ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÕES SOCIAIS
TRIBUNAL COMPETENTE
CADUCIDADE
Sumário

Se o autor intentou no último dia do prazo previsto no artigo 59.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, no tribunal incompetente em razão da matéria, ação de anulação de deliberações sociais, não beneficia da extensão do prazo de caducidade previsto n.º 2 do artigo 279.º do Código de Processo Civil ou nos artigos 327.º, n.º 3, e 332.º, n.º 1, do Código Civil, independentemente de pretender propor nova ação ou de ter obtido deferimento da remessa dos autos para o tribunal competente, por lhe ser imputável o motivo processual que levou à absolvição dos réus da instância.

Sumário elaborado pelo Relator – cf., nº. 7 do artº. 663º, do Cód. de Processo Civil

Texto Integral

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


I–RELATÓRIO:


Ação: Anulação de deliberações sociais, intentada em 03/03/2014.
Autor: JOSÉ …
Réus : V… BUSINESS …,Ldª
           Luís…
           Miguel…

Pedido[1]

a)- Declaração de nulidade das deliberações referentes aos pontos 1 a 4 da Ordem de Trabalhos relativa à assembleia geral da ré realizada a 31/01/2014;
b)- Subsidiariamente, a declaração de anulação das deliberações referentes aos pontos 1 a 4 da Ordem de Trabalhos relativa à mesma assembleia geral;
c)- Em consequência, seja com a declaração de nulidade ou da anulabilidade das deliberações tomadas na mencionada assembleia geral, condenação do 2.º e 3.º réus na devolução à sociedade ré dos valores indevidamente recebidos como distribuição de lucros encapotados de remunerações ou de prémios à gerência, acrescidos de juros de mora, e serem as contas do exercício de 2013 retificadas.

Causa de pedir (no que releva para este recurso)

O autor e os réus são os únicos sócios da sociedade ré.

Em julho de 2013, o autor renunciou à gerência, mantendo-se como sócio. A gerência é exercida pelo 2.º e 3.º réus.

Em 31/01/2014 realizou-se a assembleia geral ordinária anual da ré.

Foi votado o ponto 1 da ordem de trabalhos (retificar o aumento da remuneração dos gerentes, ora 2.º e 3.ºs réus).
A deliberação foi aprovada por maioria não qualificada (votos a favor do 2.º e 3.º réu e voto contra do autor) e visa aumentar as remunerações dos gerentes no período de agosto a dezembro de 2013, assim diminuindo o lucro  distribuível aos sócios.
Também foi votado, nos mesmos termos, o ponto 2 da ordem dos trabalhos (deliberar sobre o aumento dos gerentes Miguel … e Luís …), visando igualmente aumentar as remunerações dos gerentes, assim diminuindo o lucro  distribuível aos sócios.
As votações são abusivas, nulas e/ou anuláveis, atenta a razão de ser das mesmas e por não terem sido tomadas por maioria qualificada (artigos 56.º, n.º 1, alínea d), 22.º, n.º 3, 58.º, n.º 1, alínea b), 22.º, n.º 1 e 217.º, n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais – CSC).

Requerimento do autor
Em 12/03/2014, o autor requereu ao abrigo do artigo 99.º, n.º 2, do CPC, a remessa de imediato dos autos para o Tribunal do Comércio de Lisboa por ser o materialmente competente.

Despacho
Proferido em 02/04/2014 pelo 2.º Juízo de Competência Cível do Tribunal da Comarca de Almada, que absolveu os réus da instância, por procedência da exceção de incompetência absoluta daquele tribunal.
Ordenou, ainda, por tal ser requerido pelo autor, a remessa dos autos ao Tribunal do Comércio de Lisboa, ao abrigo do artigo 99.º, n.º 3, do CPC.

Contestações
Apresentadas pelo 2.º e 3.º réu.
Defenderam-se por exceção e impugnação.
No que ora releva, excecionaram a competência em razão da matéria do tribunal civil, onde foi intentada ação, por ser competente o tribunal de comércio, e a caducidade do direito de ação.

