I - No Proc. n.º X o arguido, por acórdão de 23/7/2018, foi condenado nos seguintes termos:
«b) Condenar o arguido … pela prática, em autoria material e concurso efetivo, dos crimes e nas penas seguintes:
(Proc. X)
- um crime de subtração de menor, previsto e punido pelo arT. 249.º, n.º 1, al. a), do CP, na pena de 1 (um) ano de prisão;
- um crime de abuso sexual de crianças, em trato sucessivo, previsto e punido pelos arts. 171.º, n.ºs 1 e 2, 69.º-B, n.º 2, e 69.º-C, n.º 2, todos do CP, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;
- um crime de abuso sexual de crianças, em trato sucessivo, previsto e punido pelos arts. 171.º, n.º 3, alínea b), 69.º-B, n.º 2, e 69.º-C, n.º 2, todos do CP, na pena de 10 (dez) meses de prisão;
- um crime de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 3, al. a), por referência ao art. 170.º, 69º-B, n.º 2, e 69.º-C, n.º 2, todos do CP, na pena de 1 (um) ano de prisão;
- um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art. 86.º, n.º 1, al. d), por referência aos artigos 2.º, n.º 1, al. ap), e 3.º, n.ºs 1 e 2, al. e), todos do RJAM (aprovado pela Lei 5/2006 de 23-02, com as alterações posteriores, a última pela Lei 50/3013, de 24-07), na pena de 9 (nove) meses de prisão;
(Proc. Y)
- um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelos arts. 171.º, n.ºs 1 e 2, do CP, na pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão, e
- um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelos arts. 171.º, n.ºs 1 e 2, do CP, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.
c) Condenar o arguido …, em cúmulo jurídico, na pena única de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão e nas penas acessórias de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, e de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 10 (dez) anos.
d) Condenar o arguido … a pagar às ofendidas M… e B. (representadas pelos seus progenitores até à maioridade), a título de indemnização por danos não patrimoniais, respectivamente, as quantias de 6.000,00€ (seis mil euros) e de 3.000,00€ (três mil euros).
e) Declarar perdida a favor do Estado a soqueira apreendida ao arguido;»
II - Os fundamentos para a questão da inimputabilidade do arguido (art. 351.º do CPP) terão de ser idóneos a criar no tribunal uma dúvida plausível. Não basta a simples suspeita ou sequer a mera possibilidade assente na sua aparência. Tem de tratar-se de factos concretos que apontem para a forte probabilidade de que o arguido, quando cometeu os factos, sofria de anomalia psíquica que o incapacitou de avaliar a ilicitude da sua conduta ou de se auto-determinar para poder agir de acordo com o direito.
III - A jurisprudência do STJ tem perfilhado, esmagadoramente, o entendimento que afasta, quer a continuação criminosa, quer a figura do crime exaurido, de trato sucessivo, dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, como os dos presentes autos.
IV - Para se aquilatar da unidade, ou pluralidade, de determinações volitivas, é necessário esquadrinhar o modo como se desenrolou o acontecimento exterior, a conexão temporal que une os diversos momentos da conduta do agente; quando os diversos actos estão separados por um largo espaço de tempo, então estaremos, em princípio, perante mais do que um processo deliberativo.
Analisando a matéria de facto, no que toca à ofendida M., verificamos que não existe prova da verificação de um hiato temporal suficientemente prolongado entre as diversas condutas, que seja indiciador, nomeadamente, da existência de vários desígnios criminosos.
V - Estamos assim perante um crime de abuso sexual de crianças (art. 171.º, n.º 1 e 2 do CP), com o perfil traçado pelo tribunal a quo, em concurso aparente com os crimes de abuso sexual de crianças (art. 171.º, n.º 3, alínea b) e a) do CP) (ofendida M.; Proc. X).
VI - Em face de todo este enquadramento, nomeadamente da verificação do concurso aparente, considera-se ajustada a pena única de 8 anos de prisão.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I. RELATÓRIO
1. No Proc. n.º 98/17.2GAPTL, do Tribunal Colectivo da Comarca de ..., Juízo Central Criminal de ...--Juiz 3, em que é arguido AA, por acórdão de 23/7/2018 (fls. 1830-1863 do VIII vol.) foi decidido:
«b) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e concurso efetivo, dos crimes e nas penas seguintes:
(Proc. 98/17.2GAPTL)
- um crime de subtração de menor, previsto e punido pelo artigo 249.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão;
- um crime de abuso sexual de crianças, em trato sucessivo, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, 69.º-B, n.º 2, e 69.º-C, n.º 2, todos do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;
- um crime de abuso sexual de crianças, em trato sucessivo, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.º 3, alínea b), 69.º-B, n.º 2, e 69.º-C, n.º 2, todos do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão;
- um crime de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 3, alínea a), por referência ao artigo 170.º, 69º-B, n.º 2, e 69.º-C, n.º 2, todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão;
- um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d), por referência aos artigos 2.º, n.º 1, alínea ap), e 3.º, n.ºs 1 e 2, alínea e), todos do RJAM (aprovado pela Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro, com as alterações posteriores, a última pela Lei n.º 50/3013, de 24-07), na pena de 9 (nove) meses de prisão;
(Proc. 61/17.3JAAVR)
- um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão, e
- um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.
c) Condenar o arguido AA, em cúmulo jurídico, na pena única de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão e nas penas acessórias de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, e de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 10 (dez) anos.
d) Condenar o arguido AA a pagar às ofendidas BB e CC (representadas pelos seus progenitores até à maioridade), a título de indemnização por danos não patrimoniais, respectivamente, as quantias de 6.000,00€ (seis mil euros) e de 3.000,00€ (três mil euros).
e) Declarar perdida a favor do Estado a soqueira apreendida ao arguido AA;
f) Condenar o arguido AA nas custas do processo, com taxa de justiça de 5 (cinco) UC»
2. Deste acórdão da Comarca de ..., interpôs o arguido recurso para este Supremo Tribunal de Justiça.
3. O arguido interpôs também, antes, dois recursos interlocutórios:
um do despacho de 7/6/2018 (fls. 1777-1778 do 8.º vol.), que indeferiu a arguição de nulidade do despacho de 25/5/2018 (fls. 1759-1761 do 8.º vol. ), nos termos do qual foi indeferido o pedido de inquirição da testemunha EE (motivação a fls. 1799-1807 do 8.º vol.).
Respondeu o MºPº (fls. 1816-1818 do 8.º vol.) pugnando pelo improvimento do recurso em causa, por não merecer censura o despacho recorrido.
outro do despacho proferido em 10/7/2018 (fls. 1823-1828 do 8.º vol.) , que indeferiu o pedido do arguido de realização de perícia médico-legal às suas faculdades mentais e de avalização psicológica de respectiva personalidade, concluindo, que ao juiz do julgamento compete garantir a defesa dos direitos fundamentais do arguido e do ofendido. Ao ter indeferido o pedido de realização da perícia, o Tribunal fez errada interpretação no art. 340.º, n.º 1, do CPP, violando o disposto nos arts. 124.º, n.º 1, 339.º, n.º 4 e 340.º, n.º 1, todos do mesmo CPP.
O Ministério Público respondeu (fls. 1893-1902 do 9.º vol.) sustentando a bondade da decisão recorrida.
Responderam no mesmo sentido os assistentes DD e FF (fls. 1922-1924 do 9.º vol.)
4. Conclusões do recurso do arguido do despacho de 10/07/2018:
«V – CONCLUSÕES
1 - O presente recurso limita-se ao despacho proferido em 10/07/2018, no contexto do qual foi indeferida a realização de uma perícia médico-legal às faculdades mentais do Arguido e de uma avaliação psicológica da sua personalidade.
2 – Na sessão de julgamento do dia 10/07/2018, na pertinente ata, ficou a constar o seguinte:
“Finda a audição do CD, foi pedida a palavra pelo ilustre mandatário do arguido e, tendo-lhe sido concedida, resumidamente e que se encontra gravado, disse: o arguido e a sua defesa mantêm o pedido de realização de exame pericial, para o que, além do que resultou da audiência, invoca o relatório social que foi junto ao processo, de onde decorre de forma absolutamente cristalina a necessidade de o arguido ser tratado e acompanhado a nível de saúde mental, pelo que mantém todo o interesse a perícia, também pelo depoimento e postura que o arguido tem demonstrado.”
3 - Após a devida deliberação, o M.mo Juiz proferiu o subsecutivo Despacho:
“O arguido AA requereu, em ambas as contestações, a realização de perícia médico-legal às respectivas faculdades mentais e uma avaliação psicológica de personalidade para os efeitos do estabelecido no art.º 20 do código Penal [...]. Reafirmou agora tal requerimento, invocando designadamente o relatório social junto aos autos [...]. A apreciação de tal requerimento foi relegada para a audiência de julgamento por forma a poder eventualmente testar mais elementos para melhor ponderação [...]. A realização de perícia ao estado psíquico do arguido está prevista no art.º 351 do Código de Processo Penal quando em audiência se suscitar fundadamente a questão da inimputabilidade do arguido. Por outro lado a realização de perícia sobre a personalidade pode ocorrer nos termos do art.º 160 do mesmo Código. Desses preceitos legais resulta que a realização de tais exames periciais tem que estar fundado em elementos facultados pelos autos ou que se suscitem no decorrer da audiência, o mesmo é dizer que a mera condição de arguido e/ou a natureza dos factos e dos crimes que lhe são imputados, não justificam, por si mesmos, a realização de tais perícias. Do relatório social relativo ao arguido AA resulta explanado o seu percurso de vida, o qual o mesmo confirmou em audiência, sendo que a referência à intervenção a nível da saúde mental é feita na respectiva conclusão, mas daí não pode extrair-se que o mesmo padeça, efectivamente, de qualquer patologia ao nível mental ou psíquico [...]. Por outro lado, o arguido prestou declarações em audiência e também na fase de instrução, estas acabadas de reproduzir, nada resultando da globalidade das mesmas e da sua postura perante os factos e na própria audiência que possa indiciar qualquer patologia do foro psicológico ou psiquiátrico com influência na sua capacidade de perceber o alcance dos atos, que pudessem conduzir a alguma situação de inimputabilidade ou imputabilidade diminuída nos termos do art.º 20 do Código Penal, como é invocado. Por outro lado, ainda que tenha sido feita menção em audiência a um possível acompanhamento por psicólogo em idade escolar, nada foi confirmado a esse respeito, designadamente pela apresentação de elementos documentais, sendo que a única testemunha que demonstrou conhecer o arguido AA há vários anos afastou mesmo qualquer possibilidade de ele ter qualquer limitação cognitiva, dizendo mesmo que “não é maluco“ conforme depoimento da testemunha GG. Nessa medida, por nada resultar dos autos e da própria audiência que possa fundamentar a necessidade da realização de tais meios de prova, indefere-se a requerida realização de perícia médico-legal às faculdades mentais e de avaliação psicológica da personalidade, para os efeitos do art.º 20 do Código Penal, conforme foi requerido pelo arguido AA.”
4 – Ocorre que, do teor do relatório social junto aos autos, com destaque, se extrata o seguinte: “[…] a provarem-se os factos pelos quais o arguido está acusado, parece-nos importante considerar, simultaneamente com a pena que lhe vier a ser aplicada, uma avaliação e intervenção estruturada ao nível da saúde mental com vista a identificar eventuais necessidades de tratamento e promover a mudança comportamental no sentido da interiorização do desvalor das condutas e da interiorização da necessidade de mudança para adoção de valores prósociais.”
5 – A pretendida perícia, requerida ao abrigo do artigo 340.º do CPP, conforma-se, incontroversamente, necessária “à boa decisão da causa” e não é, de forma nenhuma, uma diligência probatória irrelevante, supérflua ou dilatória.
6 – A pertinência da perícia concretizava-se, de imediato, por efeito das vicissitudes da prova e pela premissa de que a fixação da inimputabilidade ou da imputabilidade diminuída de um Arguido consubstancia sempre um elemento fundamental ao desfecho de qualquer processo.
7 – Perante tal, o Tribunal a quo deveria ter atendido:
- ao histórico do Arguido, nomeadamente ao facto de este ter tido acompanhamento psicológico semanal no Centro de Estimulação e Consulta Psicológica de ..., entre setembro de 2001 e junho de 2005, por apresentar graves perturbações afectivo-emocionais (com funcionamento psicológico de nível pré-psicótico) que se traduziam em problemas de comportamento e importantes dificuldades de aprendizagem;
- ao facto de o Arguido ter sido um aluno com necessidades educativas especiais;
- à sua postura e intervenção durante as 8 sessões de julgamento, nomeadamente ao atraso que apresentou no desenvolvimento da linguagem (imaturidade na dimensão funcional da linguagem, relativamente aos aspectos gramaticais, formais e semânticos) e comportamentos “confusionais”; e
- ao relatório social, maiormente no excerto acima destacado, no qual se refere expressamente a importância da realização de uma avaliação e intervenção estruturada no âmbito da saúde mental ao Arguido.
8 – De outro flanco, a diligência requerida não era dilatória, pois não se tratava de uma prova irrealista ou com aptidão para ocasionar um impasse processual.
9 – Desta sorte, o supradito despacho, que não tem arrimo em nenhum juízo técnicocientífico, reflete, por parte do Tribunal, um nítido comodismo e uma convicção já estabilizada no atinente a um quesito axial da prova que não está devidamente consolidado.
10 – Na órbita da dúvida, o Tribunal – por não poder, de facto, com segurança bastante, certificar que o Arguido não sofre de alguma patologia no contorno mental ou psíquico – deveria ter decidido com prudência, ponderação e razoabilidade.
11 – Convém ressaltar aqui que a característica mais valiosa de um juiz se concretiza, sobretudo, na sensatez judicial; com efeito, é, principalmente, nesse reduto, da sindérese e da judiciosidade, que um juiz se distingue – por tal razão, tal atributo deve conformar, imperativamente, a sua atividade.
12 – Ao juiz do julgamento compete garantir a defesa dos direitos fundamentais do arguido e do ofendido – para esse efeito, é convocado a desempenhar as funções antagónicas de investigar (quando necessário) e decidir, salvaguardar direitos das pessoas e assegurar a eficácia do processo. De outra parte, nessa missão, deve subordinar-se sempre a uma diretriz e a uma concreta finalidade – a descoberta da verdade material e a boa decisão da causa.
13 – O Tribunal preteriu, pois, de forma cristalina, uma boa e conscienciosa decisão da causa e a descoberta da verdade material – fez, por isso, uma errada interpretação do estabelecido no artigo 340.º, n.º 1.
14 – Na verdade, com a realização da perícia médico-legal às faculdades mentais do arguido e a avaliação à respetiva personalidade, o Tribunal poderia, terminantemente, estabelecer o seguinte: o grau de responsabilidade do arguido pelos factos que lhe são atribuídos, em termos de imputabilidade ou de imputabilidade diminuída; ou a irresponsabilidade penal do arguido.
15 – Ora, uma possível inimputabilidade ou imputabilidade diminuída mostra-se, naturalmente, essencial para a descoberta da verdade material e, sobretudo, para uma boa e conscienciosa decisão da causa, em conformidade com o estabelecido nos artigos 340.º do CPP e 32.º da CRP, visto que, nessas hipóteses, resulta, respetivamente, excluído ou atenuado o tipo subjetivo do ilícito.
16 – Com a denegação do requerido, foram nitidamente violadas as garantias de defesa do arguido e a sua presunção de inocência.
17 – A omissão de diligências probatórias essenciais ocorre quando o tribunal não exaure os seus poderes de indagação relativamente ao apuramento da matéria de facto essencial, isto é, quando o tribunal, podendo e devendo investigar certos factos, omite esse dever – trata-se, por isso, de um vício que resulta do incumprimento por parte do tribunal do dever que sobre si impende de produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe figure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
18 – O Tribunal recorrido violou o disposto nos artigos 124.º, n.º 1, 339.º, n.º 4, e 340.º, n.º 1.
Nestes termos e nos demais de Direito, deve ser dado provimento ao presente Recurso; por via dele, deve o Tribunal ad quem anular o Acórdão a proferir oportunamente e determinar o seguinte: a reabertura da audiência; que o Tribunal a quo admita a diligência de prova requerida pelo arguido, referente à perícia médico-legal às faculdades mentais do arguido e à avaliação psicológica da respetiva personalidade; e que, após, seja prolatado novo Acórdão.
Dessa forma, será feita a costumada
JUSTIÇA.»
Resposta do MP ao recurso do arguido do despacho de 10/7/2018
5. O Ex.mo Procurador da República na 1.ª instância, respondeua este recurso intercalar do arguido nos seguintes termos:
I. OBJECTO DO RECURSO
O arguido veio recorrer da decisão que indeferiu o requerimento por si apresentado para realização de perícia médico-legal às faculdades mentais e de avaliação psicológica da personalidade (proferida a 10-7-2018 e constante na acta de audiência e julgamento - 8.ª sessão).
O arguido requereu, nas duas contestações apresentadas, a realização de uma perícia médico-legal às respectivas faculdades mentais e uma avaliação psicológica da personalidade, para os efeitos do estabelecido no artigo 20.º do Código Penal, justificando tal pedido com um suposto "discurso alternado, lábil, inconstante e incoerente, que não se articula, de nenhuma forma, com a sua idade real" (facto n.º 3 constante da contestação apresentada no processo n.5 98/17.2GAPTL), e indicando designadamente como quesito, "se o Arguido, à data da prática dos factos que lhe são imputados, era portador de anomalia psíquica, por virtude da qual possa ser considerado penalmente irresponsável, por incapacidade para avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com a avaliação".
A apreciação de tal requerimento foi relegada para a audiência de julgamento por forma a poder eventualmente testar mais elementos para melhor ponderação.
No decurso da audiência de discussão e julgamento, ocorrida a 10-7-2018, o arguido veio reforçar o requerimento já apresentado, enfatizando que, "além do que resultou da audiência, invoca o relatório social que foi junto ao processo, de onde decorre de forma absolutamente cristalina a necessidade do arguido ser tratado e acompanhado a nível de saúde mental, pelo que mantém todo o interesse a perícia, também pelo depoimento e postura que o arguido tem demonstrado".
Em resposta ao requerimento apresentado, o Ministério Público entendeu "que nem no decurso do processo, nem na presente audiência se suscitou qualquer questão acerca da personalidade do arguido que justifique a realização de perícia, designadamente a solicitada pela sua defesa, pelo que entende o Ministério Público que deverá ser indeferido".
Por sua vez, a assistente propugnou também pelo indeferimento do requerido, sustentando, em síntese, que "em face das declarações prestadas pelo arguido quer as que foram feitas na anterior sessão quer as que ouvimos agora e que foram prestadas perante JIC pelo que constata-se que o arguido tem noção absoluta da realidade dos factos", acrescentando que "o arguido não pode propor-se a provar no início da audiência de julgamento e elaborar toda a sua tese no pressuposto de facto de que foi induzido em erro quanto à idade da menor HH e simultaneamente, vir requerer exame médico onde quer ver reconhecidas certas patologias mentais para garantir a sua inimputabilidade".
A assistente culmina o exercício do contraditório com a conclusão de que "a referida perícia não se encontra devidamente fundamentada como impõe o artigo.º 151 do Código de Processo Penal, não estando aqui em causa a dúvida razoável sobre a imputabilidade do arguido ou inimputabilidade diminuída, aliás o arguido não indicou quaisquer factos concretos atinentes ao seu comportamento que fizesse nascer essa dúvida plausível sobre a capacidade de entender a sua própria conduta".
Decidiu assim o Tribunal a quo:
«O arguido AA requereu, em ambas as contestações, a realização de perícia médico-legal às respectivas faculdades mentais e uma avaliação psicológica de personalidade para os efeitos do estabelecido no artigo.º 20 do código Penal (fls. 1680 dos autos e fls. 175 e 176 do apenso).
Reafirmou agora tal requerimento, invocando designadamente o relatório social junto aos autos (fls. 1700 a 1702).
A apreciação de tal requerimento foi relegada para a audiência de julgamento por forma a poder eventualmente testar mais elementos para melhor ponderação (fls. 1681).
A realização de perícia ao estado psíquico do arguido está prevista no artigo.º 351 do Código de Processo Penal quando em audiência se suscitar fundadamente a questão da inimputabilidade do arguido.
Por outro lado a realização de perícia sobre a personalidade pode ocorrer nos termos do artigo.º 160 do mesmo Código.
Desses preceitos legais resulta que a realização de tais exames periciais tem que estar fundado em elementos facultados pelos autos ou que se suscitem no decorrer da audiência, o mesmo é dizer que a mera condição de arguido e/ou a natureza dos factos e dos crimes que lhe são imputados, não justificam, por si mesmos, a realização de tais perícias.
Do relatório social relativo ao arguido AA resulta explanado o seu percurso de vida, o qual o mesmo confirmou em audiência, sendo que a referência à intervenção a nível da saúde mental é feita na respectiva conclusão, mas daí não pode extrair-se que o mesmo padeça, efectivamente, de qualquer patologia ao nível mental ou psíquico (fls. 1700 a 1702).
Por outro lado, o arguido prestou declarações em audiência e também na fase de instrução, estas acabadas de reproduzir, nada resultando da globalidade das mesmas e da sua postura perante os factos e na própria audiência que possa indiciar qualquer patologia do foro psicológico ou psiquiátrico com influência na sua capacidade de perceber o alcance dos actos, que pudessem conduzir a alguma situação de inimputabilidade ou imputabilidade diminuída nos termos do artigo.º 20 do Código Penal, como é invocado.
Por outro lado, ainda que tenha sido feita menção em audiência a um possível acompanhamento por psicólogo em idade escolar, nada foi confirmado a esse respeito, designadamente pela apresentação de elementos documentais, sendo que a única testemunha que demonstrou conhecer o arguido AA há vários anos afastou mesmo qualquer possibilidade de ele ter qualquer limitação cognitiva, dizendo mesmo que "não é maluco" conforme depoimento da testemunha GG.
Nessa medida, por nada resultar dos autos e da própria audiência que possa fundamentar a necessidade da realização de tais meios de prova, indefere-se a requerida realização de perícia médico-legal às faculdades mentais e de avaliação psicológica da personalidade, para os efeitos do artigo.º 20 do Código Penal, conforme foi requerido pelo arguido AA.»
Segundo o artigo 20.º, n.º 1 do Código Penal, "é inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação".
A par da inimputabilidade por anomalia psíquica, consagrou, ainda, o legislador a eventual insusceptibilidade de culpa jurídico-penal por imputabilidade diminuída, a que alude o artigo 20.º, n.º 2 do Código Penal.
A questão da imputabilidade ou inimputabilidade do arguido centra-se numa concepção normativa de culpa jurídico-penal (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, p. 512), traduzida na censurabilidade por o agente do crime ter agido como agiu, assente no pressuposto da liberdade do agente em representar as suas acções e fazer-se determinar por tal representação, de tal monta que podia e devia ter agido de forma diferente.
Nas palavras de Thiago Sinibaldi (in Elementos de Filosofia, vol. II, p. 158), "um acto para ser voluntário deve derivar não só de uma deliberação da vontade, mas também de um prévio conhecimento da inteligência; de modo que o acto da vontade contém tanta bondade ou malícia, quanta foi conhecida pela inteligência. - Por isso, se a inteligência, por qualquer causa ou acidente, for perturbada a ponto de não poder apreciar a bondade ou a malícia do acto, este não é voluntário, e quem o praticou não é responsável por ele, nem deve ser punido".
Assim, comprovada a inimputabilidade por anomalia psíquica ou a imputabilidade reduzida de um arguido, e caso se demonstre que praticou os factos ilícitos típicos de que vinha acusado, apenas poderá ser projectada a aplicação de uma medida de segurança (artigo 91.9 e seguintes do Código Penal) e já não de uma pena criminal - nulla poena sine culpa.
Designadamente, requerendo a realização de perícia psiquiátrica (artigo 1599, n.ºs 6 e 7 do Código de Processo Penal) que é o meio de prova especialmente capaz de fazer prova sobre o estado de inimputabilidade ou imputabilidade diminuída do arguido no momento da prática dos factos ou a realização de perícia sobre a personalidade (artigo 160.º, n.º 1 do Código de Processo Penal) para avaliação da personalidade e perigosidade.
Na fase de julgamento, ao arguido é, também, concedida a possibilidade de apresentação e indicação de meios de prova cuja produção requer na sua contestação - artigo 315.º do Código de Processo Penal (Oliveira Mendes, Código de Processo Penal Comentado, 2016.ª, 2.ª Edição Revista, p. 1002).
Assim, na fase de audiência de discussão de julgamento, "o tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de prova de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa" (artigo 340.º, n.º 1 do Código de Processo Penal), prevendo-se, no artigo 351.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal que:
«1 - Quando na audiência se suscitar fundadamente a questão da inimputabilidade do arguido, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, ordena a comparência de um perito para se pronunciar sobre o estado psíquico daquele.
2 - O tribunal pode também ordenar a comparência do perito quando na audiência se suscitar fundada mente a questão da imputabilidade diminuída do arguido.»
Nas palavras de Oliveira Mendes, "A perícia psiquiátrica do arguido tendo em vista apurar se o mesmo é ou não imputável deve ser ordenada, oficiosamente ou a requerimento, sempre que se suscitar fundadamente a questão da inimputabilidade. É o que expressamente resulta do n.º 1 [do artigo 351°], devendo-se considerar que a questão da imputabilidade é fundada quando ocorram razões válidas para duvidar da sua capacidade de entendimento e/ou autodeterminação do arguido"(Código de Processo Penal Comentado, 2016.º, 2.ª Edição Revista, p. 1068).
VI. A POSIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO SOBRE O MÉRITO DO RECURSO INTERPOSTO
No caso sub judice há que distinguir e ponderar duas diferentes circunstâncias valorativo-processuais que, a final, deverão reconduzir à total improcedência do recurso interposto pelo arguido:
Prius, a circunstância do arguido ter pela primeira vez requerido a perícia médico-legal às faculdades mentais e de avaliação psicológica da personalidade na sua contestação, após a realização de dois Inquéritos criminais e da Instrução por ele requerida.
Durante o decurso dessas fases processuais o arguido teve inúmeras oportunidades de requerer tal perícia e alertar (designadamente com documentação médica) a autoridade judiciária competente para o facto de ser inimputável (ainda que, eventualmente, diminuído) por anomalia psíquica.
Por outro lado, e principalmente, após os vários interrogatórios judiciais (para aplicação de medida de coacção e em sede de debate instrutório) e não judiciais a que foi sujeito, as autoridades judiciárias competentes nunca denotaram, na apreciação que lhes foi garantida pela imediação, qualquer fundada razão para duvidar da capacidade de entendimento e/ou de autodeterminação do arguido.
Aliás, se o contributo processual do arguido durante a fase de Inquérito se projecta essencialmente como um direito, não é já assim na fase de Instrução, em que, de acordo o disposto no artigo 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, o arguido deve, no requerimento de abertura de instrução por si movido, indicar as razões de facto e de direito de discordância com a acusação e os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito.
Portanto, pelo menos a partir do momento em que o arguido foi notificado da acusação, de onde constam factos que lhe imputam o elemento subjectivo conducente à actuação dolosa, tinha o arguido a obrigação de saber que o objecto do processo tinha subjacente a sua imputabilidade.
Ora, nem no requerimento de abertura de instrução nem durante o debate instrutório foram suscitados factos ou requeridos meios de prova que pusessem em causa a imputabilidade do arguido.
Todo este circunstancialismo nos leva a concluir que o requerimento apresentado pelo arguido na contestação teve uma finalidade meramente e notoriamente dilatória, justificando-se, por esta via, o seu indeferimento, ao abrigo do disposto no artigo 340.º, n.º 4, alínea d) do Código de Processo Penal.
Limitou-se o arguido, na 8.ª sessão de audiência de discussão e julgamento, a reiterar o requerimento apresentado na contestação, lançando a suspeita da sua inimputabilidade, alicerçando-se na sua interpretação do relatório social entretanto junto aos autos.
O relatório social relativo ao arguido, que especifica os dados relevantes do processo de socialização e as suas condições pessoais e sociais, em momento algum faz alusão a factos susceptíveis de fundadamente fazerem duvidar da sua capacidade de entendimento e autodeterminação.
Por outro lado e derradeiramente, mal andou o arguido a extrair da conclusão (opinião) dos técnicos de reinserção social vertida no referido relatório, a identificação de qualquer patologia susceptível de ponderação para efeitos de inimputabilidade.
Além da alusão a "uma avaliação especializada ao nível da saúde mental" vir desenquadrada das premissas que enformam o teor do relatório social, jamais poderá extrair-se daí um fundado motivo para a questão da inimputabilidade, uma vez que adiante vem especificado que tal avaliação se destinaria, designadamente, a propiciar "uma adequada interiorização do desvalor das condutas", típica dos agentes de crime que podiam no momento da prática dos factos e podem no momento do cumprimento da pena determinar-se com uma actuação conforme o Direito.
Daí, também, os técnicos de reinserção social terem deixado claro que tal avaliação deveria ser concomitante à "pena aplicada", perspectivando, portanto, uma intervenção em execução de pena no estabelecimento prisional tendo em vista a ressocialização do agente em reclusão.
Certo é que também relativamente ao relatório social se pronunciou o Tribunal a quo, extraindo-se do despacho recorrido não existir qualquer dúvida do Tribunal relativamente à questão da imputabilidade do arguido, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova - artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Na jurisprudência tem-se decidido pela confirmação da decisão de indeferimento e m casos em tudo semelhantes ao presente:
Sumário do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 29-10-2008:
«Porque na fase do julgamento só devem realizar-se os exames que se afigurem necessários para habilitar o julgador a uma decisão justa, deve ser indeferido o pedido de realização de perícia médico-legal psiquiátrica quando ao tribunal não se suscitam dúvidas sobre a integridade mental do arguido.»
Sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 21-2-2018:
«I - A questão da inimputabilidade do arguido não se basta com a simples suspeita ou sequer a mera probabilidade assente na sua aparência. Tem de perspectivar-se em razão de circunstâncias concretas que apontem para a forte possibilidade de o arguido, aquando do cometimento dos factos em causa, sofrer de anomalia psíquica incapacitante da avaliação da ilicitude da sua conduta ou da auto-determinação para poder agir de acordo com o direito.
II - In casu, tal questão não foi suscitada fundadamente, na audiência de julgamento, porquanto no relatório social, elaborado para determinação da sanção, fundado em entrevista do arguido, donde emerge a pretensão de realização de perícia psiquiátrica, os invocados distúrbios e internamentos ocorreram há vinte anos, e, quanto à propalada apresentação de um estado de ansiedade e instabilidade emocional e psicológico, determinante da ingestão de ansiolíticos, existe uma adequada ligação com a condição de reclusão do arguido.»
Sumário do Tribunal da Relação de Coimbra, de 23-9-2015:
«I - A disposição do artigo 351.s do CPP dirige-se aos casos em que, no decurso da audiência de julgamento, se suscita fundadamente a questão da inimputabilidade do arguido.
II- Contudo, o incidente de "alienação mental" de arguido pode/deve ser suscitado em qualquer fase do processo penal, nos termos gerais dos arts. 151.º e ss. do mesmo diploma legal.
III- Ao arguido, presente na audiência de julgamento, aparentemente dotado de capacidade para avaliar a ilicitude do facto ilícito praticado e de se determinar de acordo com essa avaliação, não bastará, para pôr fundadamente em causa essa capacidade, a alegação de já ter sido sinalizado e orientado para consultas de psiquiatria; deverá também invocar circunstâncias concretas reveladoras da sua incapacidade no referido plano de avaliação e determinação.»
CONCLUSÕES
2. O requerimento apresentado pelo arguido tem finalidade meramente dilatória (artigo 340.º, n.º 4, alínea d) do Código de Processo Penal);
3. O Tribunal a quo fundamentou devidamente e de forma clara não se terem suscitado dúvidas sobre a imputabilidade do arguido (artigos 127.º e 340.º, n.º l do Código de Processo Penal), pelo que nenhum reparo merece a decisão recorrida.
JUSTIÇA!»
Conclusões do recurso do arguido do acórdão de 23/7/2018
«1 - O arguido mantém interesse na apreciação dos recursos interlocutórios, na amplitude aí definida, porquanto as diligências indeferidas, objeto de recurso, se conformavam, de facto, essenciais à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa.
2 – O recurso que ora se interpõe limita-se ao reexame da matéria de direito do Acórdão, à medida da pena e ao pedido de indemnização civil.
3 – O arguido, AA, foi condenado, pela prática, em autoria material e em concurso real, dos seguintes crimes:
Proc. 98/17.2GAPTL
- 1 crime de subtração de menor, p. e p. pelo artigo 249.º, n.º 1, alínea a), do C.P., na pena de 1 ano de prisão;
- 1 crime de abuso sexual de crianças, em trato sucessivo, p. e p. pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, 69.º-B, n.º 2, e 69.º-C, n.º 2, todos do C.P., na pena de 5 anos e 6 meses de prisão;
- 1 crime de abuso sexual de crianças, em trato sucessivo, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 3, alínea b), 69.º-B, n.º 2, e 69.º-C, n.º 2, todos do C.P., na pena de 10 meses de prisão;
- 1 crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 3, alínea a), por referência ao artigo 170.º, 69º-B, n.º 2, e 69.º-C, n.º 2, todos do C.P., na pena de 1 ano de prisão; e
- 1 crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d), por referência aos artigos 2.º, n.º 1, alínea ap), e 3.º, n.ºs 1 e 2, alínea e), todos do RJAM, na pena de 9 meses de prisão.
Proc. 61/17.3JAAVR
- 1 crime de abuso sexual de crianças, p. e p.pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 3 anos e 10 meses de prisão; e
- 1 crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão.
4 – Em cúmulo jurídico, o arguido foi condenado na pena única de 8 anos e 6 meses de prisão.
ERRO DE DIREITO/ERRO DE ENQUADRAMENTO JURÍDICO
5 – Nos presentes autos, verificam-se alguns erros de direito ou erros de enquadramento jurídico, dado que a matéria de facto apurada não é idónea a ensejar parte da qualificação jurídica operada.
6 – Dá-se aqui por reproduzida a facticidade que o tribunal a quo deu como assente e que se mostra descrita na motivação.
Crime de abuso sexual de crianças – questão da idade.
7 – O artigo 171.º do Código Penal faz referência atos praticados com ou em menor de em menor de 14 anos.
8 – A menor HH completou 14 anos de idade no dia 09/05/2017, isto é, 2 meses após os factos; e a menor CC completou 14 anos de idade no dia 1 de março de 2017, ou seja, cerca de um mês após a data dos factos.
9 – Nesta matéria, referente à expressão menor de 14 anos, o arguido mantém as excogitações por si ponderadas na envolvência das contestações, uma vez que elas consolidam a adequada exegese pelo tocante à idade.
10 – Em termos de desenvolvimento mental, o legislador impõe os 14 anos de idade para o discernimento sexual, id est, para alguém ser dotado de capacidade para consentir o ato sexual; porém, para tal, deve ser considerado o ano civil em que a idade se completa, desde que haja, por parte do adolescente, maturidade bastante.
11 - A título comparativo, observe-se o caso das crianças que têm de iniciar a atividade escolar em setembro do ano civil em que completam 6 anos, por ser essa a idade em que se considera existir cognição e maturidade para iniciar a escola. Ora, uma criança pode ingressar na escola antes dos 6 anos, se completar essa idade em outubro, novembro ou dezembro desse ano civil – significa isso que que a lei, nesses casos, confere agnição e maturidade à criança.
12 – No caso sub examine, deverá atender-se ao ano civil dos factos – por isso, o Tribunal apenas podia ter ponderado o artigo 173.º do Código Penal, atinente aos atos sexuais com adolescente.
13 – Não se afirme, ut se salienta no Acórdão, que, nos termos do artigo 1.º, n.º 3, do Código Penal, “a lei penal afasta qualquer possibilidade de recurso à analogia”. Na verdade, o que a referida norma fixa é a proibição do “recurso à analogia para qualificar um facto como crime, definir um estado de perigosidade ou determinar a pena ou medida de segurança que lhes corresponde” – e não também o recurso à analogia para excluir a correspondente tipicidade ou para obter uma soto-posição normativa mais favorável ao arguido.
14 – A incriminação do indicado artigo 173.º tutela a liberdade de autodeterminação sexual de adolescentes entre os 14 e os 16 anos.
15 – O abuso da inexperiência do adolescente consiste na exploração pelo agente da falta de experiência de vida daquele e, designadamente, da falta de conhecimento básico da vida sexual; assim, para apurar a inexperiência é imperativo considerar o nível de maturidade, a condição psíquica e o grau educacional da vítima.
16 – Na atual sociedade de informação, é incontroverso que apenas muito excecionalmente e em meios bastante restritos se poderá falar dessa inexperiência do adolescente. E a inexperiência do adolescente está sobremodo apartada quando este já tenha tido “conhecimento prático”, isto é, experiências sexuais.
17 – A menor CC não era, de nenhuma forma, inexperiente no recorte sexual, até porque, num sinal exemplificativo, se muniu de um preservativo que foi buscar ao quarto dos pais.
18 – Pode, pois, concluir-se que, in casu, maiormente no que respeita à CC, não se verificou uma situação de inexperiência.
19 – Ao fazer uma interpretação diversa da relatada, o tribunal a quo violou o disposto no artigo 171.º do Código Penal.
Crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.os 1 e 2, do C.P., em que figura como ofendida CC.
20 – Acolhe-se na totalidade, a exposição jurídica, feita no Acórdão, relativamente à subsunção das cinco relações sexuais de cópula completa e à relação sexual de cópula tentada (em que a HH figura como ofendida) na esfera de 1 só crime de abuso sexual de crianças, em trato sucessivo, p. e p. pelo artigo 171.º, n.os 1 e 2, do C.P.
21 – Dissente-se, porém, do Acórdão na parcela em que considera existirem, em concurso efetivo, dois crimes de abuso sexual de crianças, relativos à ofendida CC, p. e p. pelo artigo 171.º, n.os 1 e 2, do C.P..
22 – Em relação a esses crimes, o tribunal devia ter seguido o mesmo itinerário que delineou no que tange à HH.
23 – Na verdade, também neste caso, divisa-se uma unidade resolutiva criminosa, que aparece ratificada pelo facto de, após a primeira relação sexual, o arguido e a menor CC terem passado a agir como namorados – cf. o facto provado sob o n.º 22.
23 – A única divergência que o tribunal sobreluziu para distinguir as duas situações concretizou-se na singularidade de os factos relativos à menor CC terem sido praticados em duas circunstâncias espácio-temporais diferentes, contrariamente ao que ocorreu com a menor HH, em que os factos sobrevieram no interior da residência onde permaneceram durante uma semana – daí retirou a conclusão, expedita e desacertada, de que o arguido, no que afeta à CC, agiu sob diferentes resoluções.
24 – Trata-se de um argumento sem solidez e friável, porquanto a unidade resolutiva não deve ser fragmentada pela especificidade de os dois atos não terem sido cometidos no mesmo contexto espacial.
25 – Na situação em pauta, as duas condutas naturalísticas por banda do arguido interseriram-se numa única determinação inicial; verificou-se, assim, uma unidade resolutiva, que se articula, de resto, com o senso comum sobre a normalidade dos fenómenos psicológicos e que permite atestar que ambos os atos executados pelo arguido consubstanciaram o resultado de um só processo deliberativo, justaposto a uma inteira conexão temporal entre as condutas – está, pois, excluída a possibilidade de irrogar ao arguido uma pluralidade de juízos de censura.
26 – O Tribunal a quo devia ter enquadrado as condutas do arguido na prática de 1 crime de abuso sexual de crianças, em trato sucessivo, p. e p. pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do C.P. Não o tendo feito, violou o estabelecido nos artigos 30.º e 171.º, n.ºs 1 e 2 do C.P.
Crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 3, alíneas a) e b), do C.P.
27 – Discorda-se do Acórdão no excerto em que outorgou autonomia aos crimes de abuso sexual de crianças, previstos e puníveis pelo artigo 171.º, n.º 3, alíneas a) e b), do Código Penal.
