arrendamento propugnada pelos réus/recorrentes mostra-se, assim, correcta e cabalmente decidida pelo tribunal a quo, que se estribou na doutrina e jurisprudência maioritárias quanto à integração do conceito de “perda da coisa locada”, enquanto causa de extinção do contrato de arrendamento por caducidade, prevista no art. 1051º, e) do Código Civil.
Cumpre notar, contudo, que as condições em que se encontra o locado descritas nos pontos 14. a 17. da matéria de facto se verificam desde 2004, pelo que será em face dessas condições reportadas a esta data que importará aferir da respectiva perda da coisa, o que implica que se convoque para tanto o regime então vigente, ou seja, o regime do arrendamento urbano aprovado pelo DL 321-B/90, de 15 de Outubro, cujo art. 66º, n.º1 remetia, precisamente, para as situações de caducidade previstas no art. 1051º do C. Civil (o que, em rigor, não introduz alteração relevante na apreciação efectuada).
A caducidade é a extinção automática do contrato como mera consequência de algum evento a que a lei atribui esse efeito. Verificado o evento, “o contrato resolve-se ipso iure, sem necessidade de qualquer manifestação de vontade, jurisdicional ou privada, tendente a extingui-lo. O fundamento da resolução opera por si e imediatamente.” – cf. J. Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 6ª edição, Revista e actualizada, pág. 454.
A extinção do contrato, nessas situações, não depende de declaração a tanto dirigida.
Uma das causas de extinção, por caducidade, do contrato de arrendamento consiste na perda da coisa locada – cf. art. 1051º, n.º 1, e) do C. Civil ex vi art. 66º, n.º 1 do RAU (correspondente, aliás, a uma situação de direito geral que é a impossibilidade objectiva da prestação, como causa de extinção das obrigações, nos termos do art. 790º, n.º 1 do C. Civil).
É unânime o entendimento de que por perda da coisa locada se deve entender a perda total da coisa, resultante, por exemplo, de incêndio, terramoto, desabamento, de acção do homem, etc..
No caso de perda parcial funcionam, também aqui, as regras de direito comum, isto é, o objecto do contrato de arrendamento fica reduzido à parte restante, com redução da renda, mas o arrendatário pode resolver o contrato se o arrendamento, nesses termos, lhe não interessar – cf. artº 793º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil.
Haverá perda parcial quando o locatário pode ainda gozar, no todo ou em parte, a coisa arrendada para o fim a que esta foi contratualmente destinada. Nesse caso, o que importa ter em conta é o grau de destruição da coisa locada e a situação subsequente e, depois, partir desta para avaliar se o imóvel ainda permite ou não ser gozado ou utilizado para os fins da concreta locação.
Para aferir, em concreto, do carácter total ou parcial da perda há que lançar mão não de um critério estritamente naturalístico ou físico mas antes funcional, tal como se mencionou na decisão recorrida.
Haverá perda total quando, objectivamente, o local tenha perdido as aptidões mínimas necessárias para ser usado, ou seja, não é necessário que o prédio se desmorone por completo para que se conclua pela sua perda, bastando que sofra uma destruição de tal ordem que o torne insusceptível de servir para os fins que lhe são próprios ou contratualmente previsto – cf. Luís Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 9ª Edição, pág. 156.
“Nestas condições, a perda deve considerar-se total não apenas nos casos de supressão física absoluta do imóvel – mas igualmente nas hipóteses mais benignas de desaparecimento das respectivas qualidades, que tornem impossível a sua utilização para os fins convencionados no contrato. A caducidade – notou-se já – opera ipso iuris. O momento em que a caducidade se dá é, portanto, o da data em que ocorre o facto que a determina. Assim, sempre que o fundamento da caducidade consista no desaparecimento das qualidades do prédio que impossibilite o seu gozo para o fim convencionado, a caducidade opera quanto aquela perda se torne indiscutível. O momento em que essa avaliação é feita é, naturalmente, o da ocorrência do facto que provoca a supressão daquelas qualidades.” – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-05-2011, relator Henrique Antunes, processo n.º 1442/04.8TJLSB.L1-2.
É unanimemente aceite que sobrevindo o perecimento do prédio, o senhorio não tem a obrigação de o reconstruir. Com efeito, a obrigação de conservação do locador não abrange o dever de reconstrução no caso de a coisa locada perecer. O dever de conservação (cf. art. 1031º, b) do C. Civil e art.ºs 11º a 13º do RAU) finda com a destruição total da coisa locada pois o locador não tem de oferecer ao locatário uma nova coisa em locação.
As dúvidas suscitam-se, contudo, a propósito da perda parcial da coisa locada em contraponto a uma mera deterioração que represente para o senhorio uma obrigação de reparar os danos ocorridos.
Aqui, haverá que lançar mão da distinção entre obras de reparação e obras de reconstrução. “As primeiras integram a obrigação a que o senhorio está adstrito de assegurar o gozo da coisa para os fins a que foi destinada. As segundas, embora não envolvam toda a parte arrendada, determinam a caducidade do contrato.” – cf. J. Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, Coimbra, 1996, págs. 703 e 704.
Deste modo, se se tem de reconstruir paredes ou telhados que ruíram sem culpa do senhorio, por efeito, por exemplo, de um incêndio ou de um abalo sísmico, haverá perda da coisa, que determinará a caducidade do contrato – cf. neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20-01-2011, relatora Teresa Albuquerque, processo n.º 241/04.1TBBRR.L1-2.
Assim, “[] se a coisa locada perece, no todo ou em parte, o locador não é obrigado a desenvolver mais nenhuma actividade []”. “O arrendatário não tem qualquer escolha entre pretender a reparação do dano ou renunciar a ela gozando a coisa no estado em que se encontra, se ela estiver objectivamente em tal estado que deva considerar-se destruída, porque a superveniente impossibilidade da prestação do locador produz automaticamente a extinção da relação sem que sobre ela tenha influência o interesse do arrendatário na sua continuação.” – Mirabelli e Tabet apud Pinto Furtado, op. cit., pág. 703, nota 79.
Se a coisa locada se deteriorou em termos tais que só a sua reconstrução total a pode tornar novamente apta para o fim a que se destinava, o arrendamento, nesse caso, não pode subsistir, porquanto o prédio, depois de reconstruído, já não é o mesmo: é outro. Dá-se a perda da coisa locada que determina a caducidade do arrendamento.
Atente-se nos factos que resultam demonstrados nos autos e que relevam para a apreciação desta questão:
· O imóvel em que se localiza o estabelecimento dito em 1. é uma construção centenária com três pisos, muito degradada, uma vez que não sofreu obras de conservação ao longo de anos, e cuja recuperação implica a execução de obras profundas e dispendiosas;
· No imóvel em que se localiza o estabelecimento dito em 1) as janelas dos andares estão partidas, com portas e vidros a cair, e os telhados, com telhas partidas, metem água, que passa pelo chão em tábua de soalho de madeira e se infiltra pelas paredes em tabique;
· O R/c ocupado pelo estabelecimento referido em 1., tal como o resto do edifício em que se insere, está muito degradado, sendo que as paredes e tectos apresentam sinais de infiltrações, azulejos soltos e estuque com buracos, o chão está desgastado, as canalizações estão em más condições e tem uma instalação sanitária desactivada;
· As obras de recuperação da área do imóvel ocupado pelo estabelecimento comercial dito em 1) não podem ser realizadas sem intervenção nos pisos superiores do prédio;
· As circunstâncias referidas em 14., 15., 16. e 17. registam-se, pelo menos, desde 2004;
· As obras de adaptação higieno-sanitária e de segurança alimentar necessárias a viabilizar a exploração do estabelecimento do A. não podem ser efectuadas sem intervir no imóvel em que ele funciona;
· Não é viável a manutenção do funcionamento do estabelecimento referido em 1. no local aí indicado sem que nele sejam realizadas as obras mencionadas em 20.;
· Em 12-01-2013, após inspecção, a actividade do estabelecimento referido em 1. foi suspensa pela ASAE, por incumprimento das condições de higiene, designadamente: inexistência de água quente e de meios para a obter; inexistência de máquina de lavar loiça; deficiente ventilação da instalação sanitária e desprendimento de cheiros da mesma; inexistência de procedimentos de controlo de pragas e/ou infestantes; e tecto do armazém em mau estado de conservação, com perigo de queda e/ou desprendimento;
· O A. comunicou à ASAE o encerramento da actividade em 17-01-2013;
· O A. explorava no local dito em 1. um café e snack-bar;
· Em data não concretamente apurada da primeira década dos anos 2000, a CM Odivelas intimou o A. para executar obras de adaptação do estabelecimento que explorava às exigências higieno-sanitárias e de segurança alimentar legalmente prescritas;
· Entre as obras de adaptação aludidas em 32. contavam-se: a adequação das instalações sanitárias existentes, com execução de wc para clientes e wc para pessoal; substituição do revestimento de paredes e pavimentos, degradados e desadequados; remoção e reconstrução do tecto, degradado; criação de percurso de marcha a frente no circuito alimentar, inexistente; substituição de caixilharias, por inadequadas; instalação de ventilação para a máquina de café, inexistente; substituição dos balcões frigoríficos, por deficiente funcionamento; e substituição do lava-loiça;
· O imóvel dito em 1. precisa de obras de reparação da cobertura.
