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CRÉDITO AO CONSUMO
COMPRA E VENDA
RESOLUÇÃO
INCUMPRIMENTO
Sumário
No âmbito de um contrato de crédito ao consumo regido pelo Decreto-Lei n.º 359/91, de 21/02, a resolução do contrato de compra e venda por incumprimento do vendedor, faz cessar a obrigação do consumidor perante o financiador daquele contrato, podendo o consumidor/comprador opor ao financiador os efeitos daquela resolução, assistindo-lhe o direito de haver da financiadora as quantias que, entretanto, pagou.
Sumário elaborado pelo Relator – cf., nº. 7 do artº. 663º, do Cód. de Processo Civil
Texto Integral
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.
I–RELATÓRIO:
Ação: – Declarativa de condenação, sob a forma de processo comum. Autor: – RAMIRO … Réu: – CAIXA … E … – INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A. Pedido Condenação da ré a devolver ao autor as quantias de €9.574,08, e €294,96, num total de €9.869,06, acrescida de juros legais desde a notificação do pedido, e ainda ser fixada indemnização equitativa para nos termos do disposto do artigo 566.º do Código Civil, ser determinado um valor dos danos não inferior a €15.000,00.
Causa de pedir
O autor celebrou com a ré, em 07/03/2008, um contrato de crédito para a compra de um veículo automóvel (Seat modelo Toledo 1.6 de 1999), cuja aquisição foi efetuada através da concessionária «LSF», incluindo o negócio de venda do veículo a adaptação do mesmo ao sistema de propulsão GPL. O autor pagou pontualmente à ré as mensalidades, mas não recebeu o automóvel, não tendo o vendedor cumprido o prazo estipulado para a entrega, nem feito as adaptações pretendidas relativamente ao uso do GPL. O autor comunicou ao vendedor a decisão de anular o contrato, tendo este se comprometido a providenciar a anulação do contrato de compra e venda do automóvel e a restituir o valor que lhe fora entregue pela ré ao abrigo do contrato de financiamento, tendo a ré ignorado todas as comunicações do Autor. Existindo coligação contratual entre o contrato de compra e venda automóvel e o contrato de crédito ao consumo celebrado com a ré para financiamento da aquisição do veículo, a resolução do primeiro acarreta resolução do segundo, tendo a ré igualmente incumprido com as suas obrigações contratuais e o autor visto frustradas as suas expectativas de aquisição de um automóvel e a obrigação de pagar por algo que não tinha recebido.
Contestação
No que ora releva, a ré por exceção, alegou a validade e eficácia do contrato de mútuo que celebrou com ao autor e respetivo cumprimento, sendo obrigação do vendedor a entrega do veículo ao autor. Não celebrou com o vendedor acordo expresso ou tácito nos termos do artigo 12.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 359/91, de 21/09, sendo apenas uma das entidades financeiras que disponibilizava os serviços financeiros para que o stand exercesse a sua atividade de venda automóveis. Desconhece a indicada adaptação do veículo e o prazo de entrega, apenas se tendo limitado a transferir para o vendedor o valor venal do objeto do contrato. No mais, nega que haja qualquer prejuízo do autor, concluindo pela sua absolvição da instância ou da improcedência do pedido.
Contraditório
O autor pronunciou-se sobre a não procedência da exceção, defendendo que, por via da resolução do contrato do contrato principal, o contrato de mútuo perde a sua autonomia e a razão de subsistir, acrescentando que tem de pedir a devolução do valor pago a quem pagou.
Intervenção principal provocada De S… e de L… (vendedores do veículo). Os Intervenientes, citados, constituíram mandatário e vieram dizer terem sido declarados insolventes.
Audiência prévia Foi decidido que a declaração de insolvência dos intervenientes, face à causa de pedir e ao pedido formulado, não influi na tramitação da causa; as partes foram consideradas legítimas e o tribunal competente. Foi fixado o objeto do litígio e os temas de prova.
Sentença Julgou a ação parcialmente procedente, nos seguintes termos: «Condeno a Ré "CAIXA … E … - Instituição Financeira de Crédito, S. A." a restituir ao Autor a quantia total de €9.765,04, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação; a)– Absolvo a mesma Ré do restante pedido contra si formulado pelo Autor; b)– Condeno o Autor e a Ré "CAIXA … E ... - Instituição Financeira de Crédito, S. A." no pagamento das custas, na proporção dos respectivos decaimentos.»
