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INJÚRIA
CRIME DE PERIGO
DISPENSA DE PENA
Sumário
I - No nosso ordenamento jurídico, os crimes contra a honra são crimes de perigo, bastando-se a lei com a potencialidade do facto para produzir a ofensa. II - A dispensa de pena prevista nos nºs 2 e 3 do artº 186º, do CP95 só pode ter lugar se estiverem verificados os requisitos do nº 1 do artº 74º.
Texto Integral
Acordam, em audiência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
1. Relatório
No .º juízo criminal do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, em processo comum com intervenção do tribunal singular, foi submetida a julgamento a arguida B………., devidamente identificada nos autos, tendo no final sido proferida sentença, na qual se decidiu condenar a arguida, pela prática de um crime de injúria p. e p. pelo art. 181º nº 1 do C. Penal, dispensando-a, no entanto, de pena, e, na procedência parcial do pedido indemnizatório contra ela deduzido pela assistente C………., condená-la a pagar à demandante a quantia de 250 €.
Inconformada com tal decisão, dela interpôs recurso a arguida, pugnando pela sua absolvição e pela exclusão da indemnização arbitrada, e formulando as seguintes conclusões:
I. O tribunal a quo fez um errado julgamento da matéria de facto ao considerar que a afirmação proferida pela arguida era apta a ofender a honra e consideração pessoal da assistente.
II. Resultou provado que
> "Os ânimos exaltaram-se, tendo a assistente e o seu marido dito, referindo-se à administração do condomínio, e dirigindo-se à arguida, que eram todos uns ladrões, tendo inclusive a assistente avançado na direcção da arguida para a agredir, o que acabou por não acontecer, por no meio das duas se ter interposto uma terceira pessoa. " (19))
> "Então a arguida respondeu à assistente dizendo-lhe, pelo menos, que não era como ela, que se era ladra então o que era a assistente que havia roubado os sofás da vizinha" (20))
III. Julgamos que a expressão usada não é socialmente recomendável, foge claramente às regras sociais da boa vizinhança e da boa educação, mas não tem a virtualidade de lesar a honra e dignidade da assistente e, nessa medida, de ser considerada crime.
Entendemos em suma que, no contexto e com o significado com que foram proferidas as expressões em causa, as mesmas não são criminalmente puníveis.
IV. De todos os depoimentos prestados, nenhum, à excepção dos da assistente e marido, omitiu as circunstâncias em que a afirmação proferida pela arguida o foi. Mesmo testemunhas partidárias da facção da assistente, por assim dizer, relataram o facto de a arguida ter efectuado uma comparação, ao jeito de - "Se me chamas isto, então o que se te pode chamar por teres feito aquilo?".
V. A afirmação proferida pela arguida, em reunião de condomínio, à qual presidia pelo facto de ser administradora do mesmo, em que, pelo menos, a arguida foi apelidada de ladra pela assistente e marido, na presença dos demais condóminos, relatando um facto verdadeiro o facto de assistente ter, sem autorização da legitima proprietária, retirado da casa desta, por à mesma ter tido acesso, pela arguida lhe ter emprestado a respectiva chave, com o propósito de esta ali fazer limpeza, depois de a assistente a ter mesmo tentado agredir, o que só não conseguiu pela interposição de terceiro, não é facto susceptível de lesar a honra e consideração da assistente, como não lesou.
VI. De resto, ainda que assim não fosse, como se nos afigura ser, não resulta sequer provado que a arguida tivesse agido dolosamente, isto é com consciência de que a afirmação proferida, dando conta de um comportamento da assistente, nas aludidas condições de tempo e lugar em que foi proferida, atentasse contra a honra e consideração da assistente, pois que de facto a afirmação em causa dava conta de um facto objectivamente verdadeiro conforme resultou provado (vd. ponto 8) e 25) da matéria fáctica considerada de interesse para a causa e provada), na medida em que a própria assistente foi levada a admitir perante todos os presentes que os sofás eram da vizinha E………., mas agora eram seus porque havia gasto neles 60 euros (vd. depoimento da testemunha D………., cassete nº 4 desde o n° 1477 ao n° 3566 e n" 5 desde o n° 0001 a 0274).