Recurso
Os réu Miguel … interpôs recurso do segmento do despacho que ordenou a remessa dos autos nos termos sobreditos.

O recurso foi decidido por acórdão desta Relação de Lisboa, proferido em 10//11/2016, que julgou a apelação improcedente.

Tramitação dos autos no Tribunal do Comércio.

Após várias vicissitudes processuais, irrelevantes para a apreciação do recurso, foi realizada audiência prévia e, posteriormente, em 14/11//2018, proferido saneador-sentença (Ref.ª 379872848- fls. 366-373), relevando para o presente recurso o decidido quanto ao ponto 1 e 2 da ordem dos trabalhos da assembleia geral de 31/01/2014, com o seguinte teor:
«Face a todo o exposto, o Tribunal julga a presente acção improcedente, por não provada, e, consequentemente, não declara nula nem anulável o ponto 1 e 2 da deliberação de 31-1-2014 da assembleia geral da l .ª R. »

Recurso
Inconformado, apelou o autor (Ref.ª 31130869- fls. 376-383v), pugnando pela revogação da sentença, apresentando as seguintes conclusões:
«A.– A Sentença proferida pelo Tribunal a quo é nula por violação da alínea c), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC;
B.–  Existe oposição entre os fundamentos da Sentença e o dispositivo da sua decisão;
C.  O Tribunal a quo estava impedido de aquilatar o pedido feito pelo aqui Recorrente, a partir do momento em que, no seu entendimento, conclui pela caducidade do direito de acção, o que acaba por conduzir à contradição entre o fundamentado e o decidido;
D. Sem conceder, subsidiariamente, a Sentença é ainda nula, nos termos da alínea b), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC por não indicar os fundamentos de facto e de Direito que conduziram à decisão final, concretamente ao afastar, em apenas 6 (seis) linhas o vício da anulabilidade de deliberação social aprovada pelos Réus, ora Recorridos, e invocada pelo aqui Recorrente;
E. Não se sabe em que termos o Tribunal a quo utiliza o instituto do abuso de direito para justificar a ausência de qualquer causa de anulabilidade quanto à deliberação social;
F. Nenhum abuso de direito existiu, contanto que o Recorrente tinha direito de voto nas deliberações sociais, direito esse que decorre da lei;
G. O Tribunal a quo não fundamenta o motivo pelo qual afasta as causas de anulabilidade da deliberação social de 31-1-2014;
H. O direito de acção do Recorrente não caducou, face aos factos ocorridos e existentes no processo;
I. Num primeiro momento, o Recorrente interpôs a acção no Tribunal materialmente incompetente para apreciar a causa, pese embora, ainda antes da Contestação, tenho requerido ao Tribunal incompetente para remeter a acção para o Tribunal competente;
J. De forma a, à luz dos princípios da economia processual e da cooperação processual, evitar-se estar o A. a propor nova acção no Tribunal materialmente competente, aproveitando-se assim os actos já praticados,
K. O que o Tribunal a quo, à data, aceitou, e decidiu a remessa dos autos para o Tribunal de Comércio de Lisboa, ao abrigo do artigo 99.° n.º 2 do CPCivil.
L. É que, contrariamente ao que resulta da sentença aqui em crise, não basta nem bastava, uma simples oposição dos RR. para que o processo não fosse remetido para o Tribunal de Comércio de Lisboa,
M. Sempre seria necessário uma oposição justificada, tal como decorre literalmente do artigo 99.º n.º 2 do CPCivil;
N. Tal como foi confirmado, em sede de recurso pelo Tribunal da Relação de Lisboa;
O. Caso o A. tivesse proposto nova ccção no prazo de 30 dias após o acto interruptivo da caducidade, como sugere a sentença em crise, face à decisão do Tribunal da Comarca de Almada em remeter oficiosamente os autos para o Tribunal de Comércio de Lisboa, estaríamos perante uma clamorosa situação de litispendência, nos termos dos artigos 580.º e 581.º do CPCivil, o que, violaria, de forma evidente, todos os princípios processuais.»
Resposta ao recurso
O recorrido Luís … apresentou resposta ao recurso, defendendo a confirmação da decisão (Ref.ª 31460665- fls. 391-396).