28 – A propósito do artigo 171.º, n.º 3, alínea a), saliente-se que o exibicionismo, como perturbação sexual, configura também uma forma de parafilia. No Manual de Diagnóstico e Estatística dos Distúrbios Mentais, da Amaerican Psychiatric Association, descreve-se esta situação clínica nos seguintes termos: «a característica essencial deste distúrbio consiste em actos repetitivos de exibir os órgãos genitais, face a um estranho desprevenido, com o fim de obter excitação sexual, sem tentativa de ulterior atividade sexual com esse estranho».
29 – “O típico caso do «homem da gabardina», que expõe os seus órgãos sexuais, perante pessoas, em sítios públicos, pouco acessíveis, é o exemplo flagrante deste crime” de importunação. Também a masturbação ou manipulação em circunstâncias idênticas é um exemplo.”
30 – “Não pode falar-se de exibicionismo quando o acto de descobrir o pénis [...] é apenas o início de condutas sexuais mais graves, que implicam contacto corporal. Estar-se-á aí já no âmbito da prática de actos preparatórios de outro ilícito e por conseguinte no âmbito da tentativa.”
31 – É uma realidade que deve ser criminalizada, “mas apenas e só na exacta medida em que o acto dito exibicionista representa, para a pessoa perante o qual é praticado, um perigo de que se lhe siga a prática de um acto sexual que ofenda a sua liberdade de autodeterminação sexual por forma a constituir crime.
32 – No caso do ato exibicionista, o agente deve querer importunar (surpreender, chocar, atemorizar) a vítima.
33 – Tais cogitações são aplicáveis, mutatis mutandis, à situação prevenida no artigo 171.º, n.º 3, alínea b), sobretudo no que confina ao perigo de que se lhe siga a prática de um ato sexual e à especificidade de constituir o início de condutas sexuais mais graves, que determinam contacto corporal.
34 – Insta, então, extratar as subsequentes conclusões:
a) - no caso de o ato exibicionista ou da exibição de filme pornográfico se integrarem num contexto em que ocorre a prática de atos sexuais de relevo, com cópula, entre o agente e a vítima, o desvalor daqueles atos é absorvido/consumido por estes, quando os tenham antecedido;
b) - de outra parte, suposta a mesma envolvência circunstancial, no caso de o ato exibicionista ou da exibição de filme pornográfico se seguirem a atos sexuais de relevo, com cópula, aqueles atos serão um ato posterior não punido.
35 – Existe concurso aparente entre as citadas alíneas a) e b) do número 3 e o crime de abuso sexual previsto no artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, desde que a prática deste tipo de crime, mais grave, inclua a realização do tipo de crime, menos grave, a que se reportam aquelas alíneas – são casos de consunção pura.
36 – Assim, “se o agente leva a cabo condutas descritas no n.º 3 como meio para praticar os actos previstas nos n.ºs 1 e (ou) 2, o concurso assumirá em regra a forma de concurso legal, salvo se as condutas forem recondutíveis a resoluções autónomas e diferentes.”
37 – A matéria de facto que aqui cabe apreciar é a narrada nos números 70-72 dos factos provados:
“ 70) Também durante tal período temporal” (entre o dia 03/03/2017 e o dia 09/03/2017)
“e pelo menos em três ocasiões, o arguido, com recurso ao telemóvel, acedeu a vídeos disponíveis na internet que exibiam indivíduos de idades e sexos não concretamente apurados a manterem relações de teor sexual entre si.
71) Obrigando a menor, contra a vontade desta, a assistir a tais espectáculos.
72) Também, pelo menos, por duas vezes, no período que decorreu entre os dias 03-03-2017 e 09-03-2017, o arguido, manipulando com as mãos o seu pénis erecto, masturbou-se à frente da menor, sendo que, numa dessas ocasiões, ejaculou para cima da barriga da mesma, limpando-lhe, em seguida, o sémen com um lenço.”
38 – Não é ainda ocioso cotejar aqui o facto provado sob o n.º 40 (em que se alude a um ato de masturbação por parte do arguido, que se seguiu a uma tentativa de cópula) e a alínea g) dos factos não provados, em que se dá como não assente que a masturbação referida no n.º 40 foi sem ejacular. Dessa colação, aparenta resultar uma sobreposição entre o facto n.º 40 e um dos factos indicados no n.º 72, que o Acórdão não clarifica.
39 – As condutas indigitadas nos números 70 e 72 foram concretizadas “no mesmo contexto vivencial e espaço físico, sem precisão de datas e momentos, designadamente se foram seguidas ou separadas no tempo”
40 – Ora, tais factos não têm potencialidade para adquirir autonomia – não podiam, ipso facto, ser objeto de punição independente.
41 – Deste modo, ao conferir-lhes autonomia e punição destacada, o Tribunal a quo infringiu o estabelecido nos artigos 30.º e 170.º, n.ºs 1, 2 e 3, alíneas a) e b), do Código Penal.
42 – Em jeito de conclusão, diante dos factos firmados pelo Tribunal, o arguido apenas podia ter sido condenado, pela prática, em autoria material e em concurso real, dos seguintes crimes:
Proc. 98/17.2GAPTL
- 1 crime de subtração de menor, p. e p. pelo artigo 249.º, n.º 1, alínea a), do C.P.; 1 crime de abuso sexual de crianças, em trato sucessivo, p. e p. pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.; e 1 crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d), por referência aos artigos 2.º, n.º 1, alínea ap), e 3.º, n.ºs 1 e 2, alínea e), todos do RJAM.
Proc. 61/17.3JAAVR
- 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, em trato sucessivo, p. e p. pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.
MEDIDA DA PENA
43 – Nesta esfera, deve atender-se à culpa do agente e às exigências de prevenção de futuros crimes, não podendo a medida da pena ultrapassar a medida da culpa (cf. os artigo 40.º, n.º 2, e 71.º, ambos do Código Penal. De outro lado, a aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e o tribunal deve atender, na determinação concreta da pena, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele.
44 – No âmbito das exigências de prevenção, incluem-se aqui as vertentes da prevenção geral, negativa e positiva, e da prevenção especial.
45 – A fixação da pena há de assim cumprir uma função repressiva, aferida pela intensidade ou grau de culpabilidade, e satisfazer finalidades preventivas, de proteção do bem jurídico e de integração do agente na sociedade.
46 – Na determinação concreta da pena, o tribunal deve atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele.
47 - Merecem acolhimento as ponderações jurídicas feitas pelo Tribunal a ff. 57-59, na esfera das alíneas a) a e).
48 – Apesar de o grau de ilicitude relativo aos crimes de abuso sexual (cópula) ser significativo, sobretudo pelo tocante à menor BB, cabe, porém, ressair e ajuntar o seguinte:
a) - no caso de não se atender ao posicionamento jurídico pugnado, referente à não subsunção dos factos ao artigo 171.º, por efeito da idade das vítimas, interessa ponderar que ambas se encontravam no umbral absoluto dos 14 anos;
b) - de outro lado, a conduta de ambas as vítimas foi reprovável e “as consequências para as menores não foram especialmente graves, aparentando estar estabilizadas emocional e psicologicamente”;
c) - alfim, não é despiciendo mencionar que os factos, teoricamente, podiam ter alcançado uma dimensão bastante superior – porém, o arguido refutou dimensionar e ampliar, de forma mais grave, o seu comportamento.
49 – No que afeta ao crime de detenção de arma proibida, a ilicitude é moderada/baixa.
50 – Quanto à intensidade do dolo, não se diga que o arguido agiu com elevada intensidade – tratou-se, antes, de uma intensidade um pouco acentuada.
51 – O arguido tem tido um percurso disruptivo; contudo, ele devia ter sido concatenado com a componente psicológica do arguido, que o tribunal preteriu totalmente (nesse tópico, foi interposto um recurso interlocutório).
52 – Em relação aos antecedentes criminais do arguido, incumbe evidenciar que as condenações que lhe foram impostas, embora sejam relevantes, concernem, todas elas, a crimes contra o património (respeitam, na sua quase totalidade, a furtos) – têm, por isso, uma natureza absolutamente alheia à dos crimes dos autos e a furtos.
53 – Entende-se equitativa a fixação ao arguido das seguintes penas (no contorno dos crimes perspectivados pelo arguido).
Proc. 98/17.2GAPTL
- 1 crime de subtração de menor, p. e p. pelo artigo 249.º, n.º 1, alínea a), do C.P. – pena de 7 meses de prisão;
- 1 crime de abuso sexual de crianças, em trato sucessivo, p. e p. punível pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal – pena de 3 anos e 10 meses; e
- 1 crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d), por referência aos artigos 2.º, n.º 1, alínea ap), e 3.º, n.ºs 1 e 2, alínea e), todos do RJAM – pena de 6 meses de prisão.
Proc. 61/17.3JAAVR
- 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, em trato sucessivo, p. e p. pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do C.P. – pena de 3 anos e 5 meses.
54 – Em cúmulo jurídico, a pena a aplicar ao arguido – cujo limite mínimo corresponde a 3 anos e 10 meses e o limite máximo a 9 anos e 2 meses – deve ser fixada, de forma adequada, em 5 anos.
55 – Todavia, mesmo que se considerassem os crimes perspectivados pelo Tribunal a quo, atendendo à imagem global dos factos, a pena única a aplicar também não devia extrapassar os 5 anos de prisão. O Tribunal não devia, por conseguinte, ter feito uma dosimetria, notadamente, aritmética, mas, antes, ponderar a valência dos factos na sua globalidade.
56 – Porém, tal pena deve ser substituída por uma pena não detentiva – a suspensão da execução da pena, que se mostra prevista no artigo 50.º do CP. A suspensão da execução da pena obedece a um juízo de prognose favorável, centrado na pessoa do arguido e no seu previsível comportamento futuro, e tem um conteúdo pedagógico e reeducativo, direcionado a afastar o delinquente da criminalidade.
57 – Na situação sub examine, apesar da gravidade dos factos, incumbe objetar o seguinte: o arguido enfrentou um percurso pleno de dificuldades; os factos aqui em comento conformam uma situação episódica na vida do arguido; e as limitações cognitivas e psicológicas do arguido.
58 – Em face da justaposição de tais especificidades, mostra-se bastante a censura do fato e a ameaça da pena para afastar o arguido da delinquência e satisfazer as necessidades de reprovação e de prevenção, geral e especial, do crime. Por tal motivo, a execução da pena de prisão aplicada deverá ser suspensa pelo período de 5 anos, com sujeição a regime de prova.
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL.
59 – O presente recusro abrange também o pedido de indemnização em que o arguido foi condenado.
60 – Na situação apreciada, apenas podem ser perspetivados danos não patrimoniais.
61 - Nestes danos não patrimoniais, não há uma indemnização verdadeira e própria, mas antes uma reparação, uma atribuição de uma soma em dinheiro que se julga adequada para compensar e reparar transtornos, incómodos e ofensas, mediante o proporcionar de certo número de satisfações que as atenuem ou façam, de alguma forma, esquecer.
62 – O montante de indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado, em qualquer caso, de acordo com critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular do direito de indemnização, aos padrões de indemnização geralmente adotados na jurisprudência, às flutuações do valor da moeda, etc.
63 – Neste particular, cumpre sobrelevar: a particularidade de as menores, à data dos factos, estarem no limiar absoluto dos 14 anos; a circunstância de a conduta de ambas as vítimas ter sido reprovável, uma vez que também contribuíram e aceitaram esse tipo de relações; e “as consequências para as menores não foram especialmente graves, aparentando estar estabilizadas emocional e psicologicamente”.
64 – Noutro plano, compete atender à condição económica do lesante AA, sem ocupação laboral e rendimentos próprios, tendo mesmo vivido na rua até poucos antes de ocupar aquela habitação, estando preso desde então.
65 – Aplicando as considerações expostas ao caso em comento e atentas as respetivas coordenadas, a indemnização fixada às vítimas configura-se desorbitante, devendo ser reduzida, em face da sua gravidade e dimensão, para 3000 € e 1500 €, a favor, respetivamente, da HH e da CC.
*
DESSA FORMA, SERÁ FEITA A TÃO PEDAGÓGICA
JUSTIÇA.»
Resposta do MP ao recurso do acórdão interposto pelo arguido
7. O Ex.mo Procurador da República na 1.ª instância, respondeu ao recurso do arguido (fls. 1903-1919 do IX vol.), nos seguintes termos:
«O MINISTÉRIO PÚBLICO, ao abrigo do disposto nos artigos 399.º, 401.8, n.º 1, alínea a) e 413.8, todos do Código de Processo Penal, vem apresentar
RESPOSTA AO RECURSO PER SALTUM Interposto pelo arguido AA, do Acórdão condenatório proferido a 23-7-2018.
DIGNÍSSIMOS JUÍZES CONSELHEIROS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
“Quando vejo uma criança, ela inspira-me dois sentimentos:
ternura, pelo que é, e respeito pelo que pode vir a ser. ”
Louis Pasteur
I DOS RECURSOS INTERLOCUTÓRIOS
O Ministério Público respondeu, oportunamente e em articulado próprio, aos recursos interlocutórios interpostos pelo arguido.
II DA DECISÃO CONDENATÓRIA
O arguido AA foi julgado e condenado pela prática, em autoria material e em concurso efectivo, dos seguintes crimes:
Processo n.º 98/17.2GAPTL:
1 (um) crime de subtracção de menor, previsto e punível pelo artigo 249.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão;
1 (um) crime de abuso sexual de crianças, em trato sucessivo, previsto e punível pelos artigos 171.º, nºs 1 e 2,69.º-B, nº 2,e 69.º-C, n.º 2, todos do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;
1 (um) crime de abuso sexual de crianças, em trato sucessivo, previsto e punível pelos artigos 171.º, nº 3, alínea b), 69.º-B, nº 2, e 69.º-C, n.º 2, todos do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão;
1 (um) crime de abuso sexual de crianças, previsto e punível pelos artigos 171.º, n.º 3, alínea a), por referência ao artigo 170.º, 69º-B, n.º 2, e 69.º-C, nº 2, todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão; e
1 (um) crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo artigo 86.8, n.º 1, alínea d), por referência aos artigos 2.º, n.º 1, alínea ap), e 3.º, n.ºs 1 e 2, alínea e), todos do RJAM (aprovado pela Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro, com as alterações posteriores, a última pela Lei n.º 50/3013, de 24-07), na pena de 9 (nove) meses de prisão;
Processo n.º 61/17.3JAAVR:
1 (um) crime de abuso sexual de crianças, previsto e punível pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão;
1 (um) crime de abuso sexual de crianças, previsto e punível pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Em cúmulo jurídico, o arguido foi condenado na pena única de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão e nas penas acessórias de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, e de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adopção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 10 (dez) anos.
O arguido foi ainda condenado a pagar às ofendidas BB e CC (representadas pelos seus progenitores até à maioridade), a título de indemnização por danos não patrimoniais, respectivamente, as quantias de 6.000,00€ (seis mil euros) e de 3.000,00€ (três mil euros), nos termos do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal e do artigo 16.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro.
III. OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18-06-2013). A leitura das conclusões formuladas pelo recorrente permite-nos delimitar o objecto do recurso às seguintes questões de direito:
a) A errada subsunção jurídica dos factos aos crimes previstos no artigo 171.º do Código Penal, em função da idade das vítimas menores;
b) A natureza exaurida (trato sucessivo) dos crimes de abuso sexual de crianças (artigo 171.8, n.8s 1 e 2 do Código Penal) praticados contra CC;
c) O concurso aparente entre o crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 171.8, n.º 3, alíneas a) e b) do Código Penal e o crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.8, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, ambos praticados contra HH;
d) A determinação da medida da pena;
e) O valor das compensações económicas arbitradas às vitimas.
IV. A POSIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO RELATIVAMENTE AO THEMA DECIDENDUM
A. Os crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 171.º do Código Penal — A idade das menores
No entender do arguido, vertido nos pontos 7 a 19 das conclusões por si formuladas, o Tribunal a quo não poderia ter integrado as condutas do arguido, praticadas contra BB e CC, aos crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.ºs 1,2 e 3, alíneas a) e b) do Código Penal, por dever considerar-se que o elemento objectivo dos tipos — “menor de 14 anos” - se reporta ao ano civil em que o/a menor atinge os 14 (catorze) anos e não à data em que concretamente o/a menor atinge tal idade em função da data de nascimento.
Antes de responder à questão controvertida cumpre sinalizar que este entendimento do arguido se mostra inconsequente e incongruente com o restante teor das conclusões formuladas.
O arguido alicerça grande parte da sua motivação e das suas conclusões considerando a subsunção jurídica realizada pelo Tribunal a quo (à excepção do problema do concurso de crimes), designadamente quanto à medida da pena que deseja seja reapreciada, sem nunca ressalvar, quer nas conclusões quer na motivação, esta primeira questão que se apresenta claramente prejudicial relativamente às restantes.
Assim, por forma a dar cabal cumprimento ao estatuído no artigo 412.º, n.º 2, alineas b) e c) do Código de Processo Penal, impunha-se ao arguido ter indicado, não só, como deveria ter sido interpretado e aplicado o Direito (as questões do concurso e a medida da pena) em função dos crimes a que foi efectivamente condenado, mas também como deveria ter sido interpretado e aplicado o Direito em função da nova subsunção jurídica que introduz nesta primeira questão que deseja seja reapreciada.
Desde já se frise que a tese do arguido quanto a esta primeira questão suscitada afronta da forma mais elementar o quadro normativo-interpretativo que norteia o Direito Penal Português e até o sistema jurídico vigente.
Não se compadece, portanto, com nenhum argumento hermenêutico susceptível de valoração na ordem jurídica portuguesa: a literalidade da lei, o espírito da lei e a unidade sistemática do Direito.
Consequentemente não vem suportado por qualquer autor e pensador do Direito ou por qualquer entendimento jurisprudencial.
Vejamos.
Dispõe o artigo 171.º do Código Penal, sob a epígrafe “Abuso sexual de crianças”, que:
1 - Quem praticar acto sexual de relevc com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.
2 – Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
3 - Quem:
a) Importunar menor de 14 anos, praticando acto previsto no artigo 170.º; ou
b) Actuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa, escrito, espectáculo ou objecto pornográficos;
c) Aliciar menor de 14 anos a assistir a abusos sexuais ou a actividades sexuais;
é punido com pena de prisão até três anos.
4-(...)
5 -(...)
O bem jurídico tutelado com os crimes de abuso sexual de crianças é a autodeterminação da criança face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade, em particular na esfera sexual (Jorge de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2.ª edição, p. 834).
A lei presume — juris et de iure — que a prática de actos sexuais com, em ou por menor de 14 anos prejudica o seu desenvolvimento global, sendo “tipicamente indiferente que a vitima seja ou não já sexualmente iniciada, que possua ou não capacidade para entender o acto sexual que nela, com ela ou perante ela se pratica ou se leva a praticar, que lhe caiba uma intervenção activa (mesmo a iniciativa!) ou puramente passiva do processo” (Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit. ,p. 835).
A letra dos tipos de crime e o espírito da lei projectam-se invariavelmente para a protecção da vítima, e, como tal, por obediência ao princípio da legalidade e da tipicidade (artigo 1.º do Código Penal), decidiu o legislador fazer incluir nos elementos objectivos do tipo uma referência à idade real da vítima menor.
Determinante ao preenchimento desse elemento objectivo é que, à data da prática dos factos, a vítima menor não tenha completado 14 (catorze) anos a contar desde o momento do seu nascimento.
Outra interpretação jamais poderá ser consentida pela absurdidade a que conduziria: pense-se, por antilogismo, o que seria afirmar que uma criança nascida a 31 de Dezembro teria um dia depois mais um ano que a sua idade real.
E o que aqui defendemos (nós e todas as decisões jurisprudenciais que nos foram dadas a conhecer até ao momento) encontra no Direito Penal e no Direito Processual Penal o mais amplo acolhimento sistemático, seja nos limites da inimputabilidade em razão da idade (artigo 19.º do Código Penal), seja na definição de criança do artigo 67.º-A, alínea d) do Código de Processo Penal e em incontáveis preceitos normativos espalhados na legislação penal e na legislação portuguesa em geral (o limite da menoridade, a capacidade eleitoral, a proibição de consumo de bebidas alcoólicas, o regime tutelar educativo e de promoção e protecção de crianças e jovens em perigo, entre muitos outros exemplos).
Por certo, tivesse o arguido 15 (quinze) anos à data da prática dos factos e não estaríamos aqui a discutir o indiscutível.
Em jeito de remate se diga que o recurso à analogia é apenas admissível como forma de integração de lacunas (artigo 10.º do Código Civil) e não já quando a lei se apresenta, como é o caso, bastante clara e delimitada e cuja interpretação literal, teleológica, sistemática e histórica converge no sentido decisório do Tribunal a quo (artigo 9.º do Código Civil).
Assim, nos termos conjugados dos artigos 9.º e 10.º do Código Civil e artigos 1.º e 171.º do Código Penal, nenhum reparo merece a decisão recorrida nesta parte.
B. O concurso real (efectivo) dos crimes de abuso sexual de crianças praticados contra a menor CC
Dissente o arguido da decisão recorrida na parte em que o condenou a dois crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 30.º, nºs 1e 3e 171.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, praticados contra menor CC, por considerar que foi una a sua resolução criminosa e que, portanto, deveria ter sido condenado pela prática de um único crime de abuso sexual de crianças, em trato sucessivo,. p. e p. pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal (pontos 20 a 26 das conclusões do recurso).
A factualidade cuja integração jurídica pretende seja reapreciada consta dos artigos B.1 a B.30 (Proc. 61/17.3JAAVR) dos factos provados no Acórdão recorrido.
Corria o ano de 1945 e o Professor Eduardo Correia ensinava, relativamente à problemática do concurso de crimes, que “haverá unidade de resolução quando se puder concluir que os vários actos são o resultado de um só processo de deliberação, sem serem determinados por nova motivação” (in Unidade e pluralidade de infracções, p. 114).
Segundo o Autor, critério determinante à verificação de uma unidade de resolução criminosa será a conexão temporal entre as plúrimas vezes que um tipo de crime é cometido. Nas suas palavras: “para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados de experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação”.
Este entendimento assenta num modelo subjectivista do concurso homogéneo de crimes, distinguindo a unidade da pluralidade de crimes em função do processo de motivação, renovado ou não, do agente.
Permitam-nos, contudo, fazer uma leitura pragmática desta teoria para concluir, como se tem concluído na praxis judiciária que, sem o apoio de factos empírico-demonstráveis (objectivos), é trabalho de pura especulação o do julgador chamado a decidir sobre a unidade ou pluralidade infracções quando é violado o mesmo tipo legal de crime.
E tanto assim é que o próprio autor aponta como critério determinante um contexto por demais objectivo - o hiato temporal entre a prática dos vários factos subsumíveis ao mesmo tipo legal de crime.
Cremos, em verdade, que a conexão temporal deverá ser um dos critérios a ter em conta, mas entre outros, como a interrupção da motivação pelo contacto com as instâncias formais de controlo e, principalmente, por atenção aos concretos bens jurídicos violados e ao sentido jurídico-social de ilicitude do comportamento global, tese esta avançada pelo Professor Jorge de Figueiredo Dias (in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, p. 986 e ss.).
Se no rigor teleológico e racional não há identidade entre a questão da unidade e pluralidade de crimes e o crime continuado, pois que a conclusão pela pluralidade de crimes é pressuposto à eventual aplicação do instituto do crime continuado (é um juízo valorativo que antecede a integração de um concurso de crimes à figura do crime continuado), é inolvidável que os critérios legais constantes do artigo 30.º, n.ºs 2 e 3 do Código Penal deverão ser tidos em conta naquela prévia ponderação, no recurso suscitada.
Bem patente do que se afirma é a previsão consagrada no artigo 30.º, n.º 3 do Código Penal, introduzida Lei n.º 59/2007, de 04-09, que afasta a aplicação da figura do crime continuado em crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.
Não só para efeitos do n.º 2 do artigo 30.º do Código Penal se deve ter em atenção o bem jurídico concretamente violado (e não só a sua natureza), mas também e, desde logo, para efeitos do disposto no artigo 30.º, n.º 1 do Código Penal, que estabelece a regra de que “o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”.
Consideramos, aliás, que a favor do aqui propugnado está o contexto histórico- conjectural em que surgiu a Lei n.º 59/2007, de 04-09, depois do impacto social e político do Processo “Casa Pia”, que motivou uma quase imediata reacção de política-criminal.
Note-se, apesar de na redacção original da Proposta de Lei 98/X (que veio a dar origem à Lei n.º 59/2007) o artigo 30.º, n.º 3 do Código Penal dispor que: “O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma vítima”, tal redacção veio a ser rejeitada na discussão e votação na especialidade, tendo sido retirado o trecho final do normativo.
Daqui se extrai, com suficiente certeza, que foi intenção do legislador que se considerasse haver pluralidade de crimes quando os bens jurídicos tutelados têm uma natureza eminentemente pessoal, independentemente de se tratar de várias condutas contra várias vítimas ou de várias condutas contra a mesma vítima (artigo 30.º, n.º 1 e 3 do Código Penal).
Importa, também, tecer algumas considerações quanto à figura dos crimes exauridos ou de trato sucessivo, invocada quer no Acórdão recorrido quer no recurso interposto pelo arguido.
Cremos que a característica essencial dos crimes exauridos se aparta de uma de duas hipóteses: ou o tipo de crime contempla expressamente a hipótese de reiteração ou actuação continuada mas a sua consumação pode bastar-se com um acto apenas (o caso evidente da violência doméstica); ou, apesar do tipo não contemplar a hipótese de reiteração ou actuação continuada, a natureza intrínseca do próprio fenómeno criminológico se projecta empiricamente como uma actividade mais ou menos prolongada no tempo, em que, no entanto, a sua consumação se basta com um acto apenas (o exemplo do tráfico de estupefacientes).
É bom de ver que nenhuma dessas hipóteses vem espelhada na factualidade provada e no tipo de criminalidade em causa, já que seria incorrecto afirmar que o crime de abuso sexual de crianças é, no seu âmago, um fenómeno de actividade, consubstanciando, sim, nas suas intrínsecas manifestações fenomenológicas, um crime de oportunidade. E se podemos admitir como excepção aos artigos 30.º, nº 1 e 3 do Código Penal, os casos em que o crime se deva classificar como exaurido porque o próprio tipo prevê a reiteração dos actos (e.g. violência doméstica), já não será em absoluto assim na segunda hipótese aduzida, em que o decurso do tempo, a detenção ou a sujeição a medida de coacção do agente têm a virtualidade de interromper a resolução criminosa inicial, admitindo-se, assim, mais facilmente a pluralidade de infracções (e.g. Tráfico de estupefacientes).
Por tudo isto, consideramos que a existir um erro in judicando do Tribunal a quo, o mesmo foi benéfico ao arguido, porquanto os crimes de abuso sexual de crianças praticados contra a menor BB não deveriam ter sido considerados e valorados como sendo de trato sucessivo mas sim autonomizados, conforme constava do despacho de acusação e do despacho de pronúncia, tudo à luz do disposto nos artigos 30.º, nº 1 e 3 e 171.º do Código Penal (Veja-se, a este respeito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14-01-2016).
E relativamente ao caso sub judice, não deverá proceder a pretensão do arguido justamente porque, através do comportamento global do arguido espelhado nos factos provados, do número de vezes que à autodeterminação sexual da menor CC foi agredida e violada, em circunstâncias de tempo e lugar completamente distintas, e mediante diferentes pretextos motivados pelo arguido, fica patente a rectidão jurídico-valorativa do Acórdão recorrido nessa parte.
Considera o arguido existir um concurso aparente entre os crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal e os crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 3, alíneas a) e b) do Código Penal, praticados contra HHs, estes últimos consumidos pelos primeiros, argumentando que aos factos (artigos A.70.º a A.72.º dos factos provados) subsumiveis aos crimes p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 3, alíneas a) e b) do Código Penal se seguiram contextualmente os factos subsumíveis aos crimes p. e p. pelo artigo 171.º, nº 1 e 2 do Código Penal.
O arguido alicerça a sua tese na posição do Professor Jorge de Figueiredo Dias, segundo o qual “se o agente leva a cabo condutas descritas no n.º 3 como meio para praticar os actos previstos nos n.ºs 1 e (ou) 2, o concurso assumirá em regra a forma de unidade legal, salvo se as condutas forem reconduzíveis a resoluções autónomas e diferentes” (in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2.ª edição, p. 843).
Se em abstracto concordamos com a posição do Professor Jorge de Figueiredo Dias, consideramos que o arguido, para fazer valer a sua pretensão, teria de recorrer da matéria de facto, o que não fez.
Isto porque da factualidade dada como provada no Acórdão recorrido não se pode concluir que aos factos subsumíveis aos tipos de crime previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º 3, alíneas a) e b) do Código Penal se seguiram contextualmente os factos subsumíveis aos tipos de crime previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal.
Bem pelo contrário, os factos provados n.ºs A.39 e A.40, A.70 a A72 e A87 a A91, espelham com clareza uma descontinuidade e autonomização fáctico-resolutiva entre os actos sexuais de relevo (cópula) e a visualização de vídeos pornográficos e a masturbação diante da menor.
Assim, e reproduzindo os nossos considerandos atinentes ao ponto anterior, nenhum reparo merece a decisão recorrida.
D. A medida da pena
O arguido pretende, com o recurso interposto, sejam reduzidas as penas parcelares a que foi condenado e, a final, seja determinada uma pena única que admita a suspensão da execução da pena de prisão a que foi condenado, o que entende dever ser aplicada.
O arguido fundamenta a redução das penas parcelares e da pena única essencialmente com a eventual procedência das restantes questões de direito por si suscitadas e factualmente, na diferente natureza dos crimes que compõem o seu histórico criminal.
Enquanto instrumento político-criminal de um Estado de Direito Democrático, a aplicação da pena visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente (artigo 40.º, nº 1 do Código Penal), e em caso algum pode ultrapassar a medida da culpa do agente (artigo 40.º, nº 2 do Código Penal).
Isto significa que o nosso sistema jurídico a pena é encarada enquanto instrumento de prevenção, mas uma prevenção, desde logo, focada no reforço da confiança da comunidade na validade e na força da vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos, e portanto perspectivada numa vertente positiva — prevenção de integração —, visando em ultima análise a restauração da paz jurídica.
Por outro lado, e porque a pena repousa substancialmente num duplo fundamento, a culpa do agente constitui o seu pressuposto necessário e o seu limite inultrapassável.
Por isso mesmo, dispõe o artigo 71.º, nº 1 do Código Penal que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.
Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração, actuam as exigências de prevenção especial, que vão determinar, por fim, a medida da pena.
O critério decisivo das exigências de prevenção especial será a necessidade de socialização do agente, sem que nunca para isso, se ultrapasse o limite da sua culpa.
Dispõe o artigo 71.º, n.º 2 do Código Penal, que:
«Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos co agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.»
A medida concreta da pena do concurso de crimes, dentro da moldura abstracta aplicável, a qual se constrói a partir das penas aplicadas aos diversos crimes, é determinada, tal como na concretização da medida das penas parcelares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta o critério plasmado no artigo 77.º, n.º 1 do Código Penal: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente.
Dispõe este normativo que “na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e da personalidade do agente”.
No fundo, está em causa uma visão de conjunto, em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, assim se detectando a gravidade desse ilícito global, por referência à personalidade unitária do agente.
Nas palavras do Professor Jorge de Figueiredo Dias, “Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verificasse” (in As Consequências Jurídicas do Crime, p. 289).
Releva na avaliação da personalidade unitária do agente, “a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização” (in As Consequências Jurídicas do Crime, p. 291).
Em suma, será em função dos factores específicos referidos, que traduzem globalmente a culpa do agente e as necessidades de prevenção que o caso desperta, que a medida da pena do concurso de crimes deverá ser determinada.
Queremos, no entanto, enfatizar que são gravíssimas e prementes as necessidades de prevenção geral e especial que o caso desperta.
Assim como é elevadíssimo o grau de culpa do arguido na prática de todos e qualquer um dos factos que motivaram a sua condenação numa pena de prisão efectiva (dolo directo).
Fazendo nossos todos os fundamentos constantes do Acórdão recorrido, desejamos acrescentar que a favor do arguido não concorre qualquer circunstância atenuante digna de valoração na determinação da medida da pena.
O seu percurso de vida tem demonstrado até hoje uma total indiferença pelos valores fundamentais da vida em sociedade, seja na sua vasta carreira criminosa enquanto agente de crimes contra o património, seja, agora, nos factos dos autos, que arrepiam a consciência de qualquer cidadão.
De um ponto de vista da prevenção geral, cremos que a sociedade espera daqueles que administram a Justiça em nome do Povo uma reacção criminal clara e séria quando em causa está a segurança, o livre desenvolvimento e o crescimento saudável e psicologicamente estável das nossas crianças. O que fica patente com as elevadas molduras penais que o legislador quis prever nos crimes cometidos pelo arguido.
E respeito pelo que estas duas crianças, BB e CC, podem vir a ser (como nos falava Louis Pasteur) foi tudo o que o arguido não teve e não tem. A sua personalidade, espelhada na factualidade assente, denuncia uma tendência para a prática de crimes contra a autodeterminação sexual de crianças, e acima de tudo, uma absurda indiferença pelas consequências das suas condutas, bem patente no crime de subtracção de menor que cometeu.
Assim, também quanto à determinação da medida da pena, nenhum reparo merece a decisão recorrida.
E. O valor das compensações económicas arbitradas às vítimas
Pretende o arguido seja reduzido o montante compensatório arbitrado pelo Tribunal a quo às vítimas BB e CC, para €3000 e €1500, respectivamente.
Nos termos do disposto no artigo 21.º da Lei 112/2009, com a actual redacção dada pela Lei 24/2017:
«1 - À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável.
2 - Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.»
Dispõe o artigo 82.º-A.º, n.º 1 do Código Penal, que: “não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.2 e 77º. o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham”.
Nos termos do disposto no artigo 483.8, n.º 1 do Código Civil ex vi artigo 128.º do Código de Processo Penal, existe dever de indemnizar quando cumulativamente se verifiquem os seguintes requisitos: a) a ilicitude do facto danoso; b) a culpa, sob a forma de dolo ou negligência do autor do facto; c) um nexo de causalidade entre o facto e os danos sofridos pelo lesado.
Essa obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que O lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (doutrina da causalidade adequada, na sua formulação negativa) - artigo 563.º do Código Civil -, e a indemnização, fixada em dinheiro, sempre que não seja possível a reconstituição natural (artigo 562.º e 566.º, n.2 1 do Código Civil), visa a reparação de danos patrimoniais e danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito — artigo 496.2, n2 1 e 4 do Código Civil.
É posição doutrinária assente que a indemnização de danos não patrimoniais não reveste natureza exclusivamente ressarcitória, desempenhando também uma função preventiva e uma função punitiva (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, |, 10.º edição, pp. 605 a 608, 906 e 934), sendo o montante a atribuir fixado com recurso à equidade, ponderando-se, por exemplo, a culpa do agente e a sua situação económica, bem como a do lesado (artigo 494.2 e 496.º,n.º 4 do CC).
Ainda de acordo com o Supremo Tribunal de Justiça (Ac. STJ de 29-01-2008, Proc. 0744492), “a indemnização por danos não patrimoniais, visa compensar realmente o lesado pelo mal causado, donde resulta que o valor da indemnização deve ter um alcance significativo e não ser meramente simbólico, para assim se intentar compensar a lesão sofrida, proporcionando ao ofendido os meios económicos capazes de fazer esquecer, ou pelo menos mitigar, o abalo moral suportado”.
In casu, sopesando em conjunto a natureza e a gravidade dos danos não patrimoniais sofridos pelas vítimas, a capacidade económica do arguido (que em reclusão beneficiará de oportunidade de trabalho e de remuneração para conseguir ir liquidando os valores arbitrados e assim compensar o mal praticado) e os valores habitualmente fixados pela jurisprudência em situações semelhantes (a título de exemplo, o Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães, de 8-2-2016, e 10-5-2017, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 7-10-2009, e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25-9-2008) consideramos justo e equitativo manter o valor da indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelas vítimas, tal como fixado no acórdão recorrido.
2. Assim, nos termos conjugados dos artigos 9.º e 10.º do Código Civil e artigos 1.º e 171.º do Código Penal, nenhum reparo merece a decisão recorrida nesta parte.
3. Foi intenção do legislador que se considerasse haver pluralidade de crimes quando os bens jurídicos tutelados têm uma natureza eminentemente pessoal, independentemente de se tratar de várias condutas contra várias vítimas ou de várias condutas contra a mesma vítima (artigo 30.8, n.º 1 e 3 do Código Penal).
4. A característica essencial dos crimes exauridos aparta-se de uma de duas hipóteses: ou o tipo de crime contempla expressamente a hipótese de reiteração ou actuação continuada mas a sua consumação pode bastar-se com um acto apenas (o caso evidente da violência doméstica); ou, apesar do tipo não contemplar a hipótese de reiteração ou actuação continuada, a natureza intrínseca do próprio fenómeno criminológico se projecta empiricamente como uma actividade mais ou menos prolongada no tempo, em que, no entanto, a sua consumação se basta com um acto apenas (o exemplo do tráfico de estupefacientes).
5. Nenhuma dessas hipóteses vem espelhada na factualidade provada e no tipo de criminalidade em causa.
6. Através do comportamento global do arguido espelhado nos factos provados, do número de vezes que a autodeterminação sexual da menor CC foi agredida e violada, em circunstâncias de tempo e lugar completamente distintas, e mediante diferentes pretextos motivados pelo arguido, fica patente que nenhum reparo merece a decisão recorrida quanto à existência de um concurso real (efectivo) entre os crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.2, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, praticados contra a menor CC.
7. Da factualidade dada como provada no Acórdão recorrido não se pode concluir que aos factos subsumíveis aos tipos de crime previstos e punidos pelo artigo 171.º,n.º3, alíneas a) e b) do Código Penal se seguiram contextualmente os factos subsumíveis aos tipos de crime previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.ºs 1e 2 do Código Penal.
8. Os factos provados n.ºs A.39 e A40, A.70a A./2 e AB/ a A.91, espelham com clareza uma descontinuidade e autonomização fáctico-resolutiva entre os actos sexuais de relevo (cópula) e a visualização de vídeos pornográficos e a masturbação diante da menor.
9. Assim, não tendo o arguido recorrido de matéria de facto, bem andou o Tribunal a quo ao considerar existir concurso real (efectivo) entre o crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 3, alíneas a) e b) do Código Penal e os crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.8, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, ambos praticados contra HH.
10. São gravíssimas e prementes as necessidades de prevenção geral e especial que o caso desperta assim como é elevadíssimo o grau de culpa do arguido na prática de todos e qualquer um dos factos que motivaram a sua condenação numa pena de prisão efectiva
(dolo directo).
11. A favor do arguido não concorre qualquer circunstância atenuante digna de valoração na
determinação da medida da pena.
12. O seu percurso de vida tem demonstrado até hoje uma total indiferença pelos valores fundamentais da vida em sociedade, seja na sua vasta carreira criminosa enquanto agente de crimes contra o património, seja, agora, nos factos dos autos.
13. Quanto à determinação da medida das penas parcelares e da pena única aplicada, nenhum reparo merece a decisão recorrida.
14. Sopesando em conjunto a natureza e a gravidade dos danos não patrimoniais sofridos pelas vítimas, a capacidade económica do arguido (que em reclusão beneficiará de oportunidade de trabalho e de remuneração para conseguir ir liquidando os valores arbitrados e assim compensar o mal praticado) e os valores habitualmente fixados pela jurisprudência em situações semelhantes (a título de exemplo, o Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães, de 8-2-2016, e 10-5-2017, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 7-10-2009, e o Acórdão do Supremo Tribuna! de Justiça, de 25-92-2008) consideramos justo e equitativo manter o valor da indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelas vítimas, tal como fixado no acórdão recorrido.
Do exposto e salvo o devido respeito por opinião contrária, deve o recurso improceder totalmente, assim se fazendo a habitual
JUSTIÇA!