Recurso
Inconformada, apelou a ré pugnando pela revogação da sentença.
Foi apresentada resposta ao recurso no sentido da confirmação da sentença.
O recurso foi admitido por despacho de 06/12/2018. Conclusões da Apelação
«a)- O Tribunal a quo condenou a Recorrente a restituir ao Autor a quantia de €9.765,04 (Nove mil setecentos e sessenta e cinco euros e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação, invocando, para tanto, o incumprimento da interveniente e fazendo uma interpretação restritiva da exclusividade referida no artigo 12.° n.º 2 do DL 359/91 ; b)- Entende a Recorrente que mal andou o Tribunal a quo, uma vez que se tivesse aplicado correctamente o direito aos factos constantes da matéria dada como provada a sentença teria absolvido a Recorrente do pedido; c)- Muito embora esteja provado a rescisão do contrato de compra e venda pelo Autor, entende a Recorrente que esta rescisão não conduz à desvinculação do comprador relativamente ao contrato de mútuo; d)- Em bom rigor, o veículo não foi entregue ao Autor pelo Stand S…por culpa exclusiva deste o que se traduziu num incumprimento por parte do Stand; e)- Contudo, o entendimento da Recorrente é de que para que o Autor possa opor o incumprimento ao financiador é necessário que exista "entre o credor e vendedor um acordo prévio, por força do qual o crédito é concedido exclusivamente pelo mesmo credor aos clientes do vendedor para a aquisição de bens fornecidos por este último" e que o crédito tenha sido obtido pelo comprador no âmbito desse acordo prévio; f)- No caso em sub judice não está provado qualquer exclusividade na concessão de crédito para a aquisição de bens ao StandS…; g)- Pelo contrário, o que se encontra provado no ponto 20 da matéria provada da Douta Sentença é o seguinte: "A Ré era uma das entidades financeiras que disponibilizava os seus serviços financeiros para que o stand "LSF" exercesse a sua actividade de venda de imoveis"; h)-Ora, o que resulta inequívoco é que a Recorrente era uma das entidades financeiras que disponibilizava os seus serviços financeiros para que o Stand "LSF" exercesse a sua actividade comercial, era uma de entre muitas outras; i)-Não havendo assim qualquer acordo prévio de exclusividade; j)-Porquanto, não existindo exclusividade na concessão do crédito é o bastante para que o regime previsto no número 2 do artigo 12.º do DL 359/91 não se aplique; k)- Entende assim a aqui Recorrente que o Tribunal a quo não valorou corretamente a prova produzida já que os elementos probatórios constantes dos autos impõem solução diversa daquela que resulta da sentença ora recorrida; I)- A Recorrente cumpriu integralmente a obrigação emergente do contrato que celebrou entregando a quantia solicitada ao fornecedor Stand "LSF", quem não cumpriu a obrigação principal do contrato de compra e venda foi o Stand, que não entregou o veículo ao Autor; m)-Motivo pelo qual não pode a Recorrente ser responsabilizada pelo incumprimento de uma obrigação de um contrato que não celebrou com o Autor; n)- O contrato de mútuo cumpriu todos os requisitos de forma e produziu os seus efeitos, o mutuante transferiu para o vendedor Stand o valor do bem financiado; o)- Assim, a não entrega do automóvel não pode ser imputada à Recorrente por se tratar de uma obrigação a ser cumprida pelo fornecedor; p)- A verdade é que, mesmo olhando para o contrato de crédito ao consumo no limite próximo de uma relação contratual triangular com efeitos similares a uma venda a prestações não se encontra fundamento para que o financiador visse a sua posição contratualmente afectada por um acto de vontade de um só dos intervenientes, apenas aceite pelo outro; q)- Seria mesmo contrário ao princípio geral de que os contratos só se podem alterar por mútuo consentimento dos contraentes (artigo 406.° n.º 1 do Código Civil); r)- A simples rescisão do contrato de compra e venda não faz cessar a obrigação do mutuário perante a financiadora; s)- Na realidade, resulta dos factos dados como provados que o vendedor S… se comprometeu a providenciar a anulação do contrato de compra e venda e, em consequência a restituir o valor entregue pela Ré; t)-Não obstante o vendedor nunca deu conhecimento à Recorrente de que iria providenciar pela anulação do negócio; u)-O que existiu foi um acordo entre o Autor e o Stand S… segundo o qual este se responsabilizaria pelo pagamento do mútuo; v)- No entanto nunca houve qualquer declaração expressa por parte do Recorrente nesse sentido.» II–FUNDAMENTAÇÃO A–Objeto do Recurso