VII. Nos termos do art. 16°, 2 do Cód. Penal, exclui-se o dolo quando o agente tenha agido em "erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto, ou a culpa do agente".
VIII. Acresce que, tal como supra alegamos, a arguida agiu em "animus retorquendi ", o que afasta a existência de dolo,
E não poderá considerar-se como actuação delituosa a que ocorre apenas com "animus retorquendi" ou seja, com o espírito de devolver a ofensa ou responder à que lhe é feita com outra de idêntica grau ofensivo -Ac. RP de 18-04-79 in CJ 1979 PAG 495
IX. Sem prescindir, nos termos do n° 2 do art. 180º do CP a conduta não é punível quando a imputação for feita para realizar interesses legítimos e o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.
X. A lei fala de interesse legítimo, como causa de justificação. A realização do interesse legítimo no quadro das ofensas à honra, no nosso caso dependerá do facto de a recorrente ter proferido tal afirmação num contexto em que a própria foi ofendida pela assistente que a apelidou de ladra a propósito de a mesma ter apresentado as contas do exercício anterior em que tinha sido administradora do condomínio em que ambas as partes envolvidas são condóminas.
O interesse público surge como o cerne de aplicação da causa justificadora, aqui confundindo-se com o interesse legítimo a que alude o normativo.
Dizer isto não significa, porém, que o interesse público seja equivalente ao interesse nacional, nem ao simples interesse do público, nem que decorra, por força, do facto de as pessoas visadas pertencerem à chamada vida pública, ou da natureza pública do facto narrado. Com efeito, e em primeiro lugar, o interesse público não se verifica, apenas, quando os factos digam respeito a toda a comunidade nacional. Na verdade, existem acontecimentos cuja relevância directa é limitada apenas a algumas pessoas, mas que podem assumir um significado emblemático para a vida da colectividade inteira. Decisiva é, pois, a circunstância de a narração possuir uma ressonância que ultrapasse o círculo restrito das pessoas envolvidas (Prof José faria Costa em anotação ao preceito no Comentário Conimbricense.).
XI. Ainda neste domínio do interesse público, a doutrina exige a necessidade do meio.
XII. Havia necessidade do meio porquanto naquelas circunstâncias concretas apenas o retorquir ao insulto da forma em que o fez poderia dar a necessária satisfação social e funcional à arguida porquanto o que a assistente colocou em causa foi a sua honestidade esquento admiradora de condomínio e, como tal, apenas em reunião de condomínio teria sentido retorquir da forma como a arguida o fez, julgando desta forma garantir a paz social.
XIII. Sem prescindir de tudo quanto vem de ser alegado, e caso assim se não entenda, concluindo-se como na douta sentença sub júdice, então sempre se referirá que em circunstância alguma se deveria ter atribuído à assistente uma indemnização em espécie.
XIV. Em primeiro lugar, porque não resultaram provados os factos em que a demandante alicerçou o seu pedido (constantes de fls. 69 ss e reproduzidos na sentença a fls ... na parte dos factos não provados).
XV. Em segundo lugar porque a aplicação do direito aos factos no que ao pedido civil concerne, sintética mas sem reparo, efectuada na douta sentença em análise, não cuidou de analisar e ter em consideração que o disposto no art. 570°, n° 1 do CC, onde se lê que "quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou o agravamento dos danos, cabe ao Tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída, impõe que se analise e valorize a culpa do próprio lesado na produção do dano.
XVI. Sabemos que para que o tribunal goze da faculdade conferida de excluir a indemnização é necessário que o acto do lesado tenha sido uma causa do dano, consoante os mesmos princípios de causalidade aplicáveis ao agente (art. 563º do Código Civil). Deve, além disso, o lesado ter contribuído com a sua culpa para o dano. E a culpa do lesado tanto pode reportar-se ao facto ilícito causador dos danos, como directamente aos danos provenientes desse facto. Falando no concurso do facto culposo para a produção dos danos ou para o agravamento deles, a lei pretende sem dúvida abranger os dois tipos de situações.