Admissão do recurso

Por despacho proferido em 25/02/2019.

IIObjeto do Recurso
O objeto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), consubstancia-se nas seguintes questões:
- Nulidades da sentença
- Caducidade do direito de ação

B–De Facto
A 1.ª instância fundamentou a decisão com base na seguinte matéria de facto:
«1. O A. e os RR. Luis… e Miguel … são sócios da sociedade comercial por quotas V… - Business …, Lda., aqui l.ª R., com o número de identificação de pessoa colectiva 5…….0 com o capital social de €5.250,00 (cinco mil, duzentos e cinquenta euros). - doc. n.º 1.
2. O A. e os RR. Luis… e Miguel … são os únicos sócios da sociedade R., sendo cada um titular de uma quota social no valor nominal de €l.750,00 (mil, setecentos e cinquenta euros).
3. A V…Business…, Ldª aqui l.ª R., é uma sociedade comercial que foi constituída pelo A. e pelos RR. Luis … e Miguel … em 2010/11/09 e que tem como objecto social  a "Concepção, desenvolvimento, consultoria, implementação e manutenção de soluções informáticas. Formação na mesma área".
4.  O A. e os RR. Luis… e Miguel …, desde a constituição da sociedade R. até príncipios de Agosto de 2013 (até 2013/08/07, data da produção de efeitos da renúncia à gerência pelo A.), sempre desempenharam a função de gerentes daquela.
5. Em finais Julho de 2013 o A. renunciou à gerência da V…–Business …,Ldª, tendo-se mantido como sócio, - doc. n.º 2
6. Ficando a gerência da referida sociedade a ser assegurada pelos ora RR. Luis …  e Miguel ….

7. À data da renúncia do cargo de gerente pelo A., as remunerações base que, à data, eram pagas na sociedade R. eram as seguintes:
i)- José … (ora A.) - €988,00 (novecentos e oitenta e oito euros) - doc. n.º 3;
ii)- Luis… (ora 2.° R.) - €988,00 (novecentos e oitenta e oito euros);
iii)- Miguel … (ora 3.° R.) - €988,00 (novecentos e oitenta e oito euros).

8. Em 31 de Janeiro de 2014, teve lugar a Assembleia-geral ordinária anual da V… Business …, Ldª e que tinha a seguinte ordem de trabalhos (doc. n.º 5, convocatória da Assembleia-geral):
i)- Ractificar o aumento da remuneração dos gerentes Miguel … e  Luis…;
ii)- Deliberar sobre o aumento de remuneração dos gerentes Miguel … e Luis…;
( ... )

9. O A. votou contra a ractificação do aumento da remuneração dos gerentes Miguel… e Luis… durante o período de Agosto de 2013 a Dezembro de 2013.
10. Deliberou a assembleia aprovar o ponto 2 da ordem de trabalhos acima mencionado com os votos a favor dos gerentes ora RR. e voto contra do aqui A.»