Realce-se, tal como se extrai da decisão recorrida, que importa discernir as obras necessárias à adaptação do locado para cumprimento das normas legais decorrentes do regime do licenciamento e funcionamento dos estabelecimentos destinados a prestar serviços de restauração e de bebidas previsto no DL n.º 168/97, de 4 de Julho, depois revogado pelo DL 234/2007, de 19 de Junho (por sua vez revogado pelo DL 48/2011, de 1 de Abril), das necessárias à reparação e conservação do imóvel para que nele possa ser desenvolvida a actividade prevista no contrato de arrendamento.
Assim, para efeitos do preenchimento do pressuposto da caducidade – perda da coisa locada – importa antes relevar que apenas se apurou que o imóvel em cujo rés-do-chão está instalado o estabelecimento comercial é um edifício centenário, com três pisos, cuja construção se apresenta muito degradada, com janelas partidas, portas e vidros a cair e o telhado com telhas partidas, por onde se introduz água que escorre até ao chão, que é em tábua de soalho de madeira e se infiltra pelas paredes; o rés-do-chão apresenta paredes e tectos com infiltrações, azulejos soltos e estuque com buracos, estando o chão desgastado, as canalizações em más condições e uma instalação sanitária desactivada, sendo que a reparação desta situação implica também intervenção nos pisos superiores; por sua vez, o imóvel precisa ainda de obras de reparação da cobertura.
Antes de mais, tenha-se presente que “reparar” é consertar, restaurar, refazer, isto é, implica a ideia de mero conserto, restauro com aproveitamento do todo existente e mera supressão dos elementos danificados; diversamente, “recuperar” é reaver o perdido, readquirir e “reconstruir” é construir de novo, reedificar, reconstituir - cf. Dicionário da Língua Portuguesa, 5ª edição, Porto Editora.
Ora, tendo em conta que as anomalias identificadas, ainda que assumam uma expressão relevante -seja em termos da amplitude da intervenção a efectuar, seja em termos económicos -, certo é que não revelam ou não permitem concluir que esteja em causa uma situação que exija uma obra de reconstrução, não estando demonstrado que seja necessário demolir e reconstruir de novo, tanto mais que relativamente à cobertura (telhado), cuja situação será a mais gravosa por dela decorrer a entrada da água que se infiltra pelas paredes e chãos em soalho, causando toda a degradação descrita, apenas se apurou que será necessária a sua reparação, sem qualquer indicação sobre se seria necessário retirar toda a sua estrutura de suporte e refazê-la, não havendo, por outro lado, qualquer evidência de necessidade de demolição de paredes e sua reconstrução.
Significa isto que o estado do edifício não permite, é certo, o exercício da actividade comercial desenvolvida no locado em condições de salubridade, higiene e segurança alimentar (ou até segurança física das pessoas que ali acedem) mas, na verdade, não obstante as exíguas condições de integridade do imóvel descritas, certo é que o autor/recorrido ali permaneceu até Janeiro de 2013, mantendo aberto o café e snack-bar que ali explorava, não tendo tão-pouco resultado provado que o funcionamento do estabelecimento estivesse reduzido a 30%, conforme alegado (cf. 34) dos factos não provados) e menos ainda que o edifício ameace ruir (cf. 41) dos factos não provados).
Não se detecta qualquer facto revelador da ocorrência de um caso fortuito ou de força maior que tenha causado qualquer vício redibitório no imóvel e não obstante o manifesto estado de degradação em que se encontra, certo é que o inquilino não deixou de ter pelo menos aquelas que seriam as condições mínimas para continuar a exercer a sua actividade comercial, que manteve até Janeiro de 2013 e que cessou apenas por via da inviabilidade de adaptar o estabelecimento às condições de higiene e salubridade exigidas por lei.
A caducidade do arrendamento só teria ocorrido se se tivesse demonstrado que o locado, desde 2004 ou pelo menos desde a primeira década do século XXI, estava inutilizável ou se tinha tornado impróprio para servir os fins para que foi arrendado, mas não é isso o que os factos provados revelam, nem deles se pode inferir essa inviabilidade, ainda que se deva considerar que, actualmente, a sua reparação implica a execução de obras de remodelação ou restauro profundo – cf. neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-10-2015, relator Orlando Afonso, processo n.º 915/09.0TVPRT.P1.S1 – “A caducidade do arrendamento pela perda da coisa locada previsto na alínea e) do art.1051º do CC é um afloramento do princípio geral sobre a impossibilidade superveniente da prestação prevista no art.790º e segs. do mesmo código e, em matéria de locação, o critério aconselhável sobre a impossibilidade total ou parcial da prestação por parte do locador tem de depreender-se do grau de destruição do prédio. Assim, se o incêndio causal deflagrado no prédio, tal como descrito na matéria de facto, não atingiu o r/c arrendado deixando a inquilina em condições de continuar a exercer a sua actividade comercial, embora com determinadas limitações de cómodos dadas as danificações ocorridas nos andares, não houve perda da coisa locada. A caducidade do arrendamento só se operaria se após o incêndio o locado tivesse ficado inutilizável ou tornado impróprio para servir os fins para que foi arrendado. Não foi isso o que sucedeu face à prova produzida. A A continuou a exercer a sua actividade no locado. Após o sinistro a autora manteve o seu estabelecimento em funcionamento até meados de Maio seguinte.”
Conclui-se, assim, que não merece censura a decisão recorrida na parte em que considerou improcedente a excepção deduzida pelos réus/recorrentes atinente à caducidade do contrato de arrendamento por perda da coisa locada.
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Da Resolução do contrato de arrendamento por falta de realização de obras de conservação e da indemnização devida pelo senhorio por força do incumprimento
Para além de ter sustentado que deveria ter sido reconhecida a caducidade do contrato de arrendamento, os apelantes dirigem o seu inconformismo contra a decisão proferida pelo tribunal a quo na parte em que esta os condenou no pagamento de uma indemnização ao autor e interveniente principal/recorridos, a liquidar posteriormente, correspondente à perda líquida de rendimento mensal que estes sofreram e vierem a sofrer pelo encerramento do estabelecimento comercial, entre 17 de Janeiro de 2013 e a data em que cada um deles complete 66 anos e 3 meses de idade, tendo por limite o montante peticionado.
Entendem os réus/recorrentes que o tribunal de 1ª instância errou ao não reconhecer que o fundamento em que os recorridos assentaram a resolução do contrato de arrendamento – a não execução de obras no locado – se traduz num abuso de direito, o que fazem sustentando que as obras necessárias para a reposição do locado em condições de utilização são profundas e dispendiosas, sendo da experiência comum que o seu custo será superior a € 100 000,00, pelo que a exigência da sua realização face ao montante da renda mensal que é de € 24,94 consiste numa desproporção que torna não censurável a sua não realização pelos senhorios.