XVII. E as culpas do lesado e do responsável tanto podem ser simultâneas como sucessivas (cf Prof Antunes Varela em anotação ao art. 5700 do Código Civil.).
XVIII. Ponderando todos estes factores, a matéria dada como provada e o disposto no art. 5700 e art. 5630 do Código Civil a recorrente entende, acima de tudo, que a indemnização por danos patrimoniais deve ser excluída.
XIX. Basta o facto de a arguida ter agido apenas por que foi provocada pela demandada, corroborado pela experiência comum e a análise objectiva dos demais factos para concluir que o tribunal decidiu incorrectamente quando atribui à assistente uma indemnização no valor, ainda que francamente diminuído face ao pedido da demandante, de 250 euros.
XX. Se a assistente "provocou" ou concorre para o eclodir do evento final estão é forçoso concluir-se que a demandada também contribuiu de forma decisiva para o seu dano, de natureza unicamente não patrimonial, quando insulta a arguida perante várias pessoas estamos perante culpas concorrentes na verificação do evento e produção dos eventuais danos, devendo pois excluir-se a indemnização fixada, mesmo a entender-se, o que só em teoria se concebe, que foi cometido um ilícito.
O recurso foi admitido.
Na resposta, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da confirmação da decisão recorrida e consequente improcedência do recurso, não se encontrando tal decisão afectada por qualquer erro notório na apreciação da prova e não ocorrendo, em seu entender, a invocada causa de justificação da conduta da recorrente.
O Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido do provimento do recurso, entendendo que, no contexto em que a recorrente fez a afirmação, a mesma não merece censura penal.
Cumpriu-se o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., não tendo sido apresentada resposta.
Colhidos os vistos, procedeu-se à audiência de julgamento, com observância do legal formalismo.
Cumpre decidir.
2.Fundamentação
O julgamento decorreu com documentação das declarações, tendo sido dados como provados, na sentença recorrida, os seguintes factos:
1) A assistente e a arguida habitam em fracções distintas do n.º .., da Rua ………., em ………., sendo portanto vizinhas.
2) Em data não concretamente apurada do ano de 2004, mas situada no Verão, a assistente e uma vizinha sua, procederam à limpeza do 1º andar/esquerdo do n.º .., da Rua ………., em ………., que por se encontrar desabitado estava a causar problemas (cheiros e bichos) nas outras fracções, nomeadamente na habitada pela assistente.
3) Para tanto, a arguida como administradora do condomínio, funções que, à data exercia, tratou de obter junto de E………., pessoa que havia habitado o referido apartamento, a chave do mesmo e a necessária autorização para a realização da limpeza.
4) E………. autorizou a limpeza e entregou as chaves do imóvel, tendo por sua vez a arguida entregue estas à assistente. E………. pediu ainda que, aquando da limpeza, todo o lixo que se encontrasse no chão ou o que não estivesse utilizável (podre) fosse deitado fora.
5) Nesse apartamento estavam, ainda, algumas mobílias, incluindo uns sofás propriedade de E………. .
6) E………. nada disse quanto aos referidos sofás que, não obstante serem usados, encontravam-se em condições de serem (re)utilizados.
7) A assistente e a arguida desconheciam as decisões e intenções de E………. quanto ao destino dos sofás que se encontravam no mencionado apartamento, não tendo esta, por qualquer forma, autorizado a sua remoção, nem a sua utilização por terceiro.
8) Aquando da limpeza realizada, a hora não concretamente apurada, a assistente, sem previamente ter obtido o consentimento de E………. retirou, por forma não apurada, os ditos sofás do aludido 1º andar/esquerdo, mandou estofá-los e posteriormente colocou-os em sua casa, passando assim a utilizá-los como se fossem seus.
9) Tal facto só posteriormente chegou ao conhecimento da arguida.
10) Entretanto, a assistente e a arguida, por motivos não concretamente apurados, desentenderam-se.
11) Acontece que, enquanto a arguida exercia as funções de administradora do condomínio foi necessário proceder a obras de reparação no telhado do edifico, tendo-se gerado um desentendimento entre os condóminos por causa dos custos de tal obra.