C–De Direito

1.–Nulidades da sentença
1.1.- O apelante vem arguir a nulidade da sentença por violação do artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC, por ser contraditório, por um lado, concluir pela caducidade do direito de ação quanto à anulabilidade da deliberação social impugnada e, por outro lado, decretar que não se verifica qualquer nulidade ou anulabilidade da deliberação impugnada.
As nulidades da sentença encontram-se taxativamente elencadas nas várias alíneas do n.º 1 do referido artigo 615.º, do CPC e correspondem a vícios formais que afetam a decisão em si mesma.
Estipula o artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC, primeira parte, que a decisão é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
A nulidade prevista na primeira parte da alínea c), verifica-se quando haja uma contradição lógica no processo de decisão, ou seja, quando os fundamentos invocados devam conduzir logicamente ao resultado oposto ao que veio a ser expresso na decisão.[2] Este vício formal não se reporta a situações em que se parte de pressupostos errados (por exemplo, apreciação e interpretação dos factos ou do direito), caso em que existe um vício de conteúdo (“error in judicando”), mas não nulidade da decisão.[3]
No caso, tendo a sentença concluído pela caducidade do direito de ação é, efetivamente, contraditório concluir pela não anulabilidade da deliberação social impugnada (já não pela nulidade porque em relação a este vício não se verifica a caducidade do direito de ação), uma vez que a caducidade impede a apreciação dos fundamentos da anulabilidade.
A caducidade do direito de ação é uma exceção perentória de direito substantivo, que, no caso, impede a apreciação dos fundamentos invocados para o decretamento da anulabilidade das deliberações sociais em causa, determinando a absolvição dos réus em relação a esse segmento do pedido (artigo 576.º, n.º 1 e 3, do CPC).
Verifica-se, pois, a arguida nulidade da sentença.
Porém, trata-se de nulidade passível de ser suprida nesta sede de recurso, por estar em causa apenas de uma questão de direito, sobre a qual as partes já tiveram oportunidade de se pronunciar (artigo 655.º, n.º 1, do CPC), bastando que, para o efeito, se aplique a consequência jurídica que se impõe, caso se conclua pela caducidade do direito de ação, questão a apreciar infra.
Consequentemente, a nulidade da sentença não impede que se prossiga na apreciação das demais questões colocadas no recurso.

1.2.- Alega ainda o apelante que a sentença é nula por violação do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC, por não indicar os fundamentos de facto e de direito que permitiram afastar a anulabilidade da deliberação e, ao invés, considerar abusivo o exercício do direito de acionar os réus nos termos do artigo 334.º do CC.
Estipula o n.º 1, alínea b), do artigo 615.º do CPC, que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão.
A falta de fundamentação a que alude o normativo está em consonância com o dever de fundamentação as decisões, consagrado na CRP e na lei ordinária (artigo 205.º, n.º 1, da CPR, artigos 154.º, n.º 1 e 607.º, n.º 4, do CPC).
Porém, a arguida nulidade só ocorre quando a falta de fundamentação for absoluta, o que não se verifica quando haja insuficiente ou errada fundamentação de facto e/ou de direito, vícios para os quais a lei tem remédios diversos que não passam pela declaração de nulidade do decidido (cfr., assim, artigos 639.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), 640.º e 662.º, n.º 1 e 2, alíneas c) e d), todos do CPC).
No caso em apreciação, a sentença elencou os factos provados e os correspondentes meios de prova e convocou o regime legal que julgou aplicável, pelo não existe falta total e absoluta de fundamentação, seja de facto, seja de direito.
Coisa diversa é saber se ocorreu erro de julgamento quanto à aplicação do direito aos factos, a analisar em termos de apreciação do mérito do decidido.
Assim, improcede a arguição desta nulidade da sentença.

2. Caducidade do direito de ação

Defende o apelante que o direito de ação não caducou, contrariamente ao decidido na sentença recorrida.
Fundamentando do seguinte modo: antes da contestação, requereu e foi deferida a remessa dos autos para o tribunal competente ao abrigo do artigo 99.º, n.º 2, do CPC; a simples oposição dos réus não basta para impedir o deferimento da remessa dos autos; se tivesse sido proposta nova ação no prazo de 30 dias como sugere a sentença, criar-se-ia uma situação de litispendência que violava os princípios processuais.

Vejamos, então, se ocorre a caducidade do direito de ação.

O autor intentou uma ação de anulação das deliberações sociais saídas da assembleia geral da ré, realizada no dia 31/01/2014, na qual esteve presente e onde exerceu o seu direito de voto.

O prazo para a propositura da ação de anulação de deliberações sociais é de 30 dias contados da data em que foi encerrada a assembleia geral e corresponde a um prazo de caducidade (artigo 59.º, n.º 2, do CSC).

O prazo de caducidade  começa a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido e só se suspende ou interrompe nos casos em que a lei o determine (artigos 328.º, 329.º e 331.º. n.º 1, CC).

A propositura da ação para exercício do direito interrompe o prazo de caducidade[4].

No caso, atenta a data da assembleia geral, o términus do prazo de caducidade ocorreu no dia 03/03/2014, data em que foi interposta a presente ação.

