Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
Sumário
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
No 1.º Juízo da Vara Mista do Funchal respondeu, em processo comum e perante o tribunal colectivo, o arguido
AA, devidamente identificado nos autos acusado da prática de um crime de abuso sexual de criança, na forma continuada, p. e p. pelos art.s 30.º n.º 2, 172.º, n.ºs 1 e 2, 177.º, n.º 1 a) e 179.º; todos do Cód. Penal.
A ofendida BB constituiu-se assistente nos autos e deduziu pedido cível de indemnização contra o arguido.
O arguido não apresentou contestação escrita.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, veio o arguido a ser condenado, pela prática do crime que lhe era imputado, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão.
O pedido cível foi julgado inteiramente procedente, pelo que o arguido foi condenado a pagar à ofendida a quantia de 5.000.000$00.
Com tal decisão não concordaram nem o Ministério Público, nem o arguido e daí o terem interposto os competentes recursos.
Da motivação apresentada pelo Ministério Público foram extraídos as seguintes conclusões:
“ 1. O arguido AA foi condenado pela prática de um crime de abuso sexual de criança na forma continuada. p. e p. pelos art.s 30.º n.º 2, 172.º, n.ºs 1 e 2, 177.º, n.º 1 al. a) e 179.º, todos do C.Penal, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão.
2. Porém, a ofendida é filha do arguido e tinha idade de 13 e 14 anos no período durante o qual o arguido praticou os factos dados como provados.
3. Os factos esses que se repetiram inúmeras vezes, ao longo de quase dois anos, durante os quais, no primeiro ano, o arguido manteve com a ofendida actos sexuais de relevo e, durante o segundo ano, manteve, ainda, copula e coito anal com a ofendida.
4. Em consequência, a ofendida é hoje uma pessoa profundamente traumatizada.
5. A conduta do arguido assume assim uma enorme gravidade, militando sobre ele diferentes circunstâncias agravantes e em seu benefício apenas a confissão.
6. O acórdão recorrido violou o disposto nos art.ºs 30.º, n.º 2, 172.º n.ºs 1 e 2, 172.º n.º 1 e 2, 177.º, n.º 1 al. a) e 72.º todos do C.Penal, interpretando aqueles preceitos legais no sentido de que para a fixação da medida concreta da pena se deverá partir do seu limite mínimo.
7. Deveria ter interpretado os referidos preceitos legais no sentido de que para a fixação da medida da pena se parte do seu limite médio e a partir desse limite considerar a relevância das diferentes circunstâncias agravantes e atenuantes.
8. Deverá ser substituído por outro, que atentos os referidos preceitos legais, condene o arguido em pena não inferior a 7 ( sete) anos e 6 (seis) meses de prisão”.
Por sua vez, o arguido extraiu as seguintes conclusões da motivação apresentada:
“ A confissão dos factos pelo arguido, sendo essa confissão relevante para a serviço do tribunal, tal revela da parte do arguido arrependimento sincero.
Normas violadas: artigos 72.º n.º 2 al. c) e 73.º do C.P.
Pelo que deverá ser revogada a douta sentença da p. substituindo-se por outra que considere a atenuação especial da pena prevista nos artigos 72.º n.º 2, al. c) e 73.º do C.P., sendo que, afinal o arguido não deverá ser condenado por pena superior a 2 anos e 7 meses de prisão”.
Responderam o arguido e o Ministério Público.
Neste Supremo Tribunal o Exmo Procurador – Geral Adjunto teve vista dos autos e foi proferido o despacho preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a audiência oral, cumpre decidir.
É a seguinte a matéria de facto dada como provada:
“ A menor BB e do arguido AA, nascida a 27.6.83, é filha de CC e do arguido AA, com os quais coabitou no caminho da Cova do Til, n.º ..., Porta .... Funchal, até Maio de 1999.
Em finais de Setembro de 1996 o arguido entrou no quarto de dormir da sua filha BB e ao ver esta completamente nua, estava a limpar-se com uma toalha, pediu-lhe para o deixar tocar na “ ratinha”, querendo o arguido com este termo fazer alusão à vagina da sua filha.