Os apelantes defendem que não pode ser transmitida para si, enquanto adquirentes do locado, em Abril de 2010, a responsabilidade subjectiva dos anteriores proprietários que, verificadas tais condições desde 2004, nada fizeram, pelo que não podem aqueles ser responsabilizados pela omissão destes últimos nem lhes pode ser exigida qualquer indemnização.
Mais referem que as obras de adaptação do estabelecimento às exigências higieno-sanitárias e de segurança alimentar não eram de realização obrigatória pelo senhorio e já haviam sido autorizadas em 1981, pelo que cabia aos demandantes/recorridos realizá-las, tanto mais que as obras determinadas pela ASAE não são obras profundas mas de adaptação, podendo, aliás, ser executadas sem autorização do locador, nos termos do art.º 49º (será art.º 48º) do DL 168/97 e art. 34º do DL 328/86, de 30 de Setembro.
Quanto ao montante da indemnização atribuído aos recorridos alegam os recorrentes que o contrato de arrendamento foi celebrado apenas com o autor e não com a sua mulher, pelo que a idade de reforma desta não poderia ser atendida para efeitos do cálculo da indemnização; por outro lado, não existem factos provados de onde se possa concluir pela existência de lucros cessantes desde 17-01-2013 até aos 66 anos e 3 meses de idade de cada um dos demandantes, pois que o contrato não foi celebrado sem prazo, pelo que nem se sabe se estes se manteriam em actividade; mais referem que uma indemnização que pode ascender até setenta mil euros, face a uma renda de € 24,94 é de clamorosa desproporção; suscitam ainda a inconstitucionalidade da decisão por conduzir a uma desapropriação indirecta do imóvel, pois que nem com a venda deste conseguiriam pagar tal valor, para além de afectar a igualdade material entre as partes, obrigando os recorrentes ao pagamento de uma indemnização que ascenderá a valor superior a € 100 000,00, face a uma renda paga pelos recorridos de € 24,94.
O tribunal recorrido apreciou a resolução do contrato de arrendamento e fixou uma indemnização pelo incumprimento nos seguintes termos:
“Assim, detenhamo-nos sobre a questão da resolução do contrato trazida a juízo pelos AA. a coberto do disposto no artº.1083º, nº.1 CC, norma na qual em sede de contrato de locação se estabelece que “qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte”.
Sendo que os demandantes apontam aos senhorios concretamente o incumprimento do dever instituído no artº.1031º, al. b) CC, no qual se refere ser obrigação do locador assegurar ao locatário o gozo da coisa locada para os fins a que a coisa se destina.
Obrigação que no caso concreto redunda na vinculação dos proprietários do imóvel aludido nos autos a assegurarem aos AA. o gozo da loja que lhes está arrendada para eles nela aí explorarem o estabelecimento comercial de café snack-bar que lá têm instalado. […]
No que tange à obrigação do senhorio assegurar ao arrendatário o gozo do arrendado, ao contrário do que parecem entender os RR., o respectivo cumprimento não se esgota com a disponibilização do gozo da coisa ao locatário.
Diversamente, ela impõe ao senhorio que torne esse gozo possível de modo a que não fique inviabilizado o fim da locação.
Por isso a lei lhe exige, por um lado, que se abstenha de praticar actos que impeçam ou diminuam o gozo da coisa pelo locatário (cf. artº.1037º, nº.1 CC) e, por outro, que execute todas as obras de conservação, ordinárias ou extraordinárias, requeridas pelas lei vigentes ou pelo fim do contrato (cf. artºs.1074º, nº.1 e 1111º CC) e também que autorize aquelas que para o mesmo fim devam ser levadas a cabo pelo locatário, quando não tenha fundamento legítimo para se opor.
Cabendo-lhe pois “realizar todas as reparações da coisa ou outras despesas que sejam indispensáveis para assegurar o gozo da coisa locada, de acordo com o fim do contrato, quer a sua necessidade resulte do simples desgaste do tempo, de caso fortuito ou de facto de terceiro” – Ac. STJ 11.12.2012, loc. cit.
Como impressivamente se escreve no Ac. RC de 5.12.2012, loc. cit., “A obrigação – a cargo do locador – de assegurar ao locatário o gozo da coisa para os fins a que se destina (artº.1031º, b) do CC) não se reconduz apenas ao dever de lhe entregar a coisa locada e ao dever de não praticar actos que impeçam ou diminuam o gozo da coisa locada pelo locatário; o cumprimento daquela obrigação exige também uma actividade positiva do senhorio – durante todo o período do arrendamento – no sentido de praticar todos os actos que sejam necessários para assegurar aquele gozo, o que implica, naturalmente, a obrigação de efectuar as reparações e as obras que sejam necessárias para o efectivo gozo da coisa que foi previsto no contrato”.
Impondo-se-lhe portanto, quando mais não seja contratualmente estabelecido, assegurar a manutenção das condições que genericamente o locado apresentava aquando da celebração do contrato.
Daí que quando o locador não cumpra com o seu dever de conservação da coisa locada e dessa falta de conservação resulte uma diminuição do seu gozo ou um impedimento do seu gozo pelo locatário se imponha concluir que o mesmo incumpriu as suas obrigações contratuais.
Foi o que obviamente aconteceu no caso dos autos, em que se percebe que a falta de realização durante anos de quaisquer obras de conservação no imóvel em que funciona o estabelecimento comercial referido no processo levou a uma degradação severa do prédio em que ele se localiza, com repercussões no local arrendado, designadamente ao nível de infiltrações, desprendimento de azulejos e estuques, desgaste de materiais de revestimento, de canalizações e de instalações.
Estado do locado que evidencia que estão claramente diminuídas as condições do respectivo gozo, quando mais não seja por razões de conforto, comodidade e salubridade do espaço.
Por outro lado, crê-se evidente que cabendo aos proprietários do imóvel ao longo dos anos, hoje os RR., providenciar pela sua conservação lhes é imputável a depreciação do prédio resultante da omissão de execução das obras de conservação que ao longo do tempo se foram revelando necessárias para manter a sua integralidade e aptidões.
Tal como, pelas mesmas razões, lhes é imputável a degradação das condições de gozo e fruição do espaço arrendado decorrente do não cumprimento daquele dever.
Por outro lado é de assinalar que os demandados não se dispõem a executar as obras de reabilitação do imóvel de que são donos necessárias a obviar aos problemas que ele apresenta nos pisos superiores e que se repercutem, designadamente em termos de infiltrações, no R/c, nem a renovar os materiais desgastados da loja, substituir canalizações, reparar tectos e paredes da mesma etc.
Ao que acresce que confessadamente se recusam a autorizar o A. a executar as obras indispensáveis à adaptação do seu estabelecimento às exigências legais e regulamentares dos estabelecimentos da sua espécie, num quadro em que contratualmente está fixado que o seu consentimento escrito é indispensável para que as mesmas possam ocorrer.
O que é dizer que os senhorios incumpriram o contrato de arrendamento celebrado com o A., legitimando-o, pois, designadamente por via da previsão do artº.1032º, al. b) CC, a resolvê-lo.
Isto quando é certo que nada nos autos denuncia que à data em que o A. tomou de trespasse o estabelecimento e sucedeu no arrendamento da loja por ele ocupada esta estivesse no estado de degradação em que hoje se encontra.
E que se vê que a degradação de que ela padece, pelo menos nos seus aspectos mais relevantes, não resulta certamente de facto do locatário ou a ele imputável.
Cumprindo ademais evidenciar que, por a matriz do problema se encontrar fora da loja arrendada, designadamente no telhado do imóvel e na exposição aos elementos dos pisos habitacionais que lhe são sobrepostos, não parece que sobre o demandante impendesse qualquer dever de avisar o senhorio sobre a ocorrência do vício que afecta o prédio e limita o seu direito de arrendamento.