O autor pediu a remessa dos autos para o tribunal competente em razão da matéria, ao abrigo do artigo 99.º, n.º 2, do CPC, ainda antes de ter sido proferido despacho a conhecer da exceção de incompetência absoluta do tribunal onde a ação foi proposta e tal pedido foi deferido por despacho confirmado em sede de recurso.

O deferimento do pedido de remessa é o que revela para o caso.

Se o autor requereu a remessa antes da oposição da contraparte e se ocorreu ou não oposição ao requerido, são questões que se tornaram irrelevantes após o deferimento do pedido de remessa dos autos para o tribunal competente.

O artigo 99.º, n.º 2, do CPC ao permitir a remessa dos autos ao tribunal competente tem subjacente um princípio de economia processual e visa um aproveitamento dos atos processuais praticados até findarem os articulados.

Porém, a decisão de absolvição do réu da instância determina a extinção da ação antes intentada, iniciando-se uma nova instância no tribunal competente[5].

Como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre em anotação ao n.º 2 do artigo 99.º do CPC: «…por este meio, o autor visa a inutilização do processo, mas não obvia à absolvição da instância – o que, no atual código, decorre inequivocamente da alusão ao trânsito em julgado da decisão sobre a incompetência absoluta -, pelo que no tribunal competente se inicia uma nova instância.»[6]
Ou seja, a remessa do processo para o tribunal materialmente competente pressupõe a absolvição da instância com trânsito em julgado, pelo que, concretizada a remessa, gera-se a renovação da instância, que deve ser equiparada a uma nova ação, designadamente em sede de aproveitamento dos efeitos produzidos pela instauração da ação ou pela citação do réu.

Assim, não impedindo a remessa dos autos para o tribunal competente a extinção da ação intentada no tribunal incompetente, se o prazo de caducidade se esgotou aquando da propositura da ação neste tribunal, a remessa para o tribunal competente não obsta à verificação da caducidade.

Importa, porém, analisar se a absolvição da instância do réu por incompetência absoluta do tribunal concede ao autor um novo prazo para intentar a ação no tribunal competente, situação em que o autor, em caso de remessa dos autos para o tribunal competente, também beneficiaria dessa extensão do prazo.

A questão encontra-se regulada no artigo 279.º, n.º 2, do CPC, e nos artigos 327.º, n.º 3 e 332.º, n.º 1, do CC.

Estipula o artigo 279.º, n.º 2, do CPC, que «Sem prejuízo do disposto na lei civil relativamente à prescrição e caducidade dos direitos, os efeitos civis da proposição da primeira causa e da citação do réu, mantêm-se, quando seja possível, se a nova ação for intentada ou o réu for citado para ela dentro de 30 dias, a contar do trânsito em julgado da sentença de absolvição da instância.»

Decorre deste normativo que, caso a decisão de absolvição da instância proferida na ação intentada no tribunal incompetente em razão da matéria, não interfira com questões de prescrição ou de caducidade, o autor tem 30 dias para intentar uma nova ação.

Este regime será aplicável, mutatis mutandis, quando o autor requereu a remessa prevista no artigo 99.º, n.º 2, do CPC. Assim, se o autor a requerer no prazo ali previsto (10 dias após o trânsito em julgado da decisão de absolvição da instância), e for deferida, fica dispensado de propor nova ação, aproveitando-se os atos processuais praticados na anterior até à fase dos articulados.

Porém, se estiverem em causa prazos de prescrição ou de caducidade, o regime processual civil manda aplicar o disposto na lei civil previsto artigo 327.º, n.º 3, ex vi do artigo 332.º, n.º 1, do CC. Estes normativos concedem uma extensão da 60 dias ao prazo de caducidade do direito de propor a ação.

Assim, se a ação estiver sujeita a prazo de caducidade, tendo sido tempestivamente proposta, caso haja absolvição da instância dos réus, se a razão dessa decisão não for imputável ao autor, este beneficia de mais 60 dias para se considerar completado o prazo de caducidade.