O objeto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), prende-se com a interpretação do artigo 12.º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 359/91, de 21/09. B–De Facto
A 1.ª instância fundamentou a decisão com base na seguinte matéria de facto:
FACTOS PROVADOS
1.– Em 7 de Março de 2008 o Autor e a Ré celebraram um contrato de crédito, constante como documento 1 da petição inicial e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, com o n.º 12438708 no valor total de €9.574,08, com vista à aquisição de um veículo automóvel por parte do Autor. 2.– A aquisição do automóvel foi efectuada através da concessionária "LSF", gerida pelo Interveniente S… e propriedade de L…. 3.– O automóvel objecto do negócio era de marca Seat, modelo Toledo 1.6, matrículaXX-XX-XX. 4.– Foi acordado entre o Autor e a vendedora do automóvel a adaptação do veículo ao sistema de propulsão GPL. 5.– A vendedora efectuou quatro simulações de crédito ao Autor. 6.– A Ré transferiu directamente para a vendedora o valor do crédito solicitado, tendo ficado acordado entre o Autor e a vendedora que o veículo seria entregue ao Autor num prazo máximo de 15 dias, já com as adaptações efectuadas. 7.– O Autor liquidou a primeira mensalidade, no valor de €198,95 (Cento e Noventa e Oito Euros e Noventa e Cinco Cêntimos) por débito direto e as seguintes por 8.– A Ré cobrou ao Autor os custos associados à transferência de propriedade e ao registo na Conservatória do Registo Automóvel, num total de €190,96. 9.– O Autor pagou as mensalidades do contrato. 10.– O Autor não recebeu o automóvel. 11. – A Ré não enviou ao Autor os documentos comprovativos dos actos referidos em 8). 12.– Após período não concretamente apurado, mas não inferior a 30 dias nem superior a 40 dias, ocorreu contacto entre o Autor e o Interveniente S…, "gerente" da "LSF", tendo manifestado a sua insatisfação e a sua decisão de anular o contrato face à não entrega do automóvel e não efectivação das adaptações pretendidas pelo Autor relativamente ao uso do GPL. 13.– S… comprometeu-se a providenciar a anulação do contrato de compra e venda automóvel e a restituir o valor que lhe fora entregue pela Ré ao abrigo do contrato de financiamento. 14.– O Autor remeteu à Ré a carta datada de 8 de Julho de 2008, constante como documento 5 da petição inicial e cujo teor se dá por integralmente reproduzido. 15.– A Ré ignorou a missiva do Autor. 16.– O Autor efectuou reclamação junto do Banco de Portugal, tendo recebido deste a comunicação constante como documento 7 da petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido. 17.– Perante a situação, temporariamente, após o mês de Agosto de 2010, o A. deixou de pagar as mensalidades à Ré, tendo retomado de imediato o seu pagamento. 18.– O Autor viu frustradas as suas expectativas de adquirir o automóvel. 19.– A Ré reportou ao Banco de Portugal o não pagamento referido em 17, conforme informação da Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal constante como documento 6 da petição inicial e cujo teor se dá por integralmente reproduzido. 20.– A Ré era uma das entidades financeiras que disponibilizava os seus serviços financeiros para que o stand "LSF" exercesse a sua actividade de venda de imóveis. FACTOS NÃO PROVADOS
a)- Que a "LSF" representava a Ré. b)- Que os custos associados à transferência de propriedade e ao registo na Conservatória do Registo Automóvel, foram num total de €294,96. c)- Que em 30 de Agosto 2010, após comunicação do A. por carta registada com aviso de recepção, de 20 de Agosto de 2010, a Ré reconheceu "verificou-se que haviam sido lançados e cobrados juros de mora e penalidades contratuais cujos montantes não eram devidos". C–De Direito