Vício que o locador, no caso, residindo nos andares habitacionais, como se diz nos autos que residiam as proprietárias até 2010, não podia ignorar.
O que é dizer que ao caso não colhe a disciplina do artº.1033º CC.
Donde, sendo de presumir a culpa do senhorio nos termos do artº.799º CC, se tenha por legítima a pretensão resolutiva do contrato de arrendamento trazida a juízo pelos AA., a que cabe dar procedência-
Tal como se desenha legítima a sua pretensão indemnizatória.
Uma vez que o artº.798º CC prescreve que “o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao devedor”.
E não se diga, como fazem os demandados, que as pretensões formuladas no processo pelos AA. correspondem ao exercício abusivo de um direito.
Efectivamente, de acordo com a previsão do artº.334º, o abuso de direito traduz o ilegítimo exercício de um direito pelo seu titular nos casos em que se mostrem manifestamente excedidos os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito.
Ora, ante os factos apurados no processo e o que se vem expendendo, não se alcança como possa afirmar-se que os demandantes ao pretenderem pôr termo à relação contratual que os liga aos RR. exerçam ilegitimamente um direito que lhes assiste.
De facto, estranho seria que nas condições de degradação física do arrendado, perante a falta de iniciativa do senhorio em promover a reabilitação do imóvel em que ele se localiza, a qual se mostra indispensável para se poder recuperar o próprio arrendado, e ante a assumida recusa dos RR., donos do prédio, em autorizar as obras de adaptação necessárias para que o estabelecimento do A. se adeqúe às exigências legais de funcionamento dos da sua espécie, estranho seria dizia-se que os demandantes tivessem intenção de manter o contrato.
Ou que lhes fosse exigível que a ele se mantivessem vinculados e às obrigações para si dele decorrentes, não obstante não fruírem capazmente do arrendado e de, por falta de colaboração do senhorio, não poderem continuar a desenvolver a actividade que nele instalaram, dado o estabelecimento não cumprir as prescrições legais que a disciplinam em termos sanitários, de higiene e segurança alimentar.
E cujo incumprimento levou primeiro à suspensão pela ASAE da actividade do estabelecimento e subsequentemente ao seu encerramento pelo A.
O que naturalmente implica que se conclua que ao pretenderem resolver o contrato que os liga aos RR. os AA. não excedem manifestamente qualquer limite que se imponha ao exercício legítimo do seu direito.
O mesmo sucedendo evidentemente em relação à indemnização que pedem, a qual se apresenta legalmente como um meio de reparação dos prejuízos que lhes tenham advindo da resolução do contrato e do incumprimento do mesmo pela contraparte.
Veja-se que, em face da baixa renda paga e dos avultados custos das obras necessárias a obviar ao estado de degradação do prédio e do arrendado, o que poderia ser considerado abusivo por parte dos AA. era pretenderem que os RR. executassem as obras adequadas a repor as condições iniciais de gozo do arrendado.
Não é isso, no entanto, que os demandantes pretendem nos autos.
Sem embargo regista-se que a putativa ilegitimidade, por abuso de direito, do direito dos AA. a exigir obras aos RR. não inquina de ilegitimidade o exercício de outros direitos que existam na sua esfera jurídica resultantes das mesmas circunstâncias.
Nem permite que os senhorios possam eximir-se das suas responsabilidades contratuais ou das consequências do seu incumprimento do contrato, como os demandados parecem entender.
Prosseguindo…
Resolvido o contrato, nos termos dos artºs.433º, 434º, nº.2 e 289º, nº.1 CC, impõe-se a restituição ao senhorio do arrendado, não havendo direito de restituição de rendas pagas.
Já no que respeita à indemnização pedida, cujo cômputo segue as regras dos artºs.562º e ss. CC, o primeiro dado que se impõe assinalar é que, ao contrário do que alegaram, os AA. não fizeram prova de que em momento anterior ao do encerramento do estabelecimento comercial que exploraram tenham sofrido qualquer perda de rendimento em razão do incumprimento contratual do senhorio.
Nessa medida e nessa parte, ante a regra do ónus da prova ínsita no artº.342º, nº.1 CC, impõe-se concluir pela improcedência do pedido de indemnização por danos patrimoniais que fizeram – cf. artº.496º CC.
Por outro lado, compulsados os factos apurados, vê-se também que os AA. não fizeram prova de que por força do incumprimento contratual do senhorio e/ou resolução do contrato sofreram danos de natureza não patrimonial.
Situação que determina também a improcedência da acção nessa matéria, uma vez que a demonstração da existência do dano é condição de accionamento da obrigação de responsabilidade civil.
O que está provado nos autos é que, em razão do encerramento da actividade do estabelecimento em 17.1.2013, espoletado pela degradação do locado e a ausência de obras de recuperação do imóvel pelo senhorio, a par da não realização de obras de adaptação do estabelecimento, por ele não consentidas, os demandantes perderam os rendimentos que obtinham com a actividade comercial que desenvolveram ao longo da maior parte da sua vida, a qual provavelmente continuariam a desenvolver até à idade de reforma, caso não se tivessem confrontado com a inviabilização do seu negócio.
O que, se bem se vê, representa também um prejuízo patrimonial resultante da conduta dos senhorios, agora os RR., curiosamente verificado já depois da compra que eles fizeram do imóvel mencionado nos autos.
Todavia, por se desconhecer a expressão dos proventos mensais líquidos obtidos pelos AA. através da exploração do estabelecimento comercial à época do seu encerramento, o tribunal não tem elementos para mensurar a indemnização devida.
Assim, a coberto do disposto nos artºs.564º, nº.2 CC e 609º, nº.2 CPC, impõe-se remeter a respectiva determinação para momento ulterior.
Sem embargo, assinala-se que a indemnização em apreço é devida desde 17.1.2013 até à data em que cada um dos AA. perfaça 66 anos e 3 meses, actualmente a idade de reforma, não podendo exceder o valor concretamente peticionado pelos demandantes.”
É sabido que o contrato de locação é um contrato sinalagmático e oneroso, isto é, um contrato do qual emergem para ambas as partes obrigações recíprocas e interdependentes e em que ambas as partes realizam atribuições patrimoniais ligadas entre si por um nexo de correspectividade.
O sinalagma estabelece-se entre as respectivas obrigações principais, ou seja, a disponibilidade do gozo do imóvel pelo senhorio contra o pagamento da respectiva renda pelo arrendatário, figurando ainda, como elemento essencial do contrato, a cedência temporária do gozo da coisa – cf. art.ºs 1031º, a) e b) e 1038º, a) do Código Civil; cf. Fenando de Gravato Morais, Novo Regime do Arrendamento Comercial, 2011, 3ª Edição, pág. 177.
Como resulta do acima expendido sobre a aplicação no tempo da lei substantiva, a aferição do fundamento de resolução invocado pelo inquilino deve ter por referência a data da propositura da acção e, como tal, no caso presente, é aplicável o Novo Regime Jurídico do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27-02, na redacção anterior à entrada em vigor da Lei n. 31/2012, de 14 de Agosto.
Uma das obrigações do senhorio na relação locatícia é a de fazer obras
Dispõe, nesse âmbito, o art.º 1074º do Código Civil:
“1 - Cabe ao senhorio executar todas as obras de conservação, ordinárias ou extraordinárias, requeridas pelas leis vigentes ou pelo fim do contrato, salvo estipulação em contrário.
2 - O arrendatário apenas pode executar quaisquer obras quando o contrato o faculte ou quando seja autorizada, por escrito, pelo senhorio.
3 - Exceptuam-se do disposto no número anterior as situações previstas no artigo 1036.º , caso em que o arrendatário pode efectuar a compensação do crédito pelas despesas com a realização da obra com a obrigação de pagamento de renda.
4 - O arrendatário que pretenda exercer o direito à compensação previsto no número anterior comunica essa intenção aquando do aviso de execução da obra e junta os comprovativos das despesas até à data do vencimento da renda seguinte.