Porém, se a absolvição da instância for imputável ao autor este prolongamento do prazo de caducidade para propor a nova ação, não se aplica.

Como é bom de ver, se nessa última situação, o prazo de caducidade para propositura da ação previsto na lei se esgotou quando a primeira ação deu entrada no tribunal incompetente, o autor já não dispõe de qualquer outro prazo para intentar a nova ação no tribunal competente.

Esta interpretação tem sido seguida pelo STJ, realçando-se pela clareza e completude da análise, o acórdão do STJ, de 16/02/2012 (tirado no âmbito da vigência do artigo 289.º, n.º 2, do CPC 1961, que corresponde, sem alterações, ao artigo 279.º, n.º 2, do CPC 2013), com o seguinte sumário:
«1.Da conjugação dos arts. 289.º, n.º 2, do CPC, 332.º, n.º 1, e 327, n.º 3, ambos do CC, resulta que, no que à caducidade diz respeito, os efeitos civis da propositura da acção – impedimento à verificação da caducidade - mantêm-se nos dois meses seguintes ao trânsito em julgado da decisão de absolvição da instância, desde que essa absolvição por motivo processual não seja imputável ao titular do direito, não se devendo a culpa da sua parte quanto ao modo como propôs e fundamentou em juízo a acção.
2.O regime estatuído naqueles preceitos do CC sobrepõe-se e substitui-se, no âmbito da caducidade, ao que sempre constou do nº2 do art. 289º do CPC – facultando ao autor a manutenção dos efeitos civis da propositura da primeira acção, terminada por mera decisão de forma, com a única condição de a voltar a propor no prazo de 30 dias contados do trânsito da decisão absolutória – pelo que o regime estabelecido naquela norma adjectiva não é presentemente de aplicar em sede do instituto da caducidade de direitos exercidos em juízo.»

No mesmo sentido, veja-se acórdão da Relação do Porto, de 16/06/2015[7], com o seguinte sumário:
«(…)
V- Na formulação inicial do art. 294.º, n.º 2, que veio a dar origem ao art. 289.º, n.º 2, do CPC de 1961 (hoje, o art. 279.º, n.º 2, do NCPC (2013), o autor gozava sempre do prazo adicional de trinta dias, a contar do trânsito em julgado da decisão de absolvição da instância, para repetir a acção, de modo a obviar à caducidade, independentemente da sua eventual culpa na decisão que se absteve de conhecer do mérito da causa.
VI- Por força do regime substantivo de exceção “sem prejuízo do disposto na lei civil relativamente à prescrição e caducidade dos direitos,…”, que decorre hoje do artigo 279.º, n.º 2, do NCPC, verificando-se a absolvição da instância, em acção sujeita a prazo de caducidade que veio a ser declarada, o autor dispõe agora de um prazo alargado de dois meses, relativamente ao antecedente prazo de trinta dias, a partir do trânsito em julgado da decisão de absolvição da instância, muito embora o efeito impeditivo da caducidade se encontre, presentemente, condicionado por um juízo de não culpabilidade quanto à causa da absolvição da instância.
VII- A ratio legis deste regime inovatório leva a considerar que o onerado com um prazo de caducidade deve preocupar-se com a propositura atempada da acção, mas, também, com a sua procedência, em ordem a atingir o fim visado pela mesma, ou seja, a satisfação célere da pretensão do autor, de modo a evitar o insucesso da causa.
VIII- Ao regime mais favorável ao autor que lhe permitia repropor, sucessivamente, a acção, dentro do prazo de trinta dias, a contar do trânsito em julgado da decisão de absolvição da instância, independentemente da existência de culpa na elaboração dos contornos da petição inicial, seguiu-se um regime em que a sua conduta processual pretérita, desde que isenta de culpa na causa determinante da absolvição da instância, lhe confere um prazo adicional alargado para repetir a acção, mas em que, a ocorrer a censurabilidade do seu comportamento processual, fica privado do prazo de trinta dias do regime processual, então, inaplicável, devido à ressalva do regime substantivo, contemplada na primeira parte do n.º 2, do art. 289.º do CPC de 1961 (hoje, o art. 279.º, n.º 2, do NCPC).
IX- Sendo imputável ao autor a absolvição da instância, ocorrida na acção anterior, o prazo de caducidade do direito da propositura da acção de preferência começa a correr com o ato interruptivo, atento o disposto pelo n.º 2, não gozando o autor do prazo especial, a que alude o n.º 3, ambos do art. 327.º do CC.»