Como acima dito, o objeto do recurso consiste na interpretação do artigo 12.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 359/91, de 21/09, mais concretamente o conceito de «exclusividade« inserto na alínea a) do referido normativo. Decorre das conclusões de recurso que a apelante não discute a caraterização da relação jurídica estabelecida entre as partes nos termos analisados na sentença recorrida. Trata-se de uma relação jurídica estabelecida numa relação especial de consumo regida pelo Decreto-Lei n.º 359/91, de 12/09 (alterado pelo Decreto-Lei n.º101/200 de 02/07 e pelo Decreto-Lei n.º 82/2006 de 03/05), que se encontrava em vigor à data dos factos. O Decreto-Lei 359/91 transpôs as Diretivas nºs 87/102/CEE de 22 de Dezembro de 1986 e 90/88/CEE de 22 de Fevereiro de 1990, e veio regular os contratos de crédito ao consumo, designadamente, veio disciplinar os casos em que o crédito concedido sob a forma de contrato de mútuo se destina a financiar a aquisição de bens, esclarecendo as especiais implicações decorrentes da ligação funcional entre o mútuo e a aquisição de bem. No caso vertido nestes autos, estamos perante um contrato de compra e venda de um automóvel pelo autor, aquisição essa financiada pela ré, coexistindo dois contratos distintos e autónomos: um contrato de compra e venda e um contrato de crédito, ligados funcionalmente entre si, porquanto o crédito se destinou a financiar o pagamento do preço do bem objeto mediato da compra e venda (o veículo automóvel). O nexo funcional existente entre tais contratos (de compra e venda e de crédito) influencia a respetiva disciplina, pois que se estabelece entre eles (apesar de serem contratos separados ou autónomos) uma relação de dependência reversiva, que alguns qualificam como união de contratos ou coligação, daí derivando consequências jurídicas relevantes, na medida em que as vicissitudes de um se podem repercutir no outro, como resulta do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 359/91, de 21/09. Assim, se a validade e eficácia do contrato de compra e venda depende da validade e eficácia do contrato de crédito (caso se mostrem preenchidos determinadas circunstâncias – artigo 12.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 359/91), também, por outro lado, o incumprimento ou o cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda se repercute sobre o contrato de crédito (artigo 12.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 359/91), verificados que sejam determinados pressupostos. Verificando-se, como se verifica no caso em apreço, a resolução do contrato de compra e venda pelo comprador, por incumprimento definitivo da vendedora, que nunca entregou o veículo ao autor (artigos 432.º, 436.º, 879.º e 808.º do Código Civil), a questão que se coloca é se pode ser oposta pelo consumidor/comprador ao financiador (credor no contrato de crédito) as consequências da referida resolução do contrato, assistindo-lhe o direito de reaver do credor os valores, entretanto, entregues no âmbito do cumprimento do contrato de crédito.
De acordo com o n.º 2 do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 359/91, tal direito assiste ao consumidor/comprador desde que se verifiquem, cumulativamente, os seguintes pressupostos: «a)-Existir entre o credor e o vendedor um acordo prévio por força do qual o crédito é concedido exclusivamente pelo mesmo credor aos clientes do vendedor para aquisição de bens fornecidos por este último; b)- Ter o consumidor obtido o crédito no âmbito do acordo prévio referido na alínea anterior». No caso em apreço, a sentença recorrida decidiu que o autor, na qualidade de consumidor/comprador, podia opor à ré (entidade financiadora do contrato de consumo) o incumprimento do vendedor e subsequente resolução do contrato de compra e venda, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe as quantias pecuniárias que despendeu com a aquisição do veículo, fazendo uma interpretação restritiva do conceito «exclusividade», porquanto o «crédito foi concedido exclusivamente para aquisição desse veículo, e apesar de ter, como indicado, pago o valor, o vendedor incumpriu não lhe entregando o veículo.» Discorda a apelante pelas razões que constam das conclusões de recurso, defendendo, no essencial, que não está provada qualquer exclusividade na concessão de crédito para aquisição de bens do vendedor como decorre do ponto 20 dos factos provados, pelo que não lhe é oponível a resolução do contrato de compra e venda celebrado entre o autor e o vendedor do veículo. Como é sabido, a interpretação do que seja a relação de «exclusividade» entre o financiador e vendedor, pressuposta na literalidade da alínea a) do n.º 2 do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 359/91, foi tema discutido na doutrina e jurisprudência enquanto vigorou o referido diploma (atualmente revogado pelo Decreto-Lei n.º 133/09, de 02/06, cujo artigo 18.º afastou a polémica ao eliminar o requisito da exclusividade).