5 - Salvo estipulação em contrário, o arrendatário tem direito, no final do contrato, a compensação pelas obras licitamente feitas, nos termos aplicáveis às benfeitorias realizadas por possuidor de boa-fé.”
No regime do RAU apenas as obras de conservação ordinária estavam a cargo do senhorio, sendo que, actualmente, no NRAU, o senhorio é responsável por fazer a generalidade das obras no imóvel arrendado, em consonância com a obrigação que sobre ele impende de proporcionar o gozo da coisa ao locatário para os fins a que se destina.
Abolida a distinção entre obras de conservação ordinária e obras de conservação extraordinária e de beneficiação, todas as obras ficaram submetidas a um tratamento igual, resultando simplificado o regime das obras no regime a considerar, regime este totalmente supletivo, pois que as partes, mesmo no arrendamento para habitação, podem estipulá-lo livremente – cf. Elsa Sequeira Santos, Código Civil Anotado, Volume I, 2ª Edição Revista e Actualizada, Ana Prata (Coord.), pág. 1345.
A estipulação vertida no art. 1074º do C. Civil está correlacionada com a obrigação do senhorio de desenvolver uma actividade positiva no sentido de assegurar o gozo do prédio arrendado para os fins a que se destina, neste caso, para o desenvolvimento da actividade comercial prosseguida pelo inquilino no locado.
De acordo com o n.º 2 do art. 1074º, o arrendatário apenas pode executar quaisquer obras quando o contrato lho faculte ou quando seja autorizado por escrito pelo senhorio.
Mas o locatário tem a obrigação de tolerar as reparações urgentes, bem como quaisquer obras ordenadas pela autoridade pública – cf. art. 1038.º, e) do Código Civil.
Por outro lado, o locatário tem o direito de exigir que o senhorio faça as obras necessárias à manutenção do imóvel adequado ao fim do contrato – cf. art.ºs 1074.º, 1111.º e 1031.º, b) do C. Civil.
Se o senhorio não executar as obras necessárias para manter o imóvel adequado à finalidade, incumpre uma obrigação contratual e o arrendatário poderá resolver o contrato, nos termos previstos no art. 1083.º, n.º 5 do Código Civil (atente-se, porém, que esta redacção foi introduzida apenas pela Lei n.º 31/2012, de 14-08, sendo que na redacção vigente à data da interposição da acção este fundamento de resolução estava previsto apenas quanto ao arrendamento para fins habitacionais, conforme redacção do n.º 4 do art. 1083º dada pela Lei n.º 6/2006).
Quanto ao direito de realizar por si as obras, o arrendatário só pode fazê-lo nas situações previstas no n.º 2 do artigo 1074.º ou nos casos mencionados no artigo 1036.º do Código Civil – cf. n.º 3 do referido art. 1074º.
Assim, dispõe o art. 1036º do Código Civil sob a epígrafe de “Reparações ou outras despesas urgentes”:
“1 - Se o locador estiver em mora quanto à obrigação de fazer reparações ou outras despesas e umas ou outras, pela sua urgência, não se compadecerem com as delongas do procedimento judicial, tem o locatário a possibilidade de fazê-las extrajudicialmente, com direito ao seu reembolso.
2 - Quando a urgência não consinta qualquer dilação, o locatário pode fazer as reparações ou despesas, também com direito ao reembolso, independentemente da mora do locador, contanto que o avise ao mesmo tempo.”
Significa isto que, para além das situações previstas no artigo 1074.º, n.º 2, o arrendatário pode realizar obras quando a obra seja urgentíssima (artigo 1036.º, n.º 2) ou quando o senhorio esteja em mora quanto à obrigação de executar certa obra e a sua urgência não permita esperar pela decisão judicial (artigo 1036.º, n.º 1) – cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8-05-2017, relator Manuel Domingos Fernandes processo n.º 3542/15.0T8GDM.P1.
De referir ainda que, à data da interposição da presente acção, subsistia no âmbito do regime jurídico das obras em prédios arrendados aprovado pelo DL n.º 157/2006 de 08-08, a possibilidade de, relativamente aos contratos anteriores ao NRAU, os arrendatários intervirem no locado realizando obras com posterior compensação no valor das rendas, nos termos previstos nos artigos 30.º a 33.º desse diploma legal (entretanto revogados pela Lei n.º 13/2019, de 12 de Fevereiro, com início de vigência a 13 de Fevereiro de 2019 mas com o respectivo regime ora previsto nos novos art.ºs 22º-A a 22º-D).
Resulta já do acima expendido, que as obras necessárias à reposição do edifício em condições de ser utilizado para o fim a que se destina implicaria uma intervenção “profunda e dispendiosa”, atenta a circunstância de o imóvel, sendo uma construção centenária, com três pisos, muito degradada, não ter sido objecto de obras de conservação ao longo de anos, sendo necessário, desde logo, reparar a cobertura a fim de evitar a entrada da água que se infiltra pelas paredes e soalhos e, bem assim, a substituição de portas e janelas que se encontram partidas, de modo a, subsequentemente, poder ser reparado o rés-do-chão quanto às infiltrações em paredes e tectos, azulejos soltos e estuque com buracos.
Trata-se de uma intervenção que pode ainda ser tida como obra de conservação ordinária mas que se revela essencial para a salvaguarda do fim do contrato, pois que para que o estabelecimento cumpra as condições de salubridade e higiene mínimas, ponderadas na comunicação decisão da ASEA que suspendeu a actividade do estabelecimento (cf. ponto 25. da matéria de facto), será necessária a intervenção em todos os pisos do imóvel, conforme resulta expressamente provado no ponto 20. da matéria de facto.
Sejam obras de conservação ordinária e extraordinária, estão elas, conforme se referiu, a cargo do senhorio.
Nos termos do art.º 1038º, alínea h),do Código Civil, constitui obrigação do locatário avisar imediatamente o locador sempre que tenha conhecimento de vícios da coisa, desde que o facto seja ignorado pelo locador.
Ora, o contrato de arrendamento celebrado entre as partes vigorou desde 3 de Abril de 1943, ou seja, durante mais de 68 anos, por referência à data da interposição da acção, tendo a renda sido fixada, inicialmente, em Esc. 140$00 (€ 0,70), valor que foi objecto de actualização em 1981, para o montante de Esc. 3 000$00 (€ 14,06), na sequência de autorização da então senhoria para a realização de obras a realizar pelo arrendatário para adaptação do locado à venda de produtos alimentícios, dele fazendo restaurante (cf. pontoa 11. e 12. da matéria de facto), sendo actualmente no valor de € 24,94 (cf. ponto 8.)
Não obstante o alegado pelo autor/recorrido, não se provou que tenha sido solicitado às anteriores senhorias ou aos actuais, consentimento para a realização das obras de adaptação às exigências higieno-sanitárias referidas em 32. e 33. ou que o inquilino tenha tentado resolver junto deles os problemas da degradação do prédio ou solicitado a realização das obras necessárias a reposição das condições existente à data da celebração do contrato (cf. pontos 36) e 37) dos factos não provados).
Por outro lado, não está demonstrado que os réus/recorrentes ou os anteriores proprietários tenham sido notificados pela entidade competente, nomeadamente a Câmara Municipal de Odivelas, para proceder a obras de conservação ou reconstrução ou, menos ainda, que tenha existido sequer procedimento tendente à realização de obras coercivas, nos termos, designadamente, do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (DL 555/99, de 16-12) e respectivos art.ºs 2º e 89º a 92º (cf. nomeadamente o vertido nos pontos 60) e 61) dos factos não provados).
A constituição em mora no cumprimento do dever legal de realização de obras de conservação e manutenção exige a interpelação pelo credor, nos termos gerais do art. 805º, n.º 1 do Código Civil.