É certo que existe entendimento divergente, no sentido de defender que a literalidade da ressalva da 1.ª parte do n.º 2 do artigo 279.º do CPC («Sem prejuízo do disposto na lei civil relativamente à prescrição e à caducidade dos direitos») tem a intenção de esclarecer que o ali disposto, acresce ao já constante do Código Civil – e não que cede perante ele, donde resultaria que o autor sempre teria o prazo adicional de 30 dias para propor a nova ação[8].

Porém, salvo o devido respeito, a questão não pode apenas ser resolvida pela interpretação meramente literal do n.º 2 do artigo 298.º do CPC, sendo necessário considerar o elemento histórico (trabalhos preparatórios do CC de 1966) e, em espacial, o elemento funcional ou teleológico de interpretação do regime introduzido no Código Civil.

Como se refere no acórdão do STJ de 16/02/2012, supra citado, «…a ratio que parece atravessar todo o regime inovatoriamente instituído no CC é a que se traduz em considerar que quem está onerado com um prazo de caducidade não pode – para impedir eficaz e definitivamente a extinção do direito exercitado judicialmente – limitar-se a apresentar em juízo tempestivamente uma qualquer petição, independentemente da sua consistência e da adequação para obter uma decisão de mérito no processo por ela iniciado.».

Acrescentando que «…o ónus decorrente da fixação de um prazo – normalmente curto – de caducidade, traduzindo a intenção do legislador de ver resolvido definitivamente, em período temporal curto, o litígio porventura existente entre as partes, implicará um particular ónus de zelo, diligência e prudência técnica na propositura da acção e no subsequente desenrolar do processo, obstando a frustração da causa por motivo imputável em exclusivo ao autor a uma automática renovação do prazo de caducidade, entretanto consumado, decorrente da irrestrita oportunidade de repetir a causa e com isso obter automaticamente a sobrevivência dos efeitos civis decorrentes, no âmbito do instituto da caducidade, da proposição atempada da acção originária.»

Sublinhando ainda o mesmo aresto que se tiver agido com diligência, não lhe sendo imputável as razões que subjazem à decisão de forma, de absolvição do réu da instância, então, justifica-se a concessão do prazo adicional.

Aliás, só assim se repõe um certo equilíbrio entre as partes, já que a concessão do prazo adicional beneficia apenas o autor.

Sendo que a concessão do prazo de 30 dias, mesmo nos casos da absolvição da instância ser imputável ao autor, criaria um vantagem desproporcional para este em relação ao demandado, como se realça no referido acórdão, fundamento com o qual não se pode deixar de concordar:
«Note-se que – como referia Vaz Serra – o regime emergente da versão originária do nº2 do art. 298º do CPC acabava por ser desproporcionalmente favorável ao autor, ao permitir-lhe uma - eventualmente sucessiva - repetição de acções para suprimento de deficiências culposamente provocadas e que obstaram à obtenção de decisão de mérito, com a única condição de irem sendo repetidas no prazo de graça de 30 dias, contado da absolvição da instância que o autor culposamente provocou: fracassada a acção inicial por ineptidão da petição, o autor intentava nova acção, dentro dos 30 dias, a qual, por ex., estava inquinada de manifesta incompetência absoluta do tribunal, novamente suprível em 30 dias – e assim sucessivamente…».

Donde se conclui em face do regime instituído no Código Civil que, estando em causa o prazo de caducidade para propositura de uma ação, a absolvição do réu da instância, por razão imutável ao autor, não permite que o mesmo beneficie de qualquer extensão de prazo, seja do prazo de 60 dias previstos no regime civil, seja do prazo de 30 dias previstos no regime processual civil, por este ceder perante aquele.

