EXCESSO DE PRONÚNCIA
NULIDADE
Sumário


I. – Em matéria de recursos, em processo penal, rege a regra do âmbito alargado de cognoscibilidade de toda a decisão.
II. – Tendo o recorrente (Ministério Público), no recuso interposto, limitado a questão de condenação por um dos crimes por que o arguido fora acusado, e absolvido pelo tribunal recorrido, pedindo que, depois de condenado por esse crime, na reformulação do cúmulo jurídico com os demais crimes por que fora condenado, lhe fosse aplicada uma pena suspensa na sua execução – de igual natureza à que o arguido fora condenado na decisão sob recurso – não pode o tribunal de recurso condenar em pena de natureza diferente, v. g. em pena de prisão efectiva, sob pena de exceder o que fora pedido pelo recorrente.
III. – A limitação (concreta e especificada) pelo recorrente Ministério Público, do pedido de condenação numa pena determinada traduz-se numa delimitação (objectiva) da pretensão recursiva, que o tribunal de recurso não pode exceder, sob pena de incorrer em nulidade da decisão por excesso de pronúncia.
IV. – Tendo o arguido interposto recurso, o Supremo Tribunal de Justiça, deve substituir-se, segundo a regra da substituição vigente em matéria de recursos (artigo 379º, nº 2 do Código de Processo Penal), ao tribunal recorrido e repor a decisão nos termos em que o recorrente inicial (Ministério Público) havia requestado no primevo recurso.

Texto Integral

I. – RELATÓRIO.

I.a). – RECENSÃO DIACRÓNICA DOS ELEMENTOS RELEVANTES PARA A DECISÃO.

- Após realização da audiência de julgamento, no Proc.º n.º 273/17.0JAAVR., foi proferido acórdão (a 5/04/2018), em que se decidiu (sic): “1. Julgar extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido AA relativamente ao imputado crime de introdução em local vedado ao público por falta de uma condição de procedibilidade - a existência de queixa validamente apresentada.

2. Condenar o arguido AA, como autor material de:

- Um crime de roubo, previsto e punível pelo art.º 210º, nº 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão.

- Um crime de violação, previsto e punível pelo art.º 164º, nº 1, al. a), do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão.

3. Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas condenar o arguido AA na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, que se suspende na sua execução por igual período, com regime de prova impondo-se, ainda, nos termos do disposto no art.º 54º, nº 3, 51°, nº 1, al. a), e 52º, nºs 1 e 3, as seguintes obrigações e regras de conduta:

• Responder às convocatórias que lhe sejam feitas no âmbito deste processo por magistrado judicial e/ou técnico de reinserção social;

• Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência;

• Informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso;

• Manter atividade laboral, ou vindo a tornar-se necessário a inscrever-se no centro de emprego frequentando, nesse caso formação que permita a continuação de aquisição de competências.

• Sujeitar-se a controle da abstinência de consumo de produtos estupefacientes e a eventual tratamento, se necessário (para o qual deu o seu consentimento).

• Efetuar o pagamento da compensação atribuída à vítima ao abrigo do disposto no art.º 82º A do Código de Processo Penal e 16º, nº 2, da lei nº 130/2015 de 4 de setembro, isto é da quantia de 1.200,00€ (mil e duzentos euros) no prazo de nove meses, devendo comprovar a cada três meses o pagamento de 400,00€, mediante o depósito de tal quantia à ordem dos presentes autos, que posteriormente será encaminhada para a vítima,

4. Condenar o arguido, nos termos conjugados dos art.ºs 67ºA, nº 1, al. b), e nº 3; 1º, al. I), e 82º A, todos do Código de Processo Penal, em conjugação com o art.º 16º da lei nº 130/2015 de 04.09, a pagar a BB a quantia de 1.200,00€ (mil e duzentos euros) a título de reparação pelos prejuízos sofridos em consequência da sua conduta."

Divergindo da solução jurídico-processual encontrada, na decisão, para o crime de introdução, interpôs o Ministério Público, junto do Tribunal de ..., recurso do julgado, o Tribunal da Relação do Porto, em acórdão datado de 24 de Outubro de 2018, em que concedendo “provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público”, revogou (a) “a decisão recorrida, na parte em que julgou extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido AA, relativamente ao imputado crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto e punido pelo art.º 191º do CP e, consequentemente:

i- Condenar o arguido, pela autoria, na forma consumada, de um crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto e punido pelo art.º 191° do CP, na pena de 2 meses de prisão;

ii- Refazer o cúmulo jurídico das penas anteriormente aplicadas ao mesmo arguido, de 4 anos de prisão, pela autoria, na forma consumada, de um crime de violação, previsto e punido pelo art.º 164º, nº 1, al. a), do CP, e de 1 ano e 9 meses de prisão pela autoria, na forma consumada, de um crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210º, nº 1, do CP, com a pena de 2 meses de prisão supra referida em i-, condenando-o na pena única de 4 (quatro) anos e 7 (sete) meses de prisão, efectiva;

 iii. – Manter quanto ao mais a decisão recorrida.”

Irresignado com o decidido, recorre o arguido tendo dessumido, da fundamentação com que ceva a respectiva pretensão, o sequente:  

I.b) – QUADRO CONCLUSIVO.

I- O arguido vem interpor recurso do douto acórdão proferido Tribunal da Relação do Porto que o condenou em:

a)- Autoria, na forma consumada, de um crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto e punido pelo artigo 191º do CP, na pena de 2 meses de prisão;

b)- Cúmulo jurídico das penas anteriormente aplicadas ao mesmo arguido, de 4 anos de prisão, pela autoria, na forma consumada, de um crime de violação, previsto e punido pelo artigo 164º, nº1, alínea a), do CP, e de 1 ano e 9 meses de prisão pela autoria, na forma consumada, de um crime de roubo, p. e p. pelo artigo 210, nº1, do CP, com a pena de 2 meses de prisão supra referida, condenando-o na pena única de 4 (quatro) anos e 7 (sete) meses de prisão, efectiva;

II- O acórdão, ora recorrido, teve origem no recurso interposto pelo Ministério Público, junto do Tribunal de primeira instância, da decisão que condenou o arguido em cúmulo jurídico na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova impondo-se, ainda, nos termos do disposto no art. 54º, nº3, 51, nº1, alínea a), e 52º, nºs 1 e 3, obrigações e regras de conduta, e o absolveu do crime de introdução em lugar vedado ao público, p.e.p pelo artigo 191º do Código Penal.

III- No recurso da decisão proferida em primeira instância o Ministério Público solicitou que:

- a decisão fosse alterada, no que diz respeito ao crime de introdução em lugar vedado ao público, considerando-se válida a queixa apresentada pela ofendida e concludentemente o Ministério Público possuir legitimidade para promover a respectiva acção penal.

E consequentemente:

-decidir de mérito relativamente ao crime de introdução em lugar vedado ao público, e condenar o arguido como autor material do aludido crime na pena, de , pelo menos, 2 (dois) meses de prisão.

E, em cúmulo jurídico com as demais penas aplicadas ao mesmo arguido nestes autos (pelos crimes de roubo e de violação), condenar o arguido AA na pena única de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova e com imposição, ainda, nos termos do disposto nos artigos 54º, nº 3, 51º, nº 1, al. a), e 52º, nºs 1 e 3, do Código Penal, das obrigações e regras de conduta estabelecidas no acórdão recorrido

IV- O recorrente entende que o acórdão recorrido está ferido das seguintes nulidades:

V- Do excesso de pronúncia e da preterição do exercício do contraditório:

-O recurso interposto pelo Ministério Público tinha como objecto, simplesmente, a apreciação da titularidade do direito de queixa da ofendida no que diz respeito ao crime de introdução em lugar vedado ao público, tendo sido requerido pelo recorrente, em conclusões, a manutenção da suspensão da execução da pena a aplicar.

-O Tribunal da Relação ao decidir substituir a, requerida, suspensão da execução da pena, pela aplicação de uma pena de prisão efectiva, conheceu de uma questão que não poderia conhecer, por a mesma não fazer parte do thema decidendum do recurso interposto.

- De igual modo não poderia ter procedido à reformulação do cúmulo, deveria antes, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 426º do CPP ter reenviado o processo para o Tribunal de primeira instância, para que aí se decidisse sobre a reformulação do cúmulo e sobre a manutenção da suspensão da execução da pena de prisão, e concomitantemente, se permitisse em sede de reabertura da audiência de julgamento que o Ministério Público e o arguido se pronunciassem sobre essa questão.

- Sem prescindir, e caso assim não se entendesse, deveria ter sido permitido ao arguido, junto do Tribunal da Relação, exercer o contraditório sobre o anúncio de uma “nova” pena de prisão efectiva.