A decisão recorrida considerou que os réus/recorrentes incumpriram o contrato de arrendamento por não terem procedido, ao longo dos anos, à conservação do prédio, pelo que a depreciação deste lhes é imputável, para além de não se disporem a efectuar as obras de reabilitação do imóvel, nem a autorizar o autor a executar as necessárias à adaptação do estabelecimento às exigências legais e regulamentares, sendo que, no entendimento da senhora juíza a quo, nem sequer se tornava necessário avisar o senhorio dos vícios que afectam o locado porquanto, estando a origem do problema no telhado do imóvel, este não poderia ignorá-lo, até porque ali residia.
Não se pode acompanhar a decisão recorrida quando afirma que os senhorios, sejam os actuais, sejam os anteriores, teriam de conhecer os vícios que afectam o locado porque a origem destes está na situação de degradação do telhado, origem das infiltrações nos pisos superiores, onde as anteriores inquilinas residiriam, dado que os factos provados não permitem afirmar que as anteriores proprietárias residiam no edifício onde está instalado o estabelecimento comercial e ainda que assim fosse, não é possível concluir que as então senhorias, tendo conhecimento de infiltrações nos pisos superiores do imóvel, teriam necessariamente de saber que essas infiltrações afectavam já o arrendado situado no rés-do-chão.
De todo o modo, no ponto 19. dos factos provados está demonstrado que os réus/recorrentes têm conhecimento das circunstâncias descritas em 14. a 18., ou seja, da existência das anomalias identificadas no imóvel e no locado desde 2004.
Com base nisso, sabendo-se que desde 2004 o imóvel e, em particular, o locado apresenta as anomalias descritas em 14. a 17. e que tais circunstâncias são do conhecimento dos réus/recorrentes, o tribunal recorrido entendeu que emergia do vertido no ponto 22. que os réus não se dispõem a executar obras de reabilitação do imóvel de que são donos para evitar os problemas descritos, nem a renovar os materiais desgastados da loja, substituir canalizações, reparar tecto e paredes desta.
Mais entendeu a decisão recorrida que os réus se recusam a autorizar os demandantes a executar as obras de adaptação higieno-sanitária do estabelecimento, daí concluindo que incumpriram o contrato por culpa sua, dado que não observaram a obrigação de executar obras de conservação como lhes impõe a lei.
Ora, não se vislumbra que o facto provado sob o ponto 22. permita retirar a conclusão de que os réus não se dispõem a executar obras de reabilitação o imóvel.
O que esse facto nos diz é que os réus “não se dispõem a autorizar a realização de quaisquer obras pelo autor no espaço ocupado pelo estabelecimento, nem a colaborar com ele para o efeito.”
Não autorizar a realização de obras pelo autor não é o mesmo que recusar a realização de quaisquer obras por si próprios.
Ademais, não existe qualquer facto que indique que em algum momento o autor/recorrido tenha interpelado os réus para a realização das obras que entendia necessárias para a reabilitação do imóvel e reposição do locado em estado de utilização para o fim a que se destina.
A carta mencionada no ponto 13. dá conta apenas da intenção de realizar uma reunião para tratar, designadamente, de assunto atinente a obras a realizar no locado, mas não concretiza que tipo de obras se trata, nem solicita, desde logo, aos réus a sua actuação no sentido de intervenção no edifício.
Assim, na falta de interpelação do senhorio para a realização de obras, sejam elas quais forem, não se vislumbra de que modo se pode acompanhar a afirmação de que os réus não se dispõem a realizar as obras necessárias, facto, aliás, que resultou não provado sob o ponto 42).
O facto de estar provado que os réus não se dispõem a autorizar a realização de quaisquer obras pelo autor no locado e que a manutenção do funcionamento do estabelecimento não é viável sem que sejam realizadas as obras de adaptação higieno-sanitária e de segurança alimentar, obras estas que implicam intervenção em todo o imóvel (cf. pontos 20. e 17.), não significa que os réus se recusam a proceder às obras de conservação do imóvel, para as quais, aliás, nunca foram interpelados nem lhes foi fixado qualquer prazo.
Não se vislumbra, pois, que o facto vertido no ponto 22. integre uma recusa do cumprimento da obrigação legal de efectuar obras de conservação decorrente dos artigos 2º do Decreto-lei n.º 157/2006, de 8-08 e art.ºs 1074º, n.º 1 e 1111º do Código Civil.
Ainda que assim não fosse, uma recusa de cumprimento do contrato tem como consequência o seu incumprimento definitivo pelo devedor, dispensando-se qualquer interpelação admonitória por parte do credor – cf. artigo 798º e 801º do Código Civil.
Perante esse alegado incumprimento de tal obrigação pelos réus, cabia ao autor duas vias de tutela jurídica da sua posição de arrendatário com carência de obras para fruição do locado: a) ou arrogar-se o direito de reduzir a renda proporcionalmente ao tempo da privação ou à extensão desta (artigo 1040º, n.º 1 do Código Civil); b) ou realizar ele próprio as obras, desde que urgentes, podendo efectuar posteriormente a compensação do seu crédito pelas despesas com a realização das obras com a obrigação de pagamento da renda (art.ºs 1074º, n.º 3 e 1036º do Código Civil), não tendo o inquilino optado por qualquer uma destas vias – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28-03-2017, relator Luís Filipe Pires de Sousa, processo n.º 122/15.3T8HRT.L1-7.
Todavia, os factos provados não espelham essa recusa de cumprimento da obrigação de realização de obras de conservação e, por outro lado, nem comprovam a existência de interpelação admonitória para o efeito.
De todo o modo, está demonstrado que as condições descritas nos pontos 14. a 17., verificadas desde 2004, conduziram a que se tornasse inviável a adaptação do locado às exigências higieno-sanitárias, sendo que, quanto às obras necessárias para a sua realização, foi, de facto, recusada a autorização para a sua execução pelo autor.
Note-se que, tratando-se de contrato de arrendamento vigente anteriormente à data da entrada em vigor da Lei n.º 6/2006, de 27-02, importa considerar o estipulado pelas partes quanto à realização de obras, tendo ficado consignado que todas e quaisquer obras no arrendado, sem consentimento do senhorio, dado por escrito, seriam proibidas – cf. ponto 6. da matéria de facto provada.
Não sendo autorizada a adaptação do estabelecimento e não sendo possível essa adaptação sem a intervenção necessária em todo o imóvel onde ele funciona e não tendo ocorrido essa intervenção desde 2004, tal conduziu a que em 12 de Janeiro de 2013, a actividade do estabelecimento fosse suspensa pela ASAE, por incumprimento das condições de higiene (inexistência de água quente e de meios para a obter, inexistência de máquina de lavar loiça, deficiente ventilação da instalação sanitária, inexistência de procedimentos de controlo de pragas e tecto do armazém em mau estado de conservação), o que veio a determinar o encerramento da actividade, em 17 de Janeiro de 2013 – cf. pontos 25. e 26. dos factos provados.
Ora, tal significa que o autor/recorrido deixou de poder gozar a coisa por motivo estranho à sua pessoa ou à dos seus familiares, circunstância que lhe confere o direito a resolver o contrato, nos termos do art. 1050º, a) do C. Civil.
Na verdade, toda esta factualidade revela, independentemente da questão atinente à falta de interpelação com fixação de um prazo, passível de eximir os recorrentes de qualquer responsabilidade pela não realização de obras e do consequente não proporcionar ao locatário o pleno gozo da coisa locada, que os recorrentes tiveram conhecimento das infiltrações que afectavam paredes e tectos do locado, da existência de buracos no estuque e chão desgastado e das más condições das canalizações, o que se verificava desde 2004, assim como ficou provado que não autorizaram a realização de obras de adaptação higieno-sanitárias, que, porém, exigiam ainda a intervenção nos pisos superiores do prédio, o que veio a conduzir ao encerramento do estabelecimento.
Neste ponto, o que está em causa não é a responsabilização activa dos recorrentes/senhorios pela não realização das obras, ou seja, o reconhecimento ao arrendatário do direito a uma qualquer indemnização decorrente dessa eventual omissão da realização das obras, mas saber se não tendo os recorridos podido usufruir do gozo do prédio locado por razão das anomalias nele existentes, lhes deve ser reconhecido o direito a ver resolvido o contrato de arrendamento.