..., 11 de Setembro de 2018»
8. Ao recurso do arguido responderam também os assistentes DD e FF (fls. 1927-1928 do 9.º vol.) no sentido da improcedência.
Parecer da Ex.ma PGA neste Supremo Tribunal
9. Por seu turno, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal emitiu, em 27/11/2018, douto parecer (fls. 1934-1950 do IX vol.), também a seguir parcialmente transcrito:
«1 – Por Acórdão de 23/7/2018, o Tribunal Colectivo do Juízo Central Criminal de ..., Juiz 3, da Comarca de ..., condenou o arguido AA nos seguintes termos: (………….)
2 – Irresignado, recorreu o arguido para o STJ, em tempo e com legitimidade.
Manifestou o interesse, nos termos do art. 412.º, n.º 5 do CPP, na apreciação dos dois recursos interlocutórios interpostos em tempo e com legitimidade.
O MºPº respondeu tempestivamente e também com legitimidade, aos recursos interlocutórios e ao interposto da decisão final.
Os recursos foram admitidos com o efeito e modo de subida devidos.
3 – Consabidamente, são as conclusões de recurso que delimitam o respectivo âmbito – cfr. art. 412º, nº 1 do CPP e Ac. do STJ de Fixação de Jurisprudência nº 7/95, de 19.10.95, in DR 1ª Série A, de 28.12.95.
3.1 – Recursos interlocutórios:
3.1.1 – O arguido recorreu do despacho de 7/6/2018, que indeferiu a arguição de nulidade do despacho de 25/5/2018, nos termos do qual foi indeferido o pedido de inquirição da testemunha EE. Levou às conclusões do recurso o pedido de reapreciação da nulidade por si invocada, atento o disposto no art. 120.º, n.º 2, al. d), segundo parte e art. 340.º, ambos do CPP.
Respondeu o MºPº pugnando pelo improvimento do recurso em causa, por não merecer censura o despacho recorrido.
3.1.2 – Recorreu ainda do despacho proferido em 10/7/2018, que indeferiu o pedido do arguido de realização de perícia médico-legal às suas faculdades mentais e de avalização psicológica de respectiva personalidade, concluindo, que ao juiz do julgamento compete garantir a defesa dos direitos fundamentais do arguido e do ofendido. Ao ter indeferido o pedido de realização da perícia, o Tribunal fez errada interpretação no art. 340.º, n.º 1, do CPP, violando o disposto nos arts. 124.º, n.º 1, 339.º, n.º 4 e 340.º, n.º 1, todos do mesmo CPP.
O MºPº respondeu sustentando a bondade da decisão recorrida.
3.2 – Recorreu o arguido do Acórdão final condenatório, levando às conclusões as seguintes questões:
a) Errada subsunção jurídica dos factos aos crimes p. e p. pelo art. 171.º do CP, considerando a idade das vítimas.
b) Os crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, n.ºs 1 e 2 do CP, por si praticados na menor CC têm natureza de crime de trato sucessivo, pelo que cometeu o arguido apenas 1 crime e não 2 crimes de abuso sexual de crianças, conforme decisão condenatória.
c) Existe concurso aparente entre o crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 3, als. a) e b), do CP e o crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art. 171.º, nºs 1 e 2, do mesmo código, praticado na menor HH.
d) A medida da pena aplicada é excessiva, desproporcional e desadequada.
e) Pronuncia-se ainda o recorrente sobre o valor das compensações indemnizatórias atribuídas às vítimas, questão cível para a qual não tem o MºPº legitimidade para se pronunciar.
3.3 – O MºPº respondeu, pugnando pela manutenção do julgado, que não merece censura.
4 – Parecer relativo aos recursos interlocutórios interpostos pelo arguido.
4.1 – o arguido arguiu a nulidade do despacho judicial, de 7/6/2018, que indeferiu a arguição de nulidade do despacho de 25/5/2018, que indeferira inquirição como testemunha, de EE.
Invocando o disposto no art. 120.º, n.º 2, al. d), do CPP, o Sr. Juiz titular, por despacho de 7/6/2018, indeferiu a arguição da referida nulidade, fundamentando a sua posição com o facto de os autos já se encontrarem na fase de julgamento e não “(…) considerar-(se) “essenciais para a descoberta da verdade” (…).
O rigor conceitual leva a concluir que não é a omissão de uma qualquer diligência que provoca tal consequência.
Mas a avaliação dessa essencialidade compete ao tribunal, ainda que a requerimento dos sujeitos processuais. Ora, no despacho em causa, perante o que foi alegado nos requerimentos então apresentados, justificou-se a razão porque não se considera a inquirição dessas pessoas como “necessária” ou “indispensável”, como estabelece o artigo 340.° do CPP, pelo que tais inquirições não podem reputar-se como “essenciais”.
O arguido conclui o seu recurso de arguição de nulidade daquele despacho, defendendo:
“15— A prova requerida também jamais seria dilatória, pois não se tratava de uma prova com aptidão para ocasionar um impasse processual.
16 — Assim, não persistem dúvidas de que tal diligência probatória era essencial à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa, em conformidade com o estabelecido nos artigos 340.° do CPP e 32.° da CRP.
17— Com a denegação do requerido, foram nitidamente violadas as garantias de defesa do arguido, bem como o seu direito ao contraditório e a sua presunção de inocência. Realmente, foi vedado ao arguido a possibilidade, concreta, de controverter e contribuir para a apropositada decisão.
18 — A omissão de diligências probatórias essenciais ocorre quando o tribunal não exaure os seus poderes de indagação relativamente ao apuramento da matéria de facto essencial, isto é, quando o tribunal, podendo e devendo investigar certos factos, omite esse dever — a trata-se, pois, de um vício que resulta do incumprimento por parte do tribunal do dever que sobre si impende de produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe figure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
19 — Tal omissão gera uma nulidade sanável, prevista no artigo 120°, n.° 2, alínea d), que pode ser invocada em sede de recurso.
20 — O Tribunal a quo violou, pois, o disposto nos artigos 124°, n.° 1, 339°, n.° 4, e 340°, n.° 1 — verifica-se, assim, a nulidade, tempestivamente arguida, prevista no artigo 120°, n.° 2, alínea d), segunda parte, corporificada na “[...] omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade”.
21 — Assente a verificação da nulidade prefalada, deve ser dado cumprimento ao disposto no artigo 122°, n.os 1-3.”
4.1.1 – Respondeu o MºPº, defendendo a bondade da decisão recorrida.
4.1.2 – Em nosso parecer, não assiste razão ao recorrente, louvando-nos na fundamentação exposta no despacho recorrido.
Determina o art. 340.º, n.º 4, do CPP, que os requerimentos da prova são indeferidos se fôr notório que as provas requeridas já podiam tr sido arroladas com a contestação, excepto se o tribunal entender que são indispensáveis à descoberta da verdade e boa decisão da causa (al. a).
Em anotação ao normativo, o Sr. Juiz Conselheiro Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal Comentado de Henriques Gaspar et alii, escreveu que:
“(…)prova deve ser considerada irrelevante quando é indiferente, sem importância ou interesse para a decisão da causa; supérflua quando e inútil para a decisão da causa; inadequada quando é imprópria, nada permite demostrar ou estabelecer, de nada serve para a decisão da causa; de obtenção impossível ou de obtenção muito duvidosa quando é inalcançável ou, segundo as regras da experiência, improvavelmente alcançável; com finalidade meramente dilatória quando visa protelar ou demorar a audiência.
O Juízo de necessidade ou desnecessidade de produção de prova cabe ao tribunal, ou seja, aos juízes que o compõem, ou seja, ao juiz, aos juízes ou aos juízes e jurados, consoante o tribunal que julga a causa. A decisão sobre a necessidade ou a desnecessidade da prova, sobre a admissibilidade da prova, pertence naturalmente aqueles que têm de apreciar a prova e julgar a causa (…)”.
A decisão de não admissão da inquirição pedida encontra-se bem fundamentada, face ao teor do requerimento para a inquirição da testemunha EE, pelo que não padece de qualquer nulidade e não merece censura (cfr. fls. 1754 e 1759 a 1761).
Pelo exposto, não merece provimento o recurso interlocutório ora sub judice.
4.2 - O segundo recurso interlocutório interposto pelo arguido deve, igualmente, ser julgado improcedente.
Nas respectivas conclusões, defende o arguido a nulidade do despacho judicial proferido em 10/7/2018, que indeferiu o seu pedido de realização de perícia médica-legal às suas faculdades mentais e à avaliação psicológica da sua personalidade.
O MºPº, na sua resposta, pugna pela improcedência do recurso, defendendo a bondade da decisão recorrida.
4.3 - Em acta relativa à sessão de julgamento, de 10/7/2018, requereu o arguido fosse sujeito a perícia médico-legal. Nessa mesma sessão, em decisão ditada para a acta, o Sr. Juiz Presidente indeferiu a requerida diligência, fundamentando tal decisão com o facto de a realização da perícia em causa, prevista no art. 351.º do CPP, só dever ser realizada, quando em audiência se suscitar fundadamente a questão da inimputabilidade do arguido.
A perícia sobre a personalidade mostra-se prevista pelo disposto no art. 160.º do mesmo Código.
Da leitura de ambos os normativos resulta não se verificarem os requisitos que determinam a realização da requerida perícia médico-legal, e foi, exactamente, a não verificação daqueles pressupostos que fundamentou a decisão de indeferimento da perícia pedida.
A decisão não é nula, porque se mostra devida e claramente fundamentada. E é de manter, porque, dispõe o n.º 3, do art. 351.º, do CPP, o tribunal, em casos justificados, pode requisitar a perícia a estabelecimento especializado.
Ora o Tribunal não encontrou razões para, justificadamente, requisitar a perícia em causa.
Como decidiu o Ac. do STJ, de 13/5/1998, p.º 276/98, a perícia sobre o estado psíquico do arguido não é consequência automática do requerimento do interessado, competindo ao julgador ajuizar se a prova pericial em causa se revela justificada ou imprescindível em cada caso concreto. No mesmo sentido, Ac. do STJ, de 20/3/92, pº 043060 (cfr. anotação ao artigo 351.º do CPP Comentado, de Henriques Gaspar et alii).
O recorrente não concretiza, minimamente, a ocorrência, durante as audiências de julgamento, de situações, atitudes ou reacções do arguido que permitissem ou impusessem a dúvida séria sobre a sua imputabilidade ou grau da mesma.
Apenas, genericamente, se refere ao que resultou da audiência e do que consta do relatório social do arguido.
O mesmo ocorre com o pedido de perícia sobre a personalidade prevista no art. 160.º do CPP.
Este normativo prevê a realização de perícia sobre a personalidade e perigosidade do agente. Relativamente à eventual perigosidade do arguido, nunca foi suscitada questão.
Sobre a sua personalidade e reflexo sobre a culpa com que actuou, também o arguido não especificou, nem fundamentou as possíveis dúvidas sobre a anormalidade psicológica de que padeceria.
Recuperando do já citado CPP, de Henriques Gaspar, o Acórdão do STJ, de 7/12/2000, sumariado em anotação ao art. 160.º, transcrevemos o seguinte trecho da respectiva súmula:
“(…) A imputabilidade constitui o primeiro elemento sobre que repousa o juízo de culpa. Só quem tem determinada idade e não sofre de graves perturbações psíquicas possui aquele mínimo de capacidade de autodeterminação que o ordenamento jurídico requer para a responsabilidade jurídico-penal. 2- Depende da existência de dois pressupostos: Um Biológico (anomalia psíquica), não tendo, no entanto, a lei optado por uma enumeração das doenças e estados psíquicos anómalos susceptíveis de fundamentar a inimputabilidade, presente a dificuldade e precaridade de tal enumeração; e um Psicológico, ou normativo (incapacidade para avaliar a ilicitude do facto ou se determinar de harmonia com essa avaliação), envolvendo um conceito de anomalia psíquica ultrapassa os casos de doença mental, abrangendo, v.g., as perturbações de consciência, as oligofrenias, as psicopatias, as neuroses as pulsões, etc. e que se traduz praticamente na destruição da conexão objectiva do sentido do comportamento do agente. 3- A investigação destes pressupostos releva no essencial de um juízo sobre matéria de facto. A existência oi inexistência de dúvidas sobre a integridade mental do agente, bem como a necessidade de submissão daquele a perícia médico-legal e psiquiátrica constitui matéria de facto excluída dos poderes de cognição do STJ. 4- Se consta da decisão recorrida que o arguido agiu sempre livre e deliberadamente, estava ciente da idade da menor e de que as suas condutas não eram permitidas por lei, não pode o STJ criticar a conclusão de que o arguido é imputável. 5- Quando com o recurso interposto de decisão final de Tribunal Colectivo, se intenta que o Tribunal Superior reexamine a decisão impugnada em matéria que se situa no âmbito factual, o seu conhecimento cabe ao Tribunal da Relação e não ao Supremo Tribunal de Justiça
Acórdão de 11 de Fevereiro de 2004 (ITIJ). I – O valor da prova pericial que traduz um juízo técnico ou científico vincula o julgador, que só pode afastar-se da mesma com fundamento numa outra prova de idêntica natureza.
II – A perícia sobre a personalidade e o exame médico-psiquiátrico às faculdades mentais são perícias distintas.
III – No conceito de anomalia psíquica cabem não só as doenças metais, em sentido estrito, como também a perturbação dos estados de consciência, as diversas formas de oligofrenia, de anormalidade grave (psicopatias graves, neuroses, pulsões) que podem enquadrar o substracto bio psicológico. (…)”.
A decisão proferida sobre o requerimento de realização de perícia, pelo contrário, mostra-se bem e criteriosamente fundamentada, pelo que não merece censura.
Acompanhando, ainda, do mesmo douto Acórdão, supra citado:
“(…) A investigação destes pressupostos (relativos a inimputabilidade e às perturbações de personalidade e perigosidade do agente) releva no essencial de um juízo sobre a matéria de facto. A existência ou a inexistência de dúvidas sobre a integridade mental do agente, bem como a necessidade de submissão daquele a perícia médico-legal e psiquiátrica constitui matéria de facto excluída dos poderes de cognição do STJ, “face ao que dispõe o art. 434.º do CPP.”
A este Venerando Tribunal cabe tão só sindicar a existência de nulidade que imponha a revogação da decisão sobre a questão da perícia.
4.4 - Não se surpreende na decisão recorrida quaisquer dos vícios elencados nos nºs 2 e 3, do art. 410.º, do CPP, pelo que deve negar-se provimento ao recurso interlocutório ora sub judice.
5 - Do recurso do Acórdão condenatório
5.1 - Questão prévia
Foi o recorrente condenado, para além do mais, pela prática de dois crimes de abuso sexual de crianças, em trato sucessivo, nas penas de 5 anos e 6 meses de prisão e de 10 meses de prisão, respectivamente.
O MºPº não recorreu deste segmento da decisão.
Porém, é jurisprudência largamente maioritária deste Venerando Tribunal que, no âmbito dos crimes de abuso sexual a lei não prevê, nem admite, o crime de trato sucessivo. O agente comete tantos crimes de abuso sexual quantas as vezes que violou o bem jurídico protegido, a auto determinação e liberdade sexual da vítima.
Do douto Acórdão deste Tribunal, de 12/4/2018, pº 104/17.0JACBR.S1, citamos:
“A tese que a admite, (crime de trato sucessivo) de cunho pragmático, visa dar resposta a situações de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual que assim caracteriza pela sua repetição, temporalmente indefinidas e unificadas por uma mesma resolução criminosa e proximidade temporal e cuja reiteração encerra uma culpa agravada.
A posição que a rejeita, hoje maioritária no STJ, considera que a estrutura típica desses tipos de ilícito não pressupõe tal reiteração, com eles se não pretendendo punir uma actividade, pelo que, no caso de violação plúrima do mesmo tipo legal de crime, a condenação reporta-se á pluralidade de crimes, a punir com referência às regras do concurso, em ordem ao disposto no n.º 1 do art. 30.º do CP. (…)”
“(…) Assim, embora haja uma homogeneidade de condutas, violadoras do mesmo bem jurídico, há uma pluralidade de resoluções criminosas, a corresponder a 20 crimes autónomos de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, cometidos em concurso real (art. 30.º, n.º 1, do CP), que não em “trato sucessivo”.
Procedendo-se à alteração da qualificação jurídico-penal nesse sentido e considerando que a cada um desses crimes corresponde a pena abstracta de 2 a 10 anos de prisão 8art. 165.º, n.ºs 1 e 2, do CP), tendo em conta o binómio culpa do arguido e prevenção, à luz dos arts.ºs 40.º, n.ºs 1 e 2 e 71.º, do CP, haveria que fixar-se por c ada um dos crimes a pena de 2 anos e 6 meses de prisão e, considerando em conjunto os factos e a personalidade do arguido e numa moldura penal abstracta de 2 anos e 6 meses a 25 anos de prisão (máximo legal, dado o somatório das penas parcelares ascender a 50 anos) (art.ºs 77.º, n.ºs 1 e 2, do CP), a pena única do concurso haveria que ser fixada em 7 anos de prisão. (…)”.
Porém, tal como ocorreu no processo cujo Acórdão acabamos de citar, apenas recorreu o arguido, pelo que em obediência ao princípio da proibição da reformatio in pejus, não é admissível a imposição da pena superior aquelas em que o arguido foi condenado, sem prejuízo de, nos termos do art. 424.º, n.º 3, do CPP, poder este Venerando Tribunal, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido, o que, no caso, deve ser decidido.
5.2 - Questões de mérito
5.2.1 - Pretende o recorrente ter o Acórdão ora sub judice procedido erradamente ao enquadramento jurídico dos actos criminosos praticados nas pessoas das menores II e CC, porquanto, tendo as vítimas à data dos factos, cada uma 14 anos de idade, fizeram os 15 anos de idade passados cerca de 2 e 1 mês, respectivamente, sobre a data dos factos. Alega, então, o arguido que a interpretação do disposto no art. 171.º do CP deve ser feita relativamente ao ano civil em que as vítimas fizeram 14 anos de idade e não à data da prática dos factos.
5.2.2 - Não tem razão o recorrente, a sua tese não tem qualquer apoio legal, doutrinal ou jurisprudencial, resultando claramente do preceito e de acordo com as regras da interpretação vertidas no art. 9.º do C.C., que o legislador quer defender, particularmente, com o disposto no art. 171.º do CP as vítimas de abuso sexual de menores de 14 anos. E até à data dos respetivos aniversários, as vítimas eram menores de 14 anos, à data dos factos.
5.3 - Relativamente à pretensão do recorrente de ver convolados os dois crimes de abuso sexual de crianças, no que concerne à menor CC, em um crime de trato sucessivo, não tem o arguido razão pelos argumentos já expendidos na “Questão prévia” colocada supra, devendo improceder o recurso no que se refere à matéria levada às conclusões 20 a 26.
5.4 - Outra das questões que suscitou o arguido tem a ver com a autonomia dos crimes de abuso sexual de criança, p.p. e p.p. pelo art. 171.º, n.º 3, als. c) e b) do CP.
5.4.1 - No caso dos autos, da exibição de filme pornográfico foi uma estratégia do arguido para melhor levar a cabo a prática do crime, defende.
Diz o recorrente que foi um meio utilizado para melhor concretizar o seu objectivo de abusar sexualmente da menor, e, como tal, é absorvido/consumido por estes.
Para o recorrente existe um concurso aparente entre o crime p e p pelo art. 171.º, n.º 3 e o crime previsto no mesmo art. 171.º, n.ºs 1 e 2, que, no caso, absorve o primeiro deles.
Discorda, ainda, o arguido das penas parcelares e única aplicadas que se mostram desproporcionais e excessivas, face à matéria de facto provada.
“Apesar de o grau de ilicitude relativo aos crimes de abuso sexual (cópula) ser significativo” diz o recorrente que a conduta das vítimas foi reprovável, “e as consequências para as menores não foram especialmente graves, aparentando estas estabilizadas emocional e psicologicamente”.
Como atenuativa da culpa invoca as limitações cognitivas e psicológicas de que padece, sendo que os factos criminosos por si cometidos confirmem uma situação episódica na sua vida.
5.4.2 - Este quadro é irrealisticamente pintado.
Da análise da decisão recorrida resulta que o arguido agiu com elevado grau de culpa – dolo directo – e de elevada intensidade a ilicitude dos factos, não se mostrando arrependido, nem colaborante na descoberta da verdade material, não se tendo provado qualquer limitação cognitiva e psicológica de que padeça.
Não assiste razão ao recorrente.
Dando aqui por reproduzida, com a devida vénia, a resposta do MºPº, qua acompanho, permitimo-nos convocar da factualidade fixada os seguintes factos:
Do p.º 98/17.2GAPLT, os nºs 3 a 9, 11, 14, 17, 20, 21, 25 a 41, 43, 47, 48 a 61, 62 a 65, 70 a 72, 84, 86, 87, 88, 89, 90, 91.
Do p.º 61/17.3JAAVR, os seguintes factos 10, 12 a 30.
Da matéria de facto fixada, particularmente dos factos registados sob os números supra citados, resulta que o arguido sabia da idade das vítimas, agiu consciente e voluntariamente, querendo abusar sexualmente das menores, o que conseguiu, com grande intensidade da culpa e muito elevado grau de ilicitude no caso da menor BB.
Consta, ainda, do Acórdão recorrido no segmento da motivação da matéria de facto provada, que “a própria explicação que o arguido deu nessa altura, perante o JIC, para a BB ido ter consigo, bem como o que ele desejava nessa relação, reforçam a ideia de que não se tratava de um namoro ou forte paixão e muito menos de “fazer vida” com a menor, mas sim com ela relacionar-se sexualmente, revelando mesmo tendência para se relacionar com menores dessas idades 8º que foi referido pela testemunha GG, que disse ter-se apercebido de várias situações).”
O tipo de crimes praticado pelo arguido contra as menores vítimas impõe prementes exigências de prevenção geral, consabida que é a repulsa e a indignação que provoca na comunidade, mostrando-se, ainda, muito relevantes as necessidades de prevenção especial, atenta a não interiorização pelo recorrente da dimensão e gravidade jurídico-penal dos crimes que praticou, a ausência de auto-crítica relativamente aos factos, cuja responsabilidade procurou atribuir à actuação das menores, desvalorizando, assim, a gravidade dos mesmos.
6 - Pelo exposto, emite-se parecer no sentido da improcedência total dos recursos interlocutórios e do interposto do Acórdão condenatório ora sub judice.»
10. Foi dado cumprimento ao disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP, nada tendo sido requerido.
Não tendo sido requerida a audiência, o processo prossegue através de julgamento em conferência (arts. 411.º, n.º 5 e 419.º, n.º 3, alínea c), ambos do CPP).
Colhidos os vistos, foram os autos presentes à conferência cumprindo agora apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. É a seguinte a matéria de facto provada, bem como a fundamentação de direito da decisão recorrida:
a) Que o descrito em A)-2) ocorreu precisamente em Junho de 2016;
b) Que o descrito em A)-23) e 24) ocorreu antes de entrarem na dita residência;
c) Que nas circunstâncias descritas em A)-29) e 30) a menor temeu pela sua vida e integridade física, caso decidisse contrariar as intenções do arguido e sair da residência;
d) Que foi por esse motivo que resolveu permanecer na companhia do arguido, abandonando qualquer plano de fuga;
e) Que nas circunstâncias descritas em A)-34) a menor recusou despir-se;
f) Que o pedido referido em A)-38) foi feito por diversas vezes;
g) Que nas circunstâncias descritas em A)-40) o arguido colocou o pénis na vagina da menor (no sentido de que houve penetração) e que a masturbação foi sem ejacular;
h) Que no momento referido em A)-24) o arguido se apoderou do telemóvel da menor e apenas lho restituiu na altura aludida em 44);
i) Que o arguido informou a menor de que o descrito em A)-46) só ocorreria quando ele o permitisse e disse-lhe expressamente que não podia fornecer a terceiros, através daquela rede social, qualquer indicação sobre o sítio e com quem se encontrava, instruções de que a menor ficou ciente e as quais acatou;
j) Que o referido em A)-47) era nos moldes exigidos pelo arguido;
l) Que nas circunstâncias descritas em A)-53) a menor teve receio que o arguido pudesse atentar contra a sua vida e integridade física;
m) Que a ocasião descrita em A)-50) a 55) a foi a única que o arguido permitiu que a ofendida saísse da referida habitação e que, nesse período, esteve sempre fechada e forçada pelo arguido e privada da sua liberdade de movimentação e decisão;
o) Que todas as relações sexuais mencionadas em A)-60) foram contra a vontade da menor;
p) Que o acesso ao Facebook referido em A)-58) ocorreu porque o arguido o permitiu (sem prejuízo do mais que se deu como provado a tal respeito);
q) Que foi o arguido que ordenou à menor o envio da mensagem referida em A)-62) e 63) - (ressalvado o que se disse quanto à localização aí indicada);
r) Que o navegar na internet, referido em A)-67), era à vez e apenas com recurso ao telemóvel da marca Samsung;
t) Que o descrito em A)-69) perturbou a menor;
i) Que o referido em A)-72) ocorreu por três vezes;
j) Que a permanência na habitação por parte da menor, nos termos referidos em A)-84), foi sempre por obrigação do arguido, contra a declarada e expressa vontade da mesma;
l) Que o arguido fez acreditar a menor, de forma astuciosa, que nunca teria com a mesma condutas que não correspondessem à vontade desta;
(Proc. 61/17.3JAAVR)
m) Que a residência referida em B)-2) era em ... e que isso ocorreu até ao mês de Outubro;
n) Que durante os anos que aí viveu e estudou, a menor CC foi vítima de Bullying por parte de colegas de escola, o que lhe causou problemas de auto estima;
o) Que a doença referida em B)-4) foi diagnosticada em Novembro de 2015 e que isso contribuiu para uma maior destabilização do estado psicológico de CC;
p) Que a mudança para a nova residência, em Cacia, foi com o intuito de centralizar os cuidados médicos de OO no IPO de Coimbra e em simultâneo retirar a menor do seio escolar que frequentava;
q) Que entre os meses de Janeiro e Fevereiro de 2017, o arguido era pontualmente albergado na residência da sua avó materna, ..., sita na Rua ..., em ..., em virtude de não ter residência própria;
r) Que o descrito em B)-13) ocorreu após o período de aulas da manhã da menor;
s) Que o descrito em B)-15) ocorreu já depois do almoço, quando o arguido e a menor já se encontravam sozinhos, tendo ele dito que parecia mais velha;
t) Que nas conversas referidas em B)-17) o arguido questionou a menor sobre o seu namorado, referindo insistentemente desejar ter relações sexuais com a menor;
u) Que o referido em B)-24) ocorreu por volta das 00:00 horas;
v) Que o arguido se aproveitou do estado de fragilidade emocional da menor CC;
(Contestação - Proc. 98/17)
x) Que a menor BB sempre permaneceu naquela casa, referida em A)-21), com o arguido por ser essa a sua vontade;
z) Que o arguido se ausentava dessa casa todos os dias para ir buscar pão, ficando ela aí sozinha e daí podendo sair sem que ele se apercebesse (sem prejuízo do que a esse respeito se deu como provado);
aa) Que ela podia usar e levar consigo o telemóvel, com acesso à internet, que sempre teve à sua disposição (idem);
bb) Que o referido em A)-73) ocorreu porque o acesso da menor à internet não era nunca controlado pelo arguido;
cc) Que a menor nunca fugiu e procurou ajuda porque nunca teve esse desígnio ou propósito, pois estava, efectivamente, onde queria estar;
dd) Que a mesma foi questionada pelo arguido e sempre lhe respondeu que estava bem ali;
(Contestação - Proc. 61/17)
ee) Que na ocasião e contexto descritos em B)-17) a 21), o arguido e menor CC trocaram apenas carícias e beijos;
ff) Que a menor tinha no seu perfil do Facebook uma idade bem diferente de 13 anos e sempre disse ao arguido que tinha 15 anos;
gg) Que a menor, atendendo à sua estrutura física, aparentava uma idade bem superior a 13 anos, e que, nessa data, media 1,55 metros e pesava 71 kg, demonstrando um desenvolvimento bastante precoce para a idade que, efectivamente, tinha;
hh) Que o namoro do arguido com a menor CC beneficiava do consentimento e autorização da mãe desta;
ii) Que o arguido nunca sequer representou a possibilidade de a menor ter uma idade inferior a 14 anos;
jj) Que a menor não era, de nenhuma forma, inexperiente no recorte sexual.
- Quanto aos factos descritos em A) supra (autos n.º 98/17.2GAPTL), foram considerados os seguintes elementos de prova:
Desde logo, com especial relevo, as declarações da menor BB, as quais foram prestadas na fase do Inquérito e reproduzidas em audiência (sessões de 11-04, 02-05 e 09-05-2018 - fls. 1705 a 1709, 1727 e 1728, 1737 a 1742),[5] tendo a mesma, de forma sequencial e profundamente detalhada,[6] descrito como tudo se passou, designadamente a altura e circunstâncias em que foi criada a sua conta no Facebook, perfil que usava, forma como conheceu o arguido AA, indicando os perfis que este utilizava, pedindo-lhe amizade, indicando também o seu número de telemóvel, que lhe facultou a pedido, e as conversas que ambos foram mantendo pelas redes sociais e também pelo telemóvel, mencionando o teor das mesmas, incluindo quanto à idade e modo de vida de cada um. A mesma descreveu também como tudo se processou relativamente à ida para “...”, com pedido e insistência dele para o fazer, bem como o que ele lhe foi referindo quanto às suas pretensões, aludindo à persistência e frequência dos contactos, incluindo por outra pessoa (que disse ser “irmão” do arguido), bem como a indicação quanto aos meios de transporte que deveria usar para chegar a ..., aludindo ao dia em que fez tal viagem e momento e local onde se encontrou com o arguido AA (que correspondia ao perfil do Facebook), bem como descreveu o que então fizeram, incluindo a ida para a casa, forma como nela entraram, explicação dada pelo arguido para tal e estado em que a mesma se encontrava. Esclareceu também a forma como ocuparam o tempo esses vários dias (até serem localizados pela polícia), durante o dia e de noite, incluindo as circunstâncias e a razão para ter sido danificado o cartão do seu telemóvel, o uso da internet que depois faziam, mais esclarecendo os contactos íntimos que foram mantendo, incluindo as relações sexuais, especificando mesmo as noites em que elas ocorreram, e também os atos de masturbação do arguido, perante si, e visionamento de filmes pornográficos, por indicação daquele. Mais referiu os objetos que o arguido lhe exibiu ou referiu nesse período, incluindo as algemas e casse-tête, que visionou, explicando também as circunstâncias em que aqueles lhe foram colocadas (que viu como “uma brincadeira”), tudo descrevendo, incluindo o estado em que se encontrava a casa e a forma como se alimentavam, relatando mesmo a ocasião em que foi com o arguido “roubar” o pão, durante a noite, especificando as suas funções nessa tarefa. Igualmente descreveu os contactos que manteve, nesse período, com outras pessoas, incluindo com a sua mãe, cujo teor e indicações do arguido referiu, bem como as circunstâncias e condições em que se encontrava quando apareceu a polícia judiciária, tudo fazendo de uma forma que se afigurou coerente, clara e consistente, em vários aspetos com corroboração noutros meios de prova, não só testemunhal, como documental e pericial. O próprio relatório psicológico realizado à menor pelo INMLCF, com primeira entrevista em 28-03-2017, não aponta qualquer desequilíbrio de personalidade, antes afirmando a sua capacidade cognitiva (fls. 1060 verso a 1063/1068 a 173). Assim, a forma como a menor descreveu tais factos, sem evidenciar qualquer rancor ou sentimento de vingança para com o arguido, além dos pormenores relatados (dizendo não ter segurança quanto a alguns deles a que foi questionada), levou a que tais declarações tenham merecido, no que têm de essencial, a credibilidade do Tribunal Coletivo.
Foram também consideradas, com relevo, as declarações da assistente FF (mãe da menor), a qual referiu a utilização do Facebook por parte da menor BB e a altura e circunstâncias em que a mesma “fugiu”, aludindo à rotina e horários diários de ir para a escola, que mencionou, mas não regressou no final do dia, mais referindo as diligências que logo levaram a cabo, de forma sequencial, designadamente a participação à polícia e também as várias tentativas de contacto para o telemóvel, neste caso sem qualquer sucesso (disse que “estava sem sinal de chamada”). Mais referiu a mensagem que recebeu na segunda-feira no seu telemóvel, de um número desconhecido, reproduzindo o seu teor, que entregou à polícia, tendo esta indicações da localização que indicava o “cartão” do telemóvel dela (para os lados de ...), aludindo ao novo perfil de Facebook que ela teria criado, além da chamada que dela recebeu na quarta-feira, de outro número seu desconhecido, cujo teor referiu (logo sendo “deitada abaixo”), aludindo também às conversas pelo Facebook que a menor teve depois com o pai da menor JJ (o ...), descrevendo as diligências que depois fez com este e o Presidente da Junta de Freguesia nesta região de ..., para localizarem a filha, aludindo às conversas que ela ia trocando pelo Facebook com o primeiro, com vista à sua localização, mas sem sucesso, vindo a ser encontrada na manhã seguinte pela PJ. A mesma descreveu o estado em que encontrou a filha, com aquilo que levou, bem como aludiu à sua idade e imaturidade (disse que “era muito infantil”), bem como ao seu feitio (dizendo ser “reservada” e que “não é desenrascada”), aludindo ainda às consequências que advieram desta situação para a BB.
Igualmente assumiram especial relevo, incluindo para a credibilização dos relatos da menor BB, os depoimentos das testemunhas seguintes:
- --- (Inspetor da PJ), o qual referiu ter sido o responsável pela investigação, aludindo ao recebimento da comunicação do “desaparecimento de menor” e mencionando as diligência levadas a cabo, incluindo ao nível da identificação do utilizador do telemóvel que tinha ligado para uma “colega” da BB, chegando à fala com o “...”, cujo teor da conversa referiu, bem como a última célula ativada pelo telemóvel da menor (...), que indicava ter ido para esta zona (proveniente de ...), bem como referiu a mensagem remetida por ela para a sua mãe, que logo colheram. Referiu também as mudanças de números associados ao IMEI da BB, bem como as diligências no “terreno” até localizarem a casa (tendo mesmo indicações de que alguém andava a “roubar o pão” das portas das casas, onde era deixado de madrugada), descrevendo como tudo se processou aquando da intervenção, incluindo o estado em que estava a BB, bem como os aspeto que apresentava, e onde foi encontrado o arguido, além do estado da habitação e o que foi encontrado e apreendido, com possível relevo para a investigação, incluindo a soqueira, tudo pormenorizando, aludindo ainda aos sinais que existiam quanto o local utilizado para a entrada e saída da habitação. O mesmo esclareceu também os dois perfis que o arguido usava no Facebook, visualizando e confirmando os elementos juntos aos autos, bem como o da BB (fls. 20, fls. 48 do Anexo B1 e fls. 31 do Anexo B), além de aludir ao estado em que foi encontrado o arguido nessa altura (aludindo estar de “consciência perfeita”), confirmando também as diligências realizadas ao longo da investigação, com cujos autos foi confrontado (fls. 47, 94 e 95, 216 e 217, 230 a 232), além das fotografias colhidas (fls. 236 a 238, 102 a 105 e 780 a 794).
- JJ (ex-colega e amiga da BB), a qual referiu o estabelecimento de ensino que na altura ela e a BB frequentavam, sendo na altura amigas próximas, não lhe conhecendo então qualquer relacionamento (“namorados ou paixonetas”), aludindo à utilização de Facebook pela mesma (perfil “HH”, com foto correspondente à realidade), tendo ainda relatado o episódio ocorrido no dia anterior ao desaparecimento, em que aquela lhe pediu o seu telemóvel, dizendo ser para falar com uma amiga, percebendo ela na conversa que era um rapaz (um tal “...”, segundo a BB), pedindo-lhe logo o telemóvel de volta, solicitando-lhe depois a BB para ela apagar esse número, referindo ainda o que se apercebeu do teor de tal conversa e o que a BB lhe pediu a respeito dos horários dos autocarros para ... (para ir ver horários, mas não o fez). Mencionou ainda o conhecimento que teve, no dia seguinte, do seu desaparecimento, tentando ligar para ela (mas “não dava sinal”), tendo acedido ao perfil do Facebook da BB, onde identificou o “...”, aludindo às “conversas” que ali manteve com este (ele dizia que já “estava na ...” e que não sabia da BB, mas dizia conhecê-la). [7] Mencionou ainda o contacto que na quinta-feira seguinte teve com a BB por aquela rede social e o que fez de seguida (deu conhecimento ao seu pai, que depois passou a falar com ela), tendo ela criado outro perfil (“BB”, por onde o seu pai a contactava), mais referindo o estado em que a encontrou quando, depois de aparecer, voltou a estar com ela, aludindo ainda à idade que ela referia, antes de tudo isto acontecer, quando era questionada (“dizia que tinha 13 anos e nunca se apercebeu que se quisesse fazer mais velha”, mas tinha “uma aparência talvez de 15 anos”) e também a que referia a respeito do “...” (disse que este tinha “25 anos”), percebendo que ela queria ir ter com este quando lhe pediu para ver os horários das camionetas para ... (tendo-lhe dito para não ir, mas ela afirmou essa vontade - “não quero saber, quero ir ter com ele” e que se ia “despedir dele”, “nunca dizendo que ia passar uma noite lá”, explicou), tendo confirmado os elementos com que foi confrontada como sendo a “conversa” entre ela própria e o ... (fls. 44 e segs. do Anexo B1).
Ainda que esta testemunha não tenha presenciado os factos imputados ao arguido, o que a mesma referiu vai, em boa parte, ao encontro do relatado pela menor BB, designadamente quanto às circunstâncias em que esta conheceu aquele, idade que indicava perante as outras pessoas, contactos mantidos antes de abandonar a casa dos pais e também os motivos que a levaram a tal, o que reforça e credibiliza o depoimento da menor BB.
- --- (ex-colega e amiga da BB), a qual referiu o ano que frequentavam na escola e a utilização que a BB fez do seu telemóvel (duas chamadas), na véspera do desaparecimento, para falar com uma pessoa (dizendo ser o “...”), não tendo ela aparecido na escola no dia seguinte, mais referindo as tentativas de contacto que fez para falar com ela, pelo Facebook, sem sucesso, dizendo ter esta criado um outro perfil na semana seguinte, tendo os pais (incluindo o seu) tentado localizá-la. Referiu ainda o tipo de relações que antes a BB tinha na escola (nunca lhe conhecer “namorados a sério” e apenas teve uma “paixoneta” por um ou dois rapazes). Também esta testemunha, embora sem ter presenciado os factos imputados ao arguido, permitiu perceber o tipo de relacionamentos que a BB tinha no seu meio, incluindo com o sexo oposto, não denotando experiência relevante a esse nível, o que permite perceber o contexto em que deixou a casa dos pais para ir ter com o arguido AA.
- NN (pai na menor JJ), o qual referiu as circunstâncias em que soube do desaparecimento da BB e o contacto que esta manteve com a sua filha JJ, pelo Facebook, mais referindo os contactos que depois ele manteve com a menor pelo novo perfil (quinta-feira seguinte), referindo o teor das conversas mantidas, dando ela indicação da zona onde estava, mencionando ainda as diligências feitas para a localizarem, deslocando-se à zona de ..., seguindo as indicações que ela foi dando. Aludiu também à idade e aparência que a BB tinha (imagem da “idade normal dela”), confirmando as conversações que trocou com a BB nessa altura em que a tentavam localizar, que isso mesmo comprovam (fls. 265 a 269). Também o referido pela testemunha vai, nessa parte, de encontro ao referido pela Menor BB.
- ... (Presidente da Junta da área de residência da família da menor, sendo vizinhos), o qual referiu conhecer a BB desde o nascimento, aludindo às caraterísticas de personalidade desta e às condições da família, mais referindo as circunstâncias em que soube do desaparecimento da mesma e diligências levadas a cabo para a localizar, incluindo as deslocações à zona onde supostamente ela estaria e onde veio a ser localizada pela polícia. Referiu a idade da menor na altura (13 anos) e a que ela aparentava no comportamento (disse que “das conversas aparentava essa idade, ainda gostava de brincar, mesmo com crianças mais novas”) e também no especto físico (disse que “já estava desenvolvida”, com aspeto de “mulher formada”, “talvez para 15 anos”).