- Assim, a decisão do Tribunal da Relação, está ferida de nulidade nos termos do disposto na alínea do c) do número 1 do artigo 379º do CPP, que dispõe o seguinte: “É nula a sentença: Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”, por aplicação do plasmado no número 4 do artigo 425º do CPP que estabelece: “É correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto nos artigos 379º e 380º, sendo o acórdão nulo quando for lavrado contra o vencido, ou sem o necessário vencimento.”

- Nesta senda decidiu o acórdão do STJ de 27-10-2010: “I- (…) Por sua vez o excesso de pronúncia significa que o Tribunal conheceu de questão que não lhe era lícito conhecer porque não compreendida no objecto do recurso. V-Para efeitos da nulidade prevista na al. c) do n.º1 do art 379º do CPP, o conhecimento proibido é o que resulte da decisão não compreendida pelo objecto do recurso e o conhecimento omitido é o que não resulta da decisão relativamente ao objecto do processo.”

- E, acórdão do STJ de 04-11-2015, disponível in dgsi,: “VIII- Há que valorar o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a sua relacionação com a personalidade do recorrente, em todas as suas facetas, sob pena de nulidade. IX- À fixação da pena conjunta/única deve presidir o respeito pelos princípios da proporcionalidade, da adequação e da proibição do excesso, tornando-se fundamental a necessidade de ponderação entre a gravidade do facto global e a gravidade da pena conjunta.”

VI- Da omissão de fundamentação:

- O Tribunal da Relação no ponto 2.2.4. do acórdão, ora recorrido, menciona que para determinar a pena única resultante do concurso de crimes baseou-se nos factos dados como provados e na personalidade do arguido.

- Contudo, na ponderação efectuada, e com referência aos factos provados, considerou determinados factos, ignorou outros, e entrou em contradição ao fundamentar o acórdão.

No ponto 2.2.4. invoca que o arguido não possui um quadro familiar e social favorável e verdadeiramente estável, o que está completamente em contradição com os factos dados como provados nos pontos: -32, 34, 37 e 38, que da leitura dos mesmos constatamos que o agregado familiar do arguido é considerado pelo Tribunal um factor de estabilidade que assegurava as necessidades básicas e lhe assegurava suporte afectivo. Inexplicavelmente, o Tribunal da Relação não tomou em consideração esta factualidade dada como provada, contradizendo-a na argumentação utilizada.

- Relativamente às condições de vida do arguido, para além dos supra referidos factos dados como provados, deveria o Tribunal da Relação ter tomado ainda em consideração, a seguinte factualidade também dada como provada:

a) o arguido ter estado sempre integrado a nível profissional, mesmo quando deixou a reclusão teve autorização do Tribunal para se deslocar para o seu trabalho;

b) A companheira do arguido possuir um trabalho estável;

c) Ter reconhecido o seu problema de toxicodependência e aceitar o acompanhamento, do mesmo nas condições impostas para a suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada em primeira instância.

- O Tribunal da Relação deixou se pronunciar sobre factos pelos quais se deveria ter pronunciado, o que se traduz numa nulidade do acórdão nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 379º, nº 1 alínea c) do C.P.P. ex vi do artigo 425º nº:4 do mesmo diploma legal.

-Assim decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão datado de 27-10-2010, disponível in dgsi: “VIII- Por isso, o tribunal de 2ª instância, apesar de ter poderes de cognição em matéria de facto, não pode sem mais, sindicar os meios de prova de que se socorreu o tribunal da 1ª instância, ao dar como provados determinados factos e não outros. Torna-se necessária a indicação expressa dos concretos pontos de facto e das concretas provas que para esses concretos pontos de facto impõem decisão diversa.”

VII- Da Inconstitucionalidade:

- O Tribunal da Relação ao decidir modificar a pena de prisão suspensa na sua execução aplicada ao arguido para uma pena de prisão efectiva, na determinação da referida pena, preteriu as garantias de defesa do arguido constitucionalmente consagradas no artigo 32º nº1 da Constituição da República Portuguesa, nomeadamente, o direito ao recurso, devido à irrecorribilidade plasmada na alínea e) do número 1 do artigo 410º do Código de Processo Penal.

- Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, na Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª edição revista, nas páginas 515 e 516 sobre o referido artigo 32º: “I. Neste artigo condensam-se os mais importantes princípios materiais do processo criminal- a constituição processual criminal. (…) II- A fórmula do nº1 é, sobretudo, uma expressão condensada de todas as normas restantes deste artigo, que todas elas são, em última análise, garantias de defesa. Todavia, este preceito introdutório serve também de cláusula geral englobadora de todas as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal. Em «todas as garantias de defesa» englobasse indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. Dada a radical desigualdade material de partida entre a acusação (normalmente apoiada no poder institucional do Estado) e a defesa, só a compensação desta, mediante específicas garantias, pode atenuar essa desigualdade de armas.”

- A este propósito, decidiu o acórdão do Tribunal Constitucional de 06-10-2016: “Julga inconstitucional a norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovatoriamente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, por violação do direito ao recurso enquanto garantia de defesa em processo criminal.”

- Por sua vez, a decisão da qual se recorre está ainda ferida de inconstitucionalidade por violação do princípio da proporcionalidade do artigo 18º da CRP, por não terem sido considerados determinados factos dados como provados na determinação da pena pelo

Tribunal da Relação, sendo a pena, pelos motivos supra expostos, excessiva e desproporcional.

-“O princípio da proporcionalidade (também chamado princípio da proibição do excesso), desdobra-se em três subprincípios: (a) princípio da adequação (também designado por princípio da idoneidade), isto é, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); (b)princípio da exigibilidade (também chamado de princípio da necessidade ou da indispensabilidade), ou seja, as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias (tornarem-se exigíveis), porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias; (c) princípio da proporcionalidade em sentido restrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa «justa medida», impedindo-se a adopção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos.” (CRP- Constituição da República Portuguesa, Anotada, Volume I, Artigos 1º a 107º, CANOTILHO, Gomes J.J, MOREIRA, Vital, 4ª edição revista, reimpressão, Coimbra Editora, páginas 392 e 393).

- Sobre o princípio da proporcionalidade, o supra citado acórdão do STJ de 04-11-2015, disponível in dgsi: “VIII- Há que valorar o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a sua relacionação com a personalidade do recorrente, em todas as suas facetas, sob pena de nulidade. IX- À fixação da pena conjunta/única deve presidir o respeito pelos princípios da proporcionalidade, da adequação e da proibição do excesso, tornando-se fundamental a necessidade de ponderação entre a gravidade do facto global e a gravidade da pena conjunta.”

Nestes termos e nos melhores de direito que V/Exas. doutamente suprirão, deverão:

I) as presentes nulidades serem julgadas procedentes por provadas, com as legais consequências; e

II) as referidas inconstitucionalidades serem apreciadas, com as respectivas cominações legais;

Em contramina, o Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto, defende que (sic):

“(…) IV. É deste Acórdão que vem interposto, pelo Arguido AA, o presente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, cuja Motivação se desdobra na imputação dos seguintes vícios:

1. EXCESSO DE PRONÚNCIA, vício este gerador de nulidade por ter imposto o cumprimento da pena única em regime efectivo, quando no recurso do Ministério Público se pede a suspensão da sua execução;

PRETERIÇÃO DO EXERCÍCIO DE CONTRADITÓRIO, vício este decorrente do anterior e gerador de nulidade do Acórdão, consubstanciado na omissão, pelo Tribunal recorrido, de formalidade essencial à defesa do Arguido "na medida em que se decidiu pela aplicação de uma pena efectivassem que o Arguido se pudesse defender,..” - sic. e que, por isso, a contamina fatalmente; e

3. OMISSÃO DE FUNDAMENTAÇÃO, "quanto aos factos dados como provados, nomeadamente quanto às condições familiares e sociais do Arguido, para beneficiar do instituto da suspensão da execução da pena." - sic, vício este que, por sua vez é também gerador de nulidade do Acórdão recorrido, nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea a), com referência ao artigo 374º, nº 2, ambos do CPP.

V. Entendo que o recurso não merece provimento.

Por um lado, como inequivocamente resulta do nº 3, do artigo 403º, do CPP, a limitação do recurso a UMA PARTE DA DECISÃO não prejudica o DEVER DE RETIRAR DA PROCEDÊNCIA DAQUELE AS CONSEQUÊNCIAS LEGALMENTE IMPOSTAS RELATIVAMENTE A TODA A DECISÃO RECORRIDA. É exactamente a situação que ora se analisa. A procedência do recurso interposto pelo Ministério Público, na parte em que condenou o Arguido pela prática de um novo (terceiro) crime e lhe impôs uma nova (terceira) pena parcelar, implica a decisão de uma nova pena unitária e a ponderação, sustentada nos elementos disponíveis e suficientes, do modo da sua execução.