Como se referiu no acórdão da Relação de Lisboa de 19/04/2018[1], sintetizando as várias posições jurisprudenciais sobre a questão: «Para uns, esta exclusividade reporta-se às relações entre financiador e vendedor, pelo que se o fornecedor colabora com mais do que um credor, não se verifica o requisito em apreço. Para outros a exclusividade pressuposta na norma em análise não se reporta ao quadro negocial estabelecido entre a sociedade financeira e o fornecedor mas antes à vinculação do crédito a um determinado contrato de compra e venda, ou seja ter sido este contraído exclusivamente com a finalidade daquela aquisição/venda. Para outros ainda, os requisitos previstos no artº 12 supra citado, não têm a ver com a oponibilidade das excepções do comprador, mas sim com a questão da responsabilidade subsidiária do vendedor perante o comprador (uma atribuição adicional decorrente daquela norma, dado que o comprador não a teria se se estivesse perante uma compra e venda a prestações). Outros ainda defendem uma interpretação restritiva desta “exclusividade”, defendendo que sempre que dos autos decorra que aquando da celebração do contrato de compra e venda relativo à aquisição do bem, o vendedor se tenha prontificado a tratar da obtenção do crédito e informado o consumidor de que tinha acordo com a financiadora, por via do qual esta asseguraria o crédito, se verificam os requisitos deste diploma.»
Também o acórdão desta Relação de Lisboa de 31/05/2016[2], dá nota de diversa jurisprudência sobre a questão, evidenciando-se que o STJ tem acolhido em diversos acórdãos o entendimento de que não estando provada a exclusividade exigida pelo n.º 2 do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 351/92, o eventual incumprimento do vendedor não é oponível ao financiador[3], enquadro as Relações têm defendido de modo bastante alargado, ainda que com algumas nuances como antes referido, que a exclusividade não se reporta à relação entre o financiador e o vendedor mas antes à vinculação do crédito a um determinado contrato de compra e venda[4]. Impõe-se, pois, que se tome posição sobre a polémica em ordem a resolver a questão decidenda colocada no presente recurso.
Em nosso entender, a interpretação do preceito não se pode bastar com uma mera interpretação literal do requisito «exclusividade», mas antes atentar na «ratio legis» da norma valorizando-se especialmente nessa interpretação o elemento teleológico.
Para o efeito é necessário levar em conta que estamos perante contratos interligados que prosseguem uma finalidade económica comum, completando-se para a obtenção desse escopo comum.
Como refere GRAVATO MORAIS «Os contratos de crédito e de compra e venda configuram funcionalmente uma unidade, de tal modo que nenhum se pretende sem o outro, representando cada um deles a base negocial do outro», ou seja, os contratos «só têm sentido, tal como foram originariamente concebidos, se persistiram certas circunstâncias, sem as quais a sua finalidade se esvazia.»[5] Ora, essa finalidade corresponde à proteção do consumidor, estabelecendo o Decreto-Lei n.º 359/91 um regime especial com esse desiderato. Donde, a mera interpretação literal do conceito «exclusividade» coloca em causa essa finalidade, porquanto cria um resultado menos favorável para o consumidor que se vê onerado com uma prova sobre um acordo em relação ao qual não foi visto nem achado.
Na verdade, o consumidor é terceiro em relação ao eventual acordo entre o financiador e o vendedor. Dificilmente poderá fazer prova cabal e consistente da existência desse acordo prévio de exclusividade, tanto mais que o mesmo se afigura, em face das regras da normalidade das coisas, altamente improvável, pelo menos na perspetiva da entidade financiadora, já que dificilmente se concebe que uma entidade financiadora restrinja o seu âmbito de atuação a uma relação de exclusividade como um determinado vendedor.