Ora, mesmo sendo certo, como se deixou acima exposto, que os factos não revelam qualquer interpelação dos senhorios para a realização das obras de conservação, nem a fixação de qualquer prazo para o efeito ou sequer a sua recusa no cumprimento dessa obrigação concreta, certo é os réus tiveram conhecimento das condições em que o locado se encontrava, não se tendo apurado o modo como reagiram perante isso e como quiseram ou não diligenciar pelo cumprimento do seu dever de facultar ao arrendatário o gozo da coisa locada, o que impede a afirmação de que terão cumprido cabalmente a obrigação prevista no 1031º, b) do C. Civil.
Uma coisa é poder ou não ser assacada pelo arrendatário ao senhorio responsabilidade pelo omissão do seu dever de realizar as obras necessárias ao pleno gozo da coisa locada; outra, distinta, é a de saber se o inquilino impedido de usufruir do pleno gozo do local arrendado por consequência de defeitos existentes no prédio carecido de reparação, com conhecimento dessa situação por parte do senhorio, deve manter-se no locado ou pode resolver o contrato de arrendamento com esse fundamento – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24-09-2015, relator Jorge Teixeira, processo n.º 3458/11.9TBBCL-A.G1.
Ora, aqui a conclusão não pode deixar de ser a que emerge da sentença recorrida, ou seja, a de que os réus/recorridos, conhecedores da situação acima descrita e nos termos então expostos, não asseguraram ao inquilino o gozo do locado, o que, nos termos do art. 1032º, b) do C. Civil, equivale ao não cumprimento do contrato de arrendamento.
Além das situações em que o locatário pode resolver o contrato com base em incumprimento pelo locador, nos termos gerais, pode ainda fazê-lo nos termos do mencionado art. 1050º do C. Civil, independentemente de qualquer incumprimento, ou responsabilidade, da contraparte, o que se justifica porque a obtenção do gozo da coisa é a razão de ser da existência do contrato – cf. Elsa Sequeira Santos, op. cit., pág. 1313.
Como tal, ainda que não acompanhando a decisão recorrida quanto à demonstração de um incumprimento por parte dos réus da obrigação de proceder a obras de conservação do imóvel, não se deixa de concluir que assiste ao autor/recorrido o direito a obter a resolução do contrato de arrendamento atenta a privação do gozo do objecto locado.
No entanto, desse direito à resolução do contrato de arrendamento não decorre para os recorridos qualquer direito a uma indemnização pelos prejuízos decorrentes da cessação do contrato.
Com efeito, o dever de indemnizar pressupõe a mora do devedor (senhorio), sejam ou não urgentes as reparações a efectuar, e a mora, por seu turno, pressupõe a interpelação (n.º 1 do artigo 805º do Código Civil) que, seja judicial ou extrajudicial, terá que ser acompanhada do estabelecimento de um prazo, dada a natureza específica da prestação do senhorio, pois, se assim não for, nunca a omissão que lhe é imputada poderá considerar-se ilícita ou culposa, o que exclui a sua responsabilidade.
Tendo a sentença recorrida concluído pelo incumprimento do contrato, presumindo a culpa dos senhorios, nos termos do art. 799º do Código Civil, e porque não há incumprimento sem mora do devedor, padece aquela de erro de julgamento por violação do disposto nos artigos 798º, 804º, n.º 2 e 805º, n.º 1 do Código Civil, atenta a não demonstração de interpelação, mora ou recusa dos réus/recorrentes na realização das obras de reabilitação do locado.
Ainda que assim se não entendesse sempre seria de afastar o dever de indemnizar que o tribunal a quo fez recair sobre os recorrentes.
Na verdade, não estando em causa a transmissão da posição contratual do locador para os aqui réus/recorrentes por via da aquisição referida no ponto 5. dos factos provados, nos termos do art. 1057º do C. Civil, com transmissão dos direitos e obrigações do locador (que se produz ipso jure, sem necessidade de o alienante e o adquirente sobre ela estipularem ou de a excluírem, sendo desnecessário também o consentimento do locatário, ao contrário do que ocorre na comum cessão da posição contratual), é necessário ter em conta que o objecto dessa transmissão se cinge aos direitos e obrigações do senhorio respeitantes à execução futura do contrato, permanecendo na esfera do anterior senhorio os direitos e obrigações respeitantes ao período locativo anterior à transmissão – cf. Luís Menezes Leitão, op. cit., pág. 118.
Por esta razão é que, a menos que tenha lugar uma cessão de créditos, quanto às rendas vencidas, não poderá o novo senhorio reclamar o pagamento das rendas respeitantes a períodos anteriores à transmissão, nem requerer a resolução do contrato com esse fundamento – cf. também neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II, 3ª Edição Revista e Actualizada, pág. 425.
Certo é que, neste caso, o cessionário sucede ao cedente, não apenas no direito ou na obrigação principal, mas na sua inteira posição contratual, “como esta se configurava no momento da cessão”, o que confere ao cedido o direito de opor ao cessionário os meios de defesa provenientes desse contrato – cf. M. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6ª Edição, pág. 724.
Significa isto que a situação atinente à falta de realização das obras invocada pelos demandantes/apelados deve ser ponderada tal como já se encontrava à data da transmissão da posição contratual do locador.
Ora, durante todo o tempo de vigência do contrato de arrendamento não foram realizadas obras de manutenção e conservação no imóvel, sendo que desde 2004 se verificava já a necessidade de “execução de obras profundas e dispendiosas”, não tendo os arrendatários demonstrado que comunicaram a situação do locado aos senhorios, que lhes solicitaram a realização de obras, que estes se tivessem recusado a realizá-las e menos ainda que, perante uma recusa no cumprimento dessa obrigação, tenha enveredado por uma das vias que a lei lhes facultava para lograrem obter a execução das obras necessárias, acima mencionadas.
Admitindo que se devesse considerar que os réus/recorrentes se encontravam em mora relativamente à realização das obras que constituem encargo seu – e já se viu que não se adere a tal entendimento – sempre se afiguraria inviável concluir, tal como se fez na sentença recorrida, que não colhe a invocação do abuso de direito por parte dos senhorios, por aquilo que os inquilinos pretendem ser obter a resolução do contrato de arrendamento e não exigir dos senhorios a execução das obras.
Com efeito, assentando a resolução num incumprimento culposo dos senhorios pela não realização das obras necessárias, a subsequente atribuição de uma indemnização para reparação dos prejuízos decorrentes dessa resolução não pode deixar de estar conexionada com a exigência de realização das obras.
Perante tal enquadramento, sempre se imporia aferir da proporcionalidade entre o valor das rendas pagas pelo arrendatário e o custo das obras a suportar pelo senhorio, cuja não realização consistiu no incumprimento que conduziu à resolução do contrato.
O art. 334º do C. Civil estipula que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
De acordo com o normativo em apreço agir de boa fé significa agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte e ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança e expectativa dos outros.
Os bons costumes correspondem à moral social e “traduzem um conjunto de regras de comportamento sexual, familiar e deontológico acolhidas, pelo Direito, em cada momento histórico. Não estando embora codificadas, tais regras provocam consenso em concreto, pelo menos em casos-limites.” – cf. A. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I – Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, 2000, pág. 243.
O fim social ou económico do direito corresponde ao interesse ou interesses que o legislador visou proteger através do reconhecimento do direito em causa. Tem a ver com a sua configuração real a apurar através da interpretação.
A paralisação do exercício abusivo do direito não visa suprimir ou extinguir o direito, mas apenas impedir que, em certas circunstâncias concretas, esse direito não seja exercido de forma a ofender gravemente o sentimento de justiça dominante na sociedade.
O abuso de direito está construído sobre limites indeterminados à actuação jurídica individual que advêm de conceitos como os de função, bons costumes e de boa fé já acima mencionados. Tais conceitos carecem de concretização para que sejam passíveis de aplicação em concreto.