Por outro lado, o Tribunal recorrido não se confrontou, em momento algum, com uma alteração não substancial dos factos descritos na decisão recorrida ou da respectiva qualificação jurídica, não conhecida do Arguido, que impusesse, nos termos do artigo 424º, nº 3, do CPP, a notificação do Arguido para, querendo, exercer o contraditório.

Por último e pese embora a contragosto do Arguido, o Acórdão sob recurso convocou a fundamen-tação apta ao seu perfeito alcance, por qualquer destinatário de boa-fé, com clara, lógica e consistente indicação das razões nas quais assentou a sua decisão. Por isso, não enferma da nulidade prevista no artigo 379º, nº 1, alínea a), com referência ao artigo 374º, nº 2, ambos do CPP.

Consequentemente, não exibe qualquer desconformidade legal ou constitucional que o contamine e implique a sua revogação.

VI. Não existindo qualquer fundamento para pôr em causa a o julgamento operado pela deliberação recorrida, entendo que deve ser negado provimento ao recurso.”

Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Ministério Público, é de parecer que (sic):

“1. Por acórdão proferido em 5 de Abril de 2018, no processo em epígrafe, pelo Juízo Central Criminal de ... [J6] foi arguido AA, condenado pela prática em autoria material e em concurso efectivo, das seguintes infrações:

• Um crime de roubo, p. e p. pelo art. 210º, n º 1 do CP, na pena de 1 ano e 9 meses de prisão;

• Um crime de violação, p. e p. pelo art. 164º, n º 1, alínea a), do CP, na pena de 4 anos de prisão;

• Na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução com submissão a regime de prova.

Ao mesmo tempo, o tribunal colectivo, pronunciando-se sobre o imputado crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto no art. 191º do CP, decidiu:

“Julgar extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido AA relativamente ao imputado crime de introdução em lugar vedado ao público por falta de uma condição de procedibilidade – a existência de queixa validamente apresentada.

1.1. Inconformado, veio o MP a interpor recurso para o Tribunal da Relação do Porto, restrito, contudo á questão da extinção do procedimento criminal quanto ao crime p. e p. pelo art.191º do C, propugnando pela condenação do arguido em pena de prisão, suspensa na sua execução.

Por acórdão proferido em 24 de Outubro de 2018, pela 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, pelas razões aí expendidas foi tal recurso julgado procedente, condenando-se o arguido na pena de 2 meses de prisão pela comissão do crime p. e p. pelo art. 191º do CP. Sequencialmente foi reformulado o cúmulo jurídico, tendo a pena única sido fixada em 4 anos e 7 meses de prisão efectiva.

1.2. Do referido acórdão, vem interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça pelo arguido, que conclui nos termos de págs.633-639.

2. Por sua vez, o MP na 2ª instância, veio responder, nos termos contantes de págs. 655-539, concluindo pela improcedência.

3. Tendo em conta as conclusões extraídas pelo recorrente, coloca-se, antes de mais, a questão prévia de saber se o recurso que vem interposto para o STJ é admissível, e sendo-o, em que extensão.

3.1. Haverá que se considerar, desde logo, o art. 400º, (decisões que não admitem recurso), n º 1, alínea e), do CPP (redação introduzida o pela Lei n º 20 / 2013, de 21-02:

e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos;

Há luz (dever-se-ia ter escrito “À luz”) de tal inciso, o acórdão não seria recorrível, quer na vertente do crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo art. 191º do CP (em que como supra se consignou, o recorrente vem, inovadoramente condenado, numa pena de 2 meses de prisão), quer no atinente ao «quantum» da pena única - 4 anos e 7 meses de prisão.
Todavia, o Tribunal Constitucional, na esteira de algumas decisões anteriores, cf. acórdão, n º 429/ 2016, de 6 de Outubro (Plenário) e as decisões sumárias n º 664/2016-2ª secção e n º 132/ 2018-1ª secção, veio no acórdão n º 595/2018, proferido no proc. n º 273/2018, em 13.11.2018, relatado por Maria de Fátima Mata-Mouros, vide DR n º 238, SI, de 11.12.2018, a decidir: «Pelo exposto, o Tribunal Constitucional declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, por violação do artigo 32.º, n.º 1, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2 da Constituição».

Temos assim, que «hoc die» o Tribunal Constitucional, formulou um juízo de inconstitucionalidade circunscrito, porém, aqueles casos «em que a Relação, revertendo uma absolvição em 1ª instância, condenou o arguido numa pena de prisão efectiva não superior a 5 anos», declarando, como vimos de dizer, a força obrigatória geral de tal juízo de inconstitucionalidade, na dimensão normativa extraída da norma aplicada, o artigo 400º, n º 1, alínea e), do CPP, na redacção introduzida pela  Lei n º 20/2013, de 21-02. Considerou-se em tal aresto, que o facto do arguido, não poder ver sindicada a escolha do tipo de pena e a medida desta, constituía, uma intolerável violação ao direito ao recurso, enquanto lídima expressão das garantias de defesa em processo criminal, asseguradas, desde logo no plano Constitucional, pelo art. 32º, n º 1. Violação, que naturalmente surge, umbilicalmente, associada ao princípio da proibição do excesso - ut 18º, n º 2, da CRP.

Fica assim claro, que o recurso na parte referente á condenação do recorrente, pelo crime p. e p. pelo artº 191º do CP, em pena de prisão efectiva, terá de ser admitido por este Alto Tribunal. Quanto ao cúmulo jurídico efectuado, não podemos deixar de considerar que «mutatis mutandis» que o mesmo constitui matéria passível de ser sindicada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

3.2. Com a posição que vimos acima de tomar sob a questão prévia que vinha colocada pelo recorrente, já não há qualquer fundamento para falar, como vem feito pelo recorrente, em inconstitucionalidade por «violação do art. 32º da CRP».

3.2.1. Ainda sobre a condenação pelo crime p. e p. pelo art. 191º do CP, revertendo à absolvição (da instância) decretada, nesse particular no acórdão da 1ª instância, haverá que ter em conta que o Tribunal da Relação ao apreciar o recurso do MP, não obstante, tenha concordado com o facto dos documentos juntos aos autos demonstrarem que a vítima apresentou queixa válida e tempestiva e para tal tinha legitimidade (o que não vem posto em causa pelo recorrente) não estava obrigado, como parece entender aquele, a concordar, que tal pena teria que ser objecto de suspensão da sua execução com regime de prova (de resto, como bem se evidencia das conclusões do recurso do MP, tal pretensão complementar terá a ver com o facto dos demais crimes terem visto no acórdão da 1ª instância, as correspectivas penas de prisão serem suspensas na sua execução com submissão a regime de prova). De todo o modo, o tribunal de recurso, pode julgar, o mesmo improcedente, totalmente procedente ou parcialmente procedente, como foi o caso, doutra forma, a apreciação de um recurso, transformar-se-ia, não num reexame da causa por uma instância superior, mas pelo menos na questão em causa, como «um mero tabelionato» absolutamente inadmissível.

Diga-se, de resto, que o Tribunal da Relação do Porto, actuou dentro do que prescreve o Acórdão de fixação de jurisprudência n º 4/2016, que fixou a seguinte jurisprudência: «Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal.» Lisboa, 21.06.2016- Isabel Pais Martins- in Diário da República n.º 36/2016, Série I de 2016-02-22.

Posição que superou, como se sabe, a outra via possível, em tais casos, que era a do envio dos autos á 1ª instância para se pronunciar sobre «as consequências jurídicas do crime».

Temos assim que a Relação do Porto, não incorreu como alegado, no vício da sentença, prevenido no art. 379º, n º 1, alínea c), último segmento, do CPP.

3.2.3. Não vemos também, da leitura do acórdão «sub judicio» que não se tenha curado de fundamentar a pena única. Sem querer ser repetitivo, porquanto a leitura da peça é melhor do que qualquer argumento, sempre se dirá, que se ponderou a actuação do arguido no cometimento do crime de violação e roubo, seguido do crime de introdução em lugar vedado ao público, a forte persistência do recorrente em continuar a sua actuação delituosa, os crimes pelos quais já havia sido condenado no passado, ainda que de menor gravidade, para se concluir que se o perfil do recorrente se deverá qualificar como relevando da pluriocasionalidade, mas que não deixa de se afirmar por condutas progressivamente mais gravosas. Neste contexto, a Relação não deixou de ponderar a medida da pena única, fundamentando-a. Sendo certo que a nosso ver, de modo nenhum se pode ter a mesma como violadora do princípio da proibição do excesso, com os seus corolários da necessidade, proporcionalidade e adequação.