Assim, a interpretação literal do advérbio «exclusivamente» constante da alínea a) do n.º 2 do artigo 12.º do referido diploma conduziria, na prática, sempre a uma interpretação menos favorável ao consumidor, deixando-o completamente indefeso relativamente à obrigação de pagamento do mútuo numa situação em que ocorre incumprimento definitivo do contrato de compra e venda, não obstante a intrínseca ligação entre os dois contratos de tal modo que um é a causa exclusiva da celebração do outro.
Daí que se entenda que deve ser adotada uma interpretação restritiva do conceito «exclusividade» no sentido da mesma não se reportar à relação entre a instituição financeira e o fornecedor do bem, mas antes à vinculação do crédito a um específico contrato de compra e venda, ou seja, a «exclusividade» significa, nesse contexto, a adstrição do crédito disponibilizado à satisfação das prestações que o consumidor se vinculou com a conclusão do contrato de compra e venda.
Nesse sentido, sob o ponto de vista dos interesses em presença e da peculiaridade da formação contratual, a concessão de crédito tem, exclusivamente, aquela finalidade de financiamento de determinado contrato de compra e venda, existindo prévio acordo entre a instituição financeira e o fornecedor nesse sentido, donde resulta que a concessão do crédito se integra, por assim dizer, na compra e venda.
Nessa perspetiva, na apreciação da concreta situação, revelam as circunstâncias de tempo e lugar da conclusão do contrato de crédito ao consumo e do contrato de compra e venda. Ora, no caso sub judice, os factos provados evidenciam o quadro negocial subjacente à celebração dos contratos e a sua ligação intrínseca.
Veja-se, assim, que no contrato de crédito celebrado entre o autor e ré (documento 1 da petição inicial - facto provado 1) encontra-se identificado o nome do vendedor (a interveniente L…), circunstância que evidencia à saciedade a existência de um acordo prévio em termos comerciais entre o vendedor e a financiadora em ordem à obtenção de credito por parte do comprador em relação àquela vendedora, já que outra explicação não se descortina para o nome do vendedor constar do referido contrato de crédito do qual não é parte.
Também ficou provado (facto provado 5) que foi o vendedor que efetuou várias simulações de crédito ao autor, ou seja, os pressupostos da concessão do mesmo foram fornecidos ao comprador pelo vendedor e não pela entidade financiadora, evidenciando, mais uma vez, um prévio acordo entre ambos com vista à realização dos dois contratos.
Mas mais. O valor do empréstimo foi entregue pela financiadora diretamente à vendedora, não ao comprador do veículo (facto provado 6), o que revela de forma inequívoca a existência de uma prévia partilha de interesses comerciais entre a financiadora e a vendedora, bem como a afetação do valor mutuado à concreta transmissão do bem vendido ao consumidor/comprador.
Neste contexto, o provado sob o facto 20 – «a ré era uma das entidades financeira que disponibilizava os seus serviços financeiros para que o stand «LSF» exercesse a sua atividade de venda de veículos» – não tem a virtualidade de afastar a ligação funcional entre os contratos, nem permite concluir pelo afastamento do conceito «exclusividade» interpretado restritivamente nos termos supra referidos.
Como se refere no acórdão desta Relação de 31/05/2016, já acima citado, «[n]ão é pelo facto de o vendedor trabalhar com uma ou com duas financiadoras, ou até mesmo só com uma mas sem lhe conceder formalmente exclusividade, que a relação negocial em apreço deixa de ser o que é, do ponto de vista substantivo: uma relação triangular, intrinsecamente interdependente, revestindo a natureza de relação de consumo, em que o valor primordial a tutelar é o do reforço e da protecção efectiva dos direitos e interesses do consumidor.»