No caso dos autos, atentos os elementos que dele se colhem, afigura-se inquestionável que não pode deixar de ser imputável ao autor a propositura da ação num tribunal absolutamente incompetente.

E sendo assim, por força do regime jurídico supra analisado, o autor não beneficia do prazo de 60 dias previsto na lei civil, nem do prazo de 30 dias previsto no regime processual civil, que não se sobrepõe àquele, para instaurar nova ação, seja por via da instauração de uma nova ação no tribunal competente, seja por via da remessa da anterior ação para o tribunal competente ao abrigo do n.º 2 do artigo 99.º do CPC, encontrando-se o direito de propor nova ação caducado por se ter esgotado o prazo de caducidade previsto no artigo 59.º, n.º 2, do CSC no dia em que intentou a primeira ação.

Assim, o sentido decisório que consta da sentença quando declarou extinto, por caducidade, o direito do autor quanto ao pedido de anulação das deliberações sociais, não pode deixar de ser corroborado, não procedendo as conclusões do apelante no que diz respeito a esta matéria.

A extinção do direito por via da exceção perentória da caducidade do direito de propositura da ação determina que a alegação da autora relacionada com a anulabilidade das deliberações não pode ser apreciada, devendo os réus ser absolvidos do pedido correspondente (artigos 576.º, n.º 1 e 3, do CPC), assim se suprindo a arguida e conhecida nulidade da sentença nos termos acima analisados.

Em face do exposto, para além do suprimento da nulidade da sentença, mantêm-se o decidido na sentença recorrida, na parte em que foi impugnada, improcedendo, parcialmente, a apelação.

Dado o parcial decaimento do recorrente, as custas da ação e do recurso ficam a cargo do autor/apelante e dos réus/apelados, respetivamente, na proporção de 3/4 e 1/4 (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.

III–DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência:
a)- Decretam a nulidade da sentença na parte em que «não declara (…) anulável o ponto 1 e 2 da deliberação de 31-1-20104 da assembleia geral da 1.ª R.», e em substituição do tribunal a quo, suprindo essa nulidade, absolvem os réus do pedido de anulação das deliberações sociais tomadas em relação aos referidos pontos 1 e 2;
b)- Confirmam a sentença na parte em que não decretou a nulidade das mesmas deliberações sociais em relação aos referidos pontos 1 e 2.
Custas nos termos sobreditos.


Lisboa, 18 de junho de 2019



(Maria Adelaide Domingos – Relatora)
(Ana Isabel Mascarenhas Pessoa – 1.ª Adjunta)
(Eurico José Marques dos Reis – 2.º Adjunto)



[1]No despacho-saneador sentença foi proferida a seguinte decisão: «Declaro extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide nos termos do art. 277/ e) do Código de Processo Civil quanto aos pedidos formulados a final da PI sob a al. a) e b) no que tange à apreciação de vício de nulidade e/ou anulabilidade dos pontos 3 e 4 da ordem de trabalhos relativa á assembleia geral da 1.ª Ré realizada e com deliberação a 31-1-2014 e bem assim quanto ao pedido vertido na c) da PI.»
[2]Cfr. Ac. STJ, de 02/03/1999, proc. nº 709-1.ª Secção, em www.dgsi.pt
[3]Cfr. Ac. STJ, de 03/02/1999, proc. n.º 1216/98- 1.ª Secção, em www.dgsi.pt
[4]Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª. ed., pág. 253, Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 114.
[5]Veja-se Ac. RP, de 01/06/2015, proc. 1327/11.1TBAMT-B.P1, disponível em dgsi.pt, onde consta uma resenha histórica sobre o regime do artigo 99.º CPC, chegando-se à conclusão que consta do sumário do acórdão, nos seguintes termos: «II – No actual regime processual a instância inicial não continua no tribunal considerado competente: extingue-se»,
[6]LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1.º, Coimbra Editora, 3.ª ed., 2014, p. 204 (3).
[7]Processo n.º 1010/06.0TBLMG.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt
[8]Cfr., LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1.º, Coimbra Editora, 3.ª ed., 2014, p. 552 (3).