3.2.4. Quanto à crítica de que houve preterição do contraditório, dir-se-á, a nosso ver que a Relação cumpriu o acórdão n º 4/2016, como se vem de dizer, sendo certo que o contraditório se poderia ter efectivado, com a realização de audiência, unicamente para tal efeito, não deixa de ser menos verdade que a lei processual penal em si não prevê tal diligência. Contudo, o que se nos afigura como mais decisivo, é que justamente a admissão do recurso que vem interposto, em toda a sua amplitude, como supra propugnamos, permite a plena realização do contraditório.

Neste conspecto, somos de parecer que o recurso deve ser admitido, mas pelos fundamentos consignados, deve ser «in totum» julgado improcedente.”

I.c) – QUESTÕES A MERECER APRECIAÇÃO.

Arredada a questão prévia de admissibilidade do recurso – o recurso foi admitido por despacho liminar constante de fls. 679 – sobram para examinar as sequentes questões:

(a) – Excesso de Pronúncia por o acórdão recorrido ter assumido a solução de questões que excediam o âmbito do recurso do Ministério Público (O Ministério Público no recurso interposto havia-se insurgido contra a decisão do tribunal de primeira (1ª) instância ter considerado não existir queixa válida manifestada pela titular do direito ao espaço invadido pelo arguido);

(b) – Preterição do exercício do direito do contraditório por ter operado uma condenação sem ter permitido ao arguido contraminar o propósito de, em face do julgamento quanto à primeva questão enunciada, vir a condenar o arguido, depois de o condenar pelo crime de introdução em lugar vedado ao público, em cúmulo jurídico, numa pena única de prisão efectiva  ;

(c) – Omissão e/ou contradição na fundamentação quanto à não menção de factos concernentes às condições familiares.   

II. – FUNDAMENTAÇÃO.

II.A. – DE FACTO.

2.1.1. No acórdão recorrido foi considerada provada a seguinte factualidade:

"1. No dia 18 de maio de 2017, pelas 11h00, o arguido AA fazia-se transportar na viatura de matricula ...-KE, de marca Honda, modelo Civic CRX, de cor preta, pela localidade de ..., vestindo um par de calças de sarja azul, com cinto branco, uma t-shirt de cor azul, com bolso de cor azul escura, sobre o peito do lado esquerdo e calçando sapatilhas.

2. Ao chegar à rotunda da EN n.9 244, próximo da empresa ..., o arguido avistou a ofendida BB, de nacionalidade ... e nascida a ....92, a qual caminhava por um pinhal localizado junto àquela rotunda, local onde se dedica à prostituição.

3. Ato contínuo, com o intuito de, ainda que por recurso à força, se apoderar de quaisquer quantias que a referida BB tivesse consigo e de, com ela, manter relacionamento de teor sexual, o arguido conduziu a sua viatura, por um caminho de terra batida existente no sobredito pinhal, em direção àquela.

4. Já próximo da ofendida, o arguido estacionou a viatura por si conduzida e, saindo para o exterior, dirigiu-se à ofendida e rodeou-lhe o pescoço com o antebraço direito, pressionando-a contra si, ao mesmo tempo que dizia: “dá-me o dinheiro senão eu mato-te”, expressão que repetiu por diversas vezes.

5. Assim manietada e receando que o arguido atentasse contra a sua vida, a ofendida esvaziou a carteira que transportava a tiracolo e entregou-lhe uma nota com o valor facial de 20€, que o arguido agarrou e guardou com ele, fazendo-a sua, contra a vontade da referida BB.

6. De seguida, o arguido ordenou à BB que lhe fizesse um broche, tendo-lhe dito ainda que se não fizesse o que lhe mandava, a matava, assim a atemorizando.

7. Ato contínuo, o arguido, agarrando a BB pelo corpo, forçou-a a sentar-se no banco do condutor da viatura referida em 1., voltada para fora, enquanto ele permaneceu no exterior do carro.

8. Naquela posição, o arguido desnuda-se da cintura para baixo, baixando as calças e cuecas que trazia vestidas até aos tornozelos, exibindo o pénis e os testículos nos quais usa um piercing, e introduziu-lhe o pénis ereto na boca, obrigando-a a praticar-lhe coito oral durante alguns minutos.

9. Após, o arguido disse-lhe para se despir, ao que ela obedeceu, ficando desnudada da cintura para baixo.

10. Nisto, permanecendo a BB sentada no mesmo banco da viatura, com as pernas numa posição elevada, voltadas para fora e, continuando o arguido no exterior da viatura, este introduziu-lhe o pénis ereto na vagina, sem usar preservativo, efetuando movimentos pélvicos de cópula completa até ejacular no interior do corpo da vítima.

11. De seguida, o arguido introduziu o pénis ereto no ânus daquela, sem usar preservativo e efetuou novamente movimentos pélvicos de cópula completa.

12. Por sentir medo que o arguido concretizasse as ameaças de morte que lhe tinha feito e ainda por se encontrar num local isolado, afastado de habitações, sem trânsito automóvel regular e inserido numa zona de mata, a BB não ofereceu qualquer resistência à atuação do arguido.

13. Praticados tais atos, o arguido vestiu-se, disse à vítima que sabia onde ela morava, entrou no carro por si conduzido e abandonou o local, ali a deixando.

14. No dia 19 de maio de 2017, pelas 11h30, conduzindo viatura de matrícula ...-XV, de marca Mitsubishi e modelo Conter, de cor branca e caixa aberta, o arguido, na companhia do colega de trabalho ..., dirigiu-se à Rua ..., casa de habitação de ..., onde sabia viver a referida BB, e uma vez ali chegado, estacionou a viatura, saiu para o exterior e chamou-a pelo nome de ..., nome pelo que a BB é conhecida, dizendo, também, que queria falar com ela.

15. Como a BB, temendo que o arguido atentasse novamente contra a sua vida ou liberdade sexual, não lhe abrisse o portão, o arguido saltou o muro que veda o pátio da casa onde habitava a ofendida, sem autorização e contra a vontade daquela, e posicionou-se junto a uma janela da habitação, até que ouviu ..., vizinha da BB, a gritar por esta, colocando-se então o arguido em fuga.

16. Com a conduta supra descrita, atuou o arguido com o propósito de se apoderar do dinheiro que a BB trazia com ela, contra a vontade e em prejuízo desta, resultado que quis e previu.

17. O arguido quis e conseguiu proferir expressões de teor ameaçador dirigidas à BB, criando nesta a convicção que, caso não acatasse os seus desejos, o mesmo atentaria contra a sua vida e integridade, assim a obrigando a manter, consigo, relações sexuais de cópula completa, coito anal e coito oral, bem sabendo que o fazia com o propósito único de satisfazer os seus desejos sexuais e que atuava sem o consentimento e contra a vontade da ofendida.

18. Atuou, assim, o arguido, em virtude do receio e temor que incutia na ofendida, com o objetivo único de a constranger a suportar atos que sabia que ofendiam a liberdade sexual daquela, resultado que quis e previu.

19. Agiu também o arguido com o propósito de entrar no pátio da residência onde habitava a ofendida, contra a vontade e autorização desta, o que conseguiu.

20. Sabia o arguido que todas as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

21. Após estes factos a BB apenas permaneceu cerca de dois meses em Portugal, tendo regressado definitivamente à ..., onde vive atualmente.

22. O arguido refere-se à dinâmica do agregado familiar de origem como afetuosa e apoiante até aos três anos de idade, altura em que os pais se divorciaram e, com dois irmãos mais velhos, foi residir com os avôs paternos.

23. A progenitora, por sua vez, emigrou para a ... e regressou a Portugal alguns anos depois, acolhendo o arguido na residência que partilhava com o novo companheiro.

24. O arguido tem dois irmãos com respetivamente 28 anos e 39 anos de idade.

25. O arguido completou o 6.º ano de escolaridade e abandonou o ensino com 16 anos de idade devido às dificuldades económicas do agregado familiar e à necessidade de ingressar na vida profissional.

26. Começou por trabalhar como servente na área da construção civil e, posteriormente trabalhou durante seis anos como ajudante do padrasto, cuja profissão era a de mergulhador profissional.

27. Devido a necessidades económicas, a progenitora e o padrasto do arguido acabariam por emigrar novamente, desta vez para ..., regressando o arguido à residência dos avôs paternos.