- LL (disse não conhecer nenhum dos envolvidos no processo), a qual referiu ser a proprietária da habitação onde o arguido e menor estiverem e foram encontrados pela polícia, esclarecendo as circunstâncias em que se encontrava (desabitada) e ficou a pertencer-lhe (o seu ex-marido era padrasto do arguido), referindo ainda o estado em que a mesma se encontrava quando ali voltou, confirmando as fotografias juntas aos autos (fls. 1115 a 1123).
Ainda que tenha negado boa parte dos factos ilícitos que lhe são imputados, o arguido AA, nas declarações que prestou em audiência e especialmente nas que antes prestou perante o JIC, na fase da Instrução, a seu pedido (fls. 1582 e 1583), as quais foram reproduzidas em audiência, com observância dos requisitos legais (fls. 1790 e 1810 a 1815), admitiu os contactos estabelecidos com a menor BB, designadamente pelo Facebook, cujos perfis por ambos usados referiu, bem como o esta ter ido encontrar-se consigo a ..., além de referir a permanência, naqueles dias, ambos na habitação desabitada, forma como nela entravam e se encontrava e explicação que deu à menor a tal respeito, admitindo mesmo ter mantido relações sexuais de cópula com a BB (embora dizendo que o fez uma vez só, o que não mereceu credibilidade, atenta a globalidade da prova, particularmente as declarações daquela, que foram convincentes),[8] bem como admitiu ter consciência da ilicitude e punibilidade do tipo de atos de que vem acusado (isto em audiência).
As declarações prestadas em audiência foram em sentido mais “favorável” para si do que aquelas que prestou perante o JIC, razão porque o seu Ilustre Defensor quis evitar que fossem agora reproduzidas, como dão conta os requerimentos formulados e os despachos proferidos a esse respeito na sessão de 20-06-2017 (fls. 1789 a 1793), pois que nestas, além de admitir a idade que a menor aparentava quando com ela se encontrou (13/14 anos),[9] o que vai de encontro à idade real e que a mesma afirmou que lhe referiu (13 anos), explicou também a forma como se alimentavam (que agora negou, dando outra versão) e confessou ser sua a soqueira que ali foi apreendida, o que se revelou consistente, quer pelo local onde se encontrava (numa bolsa própria para usar à cintura, junto dos seus telemóveis - autos de fls. 224 a 226 e 230 a 232), quer porque nada resultou no sentido de que já ali existisse no tempo em que a habitação era ocupada pelo casal proprietário (vide depoimento da testemunha LL).
A própria explicação que o arguido deu, nessa altura, perante o JIC, para a BB ido ter consigo, bem como o que ele desejava nessa relação, reforçam a ideia de que não se tratava de um namoro ou forte paixão e muito menos de “fazer vida” com a menor, mas sim com ela relacionar-se sexualmente, revelando mesmo tendência para se relacionar com menores dessas idades (o que foi referido pela testemunha GG, que disse ter-se apercebido de várias situações).
Além do que resulta de todos esses elementos probatórios, foram ainda considerados, conjugadamente, os elementos, designadamente documentais e periciais, que constam dos autos (alguns deles já acima indicados), concretamente:
- o print do cartão de cidadão e a certidão do assento de nascimento da menor BB, que indicam, além do mais, a sua data de nascimento e filiação (fls. 7 e 1237);
- as impressões dos perfis de Facebook do arguido e da menor, que comprovam o nome aí utilizado e fotografias colocadas, bem como as conversações pelo Messenger (fls. 20, 38, 170, 177, 265 a 269, 588 a 595, 828 a 832 e fls. 31 e 32 do Anexo B);
- o histórico de utilização do telemóvel da menor (Samsung Galaxy G361F), no período dos factos, incluindo da web (fls. 2 a 31 do Anexo B-1);
- as mensagens trocadas pelo Facebook entre o arguido e a testemunha JJ, no dia seguinte ao desaparecimento da BB, que aquela confirmou em audiência (fls. 40 a 45 do Anexo B-1);
- as mensagens trocadas pelo Facebook entre o arguido e a menor BB em Janeiro de 2017, onde esta refere expressamente a sua idade (13 anos) e onde vivia (...), tal como aquele referiu a sua suposta idade (20 anos, ...), tendo aquela fornecido, por essa via, o seu número de telemóvel ao arguido (...), como aí consta, o que vai, no essencial, de encontro ao referido em declarações pela BB (fls. 46 a 49 do Anexo B-1);
- o auto de diligência de 06-03-2017, da PJ, confirmado em audiência, onde foi colhida e registada a SMS recebida pela mãe da menor, que esta referiu no seu depoimento (fls. 47 e 48);
- os elementos fornecidos pela Vodafone quanto à localização celular e mudança de número, como referiu a menor e o próprio arguido admitiu, comprovando os sucessivos números que operaram nesse IMEI (fls. 61 a 66, 76 a 81, 87 a 93, 155, 202 a 211, 773 a 777, 996 a 998 e fls. 5 a 7 do Anexo “Expediente de Comunicações”);
- os elementos fornecidos pela PT e pela Vodafone relativos aos fluxos de chamadas / mensagens realizadas / trocadas entre arguido e a menor, que comprovam a frequência dos contactos, por essa via, nesse período (fls. 1 a 6, 8 a 76 do Anexo A);
- os autos de diligência e de busca e apreensão, datados de 10-03-2017, relativos ao que foi levado a cabo na residência onde foi localizado o arguido e a menor, que descrevem o que então foi verificado e apreendido, incluindo a soqueira, com as várias fotografias colhidas, que comprovam o estado dessa habitação e das áreas por aqueles ocupadas, no geral examinados e confirmados em audiência, bem como os exames periciais aos objectos e artigos apreendidos e também ao local, evidenciando-se nos exames periciais os vestígios recolhidos (fls. 224 a 226, 230 a 232, 235 a 238, 275, 769 e 770, 780 a 797, 1100 a 1105, 1115 a 1123);
- os relatórios da perícia de natureza sexual realizada pelo INMLCF, cujo exame foi realizado em 10-03-2017, o qual evidencia o que foi detectado nos órgãos genitais da menor BB, designadamente lesão himenial (fls. 705 a 710/852 a 855 e 1161 a 1167), o que é compatível com o ter havido penetração, corroborando os relatos da menor, o que o arguido também admitiu (embora este apenas uma só vez).
No que respeita especificamente ao conhecimento da idade real da menor BB por parte do arguido, que este nega (arts. 20. e 21. da sua contestação), tal resultou plenamente comprovado. Efetivamente, ainda que algumas testemunhas tenham feito diferentes referências à idade aparente da menor BB, em face dos seus aspectos físico e comportamental, o próprio arguido referiu, nas suas declarações perante o JIC, acima referidas, que tinha uma aparência de 13/14 anos, resultando das mensagens entre ambos trocadas pelo Facebook, em Janeiro de 2017, que a mesma lhe disse ter 13 anos, como acima se referiu (fls. 46 a 49 do Anexo B-1).
Não se suscitaram, assim, quaisquer dúvidas, concretamente nesta parte, que a BB falou a verdade nas suas declarações, ao contrário do alegado pelo arguido AA.
Ademais, não foi produzida prova, designadamente pelo arguido, que abale a consistência e credibilidade do núcleo essencial de tais elementos probatórios, que vêm sendo enunciados, sendo que as imagens da ida do arguido AA e da menor BB ao “Hipermercado ...” (abaixo aludidas) apenas permitem concluir que, naquele momento, tendo esta acabado de chegar a ... e de conhecer aquele, não manifestava rejeição à sua companhia e até se sentia confortável com o mesmo (fls. 917 e 918, 179 a 183), mas nada comprova relativamente ao que veio a ocorrer depois, designadamente quanto aos vários dias e noites em que permanecerem na referida habitação, o que foi relatado pela menor BB.
Assim, ainda que o arguido AA tenha negado a maior parte dos factos de natureza ilícita que lhe são imputados na acusação/ pronúncia, a verdade é que a conjugação dos mencionados elementos probatórios recolhidos nos autos e produzidos em audiência, apontam, claramente e para além de qualquer dúvida razoável, no sentido da veracidade de todos aqueles factos, nos termos em que se deram como provados, cuja consciência da sua ilicitude e punibilidade aquele até admitiu (como se referiu).
Desde logo, com especial relevo, as declarações da menor CC, as quais foram prestadas na fase do Inquérito, em 22-05-2017, e reproduzidas em audiência (fls. 148 e 149 desses autos e fls. 1754 do processo), tendo a mesma referido a mudança de residência e de escola, descrevendo como tudo se passou e relacionou com o arguido, designadamente o contexto em que estabeleceu contactos pelo Facebook com ele (o “...”), aludindo à altura aproximada em que tal ocorreu e ao teor das conversações, mais referindo a altura em que ambos se encontravam, local e circunstâncias (aí incluindo a presença da mãe), bem como os posteriores encontros, conversas mantidas, incluindo quanto à idade (referindo ela ter 13 anos), bem como as relações sexuais mantidas, que descreveu, indicando os locais, o segundo na habitação dos pais, onde permitiu que o arguido entrasse e pernoitasse, referindo ainda o local onde ela foi buscar um preservativo, que aquele usou, bem como a segunda ida lá a casa, sempre de noite, mas esta vez sem se relacionarem sexualmente, por ela não o querer fazer, tudo isso descrevendo de forma que se afigurou coerente, lógica e credível, levando a que o seu depoimento fosse plenamente valorado pelo Tribunal.
Igualmente foi considerado o depoimento da testemunha GG (que disse conhecer o arguido desde pequeno, tendo sido vizinhos), a qual referiu a relação de proximidade que o arguido (também conhecido por “...”) mantinha consigo e o fazer-se acompanhar frequentemente com raparigas menores (“de 12, 13, 14 anos…”), vindo a referir o contacto que teve com a mãe da menor CC (ainda que num momento inicial não se recordasse) e local onde ocorreu, incluindo a presença da filha menor, aludindo especificamente ao morar em ... e ter “um cancro” (o que condiz com a mãe da menor CC, que entretanto veio mesmo a falecer dessa doença), a qual se queixava do comportamento que o arguido teria tido com a filha (referiu que ela disse “dei-lhe de comer e o pagamento foi violar a menina”), tendo a testemunha feito menção da aparência da menor que acompanhou tal senhora (disse que “era mesmo menina” e que “tinha 13 anos”, mas que “tinha cara e corpo de 11/12 anos”).
Ainda que não tenha presenciado os factos em si, o depoimento desta testemunha permitiu perceber a conduta do arguido relativamente ao sexo oposto, particularmente o relacionamento com jovens dessas idades, bem como a aparência da menor CC, além da consciência que o mesmo tinha da ilicitude desse atos (para o que a testemunha referiu mesmo tê-lo avisado várias vezes).
Embora negando, nas declarações que prestou em audiência, parte dos factos ilícitos que lhe são imputados e aludindo a uma idade da menor bem diferente (referiu que ela disse ter 16 anos pelo Facebook, o que correspondia à aparência dela), o arguido AA, admitiu como a conheceu e os contactos estabelecidos com a menor CC, designadamente pelo Facebook e telemóvel, cujos perfis por ambos usados referiu, aludindo à altura em que tal ocorreu, bem como os encontros que tiveram pessoalmente e locais dos mesmos, o primeiro com a presença da mãe dela, além de admitir uma relação sexual (a ocorrida em casa dela), bem como a consciência da ilicitude criminal desse tipo de atos com menores de 14 anos (relativamente ao que foi questionado).
Além do que resulta de todos esses elementos probatórios, foram ainda considerados, conjugadamente, os elementos, designadamente documentais e periciais, que constam dos autos (alguns deles já acima indicados), concretamente:
- o relatório da perícia de natureza sexual realizada pelo INMLCF, cujo exame foi efectuado em 09-02-2017, o qual evidencia o que foi detectado nos órgãos genitais da menor CC, designadamente lesão de natureza traumática (fls. 9 a 11/17 a 20/60 a 65/88 a 90), compatível com o ter havido cópula completa, corroborando os relatos da menor, o que o arguido também admitiu (embora este apenas uma só vez);
- a certidão do assento de nascimento de menor, que indica, além do mais, a sua data de nascimento e filiação (fls. 43 e 44);
- o print do perfil de Facebook do arguido, onde surge a sua imagem (fls. 68 e 69);
- o auto da diligência de reconhecimento do arguido pela menor (fls. 103 a 105).
Também quanto à menor CC, julgamos ter ficado claro que a mesma referiu a sua idade real ao arguido, pois que o disse clara e convincentemente nas suas declarações, além de que tinha um aspeto físico que até indicava ser mais nova, como foi referido pela testemunha que com ela teve contacto nessa altura (cfr. depoimento da testemunha GG). Ademais, o que é natural é uma pessoa dizer a sua idade real e nada evidencia que assim não tenha sido neste caso, nem o arguido apresenta argumentos minimamente consistente para comprovar o que alega a tal respeito (arts. 5. a 9. da contestação).
Por tudo o exposto, e embora o arguido AA tenha negado parte dos factos de natureza ilícita que lhe são imputados na acusação, a verdade é que da conjugação dos mencionados elementos probatórios recolhidos nos autos e produzidos em audiência, resulta, claramente e para além de qualquer dúvida razoável, a ocorrência de tais factos, nos termos em que se deram como provados, cuja consciência da sua ilicitude e punibilidade ele mesmo admitiu (como já se referiu).
Desde logo, as imagens do sistema de videovigilância do “Hipermercado ...”, que constam de suporte informático junto aos autos e foram visualizadas em audiência, na sessão de 11-06-2018 (fls. 917 e 918, 179 a 183),[10] altura em que foi lido parte do depoimento prestado pela menor BB na PJ, na fase de Inquérito, com observâncias dos formalismos legais (fls. 276 a 282 e 1780), tendo a mesma aí referido expressamente tal deslocação a esse Hipermercado com o arguido, comprovando aquelas imagens e tais factos.
Os demais factos, além dos dados relativos à identificação e da própria estatura do arguido, resultam também das declarações da menor BB, nessa parte compatíveis com o declarado pelo arguido AA.
Crime de rapto agravado
Dispõe o artigo 161.ºdo Código Penal o seguinte (no que agora releva):
“1 - Quem, por meio de violência, ameaça ou astúcia, raptar outra pessoa com a intenção de:
(…)
b) Cometer crime contra a liberdade e autodeterminação sexual da vítima;
(…)
é punido com pena de prisão de dois a oito anos.
2 - No caso de se verificarem as situações previstas:
a) No n.º 2 do artigo 158.º, o agente é punido com pena de prisão de três a quinze anos.
(…).
Por sua vez, o artigo 158.º do mesmo Código, relativo ao sequestro, dispõe (no que ora releva):
“1 - Quem detiver, prender, mantiver presa ou detida outra pessoa ou de qualquer forma a privar da liberdade é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2 - O agente é punido com pena de prisão de dois a dez anos se a privação da liberdade:
a) Durar por mais de dois dias;
(…)
e) For praticada contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez;
(…).
O bem jurídico tutelado pelo crime de rapto, tal como no de sequestro, é a “liberdade de locomoção”, ou seja, a liberdade ambulatória da vítima, sendo que a ação naquele, ao contrário de neste, pressupõe a “transferência da vítima de um lugar para outro diferente”. Outro fator distintivo entre os dois ilícitos está nos meios usados pelo agente, sendo que no rapto este atua com “violência, ameaça ou astúcia” e no sequestro não é tipificada a ação, atuando o mesmo “de qualquer forma a privar da liberdade”.
Em todo o caso, o crime de rapto exige dolo relativamente à ação e ao resultado, pois que o agente tem em vista certa finalidade, entre elas a de atentar contra a liberdade sexual da pessoa raptada - “cometer crime contra a liberdade e autodeterminação sexual da vítima”. Mas o crime de rapto (consumado) não exige a consumação do “crime-fim”, ou seja, não exige a realização da intenção do raptor, bastando-se com a intenção de o praticar. Mas se o raptor concretiza a sua intenção, então estamos perante concurso efetivo entre ambos os crimes - o de rapto e o “crime-fim” (cfr. Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, Tomo I, págs. 428 a 430).
A ação de raptar consiste, assim, na subtração e transferência de uma pessoa de um local para outro, sem o seu consentimento ou contra a sua vontade, ficando a vítima debaixo do domínio do agente. Já a ação de sequestrar consiste na retenção, não consentida ou contrariada, de uma pessoa num dado lugar ou espaço.
Dispõe o artigo 249.ºdo Código Penal o seguinte (no que agora releva):
“1 - Quem:
a) Subtrair menor;
(…)
é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.
(…).
O objeto da ação neste tipo de ilícito é sempre um menor, ou seja, “quem não tiver ainda completado 18 anos de idade” (art. 122.º do C. Civil). E os menores estão, como é sabido, sujeitos ao poder paternal até à maioridade ou emancipação, competindo aos pais, além do mais, a sua guarda e também velar pela sua segurança (arts. 1877.º e 1878.º do mesmo Código).
O bem jurídico protegido por esta norma incriminadora é o “poder paternal ou de tutela sobre o menor”, consistindo a subtração no “afastamento do menor da esfera de controlo fáctico do seu encarregado, impedindo desse modo o encarregado do menor de exercer os seus poderes sobre o menor” (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2.ª Edição, UCE, pág. 738).
Assim, aquela norma visa a “proteção dos poderes que cabem a quem esteja encarregado de menor”, embora a razão dessa proteção “esteja pensada para o bem-estar do menor (que, de resto, é a justificação para a existência desses poderes-deveres) e não para a proteção dos titulares dos poderes” (cfr. J. M. Damião da Cunha, Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, Tomo II, pág. 614).
Nessa medida, a subtração elimina ou afeta gravemente o exercício do poder paternal pelos seus legítimos detentores, como sejam os pais, relativamente ao menor, ofendendo aquele bem jurídico.
No caso do rapto, a ação típica consiste em raptar outra pessoa. E nesta situação, ao que resulta da acusação, o meio a considerar é a astúcia (pois que não estamos perante o uso de “violência” ou “ameaça”). O objetivo seria o cometer crime contra a liberdade e autodeterminação sexual.
O raptar, como já se disse, consiste em levar ou transportar uma pessoa de um local para outro, naturalmente contra a sua vontade, assim violando o aludido bem jurídico - a “liberdade de locomoção”. Essa ação pode ser levada a cabo pelo próprio agente (autoria imediata) ou por intermédio de outrem (autoria mediata), o que integra, num e noutro caso, a noção de autor (art. 26.º do C. Penal).
A questão que se coloca é a de saber se poderá haver rapto (ação de raptar) sem que o mesmo seja executado pelo agente (por si mesmo ou por intermédio outrem), ou seja, sem que este execute uma qualquer concreta ação no “terreno”, designadamente transportando ou levando a vítima de um local para outro.
É que isso não aconteceu neste caso, pois que a BB se deslocou, por si só, desde ... até ..., onde estava e a esperou o arguido (factos 17) a 22)).
Efetivamente, este não levou a cabo qualquer ato de execução material, para que essa deslocação tivesse lugar, pois que não a acompanhou, nem facultou meio de transporte, nem encarregou outrem de o fazer. Apenas a aliciou e convenceu para se ir encontrar consigo e lhe indicou os meios de transporte a tomar (factos 8), 9), 11), 17) e 19)).
Independentemente do meio usado, a referida astúcia (que a seguir se referirá), a verdade é que o arguido não executou o rapto, no sentido de ação material de levar a menor de ... para .... E o facto de a BB ser menor de 14 anos, e necessariamente mais inexperiente e influenciável que uma pessoa normal adulta, não releva para o cometimento do crime (não pode dizer-se que se trate de “pessoa particularmente indefesa, em razão de idade”), pois que essa condição não faz parte dos elementos do tipo (pelo que isso em nada pode ser considerado para a sua verificação ou não).
Por outro lado, mesmo que o agente use de astúcia para levar a pessoa a deslocar-se de um lugar para outro, tal não dispensa, a nosso ver, essa ação / presença do mesmo na execução dessa deslocação, por si ou por intermédio de outrem. A astúcia é apenas o meio (além da violência ou ameaça) utilizado para levar a vítima a deslocar-se, a qual o aceita fazer num pressuposto, embora errado, em que acredita, o qual foi “engendrado” pelo agente para obter a sua anuência (sem resistir a tal deslocação ou a contrariar).
Neste caso o arguido, nos contactos que teve com a menor BB, designadamente telefónicos, disse-lhe que “gostava dela, que queria ser seu namorado e construir uma família com ela” (facto 7)), além de lhe ter transmitido, por intermédio de outrem, que a “amava” (facto 10)). Tal representa, sem dúvida, uma conduta astuciosa.
Mas não resultou provado, nem sequer foi dito pela menor BB, que ela se deslocou para ... por acreditar nessas declarações de amor e nas perspetivas de namoro e vida em comum, constituindo ambos família, que o arguido lhe transmitiu (ela própria disse que a sua intenção era ir conhecê-lo como amigo e que iria lá passar o dia e eventualmente uma noite, regressando, nesse caso, no dia seguinte - facto 11)).
Certamente que a BB, na sua idade de 13 anos (ia fazer 14 anos cerca de dois meses depois), não sendo já totalmente inexperiente, também viu essa viagem como uma aventura, para conhecer um amigo, que eventualmente poderia tornar-se seu namorado. Isto é a normalidade das coisas nos jovens destas idades. Ainda que pudesse estar convencida que o arguido, o qual havia conhecido pelo Facebook, tinha boas intenções relativamente a si, não pode dizer-se que foram aquelas declarações de “amor platónico” do mesmo (gostar dela, querer namorar com ela, constituir uma família com ela e que a amava), apesar de não serem essas as suas intenções, que foram determinantes para tal deslocação da menor (nem ela o referiu).
Ou seja, a deslocação da menor BB desde ... até ..., além de não ter tido uma ação de execução material (no “terreno”) por parte do arguido, também não foi consequência da conduta astuciosa deste, pois que não foi pelas ditas afirmações do mesmo que tal deslocação ocorreu (a menor não disse que foi isso que a determinou a viajar e nada evidenciou que ela tenha ficado convencida com essas “bonitas” declarações de amor do arguido).
Consideramos, pois, que não estão verificados os elementos típicos do crime de rapto imputado ao arguido, o que implica a sua absolvição do mesmo.
E o mesmo se diga do crime de sequestro, ainda que este se impute em concurso aparente com aquele (relação de consunção). Com efeito, embora o meio utilizado para a privação da liberdade no sequestro não tenha que ser absolutamente impeditivo da liberdade ambulatória, designadamente que a vítima tenha que estar permanentemente “acorrentada”, não pode deixar de verificar-se uma qualquer forma de privação da liberdade contra a vontade daquela, de forma séria e eficaz (seja por prisão, detenção, manter presa ou detida).
Neste caso, tal como para o rapto, a condição de menor de 14 anos também não é relevante para o preenchimento dos elementos do tipo. A BB deslocou-se para ... e aí se encontrou, pela primeira vez, pessoalmente com o arguido, tendo ambos, num primeiro momento, ido fazer compras ao “Hipermercado ...”, por onde andaram, em aparente harmonia e convívio, cerca de 24 minutos (facto C)-1)).
Não se descortina, nesse período, qualquer insatisfação e contrariedade da parte da menor relativamente à pessoa do arguido, sendo que, depois de irem para a habitação, onde se introduziram pela janela da casa de banho (factos 21), 22) e 25) a 27)), outras ocasiões houve em que a mesma ficou sozinha e objetivamente poderia fugir (factos C)-2) e 3)).
É verdade que não o fez e porventura terá ponderado não ser essa a melhor opção, atento o contexto em que se encontrava, mas também é verdade que não houve da parte do arguido qualquer reação de violência física ou ameaça que a levasse e pensar seriamente que corria perigo de vida ou de agressões físicas se tentasse uma fuga, ressalvada a alusão do mesmo à arma que teria escondida debaixo da cama, além da exibição do casse-tête e das algemas, as quais até experimentou a título de brincadeira (factos 29), 30) e 32)).
A dada altura a menor manifestou efetivamente ao arguido que pretendia regressar a casa e pediu-lhe que arranjasse forma de a levar, o que o mesmo não fez (factos 43) e 57)). Porém, ressalvado o facto de se tratar de uma menor de 14 anos (mas tal não releva para o crime em si) e de, por si só, não ter meios de fazer tal viagem (designadamente não tinha já dinheiro), o ato de sequestrar termina com a libertação da vítima, não se impondo ao agente outros deveres para fazer cessar a conduta ilícita (designadamente levar a vítima ao local de onde havia partido).
Ou seja, da globalidade dos factos não resulta suficientemente clarificado que a BB tenha estado efetivamente impossibilitada de se locomover, designadamente de abandonar a residência ou outro local onde esteve e por onde passou nesse período e, muito menos, o que é também relevante, que estejam definidos os períodos em que esteve satisfeita na companhia daquele, nos locais onde passaram e estiveram, e aqueles períodos em que esteve contrariada e quis ir embora para casa dos seus pais (como lhe manifestou).
Em face disso e sem prejuízo do que se dirá a respeito do terceiro dos aludidos ilícitos (subtração de menor), impõem-se igualmente concluir pela não verificação dos elementos típicos do crime de sequestro (imputado em concurso aparente).
Para o que aqui releva, subtrair significa retirar, afastar, fazer escapar. E, como dele resulta, o tipo incriminador não estabelece quaisquer exigências quanto à modalidade da ação ou ao meio empregue, bastando-se com o afastamento (subtração) do menor de junto dos progenitores, a quem a lei reconhece o poder paternal. E nestas situações, nem sequer é relevante que a subtração / afastamento tenha ocorrido por vontade do(a) menor.
Com efeito, se é verdade que o consentimento constitui uma causa de exclusão da ilicitude, para ser eficaz pressupõe sempre uma “vontade séria, livre e esclarecida do titular do interesse juridicamente protegido” (n.º 2 do art. 38.º do C. Penal). Em todo o caso, em termos gerais, a lei só o considera eficaz se prestado por quem tiver mais de 16 anos e “possuir o discernimento necessário para avaliar o seu sentido e alcance no momento em que o presta” (n.º 3, do mesmo preceito).
No caso presente, independentemente de o arguido não ter ido retirar a menor BB de junto dos seus pais, não se tendo sequer deslocado a ..., o facto é que a aliciou a ir ter consigo a ... e aí a recebeu, mantendo-a junto de si e, por isso, afastada / subtraída da companhia dos seus progenitores, entre os dias 03 e 10-03-2017, período em que se mantiveram, praticamente de forma contínua, no interior da dita residência, agindo animado da vontade de, abusando da inexperiência daquela, a subtrair e não a restituir àqueles, assim ficando fora do domínio e controlo dos progenitores, que sabia não lho permitirem, além de saber que tal conduta era proibida e punida por lei penal (factos 8) a 79), 87) e 93)).
Considera-se, assim, estarem preenchidos os elementos objetivos e subjetivos desse ilícito, pelo que o arguido AA incorreu na prática do crime de subtração de menor, previsto e punido pelo artigo 249.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal
Dispõe o artigo 171.ºdo Código Penal o seguinte (no que agora releva):
“1 - Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.
2 - Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
3 - Quem:
a) Importunar menor de 14 anos, praticando ato previsto no artigo 170.º;
b) Atuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa, escrito, espectáculo ou objecto pornográfico;
(…)
é punido com pena de prisão até três anos.
(…).
Por sua vez, o aludido artigo 170.º dispõe o seguinte:
“Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”
O bem jurídico tutelado por aquele ilícito (art. 171.º) é essencialmente a proteção dos menores relativamente a práticas sexuais com eles levadas e cabo e não tanto os interesses da comunidade. Pune-se o agente pelo aproveitamento que é feito dos menores para atos sexuais ou comportamentos a tal direcionados, abusando da sua inexperiência e imaturidade, inerentes a estas idades, o que os impede, em princípio, de avaliarem tais condutas e as suas consequências. Na verdade, pretende-se proteger a autodeterminação sexual não em face das “condutas que representem a extorsão de contactos sexuais por forma coativa ou análoga, mas face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coação, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade. A lei presume que a prática de atos sexuais com menor, em menor ou por menor de certa idade prejudica o desenvolvimento global do próprio menor.” A vítima é necessariamente uma criança ou um jovem menor de 14 anos, de qualquer sexo, sendo tipicamente indiferente que a mesma “seja já ou não sexualmente iniciada, que possua ou não capacidade para entender o ato sexual que nela, com ela ou perante ela se pratica ou se leva a praticar, que lhe caiba uma intervenção ativa (mesmo a iniciativa!) ou puramente passiva no processo” (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, págs. 541 e 543).
A expressão “ato sexual de relevo”, não sendo concretizada no tipo, representa um conceito indeterminado, englobando as situações de atos graves e outros de menor gravidade (mas não irrelevantes), sendo que todos eles atentam contra a autodeterminação sexual do(a) ofendido(a), bem jurídico protegido pela norma incriminadora, no caso do menor a liberdade de crescer na relativa inocência até se atingir a idade da razão, para então e aí se poder exercer plenamente a liberdade de se relacionar sexualmente ou não e com quem entender (cfr. Ac. do STJ de 12-07-2005, Processo n.º 05P2442, in www.dgsi.pt).
Mas os comportamentos que poderão preencher esse conceito de “ato sexual de relevo” são também delimitados pelas condutas típicas expressamente previstas na norma, pois que o seu n.º 2 enuncia os concretos atos por ela punidos (designadamente cópula, coito oral e coito anal) e o n.º 3 descrever comportamentos ou atividades específicas, ainda de cariz sexual.
Assim, aquele tipo incriminador (art. 171.º) prevê quatro tipos de crime distintos: o crime de prática de ato sexual de relevo (n.º 1); o crime de cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos (n.º 2); o crime de importunação (n.º 3, al. a)); e o crime de atuação por meio de conversa, escrito, espetáculo ou objeto pornográficos (n.º 3, al. b)).
No que ao “ato sexual de relevo” diz respeito, este é “a ação de conotação sexual de uma certa gravidade objetiva realizada na vítima”, podendo esta assumir uma posição sexual ativa ou passiva. Tal ato sexual de relevo inclui, designadamente, a cópula vulvar, o toque nos órgãos genitais, o beijo na boca ou o ato de esfregar o pénis na vulva de uma menor (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2.ª Edição atualizada, Universidade Católica Editora, págs. 504 e 505, notas 7. e 8., onde faz alusão a decisões dos Tribunais Superiores).
No que se refere ao crime tentado, dispõe o artigo 22.º do Código Penal o seguinte (no que agora releva):
“1 - Há tentativa quando o agente praticar atos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se.
2 - São atos de execução:
a) Os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime;
b) Os que forem idóneos a produzir o resultado típico;
c) Os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam atos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.”
No crime de abuso sexual de criança a tentativa é punível, pois que ao crime consumado corresponde “pena superior a três anos de prisão”, sendo considerada a “pena aplicada ao crime consumado especialmente atenuada” (art. 23.º, n.ºs 1 e 2, do C. Penal).
Consideramos, contudo, que não assiste qualquer razão ao mesmo em tal argumentação. Com efeito, a lei penal adota conceitos rigorosos na definição dos tipos criminais, sendo a expressão “menor de 14 anos” necessariamente reportada a pessoa que, à data dos factos ilícitos, ainda não completou 14 anos de idade, pois que a lei aplicável, em toda a sua amplitude descritiva, é aquela que vigora no momento da prática dos factos, sendo esse momento aquele em que o agente atuou (arts. 2.º, n.º 1, e 3.º do C. Penal).
E a lei penal afasta qualquer possibilidade de recurso à analogia (art. 1.º, n.º 3, do mesmo Código).
Assim, não pode importar-se para o direito penal, atenta a sua função e regime, o que vigora, nomeadamente, para o acesso das crianças à escolaridade obrigatória (como também, por exemplo, para o ingresso no serviço miliar), ou seja, como sustenta o arguido, a consideração do “ano civil” em que essa idade (14 anos) se completa, “desde que haja, por parte do adolescente, maturidade bastante” (cfr. arts. 26. e 19. das suas contestações).
Efetivamente, não só o texto da lei não consente tal interpretação, mas sim aquela que sustentámos, como deixaria o preenchimento do tipo dependente da avaliação de tal “maturidade”.
Já para efeitos escolares compreende-se esse regime, pois que não poderia iniciar-se um “ano escolar” para cada grupo de crianças que fizesse os seis anos a cada mês do calendário e muito menos no dia em que a completassem os aludidos seis anos. O sentido das normas que regem a escolaridade obrigatória é, pois, diferente das normas penais, sendo que não é garantido que uma criança ingresse na escola com apenas cinco anos de idade (ou seja, as crianças que fazem 6 anos depois da data do início do ano letivo e até 31 de Dezembro), pois que tal depende a disponibilidade do estabelecimento de ensino que iria frequentar, em termos de vagas, estando previstas prioridades na matrícula no ensino básico, conforme a legislação e procedimentos aplicáveis (cfr. Decreto-Lei n.º 176/2012, de 02-08,[11] e o aludido Despacho n.º 5048-B/2013, de 12-04, concretamente o seu artigo 10.º, parágrafos 8.º e 9.º).
Considera-se, assim, que a idade das menores, à data ainda com 13 anos (a BB completou 14 e 09-05-2017 e a CC em 01-03-2017), preenche esse elemento objetivo constante do artigo 171.º do Código Penal, não sendo de aplicar o normativo do artigo 173.º do mesmo Código, como sustenta o arguido (embora pugne pelo não preenchimento de todos os seus elementos típicos), sem prejuízo de a circunstância de estarem próximo da idade a partir da qual essa norma deixa de tutelar as condutas em causa ser relevante para efeitos de graduação da pena a aplicar, como fator atenuante geral (art. 71.º, n.º 2, do C. Penal).
Por último, refira-se que nada resultou no sentido de que o arguido incorreu em erro relativamente à idade da menor CC, como alega na sua contestação (arts. 29. a 56. dessa peça processual), mas que não resultou provado (cfr. factos não provados supra), tendo antes resultado provado o constante da acusação a esse respeito, não só pelo que a mesma referiu, mas até pela aparência da menor CC (vide depoimento da testemunha GG), razão essa porque não há exclusão de dolo ou culpa, conforme estabelecem os invocados artigos 16.º e 17.º do Código Penal.
(Transcrição relativa à menor BB, e ao crime de abuso sexual de crianças do art. 171.º, n.º 1 e 2 do CP, feita mais à frente no sector da apreciação da segunda questão do recurso—questão do trato sucessivo).
Já relativamente ao ilícito tentado, consideramos que os factos provados não permitem a sua verificação. Com efeito, tratou-se de mera proposta para relacionamento sexual, como havia ocorrido no mesmo local dias antes, no contexto de uma relação de “namoro”, o qual a menor CC recusou (factos C)-28) e 29)), não tendo o arguido persistido nesse propósito, nem praticado qualquer ato de onde fosse de concluir que pretendeu, efetivamente, levar por diante as suas intenções, para que pudesse integrar a tentativa (art. 22.º, n.º 2, alínea c), do C. Penal).
Na acusação nada se materializa a esse respeito e também nada se refere a respeito do “elemento subjetivo” desse ilícito, designadamente quanto às razões da sua não consumação (além da recusa da menor, logo acatada pelo arguido), sendo que o mesmo é imputado com referência ao n.º 1 do artigo 171.º (“ato sexual de relevo”) e não com referência ao n.º 2 (“cópula”).
Nessa medida, tal como referido na contestação, considera-se não estarem verificados os elementos típicos desse ilícito, pelo que se absolve o arguido AA do crime de abuso sexual de crianças, na forma tentada, que lhes é imputado por referência aos artigos 22.º, n.ºs 1 e 2, alínea c), 23.º, 30.º, n.ºs 1 e 3, e 171.º, n.º 1, do Código Penal.
Dispõe o artigo 86.º do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, doravante RJAM (aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23-02, com as alterações introduzidas pelas Leis n.ºs 59/2007, de 04-09, 17/2009, de 06-05, 26/2010, de 30-08, 12/2011, de 27-04, que o republicou), e 50/2013, de 24-07, o seguinte (no que agora releva):
“1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo:
(…)
d) Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão eléctrico, armas eléctricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, silenciadores, partes essenciais da arma de fogo, artigos de pirotecnia, excepto os fogos-de-artifício da categoria 1, bem como munições de armas de fogo independentemente do tipo de projéctil utilizado, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias.
(…).”
Trata-se de típico crime de perigo comum, dado que não é elemento do tipo incriminador a verificação de quaisquer danos em consequência dessas condutas, sancionando-se apenas tais actos devido à perigosidade que as armas representam para a comunidade, no que respeita à possibilidade de ocorrência de crimes, designadamente contra as pessoas, estando subjacente à previsão e punibilidade a “susceptibilidade de ocorrência de um dano não controlável, difuso, com potência expansiva, apto a causar alarme social, podendo atingir vários bens jurídicos e várias vítimas.” Ou seja, embora os comportamentos incriminados neste preceito não lesem, de forma imediata, qualquer bem jurídico pessoal, os mesmos têm subjacente a probabilidade de tal vir a ocorrer, pelo que estamos perante crimes de perigo abstracto, “porquanto a realização do tipo não pressupõe a lesão dos bens jurídicos tutelados pela norma, bastando-se com a sua mera colocação em perigo. A produção ou verificação do perigo não é elemento do tipo, mas tão-só fundamento da proibição, sendo a conduta do agente punida independentemente de ter criado ou não um perigo efetivo para os bens jurídicos tutelados.” Os bens jurídicos protegidos são, essencialmente, “a ordem, a segurança e a tranquilidade públicas, mas também a vida, a integridade física e bens patrimoniais dos membros da comunidade, face aos riscos sérios que derivam da livre (ou seja, sem controlo) circulação e detenção, porte e uso de armas, munições, engenhos, instrumentos, mecanismos ou substâncias objetivamente perigosos…”. [cfr. Artur Vargues, in Comentário das Leis Penais Extravagantes, Vol. I, da autoria de Paulo Pinto de Albuquerque e José Branco (Org.), Universidade Católica Editora, págs. 239, 240 e 246].
Tal norma exige o dolo, ainda que genérico, traduzido na consciência e vontade da actuar em alguma dessas formas típicas, bastando, contudo, o dolo eventual (art. 14.º do C. Penal).
E é considerado “«boxer» [ou soqueira] o instrumento metálico ou de outro material duro destinado a ser empunhado e a ampliar o efeito resultante de uma agressão.” (art. 2.º, n.º 1, alínea ap)).
No que respeita à “detenção de arma” a lei define-a como “o facto de a ter em seu poder ou disponível para uso imediato pelo seu detentor” (art. 2.º, n.º 5, alínea g)).
No caso presente está em causa a soqueira que o arguido detinha na sua posse nesse dia 10-03-2017, aquando da busca, cujas caraterísticas conhecia, não tendo qualquer justificação para tal, que não fosse poder usar tal objeto como arma de agressão, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal (factos 80) e 92)).
Efetivamente, trata-se de instrumento sem outra aplicação definida, que não seja o seu uso como arma de agressão. O mesmo era detido fora das condições legais, pois que aquele não possuía autorização para o efeito, tratando-se de objeto classificado como arma da classe A (art. 3.º, n.º 2, alínea e), do RJAM).
E o mesmo tem enquadramento expresso na alínea d) do n.º 1 do artigo 86.º do RJAM.
Pelo exposto, encontrando-se verificados os elementos objetivos e subjetivos desse ilícito, o arguido AA incorreu na prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d), do RJAM.
Dispõe o primeiro normativo que “É condenado na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período entre cinco e vinte anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima seja menor.”
E dispõe o segundo que “É condenado na proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período entre cinco e vinte anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima seja menor.”
No caso trata-se de vítimas menores de 14 anos e o arguido praticou e vai ser punido por crimes previstos e punidos pelo artigo 171.º do Código Penal. Mostram-se, pois, verificados os pressupostos legais para serem aplicadas essas penas acessórias ao arguido AA.