A BB, envergonhada com tal pedido, tapou de imediato o seu corpo e disse ao seu pai que não deixava.
Em face da recusa da sua filha, o arguido saiu do quarto de dormir deixando a menor ali sozinha.
Dois ou três dias após os acontecimentos narrados no art. que antecede, o arguido AA abeirou-se da menor BB que se encontrava na sala sentada no sofá a ver televisão, pedindo-lhe que afastasse os calções e as cuecas que trazia vestidos para que pudesse ver a sua “ratinha”. Ao verificar que a menor fazia uma expressão facial de desaprovação, o arguido AA disse à sua filha que não fazia mal nenhum em lhe mostrar a “ rata ” uma vez que era seu pai. A menor BB, convencida da normalidade da situação, abriu as pernas, afastou os calções e cuecas e mostrou a vagina ao seu pai AA, em ordem à satisfação dos seus instintos libidinosos, pôs-se a acariciar a vagina com uma mão, enquanto que com a outra mão, por debaixo da “ T- Shirt” e do soutien, apalpava os seus seios. Quando a menor BB tentou afastar-se do seu pai, este, fazendo da sua superior compleição física, manteve-a junto a si e continuou as carícias durante mais uns minutos.
No mês seguinte, em dia e hora não apurados, o arguido AA, que estava em casa só com a menor BB, perguntou a esta se masturbava. Como o termo masturbação era desconhecido da menor BB, o pai desta começou a explicar-lhe que era uma forma de as mulheres se auto-satisfazerem sexualmente e que consistia numa fricção continuada do clítoris com os dedos da mão. O arguido AA, ao verificar que a sua explicação não tinha sido aprendida pela sua filha BB, ordenou a esta para despir os calções do pijama e as cuecas. A menor BB, já desnudada da cintura para baixo e sentada no sofá da sala, viu o seu pai debruçar-se sobre si para, com força, lhe afastar as pernas. Acto contínuo, o arguido fazendo uso de dois dedos das mãos, começou a massajar o clítoris da menor, ao mesmo tempo que lhe explicava que a massagem também podia ser feita com um objecto chamado vibrador.
Dias mais tarde, mas ainda em Outubro de 1996, o arguido AA, na cozinha da sua residência, após ter mostrado à sua filha BB uma revista a cores onde tinha a fotografia de um vibrador, perguntou-lhe se ela queria um para si. A menor respondeu ao pai que não e saiu da cozinha.
Quinze dias após os acontecimentos supra pelas 9 h 30 m de um sábado, o arguido AA entrou no quarto da menor BB e, depois de a acordar, mostrou-lhe duas revistas com fotografias a cores onde se via, nomeadamente, um rapaz e uma rapariga mantendo relações de sexo oral. O arguido AA depois de mostrar o conteúdo das revistas à filha BB, ordenou a esta que massajasse o seu clítoris, pois também ele ia masturbar-se, o que efectivamente veio a suceder.
A partir desse sábado, o arguido AA, sempre que verificava que a sua mulher estava fora de casa, ia ao quarto da sua filha BB, ordenava-lhe que despisse o pijama e as cuecas. Enquanto a menor se despia, o arguido ia-lhe passando as mãos pelo corpo, designadamente seios e vagina. Depois de completamente desnudada, a menor era pelo arguido obrigada a acariciar o seu pénis erecto, muito das vezes até à ejaculação, e a massajar o clítoris com os dedos da mão. Quando a menor BB não tirava a roupa à ordem do arguido, era este quem a despia.
A conduta do arguido prolongou-se até ao Verão de 1997 que tal acontecia normalmente nas manhãs dos fins de semana, altura em que a mãe da menor se ausentava de casa.
Em dia não determinado no Verão de 1997, o arguido AA aproximou-se da sua filha BB, que estava na sala a ver televisão e em tom de voz muito baixo, disse-lhe para no dia seguinte vir mais cedo para casa, pois que queria fazer sexo oral. Quando a menor respondeu que não queria fazer sexo oral, o arguido retorquiu “ tu vais gostar”.