28. Foi neste momento da sua vida, com 22 anos de idade, que o arguido situa o início do consumo de estupefacientes, nomeadamente cocaína e haxixe, com grupos de pares e em contextos associados a práticas desviantes.

29. Registam-se, no entanto, antecedentes criminais e contactos prévios com a Justiça e com a Reinserção Social desde os seus 16/17 anos de idade pelos crimes de furto.

30. No plano afetivo, menciona o namoro com ..., desde os 22 anos de idade, a qual reprova os seus hábitos de consumo de estupefacientes.

31. A data dos factos que originaram o presente processo, o quotidiano do arguido era dominado pela necessidade de obtenção e consumo de estupefacientes.

32. Como fator de estabilidade, destacava-se o agregado familiar no qual estava integrado e que lhe supria as necessidades básicas e assegurava suporte afetivo.

33. Dispunha de vínculo laboral na empresa ..., na ..., onde desempenhava tarefas de jardinagem e auferia o ordenado que rondava os 557,00€ trabalhando também alguns sábados (em média l a 2 vezes por mês) dias em que ganhava 50,00€.

34. O arguido residia na ... pelo que no contexto sócio residencial onde pretende viver no futuro, em ..., com a progenitora e padrasto, a sua imagem não se encontra associada à toxicodependência, ao acompanhamento de pares desviantes ou à frequência de locais conotados com criminalidade.

35. O arguido ingressou no Estabelecimento Prisional ... em 20-05-2017 e manteve ali com-portamento adequado às regras institucionais, beneficiando de visitas regulares por parte dos progenitores e irmãos, tendo sido libertado a 20-12-2017.

36. Aquando do ingresso, realizou testes analíticos com resultados positivos ao consumo de cocaína e haxixe, problema que assume mas para o qual nunca procurou tratamento em meio livre.

37. Após a detenção, a progenitora e o padrasto regressaram a Portugal e fixaram residência na cidade de ... para visitar o arguido e apoiá-lo económica e emocionalmente.

38. Atualmente o arguido reside com a sua companheira na casa da mãe desta última, sita em ....

39. Trabalha como operário na fábrica "..." em ... em horários rotativos (numa semana das 6horas ás 15 horas, na seguinte das l5horas às 0horas e na subsequente das 0 horas às 6 horas) auferindo um vencimento que ronda os 750,00€ mensais.

40. A companheira do arguido trabalha numa padaria em ....

41. O arguido já respondeu em Tribunal, tendo sido condenado:

a) No processo comum singular nº 211/13.9GAETR do Juízo de Competência Genérica de ..., Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de ..., por sentença transitada em julgado a 26.05.2017, pela prática a 21.08.2013 de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punível pelo art.º 32, nº 1 do DL 2/98 de 03.01, na pena de 75 dias de multa à taxa diária de 6,00€.

b) No processo comum singular nº 7/13.8GAETR do Juízo de Competência Genérica de ..., Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de ..., por sentença transitada em julgado a 26.11.2015, pela prática a 14.01.2013 de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo art.º 86º, nº l, al. c) da lei nº 5/2006 de 23.01, na pena de 180 dias de multa à taxa diária de 5,00€, já declarada extinta."

II.B. – DE DIREITO.

II.B.1. – Excesso de pronúncia por ter assumido solução de questões que excediam o âmbito do recurso do Ministério Público.

Insurge-se o recorrente contra o acórdão recorrido, por (i) o objecto do recurso do Ministério Público se restringir à titularidade do direito de queixa por banda da ofendida; (ii) o recorrente, Ministério Público, ter pedido a condenação do arguido em pena de dois (2) meses de prisão, pelo crime de introdução de lugar vedado ao público; (iii) ter igualmente pedido, que, na reformulação do cúmulo jurídico das penas impostas e a impor ao arguido, fosse condenado numa pena de 4 anos e 8 meses, suspensa na sua execução; e (iv) ao condenar o arguido em prisão efectiva o tribunal da Relação ter exorbitado, ou ter ido além, do que lhe foi pedido no recurso. [[1]]
Em definitivo, estima que o tribunal da Relação não poderia, na condenação da pena única que operou, ter ido além do que o Ministério Público tinha pedido no recurso, vale dizer, condenar o arguido “(…) na pena única de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova e com imposição, ainda, nos termos do disposto nos artigos 54º, nº 3, 51º, nº 1, al. a), e 52º, nº 1 e 3, do Código Penal, das obrigações e regras de conduta já estabelecidas no acórdão recorrido.”

A lei – artigo 379º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Penal – alanceia a sentença com o vício de nulidade quando “conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”. 

O excesso de pronúncia verifica-se quando o tribunal conhece de questão ou questões sobre as quais não se pode pronunciar.” [[2]/[3]]

A sentença como acto jurídico é um juízo através do qual o juiz desenvolve um processo intelectual de génese lógica de tal acto.”

Carnelutti, assevera que toda a sentença se compõe de um binómio fundamental de elementos. “De um lado, a declaração de ciência ou motivação; de outro, a declaração de vontade do Juiz ou disposição que se expressa a decisão (“fallo”)”.  [[4]]  

A sentença é o corolário sequencial e lógico de um processo desencadeado, ou oficiosamente, por obediência e submissão ao principio da legalidade, ou pela iniciativa de sujeitos (orivados ou públicos) que apesentam e pedem a um órgão jurisdicional que intervenha na solução/resolução de um litigio, ou desvio do ordenamento imposto, que carece de ser solucionado mediante um acto juridicamente constituinte revestido de autoridade do Estado. (“A sentença (final), tradu-zindo o resultado da aplicação do direito vigente aos factos tidos por provados, constitui o julgamento do aspecto jurídico da causa.”) [[5]

Tratando-se de um acto resolutivo e de lógica conclusiva, a decisão judicial conleva e concita como fundamento do seu conteúdo decisional os pressupostos de facto e de direito que lhe deram origem e que ao longo do processo formativo-constitutivo se foram aglutinando, para, a final, em julgamento, virem a ser dados como relevantes e enformadores da decisão, tanto de facto como de direito, da resolução assumida pelo órgão jurisdicional. [[6]]

Daí que a sentença não possa tomar como pressuposto ou fundamento questões que não hajam sido abordadas e debatidas durante do processo, sob pena de fazendo-o produzir uma «decisão surpresa» susceptível de inquinar a correcção externa da decisão. O debate das questões que hajam sido suscitadas pelas partes constitui-se ponto axial de um processo equitativo e justo e previsível. As partes, ou os sujeitos intervenientes no processo, devem poder prever com um mínimo de segurança e grau de confiança dentro de que parâmetros a decisão poderá vir a se ditada.

Não pode, pois, o tribunal deixar de emitir pronúncia sobre todas as questões suscitadas pelas partes, e aquelas de que deva tomar conhecimento oficioso, tal como lhe está vedado que se pronuncie sobre questões. ou formulações peticionais, que os intervenientes não tenham sujeito a debate e/ou que não tenham enunciado e posto em tela de juízo para tomada de resolução final.

Para o caso, o recorrente estima que tendo o recorrente, Ministério Público, formulado, no pedido de alteração da decisão de primeira (1ª) instância – pretensão ou pedido do recurso – que a decisão final viesse a estabelecer, mesmo com a condenação pelo crime por que pugnava, uma pena única cuja execução viesse a ser declarada suspensa, não podia ir além deste pedido e ditar uma sentença, em excesso e ultrapassagem do pedido, em que a condenação viesse a ser uma pena de prisão efectiva.

Admite-se que a decisão proferida, numa posição rigorista e formal-abstracta, possa constituir uma «decisão surpresa» [[7]], na medida em que o recorrido, ou sequer o recorrente, por também não ter pedido ao tribunal uma condenação em prisão efectiva, não esperaria que o tribunal viesse a aplicar uma pena de qualidade diferente daquela que era pedida pelo peticionante Ministério Público, e com esse pedido descansasse numa continuação do seu estado de não privação da liberdade. Tendo o recorrente pedido, mesmo com a alteração da conjuntura resultante da alteração das penas parcelares  - pedia a condenação pelo crime de introdução de lugar vedado ao público em 2 (dois) meses de prisão –, que a moldura penal da pena conjunta fosse alterada – para mais um 1 (um ) mês no cômputo da pena conjunta –, mas, mesmo com essa alteração fosse mantida a suspensão da execução da pena, é legitimo pensar que o recorrido fosse apanhado de surpresa com a  decisão de uma condenação em pena efectiva, sem lhe dar possibilidade de contraminar uma eventual alteração da suspensão da execução pedida. E perspectivado à luz deste entendimento a decisão proferida pelo tribunal de recurso não pode deixar de ser qualificada como uma decisão surpresa, na medida em que opta por uma via que não estava prevista na decisão recorrida nem tinha sido pedida no recurso que havia sido interposto dessa decisão e que só a iniciativa própria e isolada do tribunal havia conseguido impor. 