12) Por isso foi convocada e realizada em 30.11.04, uma assembleia - geral extraordinária de condomínio tendo como ordens de trabalho: ponto 1- “as obras realizadas e a sua forma de pagamento”; ponto 2 – “eventual propositura de acção judicial tendo em conta a discordância quanto ao procedimento adoptado no ponto 1.”
13) Em tal reunião consta da respectiva acta, elaborada pela arguida, que o marido da assistente, identificado como sendo o condómino do 2º esquerdo, interveio, “lembrando que quando foi administrador tinha outros projectos não considerando este urgente, onde constava nomeadamente uma caixa para o extintor da entrada do prédio, bem como parte dos orçamentos dos ditos projectos sem IVA (o que não se veio a concretizar)”.
14) No dia 28 de Janeiro de 2005, realizou-se uma assembleia de condóminos no r/c do n.º .., sito na Rua ………., em ……….
15) Na referida reunião uma das ordens de trabalho agendada, entre outras, era a aprovação do relatório de contas referente ao ano de 2004.
16) Porque alguns dos condóminos se encontravam em atraso no pagamento das quotas devidas a título de condomínio, a arguida, enquanto administradora, lembrou o facto e interpelou os devedores, nomeadamente o marido da assistente e esta.
17) Estes não gostaram da interpelação feita, por o montante referido pela arguida ser superior ao que efectivamente deviam, já que, entretanto, haviam pago parte daquele valor ao vizinho que exercia as funções de tesoureiro do condomínio, facto que era desconhecido da arguida.
18) Por seu turno o marido da assistente interpelou a arguida quanto ao teor da acta de condomínio referida em 13).
19) Os ânimos exaltaram-se, tendo a assistente e seu marido dito, referindo-se à administração do condomínio, e dirigindo-se à arguida, que eram todos uns ladrões, tendo inclusive a assistente avançado na direcção da arguida para a agredir, o que acabou por não acontecer, por no meio das duas se ter interposto uma terceira pessoa.
20) Então a arguida respondeu à assistente dizendo-lhe, pelo menos, que não era como ela, que se era ladra então o que era a assistente que havia roubado os sofás da vizinha.
21) Os factos supra descritos foram presenciados pelos vizinhos da arguida e da assistente, que na qualidade de condóminos compareceram à referida reunião.
22) A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que o seu comportamento, nomeadamente o descrito em 20), podia ofender a honra, consideração e bom nome da visada, pelo que não desconhecia ser a sua conduta ilícita e punida por lei.
23) A assistente, em consequência da conduta da arguida sentiu vergonha.
24) E………., enquanto proprietária dos sofás, em 29.01.05 e a pedido da assistente, veio a subscrever a declaração junta a fls. 214 cujo teor se dá por integramente reproduzido, tendo ainda, em 28.02.05, subscrito, a solicitação da assistente, a declaração de fls. 97, cujo teor se dá igualmente por reproduzido, visando com tais declarações apenas e tão só apaziguar as vizinhas desavindas.
25) E………… apenas teve conhecimento do destino dos sofás em 29.01.05.
26) A arguida é casada e tem dois filhos, estudantes, a seu cargo.
27) A arguida é auxiliar de acção educativa, pelo que mensalmente aufere € 350,00.
28) O marido da arguida é litografo, auferindo mensalmente cerca de €600,00.
29) A arguida vive em casa própria, adquirida com recurso ao crédito bancário, pelo que mensalmente paga de prestação €209,00.
30) A arguida contraiu ainda um empréstimo bancário para obras, pagando por este a prestação mensal de € 81,00.
31) A arguida é ainda fadista, retirando desta actividade cerca de € 250,00/ano.
32) A arguida completou o 4º ano de escolaridade.
33) Nada consta no certificado de registo criminal da arguida.
34) Nada há a assinalar ao comportamento anterior da arguida que é pessoa estimada e considerada, pelo menos, pelos seus amigos.
35) Pelos factos ocorridos na reunião em causa, apresentou a arguida queixa crime contra a assistente, seu marido e F.........., o que deu origem ao inquérito n.º …./05.3TAVNG, que corre termos na .º Secção do MP deste Tribunal, no âmbito do qual já foi deduzida acusação particular imputando àqueles a prática de um crime de injúria, que o Ministério Público acompanhou como resulta da certidão de fls. 205 a 213, que aqui se dá por reproduzida.