O crime de subtração de menor é punido com pena de prisão entre 1 mês e 2 anos ou com pena de multa entre 10 e 240 dias (arts. 41.º, n.º 1, 47.º, n.º 1, e 249.º, n.º 1, do C. Penal).
O crime de abuso sexual de crianças (cópula) é punido com pena de prisão entre 3 e 10 anos (art. 171.º, n.º 2, do C. Penal).
O crime de abuso sexual de crianças (importunação com atos exibicionistas ou espetáculo pornográfico) é punido com pena de prisão entre 1 mês e 3 anos (art. 171.º, n.º 3, do C. Penal).
O crime de detenção de arma proibida é punido com pena de prisão entre 1 mês e 4 anos ou com pena de multa entre 10 e 480 dias (arts. 41.º, n.º 1, 47.º, n.º 1, do C. Penal e 86.º, n.º 1, alínea d), do RJAM, do C. Penal).
As penas acessórias variam entre 5 e 20 anos (arts. 69.º-B, n.º 2, e 69.º-C, n.º 2, do C. Penal).
Muito embora o primeiro e últimos dos crimes sejam punidos com prisão ou multa, atenta a gravidade das condutas no seu todo e especialmente o passado criminal do arguido, considera-se que somente a pena detentiva salvaguarda as finalidades da punição, pelo que se opta pela sua aplicação (art. 70.º do C. Penal).
Na determinação das penas concretas, dentro dos mencionados limites, há que ter em consideração a culpa do agente e as exigências de prevenção de futuros crimes, devendo ainda atender-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de ilícito, deponham a favor e contra o arguido (art. 71.º do mesmo Código).
As directrizes a observar são, por um lado, a culpa do agente, que impõe uma retribuição justa e, por outro, as exigências decorrentes do fim preventivo especial, ligadas à reinserção social do delinquente e as exigências decorrentes do fim preventivo geral, ligadas à contenção da criminalidade e à defesa da sociedade (cfr. Acs. do STJ de 24-02-93, BMJ 424.º, pág. 405, e da RC de 17-01-96, CJ I, pág. 38).
Assim,
a) Quanto ao grau de ilicitude dos factos, modo de execução, gravidade das suas consequências e grau de violação dos deveres impostos ao arguido (al. a) do n.º 2 do art. 71.º):
O grau de ilicitude é elevado quanto ao crime de subtração da menor, pois que perdurou por oito dias, permanecendo a BB em más condições de higiene e alimentares, sem qualquer conhecimento da localização da mesma pelos seus pais. Relativamente aos crimes de abuso sexual (cópula), é igualmente significativo quanto à menor BB, pois que, tratando-se de um só crime, foram várias as relações sexuais mantidas no aludido período, uma delas tentada, com persistência dessa conduta por parte do arguido, sendo que, apesar de tudo, a menor tinha uma idade já muito próxima do limite tutelado pela norma incriminadora, bastando apenas dois meses para a atingir (14 anos), sendo que relativamente aos demais ilícitos de que esta foi vítima (importunação com atos exibicionistas e espetáculo pornográfico) essa idade próxima do limiar protetor da norma atenua também a sua gravidade, sendo certo que se tratou de mais que uma conduta por parte do arguido. Relativamente à menor CC, a ilicitude é mais reduzida, pois que os atos são autonomizados, ainda que na primeira situação ligeiramente mais intensa, pois que foi levada a cabo em zona pública, já a segunda ocorreu na habitação, onde a própria menor acolheu o arguido de noite, sem o conhecimento dos seus pais (o que não deixa de ser também reprovável da sua parte). Diga-se que as consequências para as menores não foram especialmente graves, aparentando estar estabilizadas emocional e psicologicamente, sendo que o caso da BB acabou por ter grande impacto mediático (mas ao que o arguido é alheio). Finalmente, quando ao crime de detenção de arma proibida, a ilicitude é moderada, atento o tipo de objeto de causa, o qual, apesar de ilícito, possui um poder letal relativamente reduzido.
b) Quanto à intensidade do dolo ou negligência (al. b) do n.º 2 do art. 71.º):
Em todos os casos o arguido agiu com elevada intensidade de dolo, na modalidade de direto, pois que quis levar a cabo tais condutas, de forma intencional.
c) Quanto aos sentimentos manifestados no cometimento dos crimes e fins ou motivos que os determinaram (al. c) do n.º 2 do art. 71.º):
Neste particular o arguido manifestou total desprezo pelos deveres / direitos inerentes ao poder paternal e foi somente determinado pela satisfação das suas apetências sexuais e libidinosas, atraindo as menores através das redes sociais para os seus intentos.
d) Quanto à condição pessoas do agente e sua situação económica (al. b) do n.º 2 do art. 71.º):
O arguido teve um percurso de vida bastante irregular, desde logo na escola e depois em termos de formação profissional, não lhe sendo conhecido qualquer desempenho laboral relevante, tendo mesmo um período ligado às drogas, e na altura ocupava a referida habitação, sem as mínimas condições, não dispondo de apoio familiar, sendo que no Estabelecimento Prisional apresenta comportamento adequado ao meio (factos melhor descritos D)).
e) Quanto à conduta anterior aos factos e posterior a estes, especialmente quanto à reparação das consequências dos crimes (al. b) do n.º 2 do art. 71.º):
O arguido tem uma experiência judicial já bastante vasta, com seis condenações judiciais, embora por crimes de diferente natureza, pois tratou-se de furtos. Quatro dessas condenações são anteriores à prática destes factos, tendo, então, estado recluído por duas vezes, na sequência da conversão de penas de multa na prisão subsidiária, o que não foi suficiente para o afastar da criminalidade (a outra reclusão já foi na pendência destes autos). Além disso, os crimes destes autos principais foram praticados no período de suspensão da execução de uma pena de 7 meses de prisão (por um ano), cuja sentença havia transitado em julgado em 13-02-2017 (factos melhor descritos em E)). Por outro lado, o arguido não procedeu a qualquer reparação dos danos causados às vítimas.
Ponderando todos estes elementos e tendo em consideração as elevadas necessidades de prevenção, designadamente de ordem geral, mas aqui também especial, em face da reiteração de condutas delituosas, que neste tipo de ilícitos de abuso sexual de crianças se fazem sentir, atenta a sua elevada frequência e o forte alarme social que provocam, ainda que especialmente quando se trata de vítimas de idades reduzidas (o que aqui não é o caso, pois ambas estavam perto dos 14 anos), sendo que o arguido AA não tira benefício relevante da sua postura em audiência e perante os factos (apenas assumindo uma relação sexual com cada uma das menores), e não manifestando sinais convincentes de autocensura e juízo crítico, afigura-se adequado aplicar-lhe as penas seguintes:
- a pena de 1 (um) ano de prisão pelo crime de subtração de menor;
- a pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão pelo crime de abuso sexual de crianças (cópula), em trato sucessivo (menor BB);
- a pena de 10 (dez) meses de prisão pelo crime de abuso sexual de crianças (espetáculo pornográfico);
- a pena de 1 (um) ano de prisão pelo crime de abuso sexual de crianças (atos exibicionistas);
- a pena de 9 (nove) meses de prisão pelo crime de detenção de arma proibida;
(Proc. 61/17.3JAAVR)
- na pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão pelo crime de abuso sexual de crianças;
- a pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão pelo crime de abuso sexual de crianças (ambos de cópula - menor CC).
Relativamente às penas acessórias, atentas aquelas mesmas circunstâncias, considera-se ajustado fixar as mesmas em 10 (dez) anos.
Acrescente o n.º 2 desse preceito que “A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.”
Assim, a moldura do cúmulo varia entre 5 anos e 6 meses de prisão (a pena mais elevada) e 16 (dezasseis) anos e 5 (cinco) meses de prisão (a soma de ambas as penas).
Nesta conformidade, tendo em conta a diversidade dos factos e ilícitos, a sua gravidade, nalguns casos bastante significativa, ainda que cometidos num mesmo circunstancialismo e temporalidade quanto à menor BB, além de que o arguido atentou sexualmente contra duas menores praticamente no mesmo período temporal, o que evidencia tendência para este tipo de condutas, bem como a sua personalidade, com percurso de vida sem estruturação familiar e laboral, não podendo deixar de se considerar nesta avaliação global a sua experiência judicial e até prisional, cometendo estes factos do processo principal no período de suspensão de uma das penas, considera-se ajustado aplicar-lhe, em cúmulo jurídico, a pena única de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão.
A tal acrescem as penas acessórias de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, e de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 10 (dez) anos.
Tal pena não admite suspensão na sua execução, porque superior a cinco anos, sendo que, em qualquer caso, também não se verificariam os demais pressupostos legais para tal (art. 50.º, n.º 1, do C. Penal).
O pressuposto formal dessa declaração de perda de objetos é o da utilização destes numa atividade criminosa ou de a tal estarem destinados ou terem por ela sido produzidos (mesmo que ninguém venha a ser punido pelos respetivos factos - n.º 2 desse preceito). Já o pressuposto material tem a ver com a perigosidade dos objetos ou o risco de poderem voltar a ser usados para cometer outros ilícitos criminais, estando aquele perigo relacionado com a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, tudo avaliado numa perspetiva de proporcionalidade. Nessa medida, não relevando aqui a culpa do agente, “a perda de objetos é exclusivamente determinada por necessidades de prevenção.” (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, Edição da UCE, pág. 355, anotação 2.).
Neste caso, tendo o arguido AA na sua posse a referida soqueia e constituindo a sua mera detenção um ilícito criminal, que perduraria no tempo, incluindo o risco do seu uso na prática de crimes contra as pessoas, impõem-se a declaração de perda a favor do Estado da mesma, descrita nos respetivos autos de busca e exame (fls. 224 a 226, 238 e 275), pois que se mostram verificados os pressupostos legais para tal (citado n.º 1 do art. 109.º do C. Penal).
Já relativamente aos telemóveis, nada se determina por ora, dado haver pedido do Inquérito n.º 5019/17.0T9AVR para ficarem apreendidos à sua ordem, importando, antes de mais, esclarecer quais os telemóveis a que se referem, por os elementos referidos não serem explícitos (fls. 1664, 1682 e 1683).
Por outro lado, o regime de tributação consta do artigo 8.º, n.º 9, do RCP, o qual refere que “a taxa de justiça é paga a final, sendo fixada pelo juiz tendo em vista a complexidade da causa, dentro dos limites fixados na tabela III.”
Na referida tabela III é estabelecido para a “Condenação em 1.ª instância sem contestação ou oposição” a taxa de justiça de “2 a 6 UC”, sendo aí também fixada em “2 a 6 UC” a tributação para a para a “Contestação/oposição” em “Processo comum”, o que significa, até pela igualdade da moldura tributária, que tais taxas são cumulativas (no caso de haver contestação).
Além disso, o arguido condenado é responsável pelos “encargos a que a sua actividade deu lugar” (arts. 514.º, n.º 2, do CPP, e 16.º, do RCP).
a) Absolver o arguido AA dos crimes seguintes:
- um crime de rapto agravado, previsto e punido pelo artigo 161.º, n.º 1, alínea b) e n. º 2, alínea a), por referência ao artigo 158.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e e), todos do Código Penal (em concurso aparente com um crime de sequestro, previsto e punido pelo artigo 158.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e e), do Código Penal);
- cinco crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, 69.º - B, n.º 2, e 69.º - C, n.º 2, todos do Código Penal;
- dois crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 3, alínea b), 69.º - B, n.º 2, e 69.º - C, n.º 2, todos do Código Penal;
- dois crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 3, alínea a), por referência ao artigo 170.º, 69º - B, n.º 2, e 69.º - C, n.º 2, todos do Código Penal (todos relativos ao Proc. 98/17.2GAPTL), e
- um crime de abuso sexual de crianças, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, n.ºs 1 e 2, alínea c), 23.º, 30.º, n.ºs 1 e 3, e 171.º, n.º 1, do Código Penal (relativo ao Proc. 61/17.3JAAVR).
b) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e concurso efetivo, dos crimes e nas penas seguintes:
(Proc. 98/17.2GAPTL)
- um crime de subtração de menor, previsto e punido pelo artigo 249.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão;
- um crime de abuso sexual de crianças, em trato sucessivo, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, 69.º-B, n.º 2, e 69.º-C, n.º 2, todos do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;
- um crime de abuso sexual de crianças, em trato sucessivo, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.º 3, alínea b), 69.º-B, n.º 2, e 69.º-C, n.º 2, todos do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão;
- um crime de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 3, alínea a), por referência ao artigo 170.º, 69º-B, n.º 2, e 69.º-C, n.º 2, todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão;
- um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d), por referência aos artigos 2.º, n.º 1, alínea ap), e 3.º, n.ºs 1 e 2, alínea e), todos do RJAM (aprovado pela Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro, com as alterações posteriores, a última pela Lei n.º 50/3013, de 24-07), na pena de 9 (nove) meses de prisão;
(Proc. 61/17.3JAAVR)
- um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão, e
- um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.
c) Condenar o arguido AA, em cúmulo jurídico, na pena única de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão e nas penas acessórias de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, e de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 10 (dez) anos.
d) Condenar o arguido AA a pagar às ofendidas BB e CC (representadas pelos seus progenitores até à maioridade), a título de indemnização por danos não patrimoniais, respectivamente, as quantias de 6.000,00€ (seis mil euros) e de 3.000,00€ (três mil euros).
e) Declarar perdida a favor do Estado a soqueira apreendida ao arguido AA;
f) Condenar o arguido AA nas custas do processo, com taxa de justiça de 5 (cinco) UC.
Solicite a recolha à PJ (após trânsito).
Apreciada e ponderada a prova produzida em audiência, particularmente as declarações da menor BB, não se vislumbra que ela, de forma deliberada, tenha faltado à verdade, por forma a que se justifique a instauração de procedimento criminal contra a mesma, pelo que, sem prejuízo do que ele próprio possa suscitar junto dos Serviços do Ministério Público, se indefere o requerido pelo arguido AA.
Antes de mais, solicite a tal Inquérito n.º 5019/17.0T9AVR que informam quais os telemóveis a que se referem, identificando-os devidamente (pois que a folhas 1582 verso destes autos nada consta a esse respeito).
Conforme jurisprudência pacífica, as conclusões delimitam, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, os poderes de cognição do Tribunal de recurso (art. 412.º, n.º 1, CPP; v. BMJ 473, pág. 316; jurisprudência do STJ referenciada no Ac. RC de 21/1/2009, Proc. 45/05.4TAFIG.C2, Rel. Gabriel Catarino; Acs. STJ de 25/3/2009, Proc. 09P0486, Rel. Fernando Fróis; de 23/11/2010, Proc. 93/10.2TCPRT.S1, Rel. Raul Borges; de 28/4/2016, Proc. 252/14.9JACBR., Rel. Manuel Augusto de Matos).
3. Apreciaremos, primeiramente, os recursos interlocutórios.
• Do recurso do despacho de 7/6/2018.
Este despacho de 7/6/2018 indeferiu (art. 120.º, n.º 2 alínea d) do CPP) a arguição de nulidade do despacho de 25/5/2018, nos termos do qual foi indeferido o pedido de inquirição da testemunha EE.
De acordo com o artigo 340.º do CPP, com a epígrafe Princípios gerais:
1 — O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
2 — Se o tribunal considerar necessária a produção de meios de prova não constantes da acusação, da pronúncia ou da contestação, dá disso conhecimento, com a antecedência possível, aos sujeitos processuais e fá‑lo constar da ata.
3 — Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 328.º, os requerimentos de prova são indeferidos por despacho quando a prova ou o respetivo meio forem legalmente inadmissíveis.
4 — Os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que:
a) As provas requeridas já podiam ter sido juntas ou arroladas com a acusação ou a contestação, exceto se o tribunal entender que são indispensáveis à descoberta da verdade e boa decisão da causa;
b) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas;
c) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou
d) O requerimento tem finalidade meramente dilatória.
(itálicos nossos)
A redacção da alínea a) do n.º 4 foi introduzida pela L 20/2013, passando as anteriores alíneas a), b) e c) a corresponder à actuais alíneas b), c) e d).
Refere‑se na Exposição de Motivos da Proposta de Lei 77/XII (está na base da revisão de 2013) que:
«Na fase de julgamento a celeridade da justiça penal implica igualmente que, quer o Ministério Público, quer o arguido devam oferecer todas as provas com a acusação e a contestação, pelo que se altera o disposto no artigo 340.º, no sentido de que os requerimentos de prova, apresentados no decurso da audiência, devem ser indeferidos sempre que essas provas pudessem ter sido juntas, ou arroladas naquelas peças processuais, salvaguardando‑se os casos em que o juiz as considera imprescindíveis para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.».
Se os n.os 1 e 2 consagram o princípio da necessidade, a nova alínea a) faz apelo ao princípio da indispensabilidade.
O presente normativo constitui um afloramento dos princípios da investigação e da verdade material. A lei 2013 parece que pretendeu aportar também outros princípios, como os da celeridade (cfr. Exposição de Motivos), da lealdade processual e da economia.
O despacho recorrido, de 7/6/2018, considerou que não era essencial (art. 120.º, n.º 2 alínea d) do CPP e 340.º do CPP) levar a cabo a diligência de inquirição requerida alegando e remetendo para a justificação também constante do despacho de 25/5/2018 que indeferiu (art. 340.º, n.º 1 e 4 alíneas a) e b) do CPP) a inquirição da testemunha EE
.
«Em anotação ao normativo, o Sr. Juiz Conselheiro Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal Comentado de Henriques Gaspar et alii, escreveu que:
“(…)prova deve ser considerada irrelevante quando é indiferente, sem importância ou interesse para a decisão da causa; supérflua quando e inútil para a decisão da causa; inadequada quando é imprópria, nada permite demostrar ou estabelecer, de nada serve para a decisão da causa; de obtenção impossível ou de obtenção muito duvidosa quando é inalcançável ou, segundo as regras da experiência, improvavelmente alcançável; com finalidade meramente dilatória quando visa protelar ou demorar a audiência.
O Juízo de necessidade ou desnecessidade de produção de prova cabe ao tribunal, ou seja, aos juízes que o compõem, ou seja, ao juiz, aos juízes ou aos juízes e jurados, consoante o tribunal que julga a causa. A decisão sobre a necessidade ou a desnecessidade da prova, sobre a admissibilidade da prova, pertence naturalmente aqueles que têm de apreciar a prova e julgar a causa (…)”.» (do Parecer da Ex.ma PGA junto deste STJ, com referência ao art. 340.º do CPP).
No fundo pretendia o requerente demonstrar que as relações sexuais da menor BB com o arguido «foram absolutamente voluntárias/consentidas» (n.º 7 das conclusões do recurso).
Como bem se demonstra no despacho recorrido 7/6/2018 (e no despacho de 25/5/2018 para o qual aquele remete) não era essencial ou indispensável tal inquirição: na verdade, nem a menor referiu ser violentada para ter relações sexuais, nem o tipo de crime do art. 171.º do CP, em causa neste segmento, pressupõe qualquer espécie de violência.
A matéria de facto provada (cfr., nomeadamente, n.º 86 a 89 da mesma) é clara quanto à verificação fáctica.
A inquirição da pretendida testemunha nada adiantaria.
Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso interlocutório.
• Do recurso do despacho de 10/7/2018
Este despacho indeferiu o pedido do arguido de realização de perícia médico-legal às suas faculdades mentais e de avalização psicológica de respectiva personalidade.
O enquadramento legal encontra-se gizado nos normativos do CPP a seguir transcritos:
Ac. STJ de 13/5/1998, Proc. 98P276, Rel. Lopes Rocha
I - A perícia sobre o estado psíquico do arguido não é consequência automática de requerimento do interessado, competindo ao julgador ajuizar a prova pericial em causa se revela justificada ou imprescindível em cada caso concreto.
II - Um "distúrbio emocional" resultante do falecimento de um ente querido, ocorrido anos antes da prática dos factos, não basta, segundo as regras da experiência, para constituir estados de inimputabilidade ou de imputabilidade diminuída, relevantes em matéria criminal.
Ac. STJ de 14/9/1999, Proc. 98P729, Rel. Leonardo Dias
Por um lado inexiste qualquer disposição legal que imponha que o arguido (todo o arguido) seja, sempre, submetido a pericia sobre o seu estado psíquico, com vista à determinação do seu grau de imputabilidade ou da sua eventual inimputabilidade e, por outro, do artigo 351, ns. 1 e 2, do CPP, o que flui, é que, quando, na audiência, se suscitar, fundadamente, a questão da inimputabilidade ou da imputabilidade diminuída do arguido, a perícia sobre o estado psíquico deste só é obrigatória no primeiro caso.
Ac. RP de 29/10/2008, Proc. 0845120, Rel. António Gama (cit. na Resposta do MP)
Porque na fase do julgamento só devem realizar-se os exames que se afigurem necessários para habilitar o julgador a uma decisão justa, deve ser indeferido o pedido de realização de perícia médico-legal psiquiátrica quando ao tribunal não se suscitam dúvidas sobre a integridade mental do arguido.
Ac. RC de 23/9/2015, Proc. 715/14.6JAPRT-A.C1, Rel. Jorge França (cit. na Resposta do MP)
I - A disposição do artigo 351.º do CPP dirige-se aos casos em que, no decurso da audiência de julgamento, se suscita fundadamente a questão da inimputabilidade do arguido.
II - Contudo, o incidente de “alienação mental” de arguido pode/deve ser suscitado em qualquer fase do processo penal, nos termos gerais dos arts. 151.º e ss. do mesmo diploma legal.
III - Ao arguido, presente na audiência de julgamento, aparentemente dotado de capacidade para avaliar a ilicitude do facto ilícito praticado e de se determinar de acordo com essa avaliação, não bastará, para pôr fundadamente em causa essa capacidade, a alegação de já ter sido sinalizado e orientado para consultas de psiquiatria; deverá também invocar circunstâncias concretas reveladoras da sua incapacidade no referido plano de avaliação e determinação
Ac. RC de 7/2/2018, Proc. 166/17.0GBLSA.C1, Rel. Jorge França
A mera referência, em audiência de julgamento, às circunstâncias de o arguido estar sujeito ao tratamento da sua dependência relativamente ao álcool desde, pelo menos, o ano de 2009 e de ter sido encaminhado para consulta de psicologia - por haver notícia de ter reiniciado o consumo daquela substância nos últimos meses, com manifestação de um comportamento depressivo -, não consubstancia motivo gerador de fundadas dúvidas acerca da sua imputabilidade
Ac. RC de 21/2/2018, Proc. 500/15.8JACBR-B.C1, Rel. Maria José Nogueira
I - A questão da inimputabilidade do arguido não se basta com a simples suspeita ou sequer a mera probabilidade assente na sua aparência. Tem de perspectivar-se em razão de circunstâncias concretas que apontem para a forte possibilidade de o arguido, aquando do cometimento dos factos em causa, sofrer de anomalia psíquica incapacitante da avaliação da ilicitude da sua conduta ou da auto-determinação para poder agir de acordo com o direito.
II – In casu, tal questão não foi suscitada fundadamente, na audiência de julgamento, porquanto no relatório social, elaborado para determinação da sanção, fundado em entrevista do arguido, donde emerge a pretensão de realização de perícia psiquiátrica, os invocados distúrbios e internamentos ocorreram há vinte anos, e, quanto à propalada apresentação de um estado de ansiedade e instabilidade emocional e psicológico, determinante da ingestão de ansiolíticos, existe uma adequada ligação com a condição de reclusão do arguido.
O arguido só na altura da contestação, após o decurso de vasta tramitação processual, em que teve oportunidade de o fazer, conforme descreve, em pormenor, o Ex.mo Procurador da República na 1.ª instância na sua Resposta, supra transcrita, é que requereu a perícia às faculdades mentais e a avaliação psicológica da personalidade, que reiterou na 8.ª sessão do julgamento.
A inimputabilidade[1], que pode derivar da idade (v. art. 19.º do CP) ou de anomalia psíquica (art. 20.º do CP), impede o agente de avaliar a ilicitude do seu comportamento e, consequentemente, impossibilita a aplicação ao mesmo de uma pena (arts. 40 e ss. do CP) devendo antes ser sujeito a uma medida de segurança (art. 91.º do CP).
Os Tribunais Superiores, como se vê da lista de jurisprudência atrás referenciada, têm-se pronunciado, múltiplas vezes, sobre esta figura jurídica.
Nas decisões mais recentes do STJ, sobre prova pericial, inimputabilidade e elementos (“biopsicológico” e “normativo”) da mesma, cfr. Acs. de 19/12/2012, Proc. 127/10.0S3LSB-A. S1, Rel. Armindo Monteiro, de 16/10/2013, Proc. 36/11.6PJOER.L1. S1, Rel. Santos Cabral e o Ac. de 23/11/2017, Proc. 146/14.8GTCSC.S1, Rel. Nuno Gomes da Silva sobre um caso de «transtorno depressivo recorrente».
O Tribunal de recurso não deve, em regra, contrariar o entendimento do tribunal a quo baseado no princípio da livre apreciação da prova. É sabido que o mesmo princípio sofre limitações restrições e excepções vertidas em diversos normativos do CPP. Mas não deixa de ser a regra na apreciação da prova.
Na verdade, o tribunal a quo beneficia da imediação e oralidade que escapa ao tribunal de recurso.
Ora, conforme se escreve no despacho recorrido «o arguido prestou declarações em audiência e também na fase de instrução, estas acabadas de reproduzir, nada resultando da globalidade das mesmas e da sua postura perante os factos e na própria audiência que possa indiciar qualquer patologia do foro psicológico ou psiquiátrico com influência na sua capacidade de perceber o alcance dos actos, que pudessem conduzir a alguma situação de inimputabilidade ou imputabilidade diminuída nos termos do artigo.º 20 do Código Penal, como é invocado».
Em segundo lugar, o que consta do relatório social não aponta para a inimputabilidade do arguido, nem deixou dúvidas no tribunal, como expressamente refere o despacho recorrido.
Como bem frisa o Ex.mo Procurador da República na 1.ª instância, na sua bem elaborada Resposta, «Daí, também, os técnicos de reinserção social terem deixado claro que tal avaliação deveria ser concomitante à "pena aplicada", perspectivando, portanto, uma intervenção em execução de pena no estabelecimento prisional tendo em vista a ressocialização do agente em reclusão.»
Por outro lado, e em terceiro lugar, também não resulta dos autos a existência de qualquer relatório de perito, nomeadamente psiquiátrico, que aconselhasse a feitura de um exame ao estado psíquico do arguido; que colocasse o tribunal recorrido na dúvida perante a sanidade mental (a imputabilidade) do arguido.
Como se escreve no despacho recorrido «ainda que tenha sido feita menção em audiência a um possível acompanhamento por psicólogo em idade escolar, nada foi confirmado a esse respeito, designadamente pela apresentação de elementos documentais, sendo que a única testemunha que demonstrou conhecer o arguido AA há vários anos afastou mesmo qualquer possibilidade de ele ter qualquer limitação cognitiva, dizendo mesmo que "não é maluco" conforme depoimento da testemunha GG.».
Os fundamentos para a questão da inimputabilidade do arguido, como se considerou no cit. Ac. RC de 21/2/2018, Proc. 500/15.8JACBR-B.C1, Rel. Maria José Nogueira, doutrinariamente ancorado na 4.ª edição do Comentário do Código de Processo Penal de P. Pinto de Albuquerque e no Código de Processo Penal, dos Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, terão de ser idóneos a criar no tribunal uma dúvida plausível (expressão de P. Pinto de Albuquerque). Não basta a «simples suspeita ou sequer a mera possibilidade assente na sua aparência. Tem de tratar-se de factos concretos que apontem para a forte probabilidade de que o arguido, quando cometeu os factos, sofria de anomalia psíquica (…) que o incapacitou de avaliar a ilicitude da sua conduta ou de se auto-determinar para poder agir de acordo com o direito.» (CPP dos Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto).
«Convencendo-se o tribunal da seriedade e bom fundamento da questão da inimputabilidade não pode deixar de mandar proceder à realização da perícia sobre o estado psíquico do arguido. Ou seja, havendo fundamento não pode deixar de ser ordenada a perícia psiquiátrica.» (cit. CPP dos M.M.P. do D. J. do Porto, pág. 882).
Pelo exposto, na falta de indícios fundados sobre a questão da inimputabilidade do arguido ou de outros que imponham a realização de perícia sobre a personalidade, julga-se improcedente o presente recurso interlocutório.
4. Questões levantadas nas conclusões do recurso do arguido:
● erro de enquadramento jurídico da factualidade integrante dos crimes do art. 171.º do CP no que tange à questão da idadedas vítimas;
● discordância relativamente à consideração da prática, em concurso real, de dois crimes de abuso sexual de crianças (art. 171.º, n.º 1 e 2 do CP) no que diz respeito à ofendida CC; neste aspecto, no entender do recorrente, o tribunal deveria ter por verificada apenas a prática de um só crime, em trato sucessivo, tal como fez no caso da ofendida HH;
● discordância relativamente à autonomia dos crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art. 171.º, n.º 3, alíneas a) e b) do CP (ofendida BB);
● medida da pena;
● do pedido de indemnização civil.
Conhecendo.
⁕ No que diz respeito à idade das ofendidas.
O recorrente defende que o Acórdão em crise errou no enquadramento jurídico dos actos criminosos praticados nas pessoas das menores II e CC, porquanto, tendo as vítimas à data dos factos, cada uma 13 anos de idade, fizeram os 14 anos de idade passados, respectivamente, cerca de 2 e 1 mês sobre a data dos factos.
Em seu entender, a interpretação do disposto no art. 171.º do CP deve ser feita relativamente ao ano civil em que as vítimas fizeram 14 anos de idade e não à data da prática dos factos.
Por isso, conclui o recorrente que o tribunal a quo apenas deveria ter ponderado, neste aspecto, a aplicação do art. 173.º do CP.
É evidente, gritante, manifesta, a falta de razão do arguido.
Não tem qualquer apoio na letra ou no espírito da lei, nem na jurisprudência ou na doutrina.
O ano civil estende-se desde 1 de Janeiro a 31 de Dezembro. Ora não é indiferente fazer anos em Janeiro ou em Dezembro.
O elemento fulcral da consumação do crime tem a ver com o momento da sua prática (arts. 1.º, n.º 1, 2.º, 3.º do CP).
Não é possível, atentas, nomeadamente, as especiais exigências interpretativas no âmbito do direito penal (v. art. 1.º, n.º 3 do CP), importar para o mesmo--como aliás bem se demonstra no aresto recorrido, supra transcrito--os regimes relativos à escolaridade obrigatória ou ao ingresso no serviço militar, regimes com enquadramento, finalidades e pressupostos distintos.
A data da prática do crime é também decisiva, por exemplo, para a verificação da prescrição do procedimento criminal (v. arts. 118.º, n.º 1, 119.º, n.º 1 do CP).
Enquanto o n.º 1 do art. 171.º do CP refere que «quem praticar ato sexual de relevo com ou em menor de 14 anos….», o n.º 1 do art. 173.º consigna «quem, sendo maior, praticar ato sexual de relevo com menor entre 14 e 16 anos…» (sublinhados nossos). Naquela primeira disposição, contrariamente ao que acontece com o normativo do art. 173.º, o menor ainda não perfez os 14 anos de idade.
A idade da vítima assume, como se vê pelas diferentes molduras penais abstractas nos dois dispositivos (de gravidade superior no caso do art. 171.º) capital importância.
Quanto maior for a idade, maior é também a maturidade, a capacidade de determinação e escolha.
⁕ discordância relativamente à qualificação dos crimes de abuso sexual de crianças (art. 171.º, n.º 1 e 2 do CP) no que diz respeito à ofendida CC; neste aspecto, no entender do recorrente, o tribunal deveria ter por verificada apenas a prática de um só crime, em trato sucessivo, tal como fez no caso da ofendida HH.
Neste aspecto, relativamente à BB, escreve-se no aresto recorrido que:
«Voltando aos casos sub judice e, em primeira linha, aos factos relativos à menor BB (Proc. 98/17.2GAPTL), são imputados ao arguido AA, nesta parte, seis crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, com referência aos factos 34 a 41, 48 e 49, 59 e 60, 80, 89 e 90 da acusação (agora pronúncia).
De tais factos resulta que o arguido manteve com a menor BB relações sexuais de cópula completa nas noites de 03 para 04-03-2017 (sexta -» sábado), uma vez (factos 34) a 39)), pois que no segundo contacto não chegou a ocorrer penetração, tendo ele apenas colocado o pénis ereto sobre a zona vaginal, tentando penetrá-la, parando a dada altura (factos 40) e 41)), e depois nas noites de 04 para 05-03 (sábado -» domingo), também uma vez (factos 48) e 49)), bem como de 05 para 06-03 (domingo -» segunda), de 06 para 07-03 (segunda -» terça) e de 07 para 08-03 (terça -» quarta), igualmente uma vez em cada noite (facto 60)), o que representa cinco relações sexuais de cópula completa (já que uma delas não se consumou).
Em todas essas situações o mesmo quis e conseguiu manter, repetidamente, relações sexuais de cópula vaginal, assim violando o direito da menor à sua livre autodeterminação sexual e prejudicando o desenvolvimento da respetiva personalidade, para satisfação dos seus próprios desejos sexuais, sabendo que a BB tinha somente 13 anos de idade e que nunca antes tinha mantido relacionamento sexual, sabendo também que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal (factos 86), 89), 90) e 93)).
Ressalvado o que abaixo se dirá, é manifesto que o arguido AA praticou com a menor BB actos sexuais, que consistiram na introdução do seu pénis erecto na vagina desta, exercendo movimentos de fricção, em cinco ocasiões, além de ter ensaiado tentativa de introdução do seu pénis ereto igualmente na vagina, mas que não veio a concretizar. Tais actos foram praticados no período que decorreu entre 03 e 08-03-2017, na casa que ambos ocuparam nesse período e até 10-03-2017.
Dúvidas não restam que tais comportamentos representam “actos sexuais de relevo”, traduzindo-se, por várias vezes, em penetração vaginal, o que constitui cópula consumada e numa das vezes tentada. A BB tinha, à data dos factos, 13 anos de idade, o que era do conhecimento do arguido, sendo tais factos merecedores de tutela pela referida norma incriminadora (n.ºs 1 e 2 do art. 171.º).
Mas estaremos perante seis crimes (cinco consumados e um tentado)?
Julgamos que não, ainda que seja de afastar a figura do crime continuado, pois que a alteração introduzida ao artigo 30.º, n.º 3, do Código Penal, pela Lei n.º 40/2010, de 03-09, veio impedir a aplicação do instituto da continuação criminosa aos “crimes praticados contra bens eminentemente pessoais”, como é o caso, atentas as circunstâncias em que tais factos ocorreram (em face do que resultou provado).
Na verdade, consideramos estar perante um só crime, fruto de uma única resolução criminosa, pois que resultou provado (como constava da acusação) que o arguido estabeleceu contactos com a menor BB e pediu-lhe para ir ter consigo a ..., conduzindo-a depois para a vivenda desabitada, precisamente para com ela se relacionar sexualmente (factos 9) e 21)). Por outro lado, tais relações de cópula (consumada e tentada) ocorreram sempre no interior dessa residência, onde eles permaneceram, sozinhos e escondidos, durante uma semana, vivendo nessa permanente intimidade e espaço limitado, sem necessidade, por parte do arguido, de criar novos contextos e oportunidades para se relacionar sexualmente com a menor BB.
A repetição desse mesmo tipo de actos, executados no mesmo espaço físico e em idênticas circunstâncias, leva-nos a considerar que tais plúrimos e repetidos comportamentos, no âmbito de uma única determinação inicial, integram um só crime, em trato sucessivo, por se entender existir uma unificação dessas sucessivas condutas ilícitas, resultantes de uma mesma resolução criminosa (cfr. Acórdãos do STJ de 22-01-2013, Processo n.º 182/10.3TAVPV.L1.S1; de 29-11-2012, Processo n.º 862/11.6TAPFR.S1, e de 23-01-2008, Processo n.º 07P4830, todos em www.dgsi.pt).
No mesmo sentido também o recente Acórdão do STJ de 04-02-2016 (in CJ STJ, Tomo I/2016, págs. 247 a 250).
Pelo exposto, tendo em conta o enquadramento efetuado para a pluralidade de atos e mostrando-se verificados todos os seus elementos objetivos e subjetivos, não procedendo a acusação relativamente a todos esses ilícitos, considera-se que o arguido AA incorreu na prática de um crime de abuso sexual de crianças, em trato sucessivo, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.
(…………………)
Ainda relativamente à menor BB (Proc. 98/17.2GAPTL), são imputados ao arguido AA três crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 3, alínea b), do Código Penal (com referência aos factos 67 a 71 e 91 da acusação / pronúncia).
Nesta parte resultou provado que, no período de 03 a 09-03-2017, no interior da habitação que ocupavam, o arguido, através da internet, em três ocasiões, acedeu a vídeos que exibiam indivíduos de idades e sexos não concretamente apurados a manterem relações de teor sexual entre si, obrigando a menor BB a visualizar tais vídeos, contra a sua vontade, sabendo o mesmo, que ao assim proceder, sujeitava esta a práticas contrárias aos seus interesses e prejudiciais ao seu normal desenvolvimento, pondo em causa o sentimento de vergonha e pudor sexual da menor, sabendo ainda que tal conduta era proibida e punida por lei penal (factos 67), 70) e 71), 91) e 93)).
Tais comportamentos, atenta a idade da menor BB, inferior a 14 anos, que o arguido bem sabia, representam o atuar sobre ela por meio de espetáculo pornográfico, como previsto na norma incriminadora (citada alínea b) do n.º 3 do art. 171.º).
Tal como se referiu anteriormente, embora tal conduta tenha sido levada a cabo por três vezes, tendo todas elas ocorrido no mesmo contexto vivencial e espaço físico, sem precisão de datas e momentos, designadamente se foram seguidas ou separadas no tempo, além de que não se descortinaram diferentes motivações, considera-se igualmente aqui a prática de um único crime, em trato sucessivo, tendo o arguido incorrido, por isso, num crime de abuso sexual de crianças, em trato sucessivo, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.º 3, alínea b), do Código Penal.
Neste particular resultou provado que, no período de 03 a 09-03-2017, no interior da habitação que ocupavam, o arguido, pelo menos por duas vezes, manipulando o seu pénis ereto, masturbou-se à frente da menor, tendo, numa das ocasiões, ejaculado para a barriga dela, obrigando a BB a observá-lo nesses atos, sabendo o mesmo, que ao assim proceder, a sujeitava esta a práticas contrárias aos seus interesses e prejudiciais ao seu normal desenvolvimento, pondo em causa o sentimento de vergonha e pudor sexual da menor, sabendo ainda que tal conduta era proibida e punida por lei penal (factos 72), 91) e 93)).
Tais comportamentos, atenta a idade da menor BB, inferiora 14 anos, o que o arguido bem sabia, representam o importunar com atos de caráter exibicionista, como previsto na norma incriminadora (citada alínea a) do n.º 3 do art. 171.º, com referência ao art. 170.º).
Também neste caso, embora tal conduta tenha sido levada a cabo pelo menos por duas vezes (e não três, como referido na acusação), tendo todas elas ocorrido no mesmo contexto vivencial e espaço físico, sem precisão de datas e momentos, designadamente se foram próximas ou muito separadas no tempo, além de que não se descortinaram diferentes motivações, considera-se igualmente aqui a prática de um único crime, com plúrimos atos, tendo o arguido incorrido, por isso, num crimes de abuso sexual de crianças, em trato sucessivo, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.º 3, alínea a), por referência ao artigo 170.º, do Código Penal.»
E, relativamente à CC, escreve-se no mesmo aresto que:
«Relativamente aos factos atinentes à menor CC (Proc. 61/17.3JAAVR), são imputados ao arguido AA dois crimes de abuso sexual de crianças consumados, previstos e punidos pelos artigos 30.º, n.ºs 1 e 3, e 171.º, n.º 2, do Código Penal, e um crime de abuso sexual de crianças, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, n.ºs 1 e 2, alínea c), 23.º, 30.º, n.ºs 1 e 3, e 171.º, n.º 1, do Código Penal.