Donde decorre que a «exclusividade» exigida pelo n.º 2, alínea a), do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 359/91, de 21/09 só pode ser interpretada no sentido restritivo acima referido, também adotado na sentença recorrida. Em conclusão, no âmbito de um contrato de crédito ao consumo regido pelo referido diploma legal, a resolução do contrato de compra e venda por incumprimento do vendedor, faz cessar a obrigação do consumidor perante o financiador daquele contrato, podendo o consumidor/comprador opor ao financiador os efeitos daquela resolução, assistindo-lhe o direito de haver da financiadora as quantias que, entretanto, pagou. Solução, aliás, que resulta da lei atualmente em vigor, uma vez que o Decreto-Lei n.º 133/2009, de 02/06 (que transpôs para o ordenamento internos a Diretiva 2008/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e revogou o Decreto-Lei n.º 359/91) não faz qualquer exigência quanto a um acordo de exclusividade para que o comprador/mutuário possa fazer valer os seus direitos perante o financiador, bastando-se com a verificação do nexo de coligação entre os contratos.[6]
Em face do exposto, improcede a apelação.
Dado o decaimento, as custas ficam a cargo da apelante (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP. III–DECISÃO Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida. Custas nos termos sobreditos.
Lisboa, 18 de junho de 2019 (Maria Adelaide Domingos - Relatora) (Ana Isabel Mascarenhas Pessoa – 1.ª Adjunta) (Eurico José Marques dos Reis - 2.º Adjunto)
[1]Processo n.º 1285/08.0TBOER-B.L1-6 (Cristina Neves), em www.dgsi.pt [2]Processo n.º 2307/09.5YYLSB-A.L1-7 (Luís Espírito Santo), em www.dgsi.pt [3]Cfr., sem caráter exaustivo, os seguintes arestos (disponíveis em www.dgsi.pt):
- Ac. STJ, de 09/07/2015, proc. n.º 20983/10.1YYLSBA.L1.S1 (Fernandes do Vale)
- Ac. STJ, de 14/01/2014, proc. 4354/07.0TBGDM.P1.S1 (Alves Velho)
- Ac. STJ, de 26/09/2013, proc. n.º 1735706.0TBFLG-B.G1.S1 (Maria dos Prazeres Beleza)
- Ac. STJ, de 20/03/2012, proc. 1557/05TBPTL.L1 (Martins de Sousa)
- Ac. STJ, de 24/04/2007, proc. n.º 07ª685 (Nuno Cameira)
- Ac. STJ, de 20/10/2009, proc. n.º 1202/07.4TBVCD.S1 (Cardoso de Albuquerque)
- Ac. STJ, de 13/11/2008, proc. n.º 07B2724 (Maria dos Prazeres Beleza)
- Ac. STJ, de 14/02/2008, proc. n.º 08B074 (Oliveira Vasconcelos) [4]Cfr. sem caráter exaustivo, os seguintes arestos (disponíveis em www.dgsi.pt):
- Ac. RL, de 19/04/2018, proc. n.º 1285/08.0TBOER-B.L1-6 (Cristina Neves)
- Ac. RL, de 24/04/2007, proc. n.º 5676/2005-7 (Isabel Salgado)
- Ac. RL, de 23/02/2006, proc. n.º 10021/2005-8 (Sérgio Gouveia)
- Ac. RP, de 14/03/2011, proc. n.º 3974708.0TBVLG-B.L1(Abílio Costa)
- Ac. RP, de 15/04/2010, proc. n.º 20155/05.7YYPRT-A.P1 (Pinto de Almeida)
- Ac. RP, de 19/01/2010, proc. n.º 11692/04.1TJPRT-A.P1 (Henrique Antunes)
- Ac. RP, de 02/03/2009, proc. 0857978 (Anabela Luna de Carvalho, subscrito pela ora Relatora como 2.ª Adjunta)
- Ac. RC, de 17/03/2015, proc. n.º 277/13.1TBPMS-A.C1 (Carvalho Martins)
- Ac. RC, de 12/07/2011, proc. n.º 934/07.1TBFND-A.C1 (Pedro Martins)
- Ac. RE, de 03/02/2010, proc. n.º 45/09.5TBETZ.E1 (Tavares de Paiva)
- Ac. RG, de 20/09/2007, proc. n.º 1612/07.2 (Gouveia Barros)
- Ac. RG, de 24/05/2007, proc. n.º 766/07.2 (Gouveia Barros) [5]União de Contratos de Crédito e Venda para Consumo, Almedina, 2004, p. 400. [6]Cfr. GRAVATO MORAIS, Crédito aos Consumidores, Almedina, 2009, p. 87-90.