Porém, o tribunal de recurso, confrontado, por análise operada em sede de recurso, com a validade da queixa e com a verificação dos elementos constitutivos do crime de introdução de lugar vedado ao público, não poderia ter deixado, em obediência a jurisprudência uniformizada, de aplicar uma pena pelo mencionado crime. (Independentemente da bondade da decisão que colheu vencimento, que não cabe ora discutir). [[8]]

Esta, porém, não se apresenta como o cerne da questão colocada pelo recorrente. Do que o recorrente acoima a decisão é de ter ido além do pedido formulado ao tribunal pelo recorrente, isto é, de, na linguagem processual civil ter condenado ultra vel petitum, ou para além do que fora pedido pelo sujeito com legitimidade para o formular, a saber o recorrente Ministério Público. Vale dizer condenar o arguido em pena de prisão efectiva quando o peticionante tinha pedido que, mesmo com a condenação pelo crime de introdução em lugar vedado ao público, por que não tinha sido condenada na decisão recorrida, fosse mantida a suspensão da pena de prisão em que o tribunal de primeira (1ª) instância o condenara.   

Ainda que estimemos que a figura que, jurídico-conceptualmente,  melhor se ajusta ao proceder do tribunal deva ser a «decisão surpresa», o tribunal agiu em divergência e/ou à revelia, ou seja sem arrimo funcional ao pedido estrito e confinado que lhe havia sido endereçado, admitimos que, numa numa concepção mais abrangente e descentrada, se possa integrar no conceito de excesso de pronúncia.     

Independentemente da bondade ou justeza da ponderação de razões e motivos em que se baseou a divergência do tribunal de recurso relativamente à opção assumida pelo tribunal de primeira (1ª) instância, o facto é que a imposição da pena de prisão efectiva, indo além do pedido que o recorrente havia impetrado, se constitui um atropelo às regras de cognoscibilidade dos recursos que não pode subsistir sob pena de se estar a violar a regra do pedido e com isso o âmbito de cognoscibilidade (objectiva) viger nas impugnações judiciais. Na verdade, as decisões a proferir em sede de recursos, devendo abranger toda a decisão – cfr. nº 1 do artigo 402º do Código de Processo penal – podem ser limitadas – cfr. artigo 403º do Código de Processo Penal – nas circunstâncias e dentro dos condicionalismos aí referidos, nomeadamente em caso de concurso de crimes relativamente a  um dos crimes e “dentro da questão da determinação da sanção, a cada uma das penas ou medidas de segurança” – cfr. alíneas c) e f) do artigo 403º do Código de Processo Penal, não podendo ir além do que for pedido ao tribunal por quem pretende impugnar uma decisão, a menos que a decisão impugnada contenha desvios de logicidade, de avaliação de facto ou de aplicação de regras de direito que não sejam conformes ao ordenamento e devam ser, oficiosamente, conhecidas pelo tribunal de recurso. Com os parâmetros delineados, as decisões devem conter-se dentro dos limites e com os parâmetros de cognoscibilidade jurídico-formal em que o peticionante se movimenta, a menos que, sobrevindo alterações factuais e/ou de direito, a justeza da decisão a proferir se pudesse frustrar e vir a ser defraudada a justiça do caso sem a cognoscibilidade dos novos elementos sobrevindos – e estranhos à lide tal como delineada pelos sujeitos processuais no pedido formulado ao tribunal, mais concretamente, em direito penal com o pedido formulado na acusação (ao fim ao cabo pedido formulado pelo Ministério Público ou pelo assistente) de acção sancionatória do Estado relativamente a um acto punível) – cfr. artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal. É dentro de uma limitação de pedido, no sentido apontado, ou seja de formulações de sentido para assumpção de uma acção funcional e decisória do Estado, que os órgãos formais de controlo agem e procedem, sob pena de, a não ser assim, se criar uma  dessintonia e uma disrupção entre aqueles que pedem com um determinado sentido e alcance cognitivo e volitivo e o órgão que decide, eventualmente, fora desse âmbito.

O conhecimento em excesso, em sede de recurso, de uma questão que o recorrente haja eleito como objecto de impugnação, ou discordância, da decisão que pretende ver revista – alterada, corrigida, ou revogada – constitui-se, nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 379º do Código Processo Penal, como um vício invalidante da decisão, pelos apontados motivos. (“A falta de pronúncia que determina a nulidade da sentença incide sobre as questões e não sobre os motivos ou argumentos invocados pelos sujeitos processuais, ou seja, a omissão resulta da falta de pronúncia sobre as questões que cabe ao tribunal conhecer e não da falta de pronúncia sobre os motivos ou as razões que os sujeitos processuais alegam em sustentação das questões que submente à apreciação do tribunal, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidas pela parte em defesa da sua pretensão”). [[9]]

Na ordenação processual viger desde 1961 (Código Processo Civil) vigorava a regra de que “quando a Relação tivesse deixado de conhecer de certas questões, por considerá-las prejudicadas pela solução dada o litígio, se o STJ dispusesse de todos os elementos, deveria substituir-se à Relação e proferir a decisão sobre o mérito do recurso em toda a sua extensão (a solução não era uniforme, sendo contrariada, designadamente, pelos Ac.s do STJ de 3-10-2013 e 15-05-2013, in www.dgsi.pt).” [[10]]               

Actualmente, o artigo 679º do Código de Processo Civil, exclui uma aplicação remissiva de todo o preceituado no artigo 665º. Na opinião do Autor citado, após a reforma de 2013, o Supremo Tribunal de Justiça, não tem o poder de se substituir de imediato, “devendo agir do seguinte modo: a) Detectada alguma nulidade decisória que afecte o acórdão recorrido, o Supremo, de acordo com o prescrito pelo art. 684º, nuns casos (als.c) e e) e 2ª parte da al. d) do art.615º), decidirá em regime de substituição, noutros casos, máxime quando a nulidade corresponder a omissão de pronúncia, limitar-se-á a cassar a decisão, remetendo os autos para a Relação;

b) Quando o acórdão da Relação não estiver afectado por nulidade, mas não tenha apreciado determinada questão por considerá-la prejudicada pela solução então encontrada, se ral acórdão for revogado, impõe-se a remessa dos autos à Relação para que nesta sejam apreciados em primeira mão as questões omitidas.”                

Na anotação que formula ao artigo 679º do Código de Processo Civil, o Autor que vimos seguindo refere a posição discordante do Professor Teixeira de Sousa, “para quem não faz sentido uma duplicidade de regimes consoante a situação se verifique no âmbito do recurso de apelação ou de revista. Refere que “a garantia do duplo grau de jurisdição destina-se a assegurar que é possível recorrer para um Tribunal Superior, não a impedir a um Tribunal Supremo de se pronunciar sobre uma questão”, Por isso afirma que, malgrado o teor do art. 679º excluir a aplicabilidade do nº 2 do art. 665º, a imediata substituição do Supremo em situações em que a Relação não tenha respondido a determinada questão por considerá-la prejudicada pela solução dada a outra questão é decorrência directa do disposto no art. 682º, nº 3. Conclui que “a remessa para a Relaçõ só se justifica quando o STJ entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão da questão prejudicada, isto é, quando o STJ não disponha de matéria de facto suficiente para conhecer dessa questão. Sendo assim, havendo no processo todos os elementos suficientes, nada impede que o STJ se possa pronunciar sobre a questão prejudicada: é isso que resulta do estabelecido no nº 1 do art. 682.” [[11]

No domínio do direito processual penal, escreveu-se a propósito da regra de substituição do Supremo Tribunal de Justiça, nos casos em que ocorra uma falta de pronúncia na decisão recorrida, (sic) “A este respeito, vinha o STJ a entender, de forma maioritária [Neste sentido, entre outros, os Acórdãos, de 11.01.2006, Proc. 2249/05-3ª Sec., de 28.02.2007, Proc. 3382/06-3ª Sec. e de 21.01.2016, Proc. 2/14.0GAAMT.S1.], que, tratando-se de omissão de pronúncia, o tribunal de revista não podia substituir-se ao tribunal recorrido e suprir a nulidade, devendo, por isso, mandar baixar o processo a fim de se fazer a reforma da decisão anulada, pelos mesmos juízes quando possível, nos termos do disposto no art. 731º, n2º do CPP, pois de outra forma subtrair-se-ia o único grau de recurso ao dispor do arguido, violando-se a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição (art. 32º da CRP).   