A este respeito resultou provado que o arguido manteve com a menor CC duas vezes relações sexuais de cópula completa, ambas no mês de Janeiro de 2017, sendo a primeira delas na localidade de Cacia, na zona dos tanques públicos de lavagem de roupa (factos B)-13) a 21)), e a segunda na residência dos pais da menor, com a qual o arguido foi pernoitar, com o assentimento daquela (factos B)-23) a 26)).
Em ambas estas situações o mesmo quis e conseguiu manter relações sexuais de cópula, assim satisfazendo os seus desejos sexuais e violando o direito da menor CC à sua livre autodeterminação sexual, sabendo que ela tinha 13 anos de idade e também que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal (factos C)-29) e 30)).
Dúvidas não restam que tais comportamentos representam “atos sexuais de relevo”, traduzindo-se, por duas vezes, em penetração vaginal, o que integra a cópula consumada. A menor tinha, à data dos factos, 13 anos de idade, o que era do conhecimento do arguido, sendo, assim, tais factos merecedores de tutela pela referida norma incriminadora (n.ºs 1 e 2 do art. 171.º).
Sendo cometido duas vezes o mesmo tipo de crime pelo agente, por aí se determina o número de crimes (art. 30.º, n.º 1, do C. Penal). Neste caso, os factos foram praticados em diferentes circunstâncias espácio temporais, com diferentes resoluções, ao contrário do que sucedeu com a menor BB.
Efetivamente, sendo de afastar a figura do crime continuado, pois que a alteração introduzida ao artigo 30.º, n.º 3, do Código Penal, pela Lei n.º 40/2010, de 03-09, veio impedir, como já se referiu, a aplicação do instituto da continuação criminosa aos “crimes praticados contra bens eminentemente pessoais”, atentas as circunstâncias em que tais factos ocorreram, em diferente ocasiões e lugares, com autónomas resoluções e mostrando-se verificados todos os seus elementos objetivos e subjetivos, considera-se ter o arguido AA incorrido na prática de dois crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.»
Como bem se alcança da leitura do aresto recorrido, nomeadamente das transcrições acabadas de fazer, é diferente o enquadramento fáctico em ambas as situações relativas às duas menores.
Não assiste razão ao recorrente ao pretender a qualificação dos crimes contra a CC como de trato sucessivo.
Nesse aspecto, não merece crítica o aresto em crise (cfr. transcrição do mesmo acabada de fazer relativamente à menor CC).
O mesmo se não pode dizer relativamente à qualificação como de trato sucessivo dos crimes de abuso sexual de crianças cometidos na pessoa da menor BB.
Aqui não andou bem o aresto em análise, como veremos a seguir.
Com as alterações de 2010 (L 40/2010) ao artigo 30.º do CP[2] afastou-se a continuação criminosa nos crimes eminentemente pessoais mesmo estando em causa a mesma vítima.
As alterações de 2007 já tinham dado brado pela sua controvérsia[3].
Todavia se antes da mencionada alteração de 2010, ao art. 30.º do CP, ainda havia quem defendesse a continuação criminosa (caso de Figueiredo Dias na 1.ª edição do Comentário Conimbricense do Código Penal e na edição de 2007 do seu Direito Penal—Parte Geral, o qual alterou a posição, em face da referida alteração operada pela L 40/2010, na 2.ª edição de 2012 do referido Comentário[4]) quando estivesse em causa a mesma vítima, após a mesma deve considerar-se verificado o concurso de crimes, dado estarmos perante bens eminentemente pessoais, sempre que o agente pratique vários actos sexuais de relevo, quer estejamos, ou não, perante a mesma vítima.
O crime continuado tem o seu fundamento na menor culpa do agente e em circunstâncias exógenas que facilitam a execução do crime.
Ora nos crimes dos presentes autos estão em causa bens eminentemente pessoais e, além da repetição da conduta criminosa não se dever a qualquer circunstância exógena, não há qualquer diminuição da culpa do agente, mas antes um acentuado agravamento da mesma, pelo que aquela figura tem que ser arredada.
Mas mesmo antes da cit. alteração de 2010, a esmagadora maioria da jurisprudência afastava a continuação criminosa no crime de abuso sexual de criança quer a vítima fosse, ou não, a mesma.
Porém não é só a continuação criminosa que se deve afastar dos crimes eminentemente pessoais.
Do mesmo modo se deve afastar a figura do crime exaurido, que a jurisprudência tem considerado verificar-se, por exemplo, no crime de tráfico de estupefacientes[5].
A propósito dos crimes sexuais, escreve Helena Moniz no referido artigo sobre Crime de trato sucessivo”(?)[6], publicado na Revista Julgar que:
«Ora, o entendimento dos crimes sexuais como crimes de trato sucessivo pretende abarcar uma multiplicidade de atos, a que corresponde uma multiplicidade de resoluções, num único ato globalmente unificado a partir de uma unidade resolutiva, todavia salientando que não estamos perante uma única resolução, mas perante uma “unidade resolutiva”, querendo com isto apenas evidenciar uma homogeneidade resolutiva. Mas, este entendimento que agrega múltiplos atos típicos e ilícitos numa globalidade de comportamento ilícito com uma unificação resolutiva aproxima-nos, contra a lei, da figura do crime continuado, pese embora a jurisprudência expressamente afirme não haver uma menor culpa do agente, ou uma situação de menor exigibilidade.»
Na jurisprudência das Relações a clivagem ainda se manifesta:
-- defendendo a figura do crime de trato sucessivo, cfr., v.g., Ac. RE de 20/10/2015, Proc. 290/14.1T3STC.E1, Rel. Proença da Costa (em causa crime de abuso sexual de menor-art. 171 n.º 1 e 2 CP; apoia-se no Ac. STJ de 29/11/2012, Proc. 862/11.6TAPFR.S1, Rel. Santos Carvalho); Ac. RE de 20/10/2015, Proc. 290/14.1T3STC.E1, Rel. Felisberto Proença da Costa (em causa crimes de abuso sexual -arts. 171 n.º 1 e 2 e 172.º n.º 1 do CP); Ac. RE de 11/10/2016, Proc. 14/14.3GAVVC.E1, Rel. Carlos Berguete Coelho (em causa crime de abuso sexual de menor-art. 171 n.º 1 e 2 CP); Ac. RE de 16/3/2017, Proc. 72/15.3 JASTB.E1, Rel. António Condesso (em causa crime de pornografia de menores- art. 176 n.º 4 CP); Ac. RE de 24/5/2018, Proc. 1010/16.1PBEVR.E1, Rel. Martins Simão (em causa crime de abuso sexual- art. 171.º n.º 1 e 2 e 173.º, n.º 1 e 2 do CP); no Ac. RL de 15/12/2015, Proc. 3147/08.JFLSB.L1-5, Rel. Ana Sebastião aceita-se o trato sucessivo no crime de pornografia de menores (art. 176.º, n.º 4 do CP em que se discutia a aplicação das alíneas c) e d)[7] do n.º 1 do mesmo artigo); Ac. RP de 6/2/2019, Proc. 966/14.3JAPRT.P1, Rel. Horácio Correia Pinto (tem voto de vencido do Adjunto que não adere «á fase do crime de tese sucessiva»; apoia-se no Ac. STJ de 29/11/2012, Proc. 862/11.6TAPFR.S1, Rel. Santos Carvalho; em causa crimes de abuso sexual- art. 171.º n.º 1 e 2 e 173.º, n.º 1 e 2 do CP; pornografia agravada- artºs 176º, nº 1, alínea b) e 177º, nº 6 e 7 do CP; actos sexuais com adolescente-art. 173.º, n.º 1 e 2 CP); Ac. RP de 13/3/2019, Proc. 3908/16.8JAPRT.P2, Rel. Maria Dolores Silva e Sousa; Ac. RL de 2/5/2019, Proc. 6/17.0JDLSB.L1-9, Rel. Almeida Cabral (refere que segue o entendimento dos Conselheiros Mouraz Lopes e Santos Carvalho; em causa crime de abuso sexual- art. 171.º n.º 2 do CP);
--afastando tal figura, cfr., v.g., Ac. RP de 29/1/2014, Proc. 7446/08.4TAVNG.S1.P1, Rel. Donas Botto (referencia jurisprudência do STJ a favor e contra a figura do trato sucessivo nos crimes de abuso sexual de crianças; em causa os crimes de abuso sexual de criança agravado- arts. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea a) do CP; de abuso sexual de menor agravado- arts. 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 4 do CP; de coacção agravada-arts. 154.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea b) do CP); Ac. RC de 9/4/2014, Proc. 2/11.1GDCNT.C1, Rel. Alcina da Costa Ribeiro[8] (em causa os crimes de violação agravada- arts. 164.º, n.º 1, alínea a) e 177.º, n.º 5 e 6 e de sequestro-art. 158.º, n.º 1 do CP) ; Ac. RP de 9/7/2014, Proc. 2060/12.2JAPRT.S1.P1, Rel. Alves Duarte (em causa o crime do art. 171.º, n.º 2 do CP); Acs. RE de 12/7/2016, Proc. 87/10.8GGODM.E1, (em causa crimes de abuso sexual de crianças, p.p. no artº 171º, nº 3, alínea b) do Código Penal; crimes de pornografia de menores agravados, p.p. nos artºs 176º, nº 1, alínea b) e 177º, nº 6 do Código Penal; crimes de pornografia de menores agravados, p.p. nos artºs 176º, nº 1, alínea b) e 177º, nº 5 do Código Penal; crimes de pornografia de menores, p.p. no artºs 176º, nº 1, alínea b) e nº 4, do Código Penal; crimes de coacção agravada, p.p. nos artºs 154º, nºs 1 e 2, 155º, nº 1, alíneas a) e b), tendo por referência o artº 176º, nº 1, alínea c), todos do Código Penal) e de 14/6/2018, Proc. 95/16.5T9MMN.E1 ( em causa crimes de abuso sexual de crianças agravado, p.p. nos artsº 171º, nº 1 e 2, 177.º, n.º 1, alínea b) e 179.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal), ambos relatados por António João Latas; Ac. RL de 12/1/2017, Proc. 763/15.9PBAMD.L1-9, Rel. Maria Guilhermina Freitas (em causa o crime de abuso sexual dos arts. 171.º, n.º 1, 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 4 do CP).
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[9] tem perfilhado, esmagadoramente, o entendimento que afasta, quer a continuação criminosa, quer a figura do crime exaurid, de trato sucessivo, dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, como os dos presentes autos.
Depois das alterações de 2010 ao art. 30.º do CPP, só divisámos, na base da DGSI, divergência no Ac. STJ de 29/11/2012, Proc. 862/11.6TAPFR.S1, Rel. Santos Carvalho (tem voto de vencido), abaixo sumariado, que optou, inequivocamente, pela figura do crime de trato sucessivo, e que é normalmente invocado nas motivações dos recursos, bem assim como nos arestos que defendem o trato sucessivo no âmbito dos crimes em causa nestes autos.
O aresto recorrido invoca precisamente, como se vê pela transcrição atrás feita, para fundamentar a sua posição pelo crime de trato sucessivo, o cit. Ac. STJ de 29/11/2012, Proc. 862/11.6TAPFR.S1, Rel. Santos Carvalho, o Ac. STJ de 22/1/2013, Proc. 182/10.3TAVPV.L1.S1, Rel. Santos Cabral, o Ac. STJ de 23/1/2008, Proc. 07P4830, Rel. Maia Costa e o Ac. STJ de 4/2/2016, CJACSTJ, T. I, pág. 247 e ss. (este aresto foi relatado pelo Conselheiro Francisco Caetano).
Por seu turno, o invocado aresto do STJ de 4/2/2016 apoia-se, expressamente, nos cit. Acs. do STJ de 29/11/2012 e de 23/1/2008.
Todavia, o mesmo Conselheiro (Francisco Caetano) parece ter, entretanto, alterado a sua posição; na verdade, o Ac. STJ de 12/4/2018, Proc. 104/17.0JACBR.S1 (encontra-se sumariado no site do STJ), que a Ex.ma PGA, junto deste STJ, refere e transcreve no seu Parecer (supra transcrito) para alicerçar a sua posição de afastamento do trato sucessivo dos crimes de abuso sexual, é relatado, precisamente, pelo mencionado Conselheiro.
A seguir sumariam-se, por fornecerem uma sólida panorâmica sobre a questão, as decisões mais recentes e de maior relevo deste Supremo Tribunal:
• Ac. STJ de 26/2/2009, Proc. 08P2873, Rel. Arménio Sottomayor
I - Pela prática de dois crimes de abuso sexual de criança agravados, p. e p. pelo disposto nos arts. 172.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, al. a), do CP, cometidos na forma continuada, com duas menores entre os 7 anos e os 9 anos, foi o arguido condenado, na 1.ª instância, nas penas parcelares de 9 anos e 8 anos de prisão, penas cujo processo de determinação não apresenta reparos, e que não se mostram desproporcionadas à gravidade dos factos, às exigências de prevenção ou à culpa do arguido, não podendo, assim, ser consideradas injustas e ilegais, antes merecendo ser confirmadas.
II - Para a determinação da pena única, que fixou em 13 anos, o tribunal colectivo utilizou um método que não corresponde às regras da experiência que o Supremo vem adoptando, havendo que corrigir aquela pena a bem da uniformidade da jurisprudência.
III - Atendendo à globalidade dos factos praticados e à personalidade do arguido, compreendendo naqueles a circunstância de cada uma das menores ofendidas ter sido constrangida a assistir aos actos libidinosos praticados com a outra, circunstância que eleva a culpa do agente, que “tinha perfeito conhecimento da perturbação que as suas actuações provocavam na formação e estruturação da personalidade das menores, prejudicando-as no seu normal desenvolvimento físico e psíquico”, mostra-se adequado fixar a pena única em 12 anos de prisão.
• Ac. STJ de 25/3/2009, Proc. 09P0490, Rel. Armindo Monteiro
I - A alteração introduzida pela Lei 59/2007, de 04-09, ao art. 30.º do CP, acrescentando-lhe o n.º 3, segundo o qual o disposto no n.º 2 não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma pessoa, corresponde ao n.º 2 do art. 33.º do Projecto de Revisão do CP, de 1963, da autoria do Prof. Eduardo Correia, e foi discutida na 13.ª sessão da comissão de revisão, em 08-02-1964, no sentido de que só com referência a bens jurídicos eminentemente pessoais, inerentes à mesma pessoa, se poderia falar de continuação criminosa, excluída em caso de diversidade de pessoas, atenta a forma individualizada e diferenciada que a violação pode revestir, impeditiva de um tratamento penal na base daquela unidade ficcionada.
II - Essa discussão não mereceu consagração na lei por se entender que seria desnecessária, por resultar da doutrina, e até inconveniente, por a lei não dever entrar demasiadamente no domínio que à doutrina deve ser reservado. Essa não unificação resulta da natureza eminentemente pessoal dos bens atingidos, que se radicam em cada uma das vítimas, na natureza das coisas – cf. Maia Gonçalves, in Código Penal anotado.
III - A alteração introduzida é, pois, pura tautologia, de alcance inovador limitado ou mesmo nulo, desnecessária, em nada prejudicando a jurisprudência sedimentada ao nível deste STJ, ou seja, a de que, quando a violação plúrima do mesmo bem jurídico eminentemente pessoal é referida à mesma pessoa e cometida num quadro em que, por circunstâncias exteriores ao agente, a sua culpa se mostre consideravelmente diminuída, integra a prática de crime continuado, sem prescindir-se da indagação casuística dos requisitos do crime continuado, afastando-o quando se não observarem.
IV - Esse aditamento não permite, assim, uma interpretação perversa em termos de uma violação plúrima de bens eminentemente pessoais em que a ofendida é a mesma pessoa se reconduzir ao crime continuado, afastando-se um concurso real; só significa que este deve firmar-se se esgotantemente se mostrarem preenchidos os seus pressupostos, enunciados no n.º 2, de que se não pode desligar numa interpretação sistemática e global do preceito.
V - Interpretação em contrário seria, até, manifestamente atentatória da CRP, restringindo a um limite inaceitável o respeito pela dignidade humana, violando o preceituado no art. 1.º, comprimindo de forma intolerável direitos fundamentais, em ofensa ao disposto no art. 18.º da CRP.
(Neste aresto estava em causa uma só vítima e o arguido foi condenado pela prática de 7 crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelos arts. 172.º, n.º 2, e 177.º, n.º 1, al. a), do CP, e não um único crime, na forma continuada).
• Ac. STJ de 10/10/2012, Proc. 617/08.5PALGS.E2.S1, Rel. Armindo Monteiro
XXI - Com a incriminação pela prática de crime de abuso sexual de criança propõe-se o legislador proteger a autodeterminação sexual, enquanto manifestação da liberdade individual, de um modo muito particular, não pela presença da prática de actos sexuais a coberto da extorsão ou situação análoga, mas pela pouca idade da vítima, ainda que naquela prática consinta, por poder prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da personalidade da mesma, por lhe falhar a maturidade, o desenvolvimento intelectual, capaz de poder determinar-se com liberdade, responsabilidade, com pleno conhecimento dos efeitos e alcance do acto sexual de relevo, se consentido.
XXII - Inscreve-se o crime nos crimes de perigo abstracto, pois praticado o acto sexual de relevo, está criado o risco, a possibilidade, de lesão daquele valor a tutelar, portanto, à margem da possibilidade de um perigo concreto para o desenvolvimento físico ou psíquico do menor ter lugar, sem que com isto a integração pela conduta do tipo objectivo de ilícito fique arredada. (…)
XXV - De repudiar a prática de crime continuado (art. 30.º, n. 2, do CP) (…).
XXVI - A solicitação criminosa partiu do arguido, foi ele que, sendo vizinho e tendo ascendente sobre as crianças, a criou, atraindo e encaminhando as suas vítimas para a prática de reiterados actos libidinosos, num quadro de elevada censura penal, sem diminuição considerável da sua culpa, incompatível, aliás, num quadro de ofensividade de bens de cunho eminentemente pessoal, como fez questão de realçar o n.º 3 do art. 30.º do CP, na redacção conferida pela Lei 40/2010, de 03-09.
XXVII - Sendo bens eminentemente pessoais, o conceito de crime continuado está afastado. O crime continuado é de excluir, igualmente, sempre que a reiteração criminosa, menos que a uma disposição exterior, se deva a uma certa tendência da personalidade do criminoso, pois que não pode falar-se aí de atenuação de culpa.
(Ac. STJ de 21/1/2016, Proc. 8/12.3JALRA.C1. S1, do mesmo Relator, afasta a figura do trato sucessivo do crime de abuso sexual de crianças)
• Ac. STJ de 29/11/2012, Proc. 862/11.6TAPFR.S1, Rel. Santos Carvalho (tem voto de vencido de Manuel Brás)
I - Quando os crimes sexuais são atos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas, quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva atividade prolongada no tempo, torna-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem.
II - O mesmo sucede com outro tipo de crimes que, tal como o sexo, facilmente se transformam numa “atividade”, como, por exemplo, com o crime de tráfico de droga. Pergunta-se, por isso, se nesses casos de “atividade criminosa”, o traficante de rua que, por exemplo, se vem a apurar que vendeu droga diariamente durante um ano, recebendo do «fornecedor» pequenas doses de cada vez, praticou, «pelo menos», 200, 300 ou 365 crimes de tráfico [o que aparenta ser uma contagem arbitrária ou, pelo menos, “imaginativa”] ou se praticou um único crime de tráfico, objetiva e subjetivamente mais grave, dentro da sua moldura típica, em função do período de tempo durante o qual se prolongou a atividade.
III - A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido.
IV - Ao contrário do crime continuado [cuja inserção doutrinária também nasceu, entre outras razões, da dificuldade em contar o número de crimes individualmente cometidos ao longo de um certo período de tempo], nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta [ou, em caso de eventual «diminuição da culpa pelo facto», um aumento da culpa enquanto negligência na formação da personalidade ou de perigosidade censurável»]. Na verdade, não se vê que diminuição possa existir no caso, por exemplo, do abuso sexual de criança, por atos que se sucederam no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua [ou, pelo menos, se mantém estável] à medida que os atos se repetem.
V - O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque).
VI - Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma. (…)
VIII - Ora, no caso dos crimes de trato sucessivo, a punição faz-se pelo ilícito mais grave entretanto cometido, agravada, nos termos gerais, pela sobreposição dos demais.
IX - Caso se seguisse a lógica subjacente à decisão do acórdão recorrido, ter-se-ia de fazer uma decomposição de cada um dos crimes de trato sucessivo de que foi vítima a menor B em dois crimes agravados de abuso sexual de criança, acrescidos de dois crimes de coação, e, quanto à menor C, de um crime agravado de abuso sexual de criança e de outro de coação. Todavia, o Código Penal configura um tipo específico (o de violação) que tem como elemento típico a cópula vaginal ou oral forçada pelo agente através da coação grave, penalmente agravado, nos seus limites mínimo e máximo, quando a vítima seja menor de 16 ou de 14 anos de idade.
X - A questão que agora se põe é a de saber se a punição, em relação a cada um dos crimes de trato sucessivo em causa, se há-de fazer como a de um crime agravado de abuso sexual de crianças em concurso efetivo com um crime de coação ou como um crime agravado de violação, pois as molduras penais não são as mesmas, para além de que o tipo de crime de violação protege a liberdade sexual da vítima enquanto o tipo de crime de abuso sexual de crianças a sua autodeterminação sexual.
XI - Como se vê pelo “Comentário Conimbricense” (Tomo I, págs. 551 e 552), a questão tem sido muito controversa na doutrina e refletiu-se na elaboração do projeto do CP e depois na redação final, tendo o legislador optado pela punição pelo “crime sexual violento ou análogo, enquanto o crime contra a criança, qua tale, se transmuda em uma agravação daquele».
XII - Atentas estas considerações e atendendo a que o crime de trato sucessivo é punido pelo facto mais grave, considera-se, em suma, que o arguido cometeu três crimes de violação agravada, de trato sucessivo, ps. ps. nos art.ºs 164.º, n.º 1, al. a) e 177.º, n.º 6, do CP (cujas redações atuais foram conferidas pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, anterior, portanto, aos factos em apreço), a cada um dos quais corresponde a pena abstrata de 4 anos e seis meses a 15 anos de prisão.
• Ac. STJ de 12/6/2013, Proc. 1291/10.4JDLSB.S1, Rel. Isabel Pais Martins
I - O art. 30.º, n.º 2, do CP, reconduz a um crime continuado uma pluralidade de actos susceptíveis de integrar várias vezes o mesmo tipo legal de crime ou tipos diferentes (…).
II - Na vertente subjectiva do crime continuado, o ponto decisivo a que a lei confere relevo é a exigência de que o crime seja dominado por uma situação exterior que diminua sensivelmente a culpa do agente ou, nas palavras de Eduardo Correia, o “pressuposto da continuação criminosa será a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.”.
III -Com base no entendimento de que, no caso, não se verifica uma diminuição sensível da culpa do arguido, a 1.ª instância rejeitou a subsunção dos comportamentos à figura do crime continuado e sustentou a tese do crime de trato sucessivo ─ um crime de abuso sexual de criança de trato sucessivo, um crime de gravações e de fotografias ilícitas de trato sucessivo e um crime de pornografia de menores de trato sucessivo.
IV - O crime de trato sucessivo serve também hipóteses de pluralidade de crimes, mas cuja prática conforma uma actividade, prolongada no tempo, em que se torna tarefa difícil, se não arbitrária, definir o concreto número de actos parcelares que a integram. No entanto, diferentemente do que é requerido na figura do crime continuado, não se verifica uma situação exterior que diminua sensivelmente a culpa do agente.
V - Não ocorre um circunstancialismo exterior que, de maneira considerável, tenha facilitado a repetição da actividade criminosa, tornando menos exigível ao agente que se comportasse de acordo com o direito, quando a prática criminosa reiterada radica no desvio da personalidade do arguido no plano sexual e quando as condições favoráveis à sua concretização foram, por si, procuradas, aliciando os menores para que frequentassem a sua casa e criando relações de confiança com os pais deles.
VI -Aliás, a Lei 40/2010, de 03-09, ao alterar a redacção do n.º 3 do art. 30.º do CP que foi introduzida pela Lei 59/2007, de 04-09, ditou a sentença de morte do crime continuado nos crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.
(Escreve-se neste aresto que: «A subsunção das condutas a crimes de trato sucessivo não é objecto de recurso não podendo a decisão, nesse ponto, embora passível de gerar controvérsia, deixar de ser mantida.
Sustenta-se, com efeito, que, se o resultado prático pretendido pelo legislador foi a supressão da benesse do crime continuado em caso de condutas contra bens eminentemente pessoais, também “é inadmissível a punição dos crimes contra bens eminentemente pessoais como um único crime «de trato sucessivo», ficcionando o julgador um dolo inicial que engloba todas as acções. Tal ficção constituiria uma fraude ao propósito do legislador.»).
• Ac. STJ de 17/9/2014, Proc. 67/12.9JAPDL.L1.S1, Rel. Santos Cabral
III -O recorrente coloca a questão da existência de uma unidade resolutiva e consequentemente de um único crime, uma vez que entende que actuou sempre a coberto de uma mesma resolução criminosa, que abrangeu sempre a mesma ofendida, que não ocorreu qualquer ruptura ou fractura temporal e que se verifica uma circunstância espacial contínua.
IV -O índice da unidade (ou da pluralidade) de determinações volitivas apenas se pode consubstanciar na forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente.
V - A experiência e as leis da psicologia referem que, se entre diversos actos medeia um largo espaço de tempo, a resolução que inicialmente os abrangia a todo se esgota no intervalo da execução, de tal sorte que os últimos não são a sua mera descarga, mas supõem um novo processo deliberativo.
VI -Deve considerar-se existente uma pluralidade de resoluções sempre que não se verifique, entre as actividades efectuadas pelo agente, uma conexão de tempo tal que, de harmonia com a experiência e as leis psicológicas, se deva aceitar que ele as executou a todas sem ter de renovar o respectivo processo de motivação.
VII - A concretização da pena conjunta tem de assentar num juízo que revele o significado do ilícito global em termos da sua relevância para a ordem jurídica violada (conteúdo da ilicitude) e a gravidade da reprovação que deve dirigir-se ao agente pelo conjunto das infracções praticadas (conteúdo da culpa).
VIII - O abuso sexual representa uma catástrofe na vida de uma criança e produz uma devastação da estrutura psíquica, que implica uma vivência de solidão extrema e constitui uma situação limite para a sustentação do funcionamento psíquico, enquanto afecta o núcleo mais pessoal e básico da identidade: o corpo.
IX -Como consequências, tanto imediatas como tardias, do abuso sofrido, surgem a culpa, a ansiedade, a depressão, a vergonha e a baixa auto-estima que deriva da ideia de que o abuso foi merecido. Frequentemente, os abusados são autodestrutivos, colocando-se em situações de risco ou apresentando atitudes suicidas concretas.
X - Tendo o arguido sido condenado pela prática de dois crimes de abuso sexual de crianças do art. 171.º, n.ºs 1 e 2, do CP, nas penas de 6 e de 7 anos de prisão, não merece reparo a aplicação ao arguido da pena conjunta de 9 anos de prisão.
• Ac. STJ de 17/9/2014, Proc. 595/12.6TASLV.E1.S1, Rel. Pires da Graça
I - O crime de trato sucessivo, embora englobe a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executado de forma essencialmente homogénea, é unificado pela mesma resolução criminosa, bastando a prática de qualquer das condutas para que fique preenchido o tipo legal de crime.
II -Inexiste o crime de trato sucessivo quando, embora exista homogeneidade na violação do mesmo bem jurídico, há uma pluralidade de resolução criminosa na produção do resultado que desencadeia e que se autonomiza como tal.
III - O crime de trato sucessivo afasta-se da figura do crime continuado, porque não pressupõe, a característica deste, de ser praticado “no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.
IV - Inexistem os pressupostos do crime continuado quando a culpa do arguido é mais acentuada, mais considerável, decorrente da relação que tinha de natureza idêntica à familiar, com a menor e a sua mãe, sendo-lhe especialmente exigível, na ausência da mãe da mesma, que zelasse pela defesa da menor, de forma a dela cuidar e proteger.
V - Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, o abuso sexual repetido de um criança provoca uma tortura psicológica na criança que vive no pavor constante de vir a ser mais uma vez abusada pelo seu abusador, o que se mostra incompatível com a afirmação de uma culpa diminuída do agente abusador. (…)
• Ac. STJ de 22/4/2015, Proc. 45/13.0JASTB.L1.S1, Rel. Sousa Fonte
III -Não se afigura como correcta a qualificação dos plúrimos abusos sexuais sobre o mesmo ofendido como constitutivos de um crime de trato sucessivo, pelo que se considera que o arguido cometeu, em concurso real, os crimes especificadas na decisão da 1.ª instância.
IV - Todavia, a alteração da qualificação no sentido que entendemos ser o correcto reclamaria penas parcelares, pelo menos em bem maior número do que as consideradas pelo Tribunal da Relação, como se viu, e, por via do agravamento do correspondente somatório, uma pena conjunta mais elevada do que a cominada no acórdão recorrido, o que, traduzindo-se em reformatio in pejus, nos estaria vedado pela proibição estabelecida no art. 409.º, n.º 1, do CPP. Por isso, no julgamento do recurso, não podemos senão atender às penas parcelares (não impugnadas) e conjunta cominadas no acórdão recorrido em função das quais será julgado o mérito do recurso.
V - Ao nível da determinação da medida concreta da pena, há que ponderar que se o «pedófilo» sofre de uma «parafilia», uma perversão, no sentido de que se sente eroticamente atraído de forma compulsiva e exclusiva por crianças, o que, sem lhe retirar lucidez, poderá atenuar a sua responsabilidade, são justamente os delinquentes onerados por qualquer tendência para o crime os mais perigosos, os mais necessitados de socialização e aqueles de que a sociedade tem de se defender mais fortemente.
VI -Assim, face aos factos provados, designadamente a tendência do arguido para este tipo de crimes, o elevado grau de culpa que, aliás, não contesta, as exigências de prevenção geral, muito elevadas, as fortes exigências de prevenção especial, tanto de socialização como de dissuasão, a pena aplicada é a adequada e proporcional à sua repetida conduta criminosa, insistentemente executada ao longo dos anos de 2011/2012, mas com episódios em 2007 (quando um dos ofendidos tinha 6 anos de idade), em 2009 e início de 2013, e exercida sobre 13 ofendidos. Por isso, confirmamos a pena cominada no acórdão recorrido.
(Ac. STJ de 13/7/2016, Proc. 154/15.1JDLSB.E1.S1, do mesmo Relator, afasta a figura do trato sucessivo do crime de abuso sexual de crianças)
• Ac. STJ de 30/9/2015, Proc. 2430/13.9JAPRT.P1.S1, Rel. Raul Borges
V-O STJ tem optado pela subsunção da pluralidade de condutas, no plano do abuso sexual de crianças, na figura do concurso efectivo de crimes, afastando a configuração de tais situações nos restantes quadros reguladores possíveis, como seja o crime continuado, o crime único ou o crime de trato sucessivo.
VI - Não obstante tal entendimento jurisprudencial maioritário, é de proceder à unificação num único crime, quando estejam em causa condutas sem a mínima determinação, ou seja, quando esteja em causa uma imputação genérica, sem a mínima concretização factual/temporal para além da única ocasião que é de ter por assente. Com efeito, tal imprecisão da matéria de facto provada impede que se considere respeitado o princípio do contraditório, dado que o arguido não poderá validamente pronunciar-se sobre uma afirmação genérica, pelo que a situação tem de ser equacionada de acordo com o princípio in dubio pro reo, isto é, optando pela condenação pela prática de um único crime (que não crime único).
VII - Já nos outros casos em que não se verifica tal imputação genérica, tendo sido dada como por assente a ocorrência de abusos sexuais em pelo menos 4 vezes, não será de aceitar a unificação realizada pelo acórdão recorrido, estando em causa, em cada caso, a prática pelo recorrente de 4 crimes, em concurso efectivo. Sendo certo que, face ao princípio da reformatio in pejus, tal correcção não terá qualquer influência na medida das penas.
VIII - Com efeito, os comportamentos do recorrente não integraram apenas uma resolução criminosa, antes existindo várias resoluções criminosas, que se traduzem no facto de o recorrente em dias e épocas diferentes ter accionado e renovado a sua vontade para praticar o crime sexual e repeti-lo. Ou seja, o arguido criava as condições, procurava e fomentava as oportunidades de contacto, renovando o desígnio criminoso, estando-se, pois, perante resoluções distintas, reformuladas de forma autónoma em relação às anteriores. (…)
(sublinhado nosso)
• Ac. STJ de 14/1/2016, Proc. 414/12.3TAMCN.S1, Rel. Manuel A. Matos
I - Os crimes de trato sucessivo correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se desdobra numa multiplicidade de actos semelhantes que se vão praticando ao longo do tempo, mediando intervalos entre eles.
II -Alguma jurisprudência do STJ tem vindo a enquadrar as condutas de abuso sexual de crianças na figura do crime único de trato sucessivo. Porém, a maioria da jurisprudência do STJ é no sentido de que, no caso do crime de abuso sexual de crianças, o entendimento é o da integração da pluralidade de condutas à figura do concurso efectivo de crimes.
III - Considera a referida jurisprudência maioritária, que a estrutura típica do crime de abuso sexual de crianças não pressupõe tal reiteração, isto é, não se pretende com o mesmo punir uma actividade, pelo que não lhe é aplicável a figura do crime de trato sucessivo.
IV - A eventual admissão da unificação de uma pluralidade de condutas essencialmente homogéneas, através da figura do crime de trato sucessivo, no âmbito do tipo penal de abuso sexual de crianças, poderia redundar num resultado que o legislador claramente quis afastar – ainda que por referência à figura do crime continuado – com a alteração ao n.º 3 do art. 30.º do CP realizada pela Lei 40/2010, de 03-09, que exclui expressamente a admissibilidade da possibilidade de unificação de uma pluralidade de condutas na figura do crime continuado, quando estejam em causa bens eminentemente pessoais.
V -Pelo que, merece a concordância a conclusão do acórdão recorrido quanto ao enquadramento jurídico do acervo factual, fixado em 329 crimes de abuso sexual de crianças, enquadramento juridicamente correcto, não sendo aplicável, in casu, a figura do crime de trato sucessivo, invocada pelo recorrente. (…)
VIII - A nível jurisprudencial não se surpreenderam situações em que estivessem em causa a prática de um tão elevado número de crimes, como no caso em apreço, pelo que, uma qualquer tentativa de análise comparativa das penas únicas aplicadas, em casos idênticos, resulta gorada.
IX - No caso é evidente a conexão entre os vários crimes de abuso sexual de crianças cometidos pelo recorrente, estando em causa condutas homótropas, com afinidades e pontos de contacto, inclusive ao nível do concreto modo como os crimes foram praticados, designadamente no que diz respeito aos específicos actos sexuais praticados. A culpa, face ao período de 6 anos em causa, ao número de vítimas envolvidas (9), as respectivas idades, e à relação de ascendência que o recorrente tinha sobre as mesmas (padrinho, professor e treinador de futebol), é elevada, sendo também elevadas as exigências de prevenção geral e de prevenção especial.
X - Contudo, não obstante o elevado número de crimes em causa, todas as penas parcelares aplicadas se encontram muito distantes, quer das suas respectivas molduras abstractas, quer do limite máximo da moldura do concurso. O recorrente não tem antecedentes criminais registados e, apesar de tudo, sempre teve hábitos de trabalho, sendo que a pena aplicada pelo tribunal colectivo de 25 anos de prisão constitui o limite máximo permitido no nosso ordenamento jurídico-penal, correspondendo à pena prevista para a tutela do bem jurídico mais elevado, ou seja, a vida. Pelo que, ponderados todos os elementos se considera como adequada a pena única de 20 anos de prisão.
• Ac. STJ de 6/4/2016, Proc. 19/15.7JAPDL.S1, Rel. Santos Cabral
I - A conduta do arguido que, desde Julho de 2014 e até Janeiro de 2015, altura em que a vítima era menor de 13 e 14 anos, respectivamente, manteve com esta, relações sexuais, com cópula completa, com uma regularidade de 1 vez por semana, nos dois primeiros meses, e de 2 a 3 vezes por semana, nos meses subsequentes até à data da detenção do arguido, em Janeiro de 2015, é demonstrativa de uma renovação de vontade, que tem na sua génese a satisfação dos instintos sexuais, evidenciando-se pelo facto de entre a prática das mesmas relações mediar um lapso temporal mais do que suficientemente para que emergisse uma ponderação da conduta do recorrente à face daquilo que lhe era exigível no cumprimento de regras básicas de convivência e de conduta de vida e impostas legalmente.
II - Mesmo existindo uma unidade de resolução, a mesma não concede automaticamente a configuração de crime de trato sucessivo, pressupondo a afinidade desta figura com a do crime habitual, pois que somente a estrutura do respectivo tipo incriminador há-de supor a reiteração.
III - Em face de tipos de crime como os imputados no caso vertente - crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 e 2 e 177.º, n.º 4, do CP - não nos encontramos perante uma «multiplicidade de actos semelhantes» realizados duma forma reiterada sob o denominador duma unidade resolutiva pois que cada um dos vários actos do arguido foi levado a cabo numa policromia de contextos separados por um hiato temporal e comandadas por uma diversas resoluções, traduzindo-se cada uma numa autónoma lesão do bem jurídico protegido.
IV - Cada um destes actos não constituiu um segmento ou parcela duma globalidade factual desdobrando-se como parte duma única actividade, mas constitui por si mesmo facto autónomo. Deve por isso entender-se que, referentemente a cada grupo de actos existe, pluralidade de crimes.
V - Se o resultado prático pretendido pelo legislador foi a supressão da benesse do crime continuado em caso de condutas contra bens eminentemente pessoais, também é inadmissível a punição dos crimes contra bens eminentemente pessoais como um único crime «de trato sucessivo», ficcionando o julgador um dolo inicial que engloba todas as acções. Tal ficção constituiria uma fraude ao propósito do legislador.
VI - É evidente que o apelo à figura de trato sucessivo permite ultrapassar uma outra questão que é o da determinação concreta do número de actos ilícitos que devem ser imputados. Porém, esse é um tema que convoca a forma como se faz a investigação criminal e a diligência acusatória e não uma questão de dogmática penal.
VII - Perante a realização repetida do mesmo tipo de crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 e 2 e 177.º, n.º 4, do CP, num espaço temporal de 6 meses, encontramo-nos perante uma situação de pluralidade de crimes, sendo certo que tal dessintonia não pode assumir relevância jurídica no caso concreto (em que o arguido recorrente foi condenado pela prática de um único crime) face ao princípio da proibição da "reformatio in pejus" na medida em que o recurso foi interposto unicamente pelo arguido.
VIII - A existência, ou não, de consentimento da vítima menor, sendo irrelevante no afastamento da tipicidade criminal, poderá assumir um significado mais, ou menos, intenso consoante a idade da vítima, ou seja, em equação com a maior ou menor proximidade do limite que o legislador entendeu como relevante para a concessão de dignidade penal ao comportamento do arguido.
IX - Ponderando que o arguido agiu com dolo directo, sendo a ilicitude das suas condutas muito elevada tendo em consideração não só a forma de actuação mas também o resultado, mas por outro lado, considerando a inexistência de coacção e considerando, em sede de determinação concreta da pena, o grau de desenvolvimento da menor, relevando uma pequena diminuição da ilicitude de que revestem os actos praticados, entende-se por adequada a pena de oito anos de prisão (em detrimento da pena de 10 anos e 6 meses prisão aplicada pelas instâncias), pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 e 2 e 177.º, n.º 4, do CP.
• Ac. STJ de 14/7/2016, Proc. 677/13.7TAAGH.L1.S1, Rel. Souto de Moura
V - É inadmissível a punição dos crimes contra bens eminentemente pessoais - como sucede com os crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. no art. 171.º, n.ºs e 177.º, n.º 1, al. a), do CP - como um único crime de trato sucessivo, ficcionando o julgado um dolo inicial que engloba todas as acções.