Não basta que o titular do direito exceda os limites referidos, sendo necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório daqueles valores.
Assim, “o direito subjectivo é “uma intenção normativa que apenas subsiste na sua validade jurídica enquanto cumpre concretamente o fundamento axiológico-normativo que a constitui”, ou seja, o direito subjectivo deixa de ser uma estrutura formal para ser encarado “com uma função normativa, teleológico-materialmente fundada”, havendo abuso de direito quando “um comportamento tenha a aparência de licitude jurídica [] e, no entanto, viole ou não cumpra, no seu sentido materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de que o comportamento realizado se diz exercício”. Desta forma, “o abuso de direito configura-se como uma contradição entre dois pólos que entretecem o direito subjectivo”: a sua estrutura formal reconhecida pelo ordenamento jurídico e o fundamento normativo que integra esse mesmo direito e lhe confere materialidade devem estar em conformidade, certo que quando esta não é detectada, ocorre abuso de direito” – Castanheira Neves, Questão de Facto e Questão de Direito ou o Problema Metodológico da Juridicidade, páginas 523 a 524) apud acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 5-11-2009, relatora Teresa Soares, processo n.º 5002/05.8TBCSCL1-6.
Sempre que o exercício formal de um direito se mostre desconforme com a teologia desse mesmo direito, haverá abuso do direito.
“No que respeita ao direito do arrendatário à realização de obras pelo senhorio, considerando o cariz sinalagmático do vínculo contratual e não obstante o disposto nos arts. 1031º, al. b), do Código Civil, e 12º do RAU importa – por respeito ao princípio geral de direito do equilíbrio das prestações – que exige certa proporcionalidade entre os valores das obras e das rendas – cf. artigos 237º e 994º C. Civil (…). Havendo, assim, casos em que o valor ínfimo da renda se apresenta manifestamente insuficiente para que se possa exigir ao senhorio a realização de obras cujo montante ascende a valores elevados.” – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-02-2013, processo nº 1235/07.0TVPRT.P1.S1 apud acórdão do mesmo Tribunal de 19-01-2017, relatora Maria da Graça Trigo, processo n.º 1381/13.1TBVIS.C1.S1.
Foi dado como provado que as obras necessárias seriam profundas e “dispendiosas”, embora não se tenha conseguido concretizar o seu valor.
De todo o modo, sabe-se que tais obras não se cingem ao rés-do-chão ocupado pelo estabelecimento dos recorridos, mas aos três pisos que compõem o imóvel, incluindo a cobertura, tratando-se o edifício de uma construção centenária e muito degradada.
Durante sete anos, desde a altura em que se verificam as condições descritas em 14. a 17., os recorridos nada fizeram no sentido de obterem a realização das obras, nem tão-pouco as solicitaram às então senhorias, vindo fazê-lo apenas em 2011, logo que tomaram conhecimento que o prédio havia sido transmitido a outrem (quiçá mais abonado que os anteriores proprietários!), sendo certo que pelo menos em 1981 foram autorizadas obras de adaptação do locado, desconhecendo-se se estas foram ou não executadas, mas tendo então existido uma actualização da renda.
A renda paga cifra-se em € 24,94, o que se traduz num valor anual de € 299,28.
Ora, não sendo conhecido o valor das obras, mas sendo claramente evidente que estas importariam num dispêndio muito superior a € 10 000,00, tendo em conta, desde logo, toda a área de intervenção em que teriam lugar (o prédio tem uma área total de 656 metros quadrados – cf. documento de fls. 26 dos autos -, o que, tomando-se como referência um valor ínfimo de custo de construção por metro quadrado de, por exemplo, € 100,00, já conduziria a um valor de € 65 600,00), certo é que ainda de que exíguos € 10 000,00 se tratasse, sempre seriam necessários mais de trinta e três anos de renda para perfazer um tal valor que, de modo evidente, seria insuficiente para custear as obras necessárias.
Deste modo, pode concluir-se que, mesmo admitindo mora desde 2004, já então, o custo das obras era, com toda a probabilidade, muito avultado, pelo que a exigência de realização de tais obras configuraria um exercício abusivo do direito, nos termos do art. 334º do Código Civil.
Como tal, também a exigência de indemnização pelos alegados danos causados aos recorridos pela cessação do contrato de arrendamento, resultante do incumprimento do dever de realização de obras de conservação e manutenção no locado, sempre constituiria uma exigência ilegítima, nos termos do referido art. 334º do Código Civil – cf. neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-01-2017 acima mencionado.
Veja-se, em reforço deste entendimento, o afirmado no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8-02-2018, relator Jorge Leal, processo n.2351/10.7TVLSB.L2-2:
“Por outro lado, a pretensão de realização de obras, cujo valor excede os € 50 000,00 […], é manifestamente desproporcionada, face ao valor da renda devida (cujo valor mensal é, atualmente, de € 100,00 […]). De facto, é sabido que o regime vinculístico a que alguns arrendamentos, mais antigos, estão sujeitos, caraterizado pela conjugação da manutenção forçada da sua vigência com severa restrição na atualização das rendas, tem conduzido a prolongadas concessões do gozo de imóveis a troco de rendas irrisórias. Tal situação torna incomportável, à luz da racionalidade económica, a realização de obras de manutenção do edifício, cujo custo frequentemente corresponde a muitas dezenas de anos de rendas (no caso dos autos, a mais de 40 anos de rendas). Essa situação, de desproporção entre a vantagem do titular do direito e o sacrifício por ele imposto a outrem, constitui uma modalidade de desequilíbrio no exercício do direito […] que a jurisprudência do STJ tem, reiteradamente, qualificado de abusivo, à luz do art.º 334.º do Código Civil (vide, v.g., acórdãos do STJ, de 28.11.2002, processo 02B3436; de 16.12.2004, processo 04B3903; de 08.6.2006, processo 06B1103; de 14.11.2006, processo 06B3597; de 31.01.2007, processo 06A4404; de 20.01.2009, processo 08A3810; de 02.6.2009, processo 256/09.3YFLSB; de 11.12.2012, processo 655/06.2TBCMN.G1.S1; de 19.01.2017, processo 1381/13.1TBVIS.C1.S1).”
Logo, também por esta razão, sempre se imporia, nesta parte, a revogação da decisão recorrida, por a atribuição de uma indemnização por incumprimento do dever de realizar obras cujo custo se revela desproporcional ao valor das rendas pagas durante mais de sessenta anos, estar, também ela, afectada pela ilegitimidade de um exercício abusivo de tal direito.
Em face disto e porque se impõe concluir, como acima se deixou explanado, pela inexistência do dever de indemnizar, o recurso procede nessa parte, resultando prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pelos recorrentes (modo de cálculo da indemnização atribuída e inconstitucionalidade material por violação do direito de propriedade dos recorrentes e da igualdade material entre as partes), atento o estatuído nos art.ºs 663º, n.º 2 e 608º, n.º 2 do CPC.
Procede parcialmente a apelação dos réus impondo-se a revogação da decisão recorrida na parte em que condenou os recorrentes no pagamento aos recorridos de uma indemnização.
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Das Custas
De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art. 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
O recurso interposto pelos réus procede parcialmente, pelo que as custas, seja da acção, seja do recurso ficam a cargo dos recorrentes e dos recorridos, na proporção de metade.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em:
· julgar parcialmente procedente a apelação dos réus C. e D. e, consequentemente, revogar a decisão recorrida na parte atinente ao vertido na alínea b) do seu dispositivo (condenação dos réus no pagamento aos autores, a título de indemnização, de quantia a liquidar posteriormente, correspondente à perda líquida de rendimento mensal decorrente do encerramento do estabelecimento, até cada um deles perfazer a idade da reforma, tendo por limite o valor peticionado), mantendo, no mais, o decidido pelo Tribunal de 1ª instância.
As custas ficam a cargo dos apelantes e dos apelados, na proporção de metade.
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Lisboa, 4 de Junho de 2019

Micaela Sousa
Maria Amélia Ribeiro
Dina Maria Monteiro