Julgamos, porém, tal como escreve o Conselheiro Oliveira Mendes, na anotação 4 ao artigo 379º do CPP, que « por efeito da alteração introduzida ao texto do nº2 pela lei nº 20/2013, de 21 de Fevereiro, passou a constituir um dever do tribunal de recurso o suprimento das nulidades da sentença recorrida ( é o que decorre da actual letra da lei «as nulidades da sentença devem  ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las…») , razão pela qual sobre o tribunal de recurso impende a obrigação de suprir as nulidades de que padeça a sentença recorrida, a menos, obviamente, que a nulidade só seja susceptível de suprimento pelo tribunal recorrido».

Na verdade, basta comparar a redação atual do nº2 do citado art. 379º dada pela Lei nº 20/2013, de 21 de fevereiro, com  a redação originária dada  ao mesmo número pela Lei nº 59/98, de 25 de agosto, para facilmente se constatar que, enquanto esta  refere «sendo lícito ao tribunal supri-las», a atual redação refere « devendo o tribunal supri-las» (sublinhado nosso), o que, atento até o disposto no art. 9º, nº3 do C. Civil[8], significa que o legislador de 2013,  não só teve a intenção clara de afastar a natureza não vinculada do poder/dever contido na redacção primitiva do referido nº2, como quis tornar esse poder/dever vinculado, impondo, deste modo, ao  tribunal de recurso a obrigação de suprir tais nulidades, com exceção dos casos em que as  mesmas só sejam passíveis de ser supridas pelo tribunal recorrido.  

De realçar ser esta a solução mais adequada ao nosso sistema processual penal de recurso que, como é consabido, segue, essencialmente, o modelo de substituição ( e não de cassação), embora com limitações.

Deste modo, com exceção dos casos em que isso não for possível, designadamente por insuficiência de matéria factual, o tribunal de recurso, se o acolher, substitui a decisão por aquela que considere ser a legal.” [[12]]

Em nosso juízo, e com o respeito que nos merece a posição negativa supra expressa, para a solução processual civil, afigura-se-nos que a regra da substituição deve reger nas situações em que, como é o caso, o tribunal de recurso, se alcandorou à pronúncia, em excesso, de um pedido que recorrente lhe havia endereçado, ou seja de um pedido fundamentado e plasmado na petição de alteração do decidido na decisão de primeira (1ª) instância.

Assim, em substituição, da decisão inquinada por excesso de pronúncia, deverá este Supremo Tribunal reformular a decisão recorrida de modo a corrigir/sanar o vício reconhecido e afeiçoá-la, em primeiro lugar, à correspondência com o pedido que foi formulado pelo peticionante da alteração da decisão a alterar, e em segundo lugar, conferir inteireza estrutural-formal a uma decisão que deve estar ajustada à compleição da temática debatida e almejada pelos sujeitos processuais. 

O recorrente, Ministério Público, havia pedido ao tribunal de recurso que alterasse a decisão proferida pelo tribunal de primeira (1ª) instância (i) conferindo legitimidade à ofendida para apresentar denúncia pelo crime de introdução de lugar vedado ao público, e dessa sorte convalidasse a acção penal que o Ministério Público havia desencadeado e acusado o arguido; (ii) que condenasse o arguido pelo crime por que fora acusado, por se verificarem os elementos constitutivos, tanto de facto como de direito, contidos na norma incriminadora; e (iii) que com a condenação – em dois meses de prisão – fosse alterado o cúmulo jurídico das penas impostas ao arguido e (sic) “Em cúmulo jurídico com as demais penas aplicadas ao mesmo arguido nestes autos (pelos crimes de roubo e de violação), condenar o arguido AA na pena única de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova e com imposição, ainda, nos termos do disposto nos artigos 54º, nº 3, 51º, nº 1, al. a), e 52º, nº 1 e 3, do Código Penal, das obrigações e regras de conduta já estabelecidas no acórdão recorrido.”

O tribunal acolheu e satisfez as duas primeiras requestas do recorrente, pelo que tendo-se conformado com o pedido do recorrente e emitido pronúncia favorável a decisão se tornou firme, nesta parte, apresentando acentuada divergência relativamente ao pedido formulado em terceiro lugar, a saber ter condenado o arguido numa pena conjunta de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão efectiva.

Como se pontoou supra a decisão recorrida foi além do pedido quando, em superação e avanta-jamento da pena pedida do recorrente impôs uma pena de prisão efectiva.

O excesso de pronúncia com que o recorrente acoima a decisão recorrida deve, em substituição, ser corrigido, por forma a que, tendo sido acolhidos os dois pedidos formulados – validade formal da denúncia e condenação pelo crime de introdução de lugar vedado ao público – o cúmulo jurídico das penas – por três crimes – se atenha e confine ao que foi pedido pelo recorrente.

Na conformação da decisão recorrida com o pedido formulado pelo recorrente, a condenação, em cúmulo jurídico das penas impostas pelo tribunal recorrido, quedar-se-á e confinar-se-á ao pedido do recurso, ou seja na (sic) “(…) pena única de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova e com imposição, ainda, nos termos do disposto nos artigos 54º, nº 3, 51º, nº 1, al. a), e 52º, nº 1 e 3, do Código Penal, das obrigações e regras de conduta já estabelecidas no acórdão recorrido.”

Com a decisão adoptada ficam prejudicados, por ausência de necessidade de pronúncia, as demais questões que haviam sido enunciadas para conhecimento – cfr. artigo 60ºº do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4º do Código de Processo Penal.    

 

III. – DECISÃO.

Na defluência do exposto, acordam os juízes que constituem este colectivo, na 3ª secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça, em: 

- Conceder provimento ao recurso, e consequentemente,  sanando o vicio reconhecido à decisão recorrido, condena-se o arguido AA na “pena única de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova e com imposição, ainda, nos termos do disposto nos artigos 54º, nº 3, 51º, nº 1, al. a), e 52º, nº 1 e 3, do Código Penal, das obrigações e regras de conduta já estabelecidas no acórdão recorrido.”

- Sem custas.

                                    Lisboa, 19 de Junho de 2019

                                                                     

 (Gabriel Martim Catarino)

(Mário Belo Morgado)

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[1] Para cabal esclarecimento deixa-se transcrito o pedido formulado pelo Ministério Público no recurso que interpôs da decisão de primeira instância.

Deve, portanto, ser dado provimento ao presente recurso, alterando-se o acórdão recorrido no sentido de:
a) Considerar validamente apresentada a queixa formulada pela ofendida BB relativamente ao crime de introdução em lugar vedado, p. e p. pelo artigo 191º do Código Penal, objeto dos presentes autos, e consequentemente ter o Ministério Público legitimidade para promover a ação penal pelo mesmo;

b) Em consequência, decidir de mérito relativamente ao aludido crime de introdução em lugar vedado e:

i. Condenar o arguido AA, como autor material de um crime de introdução em lugar vedado, p. e p. peto artigo 191º do Código Penal, na pena de, pelo menos, 2 (dois) meses de prisão;
ii. Em cúmulo jurídico com as demais penas aplicadas ao mesmo arguido nestes autos (pelos crimes de roubo e de violação), condenar o arguido AA na pena única de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova e com imposição, ainda, nos termos do disposto nos artigos 54º, nº 3, 51º, nº 1, al. a), e 52º, nº 1 e 3, do Código Penal, das obrigações e regras de conduta já estabelecidas no acórdão recorrido.”
[2] “Código de Processo Penal Comentado”, Oliveira Mendes, Almedina, 2 ª edição, pág. 1133.
[3] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de Outubro de 2010, in www.dgsi.pt, relatado pelo Conselheiro Pires da Graça, em que se escreveu: “Por sua vez o excesso de pronúncia significa que o Tribunal conheceu de questão de que não lhe era lícito conhecer porque não compreendida no objecto do recurso
Essas nulidades não são insanáveis, porque não englobadas nas nulidades previstas no artº 119º do C. Processo Penal.
Englobam-se as mesmas no disposto na alínea c) do nº 1 do artº 379º do C.PP, que dispõe que é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Porém, mesmo não alegadas essas nulidades, sempre seriam oficiosamente cognoscíveis em recurso, visto que as nulidades de sentença enumeradas no artº 379º nº 1 do CPP, têm regime próprio e diferenciado do regime geral das nulidades dos restantes actos processuais estabelecendo-se no nº 2 do mesmo artigo que as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso sendo lícito ao tribunal supri-las, aplicando-se com as necessárias adaptações o disposto no artigo 414º nº 4.(v. Ac, deste Supremo de 31 de Maio de 2001, proc. Nº 260/01, 5ª, SASTJ, nº 51,97)”.
[4] Cfr. Tomás-Xavier Aliste Santos, “La Motivación de las Resoluciones Judiciailes”, Marcial Pons, 2011, 184-185.
[5] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, 646.
[6] Quanto ao processo de construção de uma decisão judicial veja-se, Miguel Teixeira de Sousa, Introdução do Estudo do Direito, Almedina , 2012, págs. 447 e segs. “A fundamentação da decisão é essencial para o controlo da sua racionalidade, podendo dizer-se que esta racionalidade é uma função daquela racionalidade.” Para mais adiante justificar a exigência de fundamentação com a “necessidade de controlar a coerência interna e a correcção externa da decisão: - a coerência (ou justificação) interna da decisão reporta-se à sua coerência com as respectivas premissas de facto de direito; a decisão não pode ser juridicamente válida se não for coerente com aquelas premissas; - A correcção (ou justificação ) externa da decisão respeita à correcção da construção das sus premissas de facto e de direito; ainda que a decisão seja coerente com aquelas premissas e ainda que , por isso, ela seja logicamente válida, a decisão não pode ser correcta se aquelas premissas não tiverem sido obtidas correctamente (porque, por exemplo, o facto não é verdadeiro ou a regra aplicável foi mal escolhida.” (op. loc. cit. 450)     
[7] Noutra ocasião tivemos oportunidade de tecer as seguintes considerações acerca da figura de «decisão surpresa».
A questão da decisão-surpresa adquire na doutrina italiana a designação de “sentenza di terza via” ou “decisioni solitarie” ou “solipsisticamente adoptata” e vem regulada nos artigos 101.º e 183.º do Códice di Procedura Civile. No domínio da legislação italiana, tal como na maioria da legislações, onde se pretendem estabelecer regras de um processo justo – processo organizado e estruturado de modo a garantir, no limite do possível, a justiça do resultado - o juiz tem o dever de participar na decisão do litígio participando na indagação do direito – iura novit cura – sem que esteja peado ou confinado à alegação de direito feita pelas partes. A indagação do direito sofre, no entanto, constrangimentos endoprocessuais que atinam com a configuração factológica que as partes pretendam conferir ao processo. Este confinamento factológico, balizante da capacidade cognoscente do tribunal, não impede o tribunal de enveredar pelo conhecimento de questões que as partes não tenham enunciado ou não tenham qualificado durante, ou no desenvolvimento, da lide processual. A questão que se coloca na doutrina é saber se tendo, por exemplo, dirigido ao tribunal um pedido para, segundo determinada factologia, apreciar se ocorreu um inadimplemento de um contrato e o juiz, oficiosamente, na apreciação de mérito a que procede declara a nulidade do contrato. Vale por dizer se é legítimo nesta caso o juiz decidir sobre a nulidade de um contrato sem que qualquer das partes tenha suscitado a questão e sem que, previamente, tenha convocado as partes a pronunciar-se sobre esta hipótese decisão.
O exemplo, académico, que se convocou dilucida de forma paradigmática o que deve ser tido por decisão-surpresa ou “decisão solitária” do juiz. O juiz de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeqúe a uma correcta e atinada do litígio. Não tendo, no entanto as partes configurado a questão na via adoptada pelo Juiz caber-lhe-ia dar-lhes a conhecer a solução jurídica que pretenderia vir a assumir para que as partes pudessem contrapor os seus argumentos.
Não subsistirão dúvidas de que na estruturação de um processo justo, o tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração. A questão da falta ou ausência de participação das partes na formação do juízo decisório do tribunal deve ser, contudo, objecto de uma disquisição mais aprofundada. Trata-se de emanações dos princípios fundantes do processo justo como sejam os princípios de cooperação, boa fé processual e colaboração entre as partes e entre estas e o tribunal.
O n.º 2 do artigo 101.º do Códice di Procedura Civile, na reforma de 18 de Junho de 2009, Lei n.º 69, taxa de nulidade a assumpção de uma decisão que seja tomada pelo Juiz sem que tenha sido assegurado o contraditório. Esta normativa vem correlacionada com o artigo 183.º do mesmo diploma legal que impõe ao Juiz o dever de indicar às partes, no decurso da audiência, as questões relevantes que, oficiosamente, possam surgir e que o tribunal julgue ou prospec-tive virem a ser objecto de tratamento na decisão que pensa vir a tomar, a final. Se o não fizer nesta sede sempre terá a possibilidade de o vir a fazer ou impulsionar nos termos do já citado artigo 101.º.
A falta ou ausência de contraditório originou na jurisprudência italiana orientações diversas que foram desde a crismada linha rigorista ou garantística até á linha formalista. Porém a sentença n.º 20935, de 30 de Setembro de 2009, das secções unidas da Corte de Cassação, tomando posição sobre a controvérsia gerada afirma “[que] resta todavia, aberto o nó problemático se omitida a indicação da questão relevante de oficio possa não comportar, ipso facto, a nulidade da sentença, pois que tudo se transporta a uma justiça ou injustiça da decisão, ou então se tal nulidade seja indefectível consequência do dever de imparcialidade do Juiz, pela sua posição super partes, que conota todo o justo processo”. (tradução nossa). Também a doutrina italiana se tem dividido na taxação de nulidade da sentença de “terza via”, como dá nota o artigo que vimos citando.
A jurisprudência conhecida, mais significativa, e que, em nosso juízo melhor, melhor atina com o ordenamento jusprocessual vigente vem plasmada no douto acórdão do Conselheiro João Bernardo, datado de 4 de Junho de 2009.
Embora o artigo 3.º, n.º 3 do Código Processo Civil exija do juiz uma diligência aturada de observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo o princípio do contraditório, salva os casos em que ressalte uma manifesta desnecessidade. O que deve entender-se por manifesta desnecessidade constitui-se como o nódulo ou punctum crucis da questão e só a praxis pode ajudar a desbravar e obtemperar.
Na esteira da jurisprudência supra citada, advogamos a tese de poder a vingar a arguição de nulidade de uma decisão quando, e se, a solução opcionada pelo tribunal se desvincule totalmente do alegado pelas partes, na sua substancialidade ou na sua adjectividade. Vale por dizer que as partes terão direito a insurgir-se contra uma decisão se a via nela seguida não se ativer, com um mínimo de arrimo, ao que foi alegado e sufragado pelas partes durante o curso do processo. Assim, se as partes não tiveram hipótese de aportar e debater factos (novos e condizentes com a realidade jurídica prefigurada pelo tribunal antes da decisão “solipsisti-camente adottata”) que poderiam trazer alguma luz sobre a “terza via”, oficiosamente assumida pelo tribunal, então as partes terão o direito de tentar refazer a actividade do tribunal de modo a encarrilar e adequar a estrutura do processo ao resultado decisório. Na última situação prefigurada o tribunal apartou-se do dever de cooperação, colaboração e boa fé que deve nortear o princípio de imparcialidade e de posição supra partes constitucionalmente atribuído ao Julgador. Neste caso, se o juiz envereda por uma “terza via” e as partes não alegaram factos ou tomaram posição concreta sobre a solução “solitária”, a decisão pode tornar-se injusta e acarretar um juízo de parcialidade que afecta a estrutura regente de um processo justo e despejado de desvios processuais ou substantivos que desvirtuem a decisão ou o resultado final que se espera venha a ser assumido pelo tribunal.”          
[8] Cfr. o citado acórdão de uniformização de jurisprudência nº 4/2016, publicado no Diário da República n.º 36/2016, Série I de 2016-02-22
[9] Oliveira Mendes, em anotação do Código de Processo Penal Comentado, Almedina 2016, 2.ª edição, págs. 1132-3.
[10] Cfr. Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, 4ª edição, pág. 424. 
[11] Cfr. Abrantes Geraldes, op. loc. cit., pág. 425. “Neste sentido cfr. a fundamentação do AcUJ nº 11/15, de 2-07-2015, onde se refere, embora sem efeitos uniformizadores, que, face ao estatuído na parte final do art. 679º do CPC, não é aplicável no recurso de revista a regra da substituição ao tribunal recorrido prevista, para a apelação, no art. 665º, não podendo, deste modo, o STJ apreciar, por as terem por prejudicadas pela solução dada ao litigio, Cfr. também Acs. do STJ de 14-7-16; de 2-6-16; de 2-5-15, de 10-4-14; de 2-10-14; de 17-6-14; e de 13-5-14 (www.dgs.pt) – nota 598.  
Para consulta do afirmado pelo Professor Teixeira de Sousa, blogippc.blogspot.pt, em nota intitulada “Recurso de revista : cassação ou substituição”. (nota 599)      

[12] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de Outubro de 2016, in www.dgsi.pt