VI - Se o n.º 3 do art. 30.º do CP proíbe o tratamento de unidade criminosa em termos de crime continuado estando em causa a violação de bens eminentemente pessoais, sendo o legislador insensível a uma menor exigibilidade de conduta diversa do agente, por maioria de razão terá que ser da mesma maneira, se nem sequer estão preenchidos os pressupostos do crime continuado.
VII - Perante o comportamento do arguido que em cinco ocasiões esfregou o seu pénis erecto no ânus do seu filho de 12 anos, durante o período de um mês, nunca seria possível considerar haver diminuição sensível da culpa se a situação de facilitação de atuação do agente resultar, como é o caso, da fragilidade da vítima, à guarda do agente, que a devia por lei proteger e nunca maltratar.
VIII - A ilicitude global do comportamento do arguido que praticou os cinco crimes em menos de um mês, de forma igual, quatro deles durante o período em que a mãe da vítima e mulher do arguido estava internada no hospital aponta para que seja só uma parte reduzida das quatro penas a acrescer a uma delas. (…).
XI - O tipo de criminalidade aqui em questão desaconselha claramente, no caso, a suspensão da execução da pena, já que numa perspectiva de prevenção especial, os contornos do caso reclamam um tempo de reclusão que permita uma interiorização individual do mal que o arguido fez ao filho, e por outro lado, tendo em conta as necessidades de prevenção geral, importa que a comunidade não encare, no caso, a suspensão como sinal de impunidade, que não veja nela como que um perdão judicial, retirando toda a sua confiança ao sistema repressivo penal.
• Ac. STJ de 30/11/2016, Proc. 444/15.3JAPRT.G1.S1, Rel. Pires da Graça
I - O crime de trato sucessivo, embora englobe a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico executado por forma essencialmente homogénea, é unificado pela mesma resolução criminosa, bastando a prática de qualquer das condutas para que fique preenchido o tipo legal de crime.
II - No caso, estando em causa crimes de abuso sexual de crianças, as acções adequadas à produção do resultado, ainda que de forma sucessiva, não se encontram interligadas de forma a que só possam produzir o resultado numa adequação conjunta de todas elas. Outrossim, cada acção produz o consequente resultado. Pelo que, in casu, a renovação da acção criminosa reiterada desenvolvida, produz o consequente e adequado resultado. Embora haja homogeneidade na violação do mesmo bem jurídico, há uma pluralidade da resolução criminosa na produção do resultado que desencadeia e que se autonomiza como tal. Inexiste, pois, o crime de trato sucessivo.
III - Inexistem, de igual forma, os pressupostos do crime continuado, uma vez que o ilícito de abuso sexual de crianças atenta contra bem jurídico eminentemente pessoal, qual seja a autodeterminação sexual da vítima, pelo que está legalmente afastada a possibilidade de o arguido ter praticado um só crime continuado, atento o disposto no art. 30.º, n.º 3, do CP.
IV - Tendo em conta que a situação delituosa ocorreu não menos de 20 vezes, mediante o aproveitamento da ausência da residência da companheira do arguido, sendo que em algumas das ocasiões o arguido procurou penetrar o ânus da ofendida, não tendo nunca usado preservativo e em algumas das situações ejaculado na zona da vagina da ofendida, o grau de ilicitude é muito elevado. (…)
V - Analisado o ilícito global, verifica-se a natureza homogénea e gravidade dos crimes, reflectida nas penas parcelares ora aplicadas. Os factos encontram-se interligados, por resoluções e meio de actuação idênticos. O arguido não possui antecedentes criminais e à data dos factos mantinha uma vida familiar estruturada, estando integrado familiar e socialmente. O ilícito global foi perpetrado sobre uma única pessoa menor, pelo que verifica-se que os factos resultaram de actuação pluriocasional e não de tendência para delinquir. Pelo que, tudo ponderado se conclui ser adequada a pena única de 8 anos de prisão.
• Ac. STJ de 14/12/2016, Proc. 3/15.0T9CLB.C1.S1, Rel. Sousa Fonte
I - Resultando dos factos provados que, pelo menos, desde meados do mês de Setembro de 2013 e até Dezembro de 2014, a arguida, em comum acordo e em união de esforços com o arguido, decidiu sujeitar a sua filha menor de 14 anos, à prática de relações sexuais com o arguido de cópula completa, com frequência quinzenal, em troca de géneros alimentícios, aproveitando a relação de proximidade e confiança que aquele detinha junto da menor, em resultado das quais a menor veio a engravidar, forçoso é considerar que a referida conduta preenche não a prática, em co-autoria, de um crime de abuso sexual de abuso sexual de criança agravado, de trato sucessivo, p. e p. pelos arts. 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.ºs 1, al. a), e 4, do CP, mas antes a prática, em co-autoria e concurso real, de um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.ºs 1, al. a), e 4, e tantos crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.ºs 1, al. a), todos do CP quanto os actos sexuais praticados.
II - A reiteração criminosa é resultado do acordo estabelecido entre os dois arguidos, no sentido da sujeição da vítima à prática de relações sexuais com ele, daí que a resolução criminosa de um e de outro, se renovassem, em todas as manhãs ou tardes de domingo, normalmente em cada quinzena, durante aquele período temporal de não menos de 11 meses.
III - Devendo os factos ser entendidos como constituindo o concurso de um elevado número de crimes - não será exagero pensar em 10/11 crimes daquele segundo tipo, tantos os meses que durou a situação - e não devendo as penas parcelares a aplicar por qualquer deles ser muito diferentes das cominadas pela 1.ª instância, ou mesmo que, por meras razões argumentativas, se devessem fixar no limite mínimo (4 anos e 6 meses de prisão), a pena conjunta por que cada um dos arguidos viria a ser condenado seria necessariamente mais elevada do que a de 10 e 11 anos que foi imposta à arguida e ao arguido, respectivamente, pelo Tribunal da Relação.
IV - Tais penas conjuntas são inatendíveis por violarem o princípio da proibição da reformatio in pejus, consagrado no n.º 1 do art. 409.º do CPP, dado que o recurso foi interposto unicamente pelos arguidos, mas evidenciam, ainda assim, a improcedência do recurso quanto à medida das penas aplicadas.
V - A doença de que o arguido padece (por ter sofrido a extracção de um pulmão, vários enfartes, é insulinodependente, sofreu vários acidentes vasculares cerebrais que lhe determinaram alguma confusão mental e conversas incoerentes, confusão mental), bem como, a confissão por este formulada, com valor atenuativo algo esbatido, como simples corroboração dos indícios fornecidos pela prova documental produzida, não tem a virtualidade de diminuir de forma acentuada a ilicitude da conduta do arguido, a sua culpa ou a necessidade da pena, por forma a justificar uma atenuação especial da pena.
VI - As dificuldades económicas da arguida e o seu analfabetismo, por si, não diminui, nem pode diminuir, a consciência do desvalor da sua conduta, nem podem justificar ou ajudar a compreender o acordo com o arguido, sendo que, a circunstância de a ofendida já não se encontrar a seu cargo, que de maneira nenhuma diminui o mal que lhe causou, pelo que, tais factores não são motivo de atenuação da ilicitude dos factos provados que justifiquem uma atenuação especial da pena.
(Com referência de abundante jurisprudência do STJ).
• Ac. STJ de 4/5/2017, Proc. 110/14.7JASTB.E1.S1, Rel. Helena Moniz
II - No acórdão recorrido, considerou-se expressamente que terá havido uma pluralidade de resoluções criminosas, concluindo-se, no entanto, pela punição de apenas um crime de abuso sexual de criança e um crime de abuso sexual de menor dependente, com o argumento de que não foi possível proceder à quantificação do número de vezes que ocorreram os atos de abuso, ou seja, considerou-se que não havendo prova do número exato de atos realizados, apenas se condena por um, isto apesar de ter sido dado como provado que o “arguido manteve as descritas práticas sexuais com o ofendido RC, reiteradamente, ao longo dos anos, várias vezes por semana, mesmo depois do mesmo ter atingido a maioridade, mais concretamente, até ao dia ...05/2014” (facto provado 7).
III - Tratando-se no presente caso de crimes contra bem jurídico eminentemente pessoal, como é o bem jurídico da autodeterminação sexual da criança e do menor dependente logo por força do disposto no art. 30.º, n.º 3, do CP, bem andou o acórdão recorrido que considerou não ser o caso dos autos subsumível à figura do crime continuado, ainda que o argumento utlizado para chegar a esta conclusão tenha sido tão-só o da existência de uma pluralidade de resoluções criminosas.
IV - Devemos concluir que houve uma pluralidade sucessiva de crimes contra a autodeterminação sexual do ofendido praticados ao longo de um período excessivamente longo de tempo, cerca de mais de 10 anos — entre 2002/2003 (cf. facto provado 3) e até ....05.2014 (cf. facto provado 7).
V - Porém, é com base nesta ideia de sucessão de crimes idênticos contra a mesma vítima, e num certo e delimitado período temporal, que o Supremo Tribunal de Justiça tem considerado que estamos perante o que vem designando de “crime de trato sucessivo”, e por isso o acórdão recorrido acabou por condenar o arguido em apenas um crime de abuso sexual de criança e um crime de abuso sexual de menor dependente. Ou seja, a jurisprudência portuguesa, acaba por unificar, à margem da lei, várias condutas numa única, considerando que há uma unidade de resolução (que abarca todas as resoluções parcelares que ocorrem aquando da prática de cada sucessivo ato integrador de um tipo legal de crime), mas em que, à medida que se prolonga no tempo, produz uma agravação da culpa do agente.
VI - É esta conduta prolongada, protraída, no tempo que levou à sua designação como crime prolongado, embora a caracterização do crime como prolongado dependa de a conduta legal e tipicamente descrita se poder considerar como sendo uma conduta prolongada — ora, a conduta, por exemplo, do crime de abuso sexual de criança, ainda que este seja repetido inúmeras vezes, está limitada temporalmente; os atos consubstanciadores daquele abuso, isto é, a prática de “acto sexual de relevo” (cf. arts. 171.º e 172.º, ambos do CP) ocorrem num certo período e quando sucessivamente repetidos, tem entendido alguma jurisprudência, como integrando um mesmo crime de abuso sexual.
VII - Porém, ideia de sucessão de condutas que parece querer-se atingir com a designação de “trato sucessivo” implica necessariamente que haja uma sucessão de tipos legais de crime preenchidos e, portanto, segundo a lei, uma punição em sede de concurso de crimes. A unificação de todos os crimes praticados em apenas um crime, quando o tipo legal de crime impõe a punição pela prática de cada ato sexual de relevo, e sem que legalmente esteja prevista qualquer figura legal que permita agregar todos estes crimes, constitui uma punição contra a lei, desde logo, por não aplicação do regime do concurso de crimes. Isto é, não podendo unificar-se a prática de todos aqueles atos no crime continuado, previsto no art. 30.º, n.º 2, do CP, por força do disposto no art. 30.º, n.º 3, do CP, então apenas nos resta aplicar o disposto no art. 30.º, n.º 1, do CP. Entender que tendo sido o mesmo tipo legal de crime preenchido diversas vezes pela conduta do arguido, ainda assim devemos entender como estando apenas perante um único crime, será decidir contra legem.
VIII - Além do mais, a designação de “trato sucessivo” constitui uma designação com um significado juridicamente muito preciso e decorrente do Código de Registo Predial (cf. art. 34.º) pretendendo-se documentar o trato, a traditio da coisa, sucessivamente; ora, num crime sexual não há traditio.
IX - E crime exaurido ou consumido dá a ideia de que logo no primeiro ato se consuma, tornando irrelevantes os atos sucessivos. Ora, o exaurimento do crime assume importância em todos aqueles casos em que, após a consumação, ocorre a terminação do crime, sendo relevante a desistência da tentativa entre um e outro momento. Mas a prática de um crime sexual seguida da de outros crimes sexuais não impede a consumação de um crime sexual em cada um dos atos.
X - O “crime de trato sucessivo” tal como tem sido caracterizado pela jurisprudência corresponde ao crime habitual, ou seja, “aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual” (Figueiredo Dias). No entanto, o entendimento de um crime como sendo crime habitual tem necessariamente que decorrer, atento o princípio constitucional da legalidade criminal (art. 29.º, n.º 1, da CRP), do tipo legal de crime previsto na lei.
XI - A punição de uma certa conduta a partir da reiteração, sem possibilidade de análise individual de cada ato, apenas decorre da lei, ou dito de outro modo, do tipo legal de crime. Ora, unificar diversos comportamentos individuais que têm subjacente uma resolução distinta sem que a lei tenha procedido a essa unificação constitui uma clara violação do princípio da legalidade, e, portanto, uma interpretação inconstitucional do disposto nos arts. 171.º e 172.º, ambos do CP.
XII - Em parte alguma os tipos legais de crime de abuso sexual de criança e de abuso sexual de menor dependente permitem que se possa entender apenas como um único crime a prática repetida em diversos dias, ao longo de vários anos — mais de 10 —, em momentos temporalmente distintos, e fundada em sucessivas resoluções criminosas, de diversos atos sexuais de relevo.
XIII - Casos há em que não é possível apurar o número exato de condutas praticadas pelo arguido. Ou seja, sobra a pergunta: tendo conseguido a prova dos atos de abuso sexual, mas sem prova precisa do número de vezes e do momento temporal, o arguido deve ser absolvido dos crimes que praticou? Ou quantos crimes devem ser-lhe imputados? Enquanto se mantiver a legislação que temos, cabe fazer a prova do maior número possível de atos individuais, devendo ser excluídos, em nome do princípio in dubio pro reo, aqueles cuja prova se não consegue obter de forma segura.
(Com orientação similar, e da mesma relatora, cfr. Ac. STJ de 20/4/2016, Proc. 657/13.2JAPRT.P1.S1).
• Ac. STJ de 13/7/2017, Proc. 1205/15.5T9VIS.C1.S2, Rel. Rosa Tching
I - É de afastar a figura do chamado "crime de trato sucessivo", no crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 e 2 e 177.º, n.º 1, ambos do CP, dado que não nos encontramos perante uma "multiplicidade de actos semelhantes" realizados duma forma reiterada sob o denominador duma unidade resolutiva pois que cada um dos vários actos do arguido foi levado a cabo numa policromia de contextos separados por um hiato temporal e comandadas por uma diversas resoluções, traduzindo-se cada uma numa autónoma lesão do bem jurídico protegido.
II - Cada um destes actos não constituiu um segmento ou parcela duma globalidade factual desdobrando-se como parte duma única actividade, mas constitui por si mesmo facto autónomo. Deve por isso entender-se que, referentemente a cada grupo de actos existe, pluralidade de crimes.
• Ac. STJ de 18/1/2018, Proc. 239/11.3TALRS.L1, Rel. Lopes da Mota
IV - Alguma jurisprudência, nomeadamente o acórdão deste STJ de 29-11-2012, proferido no proc. 862/11.6TAPFR.S1, seguido no acórdão recorrido, tem vindo a considerar que, nos casos em que os crimes sexuais envolvem uma repetitiva actividade prolongada no tempo, tornando difícil e quase arbitrária qualquer contagem, se deve recorrer às figuras dos crimes “prolongados”, “protelados”, “protraídos”, “exauridos” ou “de trato sucessivo”, em que se convenciona que há só um crime, apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime, tanto mais grave, no quadro da sua moldura penal, quanto mais repetido.
V - Seguindo outra jurisprudência do STJ, nomeadamente o acórdão de 06-04-2016, proferido no proc.19/15.7JAPDL.S1, não é possível concluir, perante a matéria de facto provada, que a conduta do recorrente se reconduz ao preenchimento, por uma única vez, do tipo de crime da previsão do art. 171.º, n.º 2, do CP.
VI - Os factos praticados, repetidos com regularidade, integram reiteradamente os elementos do tipo de ilícito consistentes em cópula, coito anal e coito oral, introdução vaginal e anal de partes de corpo, conferindo, assim, por si só, na sua enumeração cumulativa, concreta expressão ao elevadíssimo grau de ilicitude da conduta do recorrente. (…)
VIII - Porém, por virtude da limitação imposta pelo princípio da proibição de reformatio in pejus, nos termos do disposto no artigo 409.º do CPP, uma vez que o recurso foi interposto somente pelo arguido, não pode este tribunal, modificar, na sua espécie ou medida, a sanção constante da decisão recorrida, o que significa que, no caso concreto, não poderá ser agravada a pena de 7 anos de prisão aplicada pelo tribunal da Relação, que assim se mantém.
• Ac. STJ de 22/3/2018, Proc. 467/16.5PALSB.L1-S1, Rel. Souto de Moura
I - A jurisprudência do STJ, já antes maioritária, é presentemente praticamente unânime, ao afastar a figura de «trato sucessivo» dos casos de crimes contra a autodeterminação sexual do art. 171.º e 172.º, ambos do CPP.
II - O crime de «trato sucessivo» trata-se de uma criação da doutrina e também da jurisprudência, fundamentalmente para abarcar as situações de reiteração de crimes iguais ou próximos, em que se não pode falar de uma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente (art. 30.º, n.º 2, do CP). No art. 119.º, n.º 2, al. b), do CP alude-se aos “crimes habituais” e, ao nível processual, o art. 19.º, n.º 3, do CPP, ao falar de crime que se consuma por actos reiterados, pode estar a referir-se não só ao crime continuado como ao crime habitual. Assim a designação de «crime habitual» será preferível a «crime de unidade de valoração», «de trato sucessivo» ou de «actividade» ou «exaurido».
III - No crime habitual a consumação prolonga-se no tempo por força de uma multiplicidade de actos reiterados, sendo cada um estritamente unitário. Certo que a reiteração se analisa numa pluralidade de actos homogéneos intervalados temporalmente. Ao contrário do crime permanente a persistência no tempo da consumação não decorre de um só acto mas de uma pluralidade deles, e ao invés do crime contínuo os actos reiterados não são seguidos.
IV - A redacção dos arts. 171.º e 172.º, ambos do CP, não revela nada de que se possa retirar que se está perante um crime habitual. Caracterizar o comportamento delituoso como uma unidade criminosa, contraria a configuração que o tipo assumiu entre nós. Este não engloba, logo à partida, tanto a prática de um, como de mais actos criminosos. Mas além disso, essa seria uma postura que iria contra a vontade do legislador, claramente patente na nova redacção do art. 30.º, n.º 3, do CP.
(Aresto com referências ao crime continuado e “de trato sucessivo”, bem como à jurisprudência e ao CP alemão).
• Ac. STJ de 6/12/2018, Proc. 2201/17.3JAPRT-S1, Rel. Isabel São Marcos
Afasta a figura do crime de trato sucessivo num caso em que estavam em causa vários crimes de abuso sexual de criança agravado.
• Ac. STJ de 20/2/2019, Proc. 234/15.3JAAVR.S1, Rel. Júlio Pereira
I - O chamado crime de trato sucessivo mais não é do que uma tentativa de ampliar a nossa construção jurídica do crime continuado, despojando-o da marca essencial que assume no nosso ordenamento jurídico-penal, que é a realização plúrima da acção típica no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente (art. 30.º, n.º 2 do CP).
II - A categoria de crime de trato sucessivo, não vem, com essa designação, contemplada na lei, que prevê o crime permanente [art. 119.º, n.º 2, al. a), do CP], o crime continuado [arts. 119.º, n.º 2, al. b), 30.º, n.ºs 2 e 3, e 79.º] e o crime habitual [art. 119.º, n.º 2, al. b)], bem como o crime que se consuma por actos sucessivos ou reiterados [art° 19°, n° 2, do CPP].
III - Dado que os crimes praticados pelo arguido [1 crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art. 171.º, n.ºs 1 e 2 do CP e de 9 crimes de pornografia de menores agravado, p. e p. pelos arts. 176.º, n.º 1, al. b) e 177.º, n.º 5, do CP (na redacção dada pela Lei 59/2007, de 04-09)], protegem bens jurídicos de natureza eminentemente pessoa e, para além disso, cada um dos crimes ofendeu uma diferente vítima, e porque a conduta do arguido não se enquadra em qualquer das designações supra mencionadas tem a mesma que ser punida de acordo com as regras do concurso efectivo constantes do art. 30.º, n.º 1 do CP.
IV - Dado que o acórdão recorrido considerou o grau de violação dos deveres que se impunham ao arguido e a forma insidiosa da sua conduta, traduzida em se fazer passar no Facebook por jovem adolescente, umas vezes de sexo feminino, outras de sexo masculino, para desta forma persuadir os menores ofendidos a exibirem-se nus ou em plena manipulação dos órgãos genitais perante a webcam ou a filmarem-se e fotografarem-se nestes termos e enviar-lhe os respectivos ficheiros, (…), considera-se que as penas de prisão aplicadas que variaram entre 1 ano e 8 meses, 1 ano e 10 meses e 2 anos e 2 anos e 6 meses de prisão que foram fixadas dentro de uma moldura entre um mínimo de 1 ano e 6 meses e 7 anos e 6 meses de prisão, de forma alguma se podem considerar desproporcionadas ou excessivas.
V - O facto de o arguido não ter contactado pessoalmente com os ofendidos compreende-se à luz do anteriormente considerado, já que em tais circunstâncias não seria possível utilizar um falso perfil. Em qualquer caso a ausência de contactos pessoais com os menores nada significa de per se, sendo irrelevante no contexto da medida da pena.
VI - Irrelevante é também a não transmissão a terceiros de filmes, vídeos ou fotografias, o que constituiria uma outra modalidade de realização do crime «art. 176.º, n.º 1 alínea c)». O nosso direito penal é direito penal do facto. A medida da pena é determinada em função daquilo que o arguido fez e não do que não fez, ainda que o pudesse ter feito. (…)
VIII - Perante uma moldura penal abstracta de cúmulo entre 4 anos e 21 anos e 4 meses de prisão, ponderando o facto de a conduta do arguido se ter desenvolvido ao longo de pelo menos seis anos sem que se tenha confrontado a si próprio com a anomalia da sua conduta, dado tratar-se comprovadamente de pessoa com formação acima da média, elevado funcionamento cognitivo (acima da média), não se ignorando o empenho que ele tem revelado no tratamento a que se tem sujeitado face ao diagnóstico de perturbação de pedofilia e voyeurismo, (…) não merece censura a pena única de 6 anos e 6 meses de prisão aplicada em 1.ª instância.
Os que defendem o trato sucessivo, como o cit. Ac. STJ de 29/11/2012, Rel. Santos Carvalho, costumam fazê-lo nos casos em que é difícil e arbitrária a contagem de crimes.
Mas a indeterminação relativamente ao número de crimes, cometidos em determinado período de tempo, não deve ser colmatada com o recurso à figura do trato sucessivo.
A fase investigatória deve procurar determinar o número, ainda que elevado, de crimes cometidos.
As provas quando se não colhem, e conservam, no momento oportuno correm o risco de se esfumar.
No caso destes autos, relativamente à menor BB, e só dela nos ocupamos nesta parte, cada acto constitui um crime.
Não há dúvidas quanto à seriação, quanto à contagem ou ocorrência no tempo dos respectivos crimes
Na verdade, pela leitura da matéria de facto (factos 34 a 60) é possível determinar, com rigor, a prática de vários crimes de abuso sexual de crianças (seis no total: um na noite de 3 para 4/3/2017; um na noite de 4 para 5/3/2017; um na noite de 5 para 6/3/2017; um na noite de 6 para 7/3/2017; um na noite de 7 para 8/3/2017; cinco consumados e um tentado).
Assim, à pergunta que é feita no próprio aresto recorrido [Mas estaremos perante seis crimes (cinco consumados e um tentado)?], deveria ter-se respondido afirmativamente.
O que significa que ao arguido deveria ter sido imputada, pelo aresto em crise, a prática de 6 crimes de abuso sexual de crianças (art. 171.º, n.º 1 e 2 do CP) e consequente condenação.
Era exactamente o que constava da acusação.
O mesmo se diga relativamente aos crimes de abuso sexual de crianças (art. 171.º, n.º 3, alínea b) do CP); embora não com tanto rigor temporal sabe-se que entre os dias 3 e 9/3/2017, «o arguido, através da internet, em três ocasiões, acedeu a vídeos que exibiam indivíduos de idades e sexos não concretamente apurados a manterem relações de teor sexual entre si, obrigando a menor BB a visualizar tais vídeos, contra a sua vontade, sabendo o mesmo, que ao assim proceder, sujeitava esta a práticas contrárias aos seus interesses e prejudiciais ao seu normal desenvolvimento, pondo em causa o sentimento de vergonha e pudor sexual da menor, sabendo ainda que tal conduta era proibida e punida por lei penal (factos 67), 70) e 71), 91) e 93)).».
Também neste aspecto, a decisão em crise, diferentemente da acusação, optou, não por três (3) crimes, mas apenas pela prática de um (1) crime de abuso sexual de crianças (art. 171.º, n.º 3, alínea b) do CP em trato sucessivo.
Idem no que concerne aos crimes de abuso sexual de crianças (art. 171.º, n.º 3, alínea a) do CP) (cfr. transcrição supra do aresto recorrido).
Também aqui a decisão em recurso, optou, não por dois (2) crimes, mas apenas pela prática de um (1) crime de abuso sexual de crianças (art. 171.º, n.º 3, alínea a) do CP) em trato sucessivo.
Embora seja divergente o enquadramento jurídico dos factos constante da acusação e da pronúncia, do enquadramento jurídico abraçado pela decisão em crise (o desta muito mais favorável ao arguido do que o constante daquelas duas peças), o Ministério Público—sendo certo que, na sua Resposta ao recurso, supra transcrita, o MP manifestou-se contra a qualificação como crime de trato sucessivo, defendendo antes a autonomização dos crimes de abuso sexual de crianças praticados contra a menor BB--não interpôs recurso, conformando-se com o aresto em análise.
Não pode, por isso, este STJ, em obediência ao princípio da reformatio in pejus (art. 409.º, n.º 1, do CPP), enquadrar e agravar a pena com base no afastamento do trato sucessivo.
Note-se, porém, que o enquadramento acabado de traçar—efectuado sobretudo na lógica do afastamento do trato sucessivo do crime de abuso sexual de crianças--, relativo aos crimes das alínea a) e b) do n.º 3 do art. 171.º do CP, apenas tem sentido se se perfilhar a posição do aresto recorrido que considerou existir concurso real entre as infracções do n.º 1 e 2 do art. 171.º e as infracções das alíneas a) e b) do n.º 3 do mesmo normativo.
Ora, como veremos na questão seguinte do presente recurso, não existe concurso real entre os referidos crimes, mas antes concurso aparente.
⁕ No que diz respeito à discordância relativamente à autonomia dos crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art. 171.º, n.º 3, alíneas a) e b) do CP (ofendida BB; Proc. 98/17.2GAPTL);
No entender do recorrente, verifica-se um concurso aparente (consunção pura) entre o crime do art. 171.º n.º 1 e 2 do CP e os crimes das alíneas a) e b) do n.º 3 do mesmo normativo.
No que concerne à problemática da unidade e pluralidade de infracções (e crime continuado), conforme entendimento consolidado do STJ (v.g. Ac 30/1/1986, BMJ 353, pág. 240) se tiver havido um só desígnio criminoso, o crime há-de ser necessariamente único, já que subsumível a um mesmo tipo criminal, ou seja, ofensivo de idêntico bem jurídico. Ao invés, se o comportamento do arguido revelar uma pluralidade de resoluções poder-se-ão pôr- e só então- as hipóteses de pluralidade de infracções ou de crime continuado. Tendo havido mais do que uma resolução a regra será o concurso real de crimes, constituindo a continuação criminosa uma excepção a aceitar quando a culpa se mostre consideravelmente diminuída mercê de factores exógenos que facilitaram a recaída ou recaídas.
Para que se verifique a continuação criminosa é necessário segundo o entendimento do mais alto Tribunal (cfr. Ac. STJ 22/1/1992, BMJ 413, pág. 218 e ss., onde desenvolvidamente, e com o apoio doutrinário de Eduardo Correia, se faz a análise do art. 30.º do CP e das figuras do concurso de crimes e do crime continuado) é necessário:
- Plúrima violação do mesmo tipo legal de crime ou de vários tipos legais de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico;
- Que essa realização seja executada por forma essencialmente homogénea;
- Proximidade temporal das respectivas condutas;
- Persistência de uma situação «exterior» que facilita a execução e que diminua consideravelmente a culpa do agente;
- Que cada uma das acções seja executada através de uma resolução e não com referência a um desígnio inicialmente formado de, através de actos sucessivos, defraudar o ofendido.
E, segundo o mesmo aresto, o art. 30.º do CP, no que toca a unidade e pluralidade de infracções admite três importantes modalidades de figuras jurídicas:
- Um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou resolução inicial;
- Um só crime continuado, se toda a actuação não obedecer ao mesmo dolo, mas este estiver interligado por factores externos que arrastam o agente para a reiteração das condutas; e
- Um concurso de infracções, se não se verificar qualquer dos casos anteriores.
A seguir se sumariam, sobre o assunto, alguns arestos mais recuados do STJ, que serviram de alicerce a múltiplas decisões posteriores:
Ac. STJ de 30/1/1986, Proc. 38185, Rel. Alves Peixoto (e no BMJ 353, pág. 240 e ss.)
I - Se tiver havido um só desígnio criminoso, o crime há-de ser necessariamente único, já que subsumível a um mesmo tipo criminal, ou seja, ofensivo de idêntico bem jurídico.
II – Ao invés, se o comportamento do réu revelar pluralidade de resoluções poder-se-ão pôr—e só então—as hipóteses de pluralidade de infracções ou de crime continuado.
III – Tendo havido mais do que uma resolução, a regra será o concurso real de crimes, constituindo a continuação criminosa uma excepção a aceitar quando a culpa se mostre «consideravelmente diminuída», mercê de factores exógenos que facilitaram a recaída ou recaídas.
IV— Pertencendo as resoluções ao mundo dos factos, o Supremo, que só conhece de direito, tem de acatar o que, a tal respeito, disseram as instâncias.
(sumário do BMJ)
Ac. STJ de 25/6/1986, Proc. 38292, Rel. Villa Nova (e no BMJ 358, pág. 267 e ss.)
I - A realização plúrima do mesmo tipo de crime pode constituir: a) um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou resolução inicial; b) um só crime, na forma continuada, se toda a actuação não obedecer ao mesmo dolo, mas este estiver interligado por factores externos que arrastam o agente para a reiteração das condutas; c) um concurso de infracções, se não se verificar qualquer dos casos anteriores.
Ac. STJ de 15/5/1991, Proc. 41631, Rel. José Saraiva (e na CJ XVI, T. 3, pág. 16 e ss.)
I-A pluralidade de infracções ao mesmo tipo legal resulta de pluralidade de juízos de censura ou reprovação que ao agente deve ser feita, da pluralidade de vezes que a norma jurídica se tornou ineficaz na sua função determinadora da vontade, do número de vezes que o agente resolveu agir de modo contrário ao imperativo da norma legal.
II- Haverá unidade de resolução quando se puder concluir que os vários actos são o resultado de um só processo deliberação, sem serem determinados por nova motivação.
(sumário da CJ)
Ac. STJ de 22/1/1992, Proc. 42287, Rel. Ferreira Dias (e no BMJ 413, pág. 217 e ss.)
I- O Código Penal perfilha o chamado critério teleológico para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, atendendo ao número de tipos legais de crime efectivamente preenchidos pela actuação do agente ou ao número de vezes que essa conduta desenhou o mesmo tipo legal de crime.
II- As normas criminais, a par da valoração objectiva da conduta humana, têm uma finalidade de imperativo para agir como contra-motivo no momento da resolução.
Haverá tantas violações da norma legal quantas vezes ela se tornar ineficaz nessa função determinada da vontade, pois quantas vezes o arguido decidiu agir de modo contrario ao ditame da norma, tantas vezes se observa a sua violação. Haverá unidade quando se puder rematar que os vários actos são o resultado de um só processo de deliberação
III- A continuação criminosa concretiza-se com os seguintes requisitos:
-- Plúrima violação do mesmo tipo legal de crime ou de vários tipos legais de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico;
-- Que essa realização seja executada por forma essencialmente homogénea;
-- Proximidade temporal das respectivas condutas;
--Persistência de uma situação "exterior" que facilita a execução e que diminua consideravelmente a culpa do agente;
-- Que cada uma das acções seja executada através de uma resolução e não com referência a um desígnio inicialmente formado de, através de actos sucessivos, defraudar o ofendido.
(sumário do BMJ)
Na jurisprudência mais recente do STJ, sobre esta questão da unidade e pluralidade de infracções (e crime continuado), cfr., além do Ac. STJ 10/2013, DR I S. de 10/7/2013, relatado pelo Conselheiro Santos Cabral, Acs. STJ de 1/6/2016, Proc. 522/14.6PVLSB.L1.S1, Rel. Manuel A. Matos, de 5/4/2017, Proc. 25/16.4PEPRT.P1.S1 e de 9/5/2019,Proc.10/16.6PGPDL.S1, ambos Rel. Raul Borges, todos com amplas referências doutrinárias e jurisprudenciais, e, na doutrina, também mais recente, Maria Paula Ribeiro de Faria, Formas Especiais do Crime, UCP, 1.ª ed. de Julho de 2017, págs. 373 e ss.
O cit. Ac. STJ 10/2013[10] revisita a doutrina da unidade e pluralidade de infracções.
Escreve-se no mesmo que:
«O índice da unidade, ou pluralidade, de determinações volitivas apenas se pode consubstanciar na forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando, fundamentalmente, à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente. A experiência, e as leis da psicologia, referem que, se entre diversos actos medeia um largo espaço de tempo, a resolução que, porventura, inicialmente os abrangia a todos, se esgota no intervalo da execução, de tal sorte que os últimos não são a sua mera descarga, mas supõem um novo processo deliberativo. Daqui resulta que se deve considerar existente uma pluralidade de resoluções sempre que se não verifique, entre as actividades efectuadas pelo agente, uma conexão de tempo tal que, de harmonia com a experiência normal e as leis psicológicas conhecidas, se possa e deva aceitar que ele as executou a todas sem ter de renovar o respectivo processo de motivação.
(…….)
Aprofundando a resposta à questão proposta no domínio do concurso aparente de infracções considera Figueiredo Dias que, do sentido global do ilícito, emerge a ideia central, que preside à categoria do concurso aparente, que se foca nas situações da vida em que, preenchendo o comportamento global mais que um tipo legal concretamente aplicável, se verifica entre os sentidos de ilícito coexistentes uma conexão objectiva e/ou subjectiva tal que deixa aparecer um daqueles sentidos de ilícito como absolutamente dominante, preponderante, ou principal, e, hoc sensu, autónomo, enquanto o restante, ou os restantes, surgem, também a uma consideração jurídico-social segundo o sentido, como dominados, subsidiários ou dependentes.
Considera o mesmo Autor que a submissão do caso à incidência das regras de punição do concurso de crimes constantes do art. 77 seria desproporcionada, político-criminalmente desajustada e, ao menos em grande parte das hipóteses, inconstitucional. A referida dominância de um dos sentidos dos ilícitos singulares pode ocorrer em função de diversos pontos de vista: seja, em primeiro lugar e decisivamente, em função da unidade de sentido social do acontecimento ilícito global; seja em função da unidade de desígnio criminoso; seja em função da estreita conexão situacional, nomeadamente, espácio-temporal, intercedente entre diversas realizações típicas singulares homogéneas; seja porque certos ilícitos singulares se apresentam como meros estádios de evolução ou de intensidade da realização típica global.
O critério de primacial relevo para a conclusão pela tendencial unidade substancial do facto - apesar da pluralidade de tipos legais violados pelo comportamento global - é o da unidade, segundo o sentido social assumido por aquele comportamento, do sucesso ou acontecimento (hoc su, do "evento" ou "resultado") ilícito global-final.
É exactamente na sequência dessa configuração, desenhando o concurso aparente em função dum sentido de ilícito único, que Figueiredo Dias extrapola as considerações que definem a relação existente entre falsificação e burla fazendo apelo ao critério do crime instrumental ou crime-meio.
Na perspectiva do mesmo Autor a relação entre o ilícito puramente instrumental (crime-meio) e o crime-fim correspondente um ilícito singular surge, perante o ilícito principal, unicamente como meio de o realizar e nesta realização esgota o seu sentido e os seus efeitos.
Para Figueiredo Dias a valoração autónoma e integral do crime-meio representaria uma violação da proibição jurídico-constitucional da dupla valoração; enquanto, do outro lado, a sua consideração como conformadora de um concurso impuro não viola o mandamento (também ele jurídico-constitucional) de esgotante apreciação porquanto ele deverá influenciar a medida da pena do concurso. Impõe-se, por isso, na sua perspectiva, a conclusão de princípio favorável a um concurso aparente. Sem que importe, uma vez mais, a existência ou não de uma conexão objectiva (parentesco dos bens jurídicos violados) ou subjectiva (unidade ou pluralidade de resoluções) entre os tipos legais violados pelo comportamento global.
E, pronunciando-se sobre a questão concreta nos presentes autos, ou seja a atenção na relação entre uma falsificação de escrito utilizada unicamente como meio de burlar alguém, refere não existir qualquer dúvida em convir, por via de princípio e só por ele, na solução do concurso aparente. Nesse sentido existiriam duas considerações fundamentais, nomeadamente o facto de o acto de falsificação ser levado a cabo unicamente no contexto situacional da realização do crime-fim e de nele esgotar a sua danosidade social; e a de a falsificação constituir já uma parte do ilícito da burla, pelo que a autonomização do conteúdo de ilícito daquele significaria uma dupla valoração do mesmo substrato de facto. (12)
V
Admite-se que o enunciado critério do crime-meio constitua um elemento relevante no apontar de uma especial conexão de ilicitude, quando não subjectiva, entre os dois tipos legais sob escrutínio uma vez que exista uma única resolução criminosa parametrizada, essencialmente, pela conexão temporal. Porém, perante a situação de pluralidade de resoluções, estamos em crer que o mesmo critério não assume uma virtualidade tal que permita a afirmação da existência de um concurso aparente de infracções.
Na verdade, quando a opção desvaliosa pelo ilícito se desdobra numa repetição do querer o agente tem perfeita consciência de que, por tal forma, viola duplamente a lei penal. Uma coisa é o agente que, numa convergência temporal, falsifica o documento e o utiliza de imediato numa continuidade de desígnio criminoso e outra a falsificação que, em momento posterior e desligada no tempo, é utilizada como artifício fraudulento.
A consideração da pluralidade de crimes perante a pluralidade de resoluções distanciadas no tempo, e ainda que tendo subjacente uma instrumentalidade, não colide com o principio ne bis in pois que não é o mesmo comportamento que é punido duplamente, mas são dois comportamentos autónomos que não se sobrepõem e que por igual devem se objecto de valoração.
Aliás, lateralmente, não pode deixar de se notar que a consagração em abstracto da regra do concurso aparente entre os dois tipos legais, e mesmo na hipótese de pluralidade de resoluções, consubstanciaria um incentivo ao recurso à falsificação como forma de burla pois que o agente saberia que, mesmo que utilizasse esta, sempre o crime seria consumido pela burla.
Por outro lado, a consagração abstracta da instrumentalidade como critério decisivo, independentemente da unidade ou pluralidade de resoluções, pode implicar o sucessivo alargar do leque de tipos legais ali encandeados uma vez que não se vislumbra razão para não considerar também abrangido no mesmo conceito do crime-instrumento o furto que permitiu a aquisição do documento que veio a ser falsificado com a finalidade de posteriormente ser utilizado na burla.» (sublinhados nossos).
O concurso aparente de normas verifica-se «sempre que as condutas praticadas correspondem abstractamente a várias fattispecies sancionatórias sem que se possa efectivamente falar de crimes autónomos» (Maria Paula Ribeiro de Faria, Formas Especiais do Crime, cit. pág. 381-382).
Formalmente a conduta preenche, ou integra, vários tipos de crime, mas, no final, por via da interpretação, conclui-se qua tal conduta é integralmente absorvida por um só tipo.
Este tipo de concurso abrange três espécies de relações: de especialidade, de subsidiariedade e de consumpção.