Ainda no Verão de 1997, o arguido.
Ainda no verão de 1997, o arguido chamou a sua filha à sala e obrigou-a a visionar uma cassete vídeo com cenas explícitas de sexo oral, vaginal e anal. Após o visionamento da cassete, o arguido meteu o pénis erecto na boca da menor BB.
Até ao fim de Verão de 1997, o arguido pelo menos por seis vezes praticou sexo oral com sua filha BB, ou seja, exigiu e conseguiu que esta lhe chupasse o pénis erecto.
Em dia não determinado de Setembro ou Outubro de 1997, o arguido ordenou que a menor se deitasse de barriga para baixo e após baixar as calças de ambos, introduziu parte do seu pénis no ânus da BB.
A conduta acabada de descrever repetiu-se por várias vezes até ao Verão de 1998.
Numa manhã do Verão de 1998, o arguido AA despiu-se completamente e deitou-se na cama da menor BB que ainda se encontrava a dormir; pôs-se em cima dela e tentou introduzir-lhe o pénis na vagina. A menor BB que entretanto acordara, ao mesmo tempo que chorava, unia as pernas com força para obstar à penetração do pénis na vagina.
Em face da atitude da menor, o arguido desistiu dos seus intentos.
Cerca de três dias depois, no quarto da menor, o arguido friccionou o clítoris da BB após despi-la e com o pénis já erecto colocou um preservativo e introduziu aquele na vagina da sua filha e após ter realizado movimentos de vai-vem próprios da cópula, ejaculou.
Desde a primeira penetração vaginal completa, até dia não determinado de Março de 1999, o arguido AA, desde que tivesse ocasião para tal, realizava cópula, coito anal e oral com a sua filha BB, obrigando esta ainda a masturbar-se e a masturbá-lo.
Além disso, o arguido sempre que queria, obrigava a menor BB a deixar-lhe lamber o clítoris. A obrigação de carícia mútuas e masturbação prolongam-se até meados de Março de 1999.
O arguido AA, com a intenção conseguida de satisfazer os seus instintos libidinosos, por diversas vezes praticara cópula, coito anal e oral com uma criança que sabia ser menor de catorze anos de idade, bem sabendo que, desse modo, actuava contra a auto-determinação sexual desta e ofendia gravemente os sentimentos gerais da moralidade sexual.
Determinou-se sempre favorecido pelas circunstâncias exteriores descritas – o estatuto insuspeito de ser pai da menor BB e residir com este servindo-se sempre dos métodos que repetidamente se foram revelando aptos para atingir os seus fins e acentuando sempre de forma homogénea e num cenário de oportunidade em que se ia defrontando e que permitiam ir alargando o âmbito da sua actividade criminosa, sendo certo que foi sucessivamente e progressivamente gerando uma relação de “ habituação” entre si e a menor BB. O arguido agiu de livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que praticava actos ilícitos criminalmente puníveis.
O arguido agiu com consciência de que poderia causar traumas na sua filha.
A ofendida é hoje uma pessoa profundamente traumatizada.
Os factos praticados pelo arguido continuarão a produzir mazelas psíquicas e emocionais ao longo da vida de BB.
O arguido é carregador na empresa “ Cimentos ...” e aufere cerca de 156.000$00 mensais.
Vive em quarto alugado.
Concluiu a 4.ª classe.
Entre os factos que serviram para fundamentar a convicção do tribunal consta a confissão do arguido.
É pacífica a jurisprudência deste S.T.J. no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que os recorrentes extraem da respectivação motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
Não se vê que ocorra qualquer dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do C.P.P., ou qualquer nulidade insanável.
Daí que se tenha como assente a factualidade dada como provada.
Vêm os recursos limitados à medida da pena: enquanto o M.P. defende a agravação da pena, o arguido pugne pela aplicação de uma pena especialmente atenuada.