A relação de consumpção, invocada neste recurso, verifica-se «quando o conteúdo de um ilícito-típico inclui em regra o de outro facto, de tal modo que, em perspectiva jurídico-normativa, a condenação pelo ilícito-típico mais grave exprime já de forma bastante o desvalor de todo o comportamento: lex consumens derogat legi consuntae.» (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, T. I, Coimbra Editora, 2.ª reimpressão, Outubro 2012, págs. 1000-1001).
O Ex.mo Procurador da República, na sua bem elaborada Resposta, opõe-se, com argúcia, à pretensão do recorrente nos seguintes termos:
«O arguido alicerça a sua tese na posição do Professor Jorge de Figueiredo Dias, segundo o qual “se o agente leva a cabo condutas descritas no n.º 3 como meio para praticar os actos previstos nos n.ºs 1 e (ou) 2, o concurso assumirá em regra a forma de unidade legal, salvo se as condutas forem reconduzíveis a resoluções autónomas e diferentes” (in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2.ª edição, p. 843).
Se em abstracto concordamos com a posição do Professor Jorge de Figueiredo Dias, consideramos que o arguido, para fazer valer a sua pretensão, teria de recorrer da matéria de facto, o que não fez.
Isto porque da factualidade dada como provada no Acórdão recorrido não se pode concluir que aos factos subsumíveis aos tipos de crime previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º 3, alíneas a) e b) do Código Penal se seguiram contextualmente os factos subsumíveis aos tipos de crime previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal.
Bem pelo contrário, os factos provados n.ºs A.39 e A.40, A.70 a A72 e A87 a A91, espelham com clareza uma descontinuidade e autonomização fáctico-resolutiva entre os actos sexuais de relevo (cópula) e a visualização de vídeos pornográficos e a masturbação diante da menor.» (sublinhados nossos)
O cerne da questão está na verificação, ou não, da referida «descontinuidade e autonomização fáctico-resolutiva…».
Já vimos, pela análise do referido Ac. STJ 10/2013, constante da transcrição atrás efectuada, quão importante, para se aquilatar da unidade, ou pluralidade, de determinações volitivas, é esquadrinhar o modo como se desenrolou o acontecimento exterior, a conexão temporal que une os diversos momentos da conduta do agente; quando os diversos actos estão separados por um largo espaço de tempo, então estaremos, em princípio, perante mais do que um processo deliberativo.
Ora, consultando a matéria de facto, verificamos que não existe prova da verificação de um hiato temporal suficientemente prolongado entre as diversas condutas, que seja indiciador, nomeadamente, da existência de vários desígnios criminosos.
É o que resulta dos trechos do aresto em crise quando, respectivamente, referem, relativamente às infracções da alínea b) e da alínea a) do n.º 3 do art. 171.º do CP, que:
«Tal como se referiu anteriormente, embora tal conduta tenha sido levada a cabo por três vezes, tendo todas elas ocorrido no mesmo contexto vivencial e espaço físico, sem precisão de datas e momentos, designadamente se foram seguidas ou separadas no tempo, além de que não se descortinaram diferentes motivações, considera-se igualmente aqui a prática de um único crime, em trato sucessivo, tendo o arguido incorrido, por isso, num crime de abuso sexual de crianças, em trato sucessivo, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.º 3, alínea b), do Código Penal.
Também neste caso, embora tal conduta tenha sido levada a cabo pelo menos por duas vezes (e não três, como referido na acusação), tendo todas elas ocorrido no mesmo contexto vivencial e espaço físico, sem precisão de datas e momentos, designadamente se foram próximas ou muito separadas no tempo, além de que não se descortinaram diferentes motivações, considera-se igualmente aqui a prática de um único crime, com plúrimos atos, tendo o arguido incorrido, por isso, num crimes de abuso sexual de crianças, em trato sucessivo, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.º 3, alínea a), por referência ao artigo 170.º, do Código Penal.» (negritos nossos).
E na dúvida relativamente à prova, à questão de facto, sempre terá que se optar, por força do princípio in dubio pro reo, pela solução mais favorável ao arguido, isto é pelo concurso aparente e não pelo concurso real.
Estamos assim perante um crime de abuso sexual de crianças (art. 171.º, n.º 1 e 2 do CP), com o perfil traçado pelo tribunal a quo, em concurso aparente com os crimes de abuso sexual de crianças (art. 171.º, n.º 3, alínea b) e a) do CP) (ofendida BB; Proc. 98/17.2GAPTL).
Por este crime condena-se o arguido na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Nesta questão recursória assiste, pelo exposto, razão ao recorrente.
⁕ No que diz respeito à medida da pena.
O recorrente pretende a diminuição das penas parcelares e uma pena única de cinco anos suspensa por igual período com sujeição a regime de prova.
O recorrente, além de não dar o devido relevo, por exemplo, à ilicitude e ao dolo, que a decisão em crise considera elevados, traz à colação considerações sobre a conduta das vítimas, em seu entender «reprovável» (alínea b) da conclusão 48 do recurso), argumentando também que «não é despiciendo mencionar que os factos, teoricamente, podiam ter alcançado uma dimensão bastante superior – porém, o arguido refutou dimensionar e ampliar, de forma mais grave, o seu comportamento» (alínea c) da conclusão 48 do recurso).
Mas não tem razão.
Reprovável é sim a conduta do arguido, como bem o espelha a decisão em crise no sector da aplicação das penas.
Neste aspecto das penas parcelares, há que atender à circunstância do presente acórdão ter considerado, na anterior questão recursória, no que tange à menor BB, existir um concurso aparente entre o abuso de abuso sexual de crianças (art. 171.º, n.º 1 e 2 do CP) e os crimes de abuso sexual de crianças (art. 171.º, n.º 3, alínea b) e a) do CP).
Relativamente à aplicação das penas, há que ter em atenção a disciplina dos arts. 40.º, 71.º do CP, que a seguir se transcrevem:
Finalidades das penas e das medidas de segurança
2 - Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
3 - A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente.
Determinação da medida da pena
2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.
O art. 40.º do do CP constitui um repositório da doutrina defendida entre nós que entende que os fins da penas «só podem ter natureza preventiva—seja de prevenção geral, positiva ou negativa, seja de prevenção especial, positiva ou negativa--, não natureza retributiva (Jorge de Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal. Sobre os Fundamentos da Doutrina Penal sobre a Doutrina Geral do Crime, Coimbra Editora, 2001, pág. 104).
A medida da pena há-se encontrar-se de acordo com a combinação do disposto nos arts. 40.º e 71.º através da conjugação da culpa, da prevenção geral e da prevenção especial, esse “triângulo mágico” de que falava Zift (cit. por Anabela Miranda Rodrigues em O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 2, Abril/Junho de 2002, pág. 148.).
Referindo-se ao relacionamento da culpa e da prevenção, escreve Anabela Miranda Rodrigues em O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 2, Abril/Junho de 2002, págs. 155, que «É essa composição que oferece o artigo 40.º, ao condensar em três proposições fundamentais o programa político-criminal—a de que o direito penal é um direito de protecção de bens jurídicos, de que a culpa é tão-só limite da pena, mas não seu fundamento, e a de que a socialização é a finalidade de aplicação da pena—e levantando, assim, obstáculos definitivos à eventual persistência de correntes jurisprudenciais erradas e funestas».
De acordo com a mesma autora, loc. cit., pág. 177-178, «a medida da pena há-de ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva e que será definitiva e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização; a pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa. É este também o modelo que deve ser seguido à luz das injunções normativas avançadas pelo legislador ordinário. É o próprio conceito de prevenção geral de que se parte – protecção de bens jurídicos alcançada mediante a tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e no reforço) da validade da norma jurídica violada--que justifica que se fale de uma moldura de prevenção. Proporcional à gravidade do facto ilícito, a prevenção não pode ser alcançada numa medida exacta, uma vez que a gravidade do facto ilícito é aferida em função do abalo daquelas expectativas sentido pela comunidade. A satisfação das exigências de prevenção terá certamente um limite definido pela medida da pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade, que não pode ser excedido em nome de considerações de qualquer tipo, ainda quando se situe abaixo do limite máximo consentido pela culpa. Mas, abaixo daquela medida (óptima) de pena (da prevenção), outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas -- até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral».
A mesma autora, a págs. 181-182 do mesmo estudo, adianta três proposições em jeito de conclusões a saber:
«Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.
É este o único entendimento consentâneo com as finalidades da aplicação da pena: tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, e não compensar ou retribuir a culpa. Esta é, todavia, pressuposto e limite daquela aplicação, directamente imposta pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa do delinquente».
«A norma do artigo 40.º--escreve-se no Ac. STJ de 16/1/2008, Proc. 4565/07, Rel. Henriques Gaspar--condensa, assim, em três proposições fundamentais o programa político criminal sobre a função e os fins das penas: protecção de bens jurídicos e socialização do agente do crime, senda a culpa o limite da pena mas não seu fundamento.
Neste programa de política criminal, a culpa tem uma função que não é a de modelar previamente ou de justificar a pena, numa perspectiva de retribuição, mas a de «antagonista por excelência da prevenção», em intervenção de irredutível contraposição à lógica do utilitarismo preventivo.
O modelo do Código Penal é, pois, de prevenção, em que a pena é determinada pela necessidade de protecção de bens jurídicos e não de retribuição da culpa e do facto. A fórmula impositiva do artigo 40º determina, por isso, que os critérios do artigo 71º e os diversos elementos de construção da medida da pena que prevê sejam interpretados e aplicados em correspondência com o programa assumido na disposição sobre as finalidades da punição; no (actual) programa político criminal do Código Penal, e de acordo com as claras indicações normativas da referida disposição, não está pensada uma relação bilateral entre culpa e pena, em aproximação de retribuição ou expiação.
O modelo de prevenção - porque de protecção de bens jurídicos - acolhido determina, assim, que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
O conceito de prevenção significa protecção de bens jurídicos pela tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade da norma violada (cfr. Figueiredo Dias, “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 227 e segs.).
A medida da prevenção, que não pode em nenhuma circunstância ser ultrapassada, está, assim, na moldura penal correspondente ao crime. Dentro desta medida (protecção óptima e protecção mínima - limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.
Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.».
Na posse destes elementos de índole teórica, há que prosseguir na análise da questão.
Regressando, de novo, ao caso dos autos.
No que diz respeito à determinação das penas concretas, escreve-se no acórdão em crise:
«a) Quanto ao grau de ilicitude dos factos, modo de execução, gravidade das suas consequências e grau de violação dos deveres impostos ao arguido (al. a) do n.º 2 do art. 71.º):
O grau de ilicitude é elevado quanto ao crime de subtração da menor, pois que perdurou por oito dias, permanecendo a BB em más condições de higiene e alimentares, sem qualquer conhecimento da localização da mesma pelos seus pais. Relativamente aos crimes de abuso sexual (cópula), é igualmente significativo quanto à menor BB, pois que, tratando-se de um só crime, foram várias as relações sexuais mantidas no aludido período, uma delas tentada, com persistência dessa conduta por parte do arguido, sendo que, apesar de tudo, a menor tinha uma idade já muito próxima do limite tutelado pela norma incriminadora, bastando apenas dois meses para a atingir (14 anos), sendo que relativamente aos demais ilícitos de que esta foi vítima (importunação com atos exibicionistas e espetáculo pornográfico) essa idade próxima do limiar protetor da norma atenua também a sua gravidade, sendo certo que se tratou de mais que uma conduta por parte do arguido. Relativamente à menor CC, a ilicitude é mais reduzida, pois que os atos são autonomizados, ainda que na primeira situação ligeiramente mais intensa, pois que foi levada a cabo em zona pública, já a segunda ocorreu na habitação, onde a própria menor acolheu o arguido de noite, sem o conhecimento dos seus pais (o que não deixa de ser também reprovável da sua parte). Diga-se que as consequências para as menores não foram especialmente graves, aparentando estar estabilizadas emocional e psicologicamente, sendo que o caso da BB acabou por ter grande impacto mediático (mas ao que o arguido é alheio). Finalmente, quando ao crime de detenção de arma proibida, a ilicitude é moderada, atento o tipo de objeto de causa, o qual, apesar de ilícito, possui um poder letal relativamente reduzido.
b) Quanto à intensidade do dolo ou negligência (al. b) do n.º 2 do art. 71.º):
Em todos os casos o arguido agiu com elevada intensidade de dolo, na modalidade de direto, pois que quis levar a cabo tais condutas, de forma intencional.
c) Quanto aos sentimentos manifestados no cometimento dos crimes e fins ou motivos que os determinaram (al. c) do n.º 2 do art. 71.º):
Neste particular o arguido manifestou total desprezo pelos deveres / direitos inerentes ao poder paternal e foi somente determinado pela satisfação das suas apetências sexuais e libidinosas, atraindo as menores através das redes sociais para os seus intentos.
d) Quanto à condição pessoas do agente e sua situação económica (al. b) do n.º 2 do art. 71.º):
O arguido teve um percurso de vida bastante irregular, desde logo na escola e depois em termos de formação profissional, não lhe sendo conhecido qualquer desempenho laboral relevante, tendo mesmo um período ligado às drogas, e na altura ocupava a referida habitação, sem as mínimas condições, não dispondo de apoio familiar, sendo que no Estabelecimento Prisional apresenta comportamento adequado ao meio (factos melhor descritos D)).
e) Quanto à conduta anterior aos factos e posterior a estes, especialmente quanto à reparação das consequências dos crimes (al. b) do n.º 2 do art. 71.º):
O arguido tem uma experiência judicial já bastante vasta, com seis condenações judiciais, embora por crimes de diferente natureza, pois tratou-se de furtos. Quatro dessas condenações são anteriores à prática destes factos, tendo, então, estado recluído por duas vezes, na sequência da conversão de penas de multa na prisão subsidiária, o que não foi suficiente para o afastar da criminalidade (a outra reclusão já foi na pendência destes autos). Além disso, os crimes destes autos principais foram praticados no período de suspensão da execução de uma pena de 7 meses de prisão (por um ano), cuja sentença havia transitado em julgado em 13-02-2017 (factos melhor descritos em E)). Por outro lado, o arguido não procedeu a qualquer reparação dos danos causados às vítimas.
Ponderando todos estes elementos e tendo em consideração as elevadas necessidades de prevenção, designadamente de ordem geral, mas aqui também especial, em face da reiteração de condutas delituosas, que neste tipo de ilícitos de abuso sexual de crianças se fazem sentir, atenta a sua elevada frequência e o forte alarme social que provocam, ainda que especialmente quando se trata de vítimas de idades reduzidas (o que aqui não é o caso, pois ambas estavam perto dos 14 anos), sendo que o arguido AA não tira benefício relevante da sua postura em audiência e perante os factos (apenas assumindo uma relação sexual com cada uma das menores), e não manifestando sinais convincentes de autocensura e juízo crítico, afigura-se adequado aplicar-lhe as penas seguintes (….).»
O aresto em recurso tomou em conta, como se vê pela descrição feita, a elevada ilicitude, a elevada intensidade do dolo directo, as elevadas exigências de prevenção geral e especial.
E do mesmo modo ponderou o seu percurso de vida.
O arguido, como refere a decisão, «manifestou um total desprezo pelos deveres / direitos inerentes ao poder paternal e foi somente determinado pela satisfação das suas apetências sexuais e libidinosas, atraindo as menores através das redes sociais para os seus intentos»; tem experiência judicial expressa em seis condenações, tendo já estado por duas vezes recluído; apenas assumiu, em audiência, uma relação sexual com cada uma das vítimas, não manifestando qualquer sinal de autocensura ou juízo crítico.
Ponderou devidamente os elementos essenciais ao doseamento das penas parcelares.
O mesmo se diga relativamente à pena única aplicada.
A questão do concurso está, entre nós, disciplinada no arts. 77.º do CP, que a seguir se transcreve:
Regras da punição do concurso
2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
3 - Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.
4 - As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis.
Um arguido pode, na mesma ocasião, cometer um só crime, ou cometer vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles (v. n.º 1 do art. 77.º do CP). Estaremos, nesta 2.ª hipótese, no caso normal do concurso de crimes.
É esta 2.ª hipótese que está em causa neste recurso.
Sobre a questão da pena única é inabarcável a jurisprudência do STJ, estando a mesma perfeitamente estabilizada.
«I - Segundo preceitua o n.º 1 do art. 77.° do CP, a medida da pena (única) ou conjunta deve ser encontrada a partir do conjunto dos factos e da personalidade do agente, tendo-se em atenção, em primeira linha, se os factos delituosos em concurso são expressão de uma inclinação criminosa ou apenas constituem delitos ocasionais sem relação entre si, sem esquecer a dimensão da ilicitude do conjunto dos factos e a conexão entre eles existente, bem como o efeito da pena sobre o comportamento futuro do delinquente.
II - A resposta punitiva deve corresponder, à gravidade do ilícito global, à personalidade do arguido e ao quantum das penas singulares impostas, tendo presente, o efeito da pena conjunta sobre o comportamento futuro daquele.» (sumário do Ac. STJ de 21/1/2016, Proc. 214/10.5JAAFAR.S1, Rel. Oliveira Mendes)
Na jurisprudência mais recente desta Supremo Tribunal, podem ver-se, v.g., os Acs. STJ de 14/1/2009, Proc. 08P3974, Rel. Fernando Fróis; de 17/6/2015, Proc. 488/11.4GALNH.S1, Rel. Maia Costa; de 21/1/2016, Proc. 133/10.5PBTMR.E1.S1, Rel. Manuel Braz; de 3/2/2016, Proc. 686/11.0GAPRD.P1.S1, Rel. Raul Borges (com vastíssima informação jurisprudencial e referenciando igualmente a doutrina); de 11/2/2016, Proc. 26/13.4GGIDN.S1, Rel. Souto de Moura; de 28/4/2016, Proc. 252/14.9JACBR, Rel. Manuel Augusto de Matos; de 25/5/2016, Proc. 108/14.5JALRA.E1.S1., Rel. Arménio Sottomayor; de 23/6/2016, Proc. 1179/09.1TAVFX, Rel. Oliveira Mendes (referencia a posição da diversa doutrina desde Eduardo Correia a Lobo Moutinho); de 14/7/2016, Proc. 4403/00.2TDLSB.S1, Rel. Pires da Graça.
Estando em causa vários crimes, a procura da pena única desenrola-se em duas fases (cfr. Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, 3.ª ed.,1.º Vol., 2002, Rei dos Livros, pág. 911): numa primeira, devem fixar-se, atendendo aos critérios do art. 71.º CP, as penas parcelares relativas a cada um dos crimes que se encontram numa relação de concurso; em segundo lugar, procede-se à soma das penas parcelares obtendo-se, assim, o limite máximo da moldura abstacta aplicável (n.º 2 do art. 77.º do CP, que fixa como limite máximo da pena de prisão 25 anos). Obtida a moldura abstracta, a pena única (trata-se de uma “sanção de síntese”, no dizer de Raul Borges, Ac. STJ de 23/11/2010, Proc. 93/10.2TCPRT.S1) é determinada tendo em atenção o disposto no n.º 1 do art. 77.º do CP, devendo ser «considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente» (cit. n.º 1; itálico nosso).
Na escolha da pena do concurso «Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade—unitária—do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto de factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).» (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, págs. 291-292).
Mais recentemente, sobre a sobre a pena única, escreve Maria João Antunes[11] que «O direito português adopta um sistema de pena conjunta, obtida através de um cúmulo jurídico.
Segundo este sistema o tribunal começa por determinar a pena (de prisão ou de multa) que concretamente caberia a cada um dos crimes em concurso, seguindo o procedimento normal de determinação até à operação de escolha da pena, uma vez só relativamente à pena conjunta faz sentido pôr a questão da substituição. Em seguida, o tribunal constrói a moldura penal do concurso: o limite máximo é dado pela soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, com os limites previstos no n.º 2 do artigo 77.º do CP; o limite mínimo corresponde à mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. Em terceiro lugar, o tribunal determinada a medida da pena conjunta do concurso, seguindo os critérios gerais da culpa e da prevenção (artigo 71.º do CP) e o critério especial segundo o qual na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (artigo 77.º, n.º 1, 2.ª parte, do CP). Critério especial que garante a observância do princípio da proibição dupla valoração. Por último, o tribunal tem o poder-dever de substituir a pena conjunta encontrada por uma pena de substituição, em função dos critérios gerais de escolha da pena (artigo 70.º do CP), sem que fique prejudicada a possibilidade de impor também penas acessórias ou medidas de segurança (artigo 77.º, n.º 4, do CP).»
Neste campo, este Supremo Tribunal tem defendido, em muita jurisprudência, que, com «a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respetivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente) os factos e a personalidade do agente. Como doutamente diz Figueiredo Dias, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado. Importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso, tendo presente o efeito dissuasor e ressocializador que essa pena irá exercer sobre aquele.» (Ac. STJ de 12/9/2012, Proc. 605/09.4PBMTA.L1.S1, Rel. Oliveira Mendes).
Também neste campo da fixação da pena única o STJ tem chamado a atenção para a observância de determinando princípios.
Escreve-se no Ac. STJ de 25/10/2017, Proc. 163/10.7GALNH.S1, Rel. Raul Borges, com referência de outra jurisprudência, que: «Por outro lado, na confecção da pena conjunta, há que ter presentes os princípios da proporcionalidade, da adequação e proibição do excesso.
Cremos que nesta abordagem, há que ter em conta os critérios gerais da medida da pena contidos no artigo 71.º do Código Penal – exigências gerais de culpa e prevenção – em conjugação, a partir de 1 de Outubro de 1995, com a proclamação de princípios ínsita no artigo 40.º, atenta a necessidade de tutela dos bens jurídicos ofendidos e das finalidades das penas, incluída a conjunta, aqui acrescendo o critério especial fornecido pelo artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal - o que significa que este específico dever de fundamentação de uma pena conjunta, não pode estar dissociado da questão da adequação da pena à culpa concreta global, tendo em consideração por outra via, pontos de vista preventivos, sendo que, in casu, a ordem de grandeza de lesão dos bens jurídicos tutelados e sua extensão não fica demonstrada pela simples enunciação, sem mais, do tipo legal violado, o que passa pela sindicância do efectivo respeito pelo princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, tornando-se fundamental a necessidade de ponderação entre a gravidade do facto global e a gravidade da pena conjunta.»
De acordo com o n.º 2 do art. 77.º do CP, aplicável por força do n.º 1 do art. 78.º, ambos acima transcritos a «pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.».
No caso em análise, a pena aplicável, tendo em atenção a situação de concurso aparente decidida neste Acórdão, tem como limite mínimo 5 anos e 6 meses de prisão (pena parcelar mais levada) e como limite máximo 14 anos e 7 mês de prisão (soma de todas as penas concretamente aplicadas).
Além dos crimes de subtracção de menor e de detenção de arma proibida, estamos perante múltiplos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual.
O aresto em recurso teve «em conta a diversidade dos factos e ilícitos, a sua gravidade, nalguns casos bastante significativa, ainda que cometidos num mesmo circunstancialismo e temporalidade quanto à menor BB, além de que o arguido atentou sexualmente contra duas menores praticamente no mesmo período temporal, o que evidencia tendência para este tipo de condutas, bem como a sua personalidade, com percurso de vida sem estruturação familiar e laboral, não podendo deixar de se considerar nesta avaliação global a sua experiência judicial e até prisional, cometendo estes factos do processo principal no período de suspensão de uma das penas…» (itálicos nossos)
Os crimes sexuais e, entre eles, nomeadamente, o crime de abuso sexual de crianças e menores, estão largamente difundidos pela facilidade das novas tecnologias (no caso concreto as vítimas foram atraídas através do Facebook), sendo grande o alarme nomeadamente em razão da faixa etária das vítimas, como refere o aresto em crise.
Os factos sucederam-se em cadeia (Janeiro e Março de 2017), estando todos, perante a facilidade de contacto que as novas tecnologias proporcionam, interligados. As afinidades e pontos comuns, nomeadamente no que toca ao modo de abordagem e sedução das vítimas, com falsa informação acerca da sua verdadeira idade, através de uma rede social, resultam da leitura da matéria fáctica.
A ilicitude e a culpa elevadas, a natureza dos crimes em causa, caracterizados pela sua danosidade e repulsa social, apontam para uma ilicitude global elevada, revelando o arguido uma tendência para este tipo de condutas.
Em face de todo este enquadramento, nomeadamente da verificação do concurso aparente, considera-se ajustada a pena única de 8 anos de prisão.
⁎ Relativamente ao pedido de indemnização civil.
O aresto fixou as indemnizações por danos não patrimoniais, respectivamente, em 6000 euros para a BB e 3000 euros para a CC.
O recorrente pretende a sua redução para 3000 e 1500 euros respectivamente.
«Perante o que foi manifestado pela mãe da menor HH, em representação desta, que expressamente referiu em audiência aceitar a atribuição de uma indemnização àquela (cfr. 1740), bem como o silêncio do pai da menor CC, o qual, em representação desta, foi para tal notificado (fls. 1755), relativamente ao que foi dada a possibilidade de exercício do contraditório, cumpre atribuir-lhes uma indemnização, em obediência ao disposto no artigo 82.º-A do CPP e 16.º, n.ºs 1 e 2, do Estatuto da Vítima (aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 04-09), o que é regulado pela lei civil (art. 129.º do C. Penal).
Trata-se, nos dois casos, atenta a moldura penal aplicável ao crime de abuso sexual de crianças (máximo de 10 anos - art. 171.º, n.º 2, do CP), de criminalidade especialmente violenta, sendo ambas consideradas vítimas especialmente vulneráveis, atento o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 1.º, alíneas j) e l), e 67.º-A, n.º 3, do CPP e 16.º, n.º 2, do referido Estatuto da Vítima.
Assim, esta indemnização só se reporta aos crimes de abuso sexual (cópula), pois que são os únicos em que a menores reúnem essa qualidade (já não quanto aos demais ilícitos, designadamente aqueles outros de que foi vítima a menor BB).
Nos termos do artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
De acordo com esta norma, a obrigação de indemnizar imposta ao lesante depende da verificação de vários pressupostos, sendo eles: o facto voluntário do agente; a ilicitude; a imputação de facto ao lesante; o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume I, pág. 495).
Desde logo, dispõe o artigo 70.º, n.º 1, do Código Civil que “a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa à sua personalidade física ou moral”. Este preceito, que consagra uma verdadeira tutela geral da personalidade, protege uma multiplicidade de direitos pessoais, onde se inclui, necessariamente, o direito à liberdade e autodeterminação sexual das crianças e jovens.
De entre os danos indemnizáveis contam-se os de natureza não patrimonial sempre que, “pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”, conforme resulta do artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil, dispondo o n.º 3 deste preceito que o montante da indemnização será “fixado equitativamente pelo tribunal”.
Trata-se, neste caso, não de uma reparação ou reconstituição natural, como sugere o artigo 562.º do referido Código, mas antes de uma compensação pela dor, sofrimento, perturbação ou transtornos causados ao lesado, uma vez que se torna impossível repor a situação no estado anterior à lesão. Na fixação do quantitativo pecuniário devem considerar-se, entre outros factores, o grau de culpabilidade do responsável, a sua situação económica e a do lesado e as flutuações do valor da moeda, devendo o montante ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta os valores normalmente encontrados para situações similares e a justa medida das coisas.
Nestas situações é manifesto, à luz dos mencionados preceitos, que sobre o arguido AA recai a obrigação de indemnizar pelos danos não patrimoniais que causou às menores BB e CC, em virtude dos actos de natureza sexual a que as sujeitou (atos de cópula), integradores dos ilícito acima imputados (que sustentam a responsabilidade criminal).
Com efeito, ainda que não tenham sido alegados factos a sustentar um pedido indemnizatório, é um facto notório que a sujeição de uma criança / jovem a esse tipo de actos provoca necessariamente, na mesma, sofrimento e perturbações de ordem psicológica e emocional, normalmente até com reflexos negativo no futuro, embora variando de caso para caso, em função da gravidade da situação e da sua sensibilidade, sendo que neste caso resultou provado que as menores foram sujeitas a cópula completa, por mais que uma vez. Aqueles atos representam, em termos correntes, a “perda da virgindade”, com as inerentes sequelas psicológicas, ainda que neste caso as menores tivessem já 13 anos de idade e, em certa medida, também contribuído ou mesmo aceitado esse tipo de relações.
Por outro lado, tem igualmente de considerar-se a condição económica do lesante AA, sem ocupação laboral e rendimentos próprios, tendo mesmo vivido na rua até poucos antes de ocupar aquela habitação, estando preso desde então (factos C)).
É sabido que a indemnização não pagará nunca a dor e o sofrimento, pois que estes não são avaliáveis monetariamente, mas, pelo menos, contribuirá para a sua atenuação, pois que, com a mesma, as menores BB e CC poderão satisfazer alguma necessidade ou desejo que de outra forma não conseguiriam concretizar.
Assim, atentos tais elementos e recorrendo a critérios de equidade e de justa medida das coisas, sendo a situação relativamente à primeira mais grave, considera-se adequado fixar a indemnização no montante de 6.000,00€ (seis mil euros) para a BB e de 3.000,00€ (três mil euros) para a CC.
Sendo a indemnização exclusivamente para as vítimas BB e CC, caberá aos seus progenitores, enquanto as mesmas forem menores, diligenciar pelo seu recebimento e eventual depósito em instituição bancária, para que elas depois lhe possam dar aplicação, quando atingirem a maioridade - 18 anos (arts. 122.º, 1877.º e 1878.º, n.º 1, do C. Civil). »
Como se vê da transcrição acabada de fazer, está bem fundamentada a questão do pedido de indemnização civil, nomeadamente com a indicação dos dispositivos legais pertinentes e apoio doutrinário.
Relativamente aos montantes fixados há, para já, que fazer a destrinça: o valor fixado para a indemnização da menor CC (3000 euros) está dentro da alçada do tribunal de 1.ª instância que é de 5000 euros (n.º 1 do art. 44 da L 62/2013, de 26/8—LOSJ).
O recurso nesta parte é irrecorrível (arts. 400.º, n.º 2 do CPP e 629.º, n.º 1 e 678.º, n.º 1, ambos do CPC).
No que toca à indemnização fixada para a BB (6000 euros) não se nos afigura excessiva. Pelo contrário.
Além das perturbações de ordem psicológica e emocional não se pode esquecer que os actos em causa representam, em termos correntes, a “perda de virgindade”, como bem se frisa na decisão em crise.
Pelo cotejo da jurisprudência recente deste STJ, e tendo sempre presente que cada caso é um caso, verifica-se que os montantes fixados estão num patamar bem acima do destes autos (cfr, v.g., Acs. STJ de 28/6/2017, Proc. 23/14.2GCCNT.S1, Rel. Gabriel Catarino; abuso sexual de menores-art. 171.º, n.º 1 e 2: 22.000 mil euros; de 22/2/2018, Proc. 351/16.2JAPRT.S1, Rel. Francisco Caetano; abuso sexual de menores de 13 anos- art. 171.º, n.º 1 e 2: 20.000 mil euros; de 14/3/2018, Proc. 191/09.5PEPDL.L4.S1, Rel. Manuel A. Matos; abuso sexual de pessoa internada: 40.000 mil euros).
Pelo que acaba de referir-se, também nesta parte, o recurso é improcedente.
III DECISÃO
Atento o exposto, os Juízes desta 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça acordam em conceder parcial provimento ao recurso do arguido AA, na parte relativa à questão do concurso aparente, condenando-o pela prática de um crime de abuso sexual de crianças (art. 171.º, n.º 1 e 2 do CP), com o perfil traçado pelo tribunal a quo, em concurso aparente com os crimes de abuso sexual de crianças (art. 171.º, n.º 3, alínea b) e a) do CP) (ofendida BB; Proc. 98/17.2GAPTL) na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Vai condenado na pena única de 8 (oito) anos de prisão, em tudo o mais, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se o aresto recorrido.
Sem custas (art. 513.º, n.º 1 CPP).
Processei e revi (art. 94.º, n.º 2 do CPP)
---------------------------
[1][1] Mantém-se a numeração dos factos constantes das acusações, mesmo no caso de se alterar a sequência de alguns ou outros não serem dados como provados, por forma a permitir mais fácil análise e eventual reapreciação da matéria de facto pelos Tribunais Superiores.
[2] Os artigos 23) e 24) colocaram-se mais adiante, por ter sido essa a sequência que resultou da prova produzida, concretamente das declarações da menor BB (sem que isso implique qualquer outra alteração dos factos em si).
[3] Entretanto a mãe da menor CC veio a falecer, não tendo já deposto em audiência como testemunha (cfr. fls. 1744 e 1752).
[4] O mesmo esteve ligado a tal Processo n.º 108/14.5PBAVR, interrompendo a prisão preventiva à ordem destes autos, aos quais já está novamente ligado (fls. 1634 a 1637, 1644 a 1646 e 1794 a 1797).
[5] Tais declarações foram prestadas em 27 e 28-03-2017, constando de CD’s juntos aos autos, as quais decorreram durante quase cinco horas (fls. 870 a 874 e 876 a 882).
[6][6] Efetivamente, a menor BB prestou declarações ao longo de várias horas, tendo respondido a todas as perguntas formuladas / colocadas pela Juiz de Instrução, pelo Ministério Público, assistentes e arguido, no mais amplo contraditório.
[7] Esta afirmação encontra correspondência no que foi referiu a dada altura pela BB quanto à suposta ida do “...” para o estrangeiro (indo ela conhecê-lo antes de se ausentar).
[8] Percebeu-se a intenção do arguido AA de esvaziar de gravidade as suas condutas, designadamente ao referir que apenas mantiveram relações sexuais por uma vez (cujos exames periciais isso poderiam comprovar), sabendo que, nesse cenário, a reação penal lhe seria mais favorável.
[9] Já nas declarações que prestou em audiência, o arguido falou que lhe pareceu que teria “16 anos”, pelo “aspeto e pelas conversas”, o que comprova que foi ajustando convenientemente as suas declarações ao longo do processo.
[10] As passagens visualizadas foram essencialmente aquelas que o arguido já havia indicado nos autos, na fase da instrução, relativamente a cada câmara (fls. 1598 e 1599/1602 e 1603).
[11] O arguido referiu, nas suas contestações, a “Lei n.º 176, de 02/08”, certamente por lapso.
[12] Trata-se da redação em vigor à data dos factos, por ser essa a lei aplicável (art. 2.º, n.º 1, do C. Penal), pois que a redação de tal norma foi alterada posteriormente, embora sem relevo para o caso, pela Lei n.º 30-2017, de 30-05.
[1] Sobre o conceito de inimputabilidade, os arts. 20.º e 91.º, n.º 1 do CP e a distinção entre o internamento de inimputáveis do Código Penal e o internamento compulsivo da Lei de Saúde Mental, cfr. Parecer do CC da PGR n.º 34/2016, republicado no DR II S. de 20/8/2017.
[2] As sucessivas alterações ao art. 30.º do CP podem ver-se, em pormenor, no Ac. STJ de 5/4/2017, Proc. 25/16.4PEPRT.P1.S1, Rel. Raul Borges.
[3] Francisco Teixeira da Mota, Crime continuado ou múltiplos crimes?, jornal Público, de 6/6/2009, a propósito da alteração de 2007 ao art. 30.º do CP e em comentário ao Ac. STJ de 25/3/2009, Proc. 09P0490, Rel. Armindo Monteiro, escreve, além do mais, que: «Ora o conceito de “crime continuado” é uma ficção legal, já que transforma vários crimes num só. É certo que uma recente alteração do Código Penal, cuja paternidade nunca foi assumida, veio esclarecer que a ficção do crime continuado também se aplicava aos crimes de abuso sexual de criança, quando a vítima era sempre a mesma. Esta alteração, que veio confirmar uma jurisprudência que já existia, foi claramente referenciada como tendo origem em sectores ligados ao caso da Casa Pia e visaria aligeirar eventuais futuras condenações.»
Rui Pereira, que foi o Presidente da Unidade de Missão que procedeu à revisão do CP e CPP de 2007, em artigo intitulado Contra a figura do crime continuado publicado no semanário Expresso de 10/11/2007, esclarece, também a propósito da alteração de 2007 ao art. 30.º do CP, que discorda do artigo que tem incidência no processo Casa Pia.
[4] V. Helena Moniz, “Crime de trato sucessivo”(?), na Revista Julgar on line, de Abril de 2018, págs. 18-20.
[5] Ac. STJ de 18/4/1996, CJACSTJ, IV, T. II, pág. 170 qualifica o crime de tráfico de estupefacientes como crime exaurido, referindo que «são conhecidos noutras doutrinas por “delitos de empreendimento”, “crimes que se executam no resultado ou com o resultado” ou “crimes excutidos”».
Ac. STJ de 5/12/2007, Proc. 07P3406, Rel. Raul Borges
XIX - O tráfico de estupefacientes tem sido englobado na categoria do «crime exaurido», «crime de empreendimento» ou «crime excutido», que se vem caracterizando como um ilícito penal que fica perfeito com o preenchimento de um único acto conducente ao resultado previsto no tipo. A consumação verifica-se com a comissão de um só acto de execução, ainda que sem se chegar à realização completa e integral do tipo legal pretendido pelo agente.
Em sentido similar, Acs. STJ de 8/2/2007, Proc. 06P4460, Rel. Arménio Sottomayor; de 19/4/2007, Proc. 07P449, Rel. Rodrigues da Costa; de 6/6/2018, Proc. 1/15.4GAMTS.S1, Rel. Manuel A. Matos.
[6] Na doutrina recente, defendendo a possibilidade de integração do crime de abuso sexual na figura do crime de trato sucessivo, José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro, Crimes Sexuais. Análise substantiva e processual, Coimbra Editora, 1.ª ed., 2015, págs. 146-147.
[7] Relativamente a estas duas alíneas [c) e d)] do n.º 1 do art. 176.º, em que se pune o comércio de material pornográfico, já parece existir, contrariamente ao que acontece no crime de abuso sexual, uma multiplicidade de actos a exigir uma punição unitária: cfr. Helena Moniz, “Crime de trato sucessivo”(?), cit., nota 50. Neste estudo a autora procura também traçar as diferenças, nem sempre claras, entre crimes exauridos, crimes de empreendimento, crimes de trato sucessivo.
[8] Com o seguinte sumário:
«I - Não é a unidade de resolução que pode conferir a uma reiteração de actos homogéneos o cariz de crime habitual ou de trato sucessivo; somente a estrutura do respectivo tipo incriminador há-de pressupor a reiteração.
II - Tanto o tipo de crime de abuso sexual de crianças, como os tipos de abuso sexual de menores dependentes e de violação, não contemplam a «multiplicidade de actos semelhantes» inerente à figura do crime habitual ou de trato sucessivo.
III - No caso dos autos, cada um dos vários actos do arguido foi perpetrado num diverso contexto situacional, necessariamente comandado por uma diversa resolução, e traduziu-se numa autónoma lesão do bem jurídico protegido. Consequentemente, por referência a cada grupo de atos, existe pluralidade de sentidos de ilicitude típica e, portanto, de crimes - de abuso sexual de crianças e de violação – cometidos».
[9] Cfr. também a jurisprudência referenciada na nota n.º 36 do Ac. STJ de 28/6/2017, Proc. 23/14.2GCCNT.S1, Rel. Gabriel Catarino.
[10] Fixou jurisprudência no seguinte sentido: «A alteração introduzida pela Lei 59/2007 no tipo legal do crime de falsificação previsto no artigo 256 do Código Penal, estabelecendo um elemento subjectivo especial, não afecta a jurisprudência fixada nos acórdãos de fixação de jurisprudência de 19 de Fevereiro de 1992 e 8/2000 de 4 de Maio de 2000 e, nomeadamente, a interpretação neles constante de que, no caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256º, nº 1, alínea a), e do artigo 217º, nº 1, do mesmo Código, se verifica um concurso real ou efectivo de crimes.»
O problema da unidade e pluralidade de infracções é, em múltiplos aspectos, controverso, como bem se alcança dos vários (5) votos de vencido que constam do referido aresto fixador 10/2013.
[11] Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra 2010-2011, pág. 42, 43.