Tendo em atenção o disposto nos art.s 172.º, n.º 1 e 2 e 177.º, n.º 1, al. a), do C.P. – normas à luz dos quais o arguido foi punido – os limites da pena aplicável oscilam entre os 4 anos e os 13 anos e 4 meses de prisão.
Resulta do art. 40.º n.º 1, do C.P. que a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. E de acordo com o seu n.º 2, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
Estabelece por sua vez o n.º 1 do art. 71.º, do mesmo diploma, que a determinação da medida da pena, dentro dos limites da lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. E nos termos do seu n.º 2, atender-se-à àquelas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente, enumerando depois nas suas alíneas algumas dessas circunstâncias.
A este propósito, lê-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 15.12.98, Proc. n.º 1267/98 o seguinte: “ A culpa, salvaguarda da dignidade humana do agente, não sendo o fundamento máximo da pena, define em concreto o seu limite máximo, absolutamente intransponível, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir. A prevenção especial positiva, porém, subordinada que está à finalidade principal de protecção dos bens jurídicos, já não tem virtualidade para determinar o limite máximo; este, logicamente, não pode ser outro que não o mínimo da pena que, em concreto, ainda realiza, eficazmente, aquela protecção. Enfim, devendo proporcionar ao condenado a possibilidade de optar por comportamentos alternativos ao criminal … a pena tem de responder, sempre, positivamente, às exigências da prevenção geral de integração … Ora, se por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro, esta nunca pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que – dentro, claro está, da moldura legal – a moldura da pena aplicável ao caso concreto ( “ a moldura de prevenção”) há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente; entre tais limites, encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social.”
A actividade criminosa do arguido desenrolou-se entre Setembro/Outubro de 1996 e Março de 1999, época em que a menor tinha entre os 13 e os 15 anos de idade.
Os actos sexuais praticados pelo arguido na pessoa da sua filha – e contra a vontade desta – vão desde actos sexuais de relevo, até cópula, coito oral e anal e em número elevado de vezes.
O grau de ilicitude dos factos é muito elevado, como são graves as consequências dos mesmos – recorde-se as mazelas psíquicas e emocionais produzidas e a produzir na ofendida.
Com a prática dos factos pretendeu o arguido satisfazer os seus instintos libidinosos.
Como circunstâncias atenuantes tem apenas a confissão. E a esta não pode, de modo algum, dar-se o valor pretendido pelo arguido: o ser-lhe aplicável o disposto no art. 72.º, n.ºs 1 e 2, do C.Penal.
Como ensina Figueiredo Dias em “ Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime”, Editorial Notícias, 1993, pág 306, § 454, “ A diminuição da culpa ou das exigências da prevenção só poderá, por seu lado, considerar-se acentuada quando a imagem global do facto, resultante da actuação da(s) circunstância(s) atenuante( s), se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo. Por isso, tem plena razão a nossa jurisprudência – e a doutrina que a segue – quando investe em que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar: para a generalidade dos casos, para os casos “ normais”, lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximos e mínimos próprios”.
Ora a confissão do arguido ( que não se enquadrou no estabelecido no art. 344.º do C.P.Penal), olhada dentro da imagem global do facto, não é só por si suficiente no sentido de fazer diminuir por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
Daí que se possa afirmar, desde já, que improcede totalmente o recurso interposto pelo arguido.
Posto isto e ponderado todo o factualismo dado como provado e os princípios legais que presidem à determinação da pena a aplicar, julga-se que a pena deve ser agravada. Sem efeito, nada justifica a aplicação de uma pena a tocar as raias do limite mínimo. Entende-se, por isso fixar a pena em 7 anos e 5 meses de prisão.
Nestes termos, acordam em negar provimento ao recurso do arguido e a concedê-lo ao do Ministério Público e assim condena-se o arguido, pela prática do crime que lhe foi imputado, na pena de 7 anos e 5 meses de prisão.
Vai o arguido condenado nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 8 Ucs.
Fixa-se os honorários à Ex.ma Defensora Oficiosa em 5 UR.
Lisboa, 22 de Maio de 2002
Flores Ribeiro
Lourenço Martins
Pires Salpico
Leal Henriques