Consideraram-se como não provados os seguintes factos:
Não se provaram quaisquer outros factos dos alegados nos autos ou em audiência, nem outros, contrários ou incompatíveis com os provados, nomeadamente, e com interesse para a decisão, que:
a) No dia da limpeza, pelo final da tarde, por volta das 18:30 horas, a assistente carregou os sofás para dentro de um tractor.
b) A expressão concreta utilizada pela arguida nas circunstâncias referidas em 20) tenha sido “que a assistente era uma ladra, que tinha entrado em casa da vizinha e roubado uns sofás.”
c) A expressão concreta utilizada pela arguida nas circunstâncias referidas em 20) tenha sido a seguinte, “não era nenhuma ladra nem tinha andado a tirar sofás de casa alguma.”
d) A arguida reforçou o afirmado "jurando pela saúde da filha que é verdade que a queixosa é uma ladra que invadiu a casa da vizinha para roubar".
e) A arguida sabia que estava a imputar à ofendida factos que não correspondiam à verdade.
f) A assistente sempre foi uma pessoa conhecida e respeitada no meio, sendo-lhe reconhecida grande autoridade moral, elevada/profunda honestidade e rectidão ético - social.
g) A arguida agiu com o único propósito de se defender das injúrias proferidas pela assistente e de que estava a ser vitima.
h) A assistente, no presente momento, continua a sentir-se profundamente envergonhada com as expressões proferidas pela arguida.
i) A assistente em consequência da conduta da arguida ficou dominada por um sentimento de enorme injustiça.
j) A assistente desde a data dos factos até ao presente momento, e em consequência da conduta da arguida, ficou muito deprimida e entristecida, sobretudo quando se depara com os vizinhos e se lembra da situação.
k) Em consequência da conduta da arguida a assistente sentiu-se estigmatizada e perturbada no seu equilíbrio sócio – psíquico - emocional.
l) A arguida é pessoa educada, de grande sensibilidade e apurado carácter.
m) A arguida é pessoa muito reputada pelo seu carácter e conduta e estimada e considerada por todos quantos a conhecem.
A motivação da decisão foi explicada como segue:
O decidido fundamenta-se, na análise critica e comparativa da prova testemunhal e documental produzida em audiência, nomeadamente e de forma resumida:
- Em primeiro lugar quer a arguida, quer a assistente, quer as restantes testemunhas ouvidas, com excepção da testemunha E………. (que não presenciou os factos) foram unanimes quanto às circunstâncias de tempo e espaço em que os factos ocorreram.
- A arguida B………. referiu que, à data, era a administradora do condomínio, e que na reunião de 28.01.05, foi interpelada pela assistente e seu marido quanto ao orçamento/valor da obra realizada no telhado do edifício, sendo que os ânimos se exaltaram, tendo sido apelidada por aqueles de “ladra”; mais lhe disseram que “eram todos uns ladrões”, tendo, então respondido à assistente que, se era ladra então o que era a assistente, já que nunca tiraria os sofás de casa da vizinha. Negou ter reforçado qualquer expressão por si proferida com juras pela saúde da sua filha.
- Explicou a arguida o problema surgido no 1º esquerdo, apartamento que havia sido habitado por E………., mas que há já algum tempo se encontrava desabitado, o que fez com que tivesse sido pedida a chave daquele para que se procedesse a uma limpeza, a qual foi realizada pela assistente e por uma outra vizinha. Nessa altura a assistente tirou do interior do referido apartamento uns sofás, propriedade da referida E.........., sem a autorização ou consentimento desta. Explicou que, só posteriormente teve conhecimento que a proprietária dos sofás os deu à assistente, estando, na ocasião, plenamente convicta que a aludida E………. não os havia dado, nem tão pouco consentido ou autorizado a sua retirada, já que a assistente não havia tido com aquela qualquer prévio contacto.
- Esclareceu ainda ter elaborado a declaração constante de fls. 97 que depois foi subscrita, de livre vontade e por corresponder à verdade, por E………. .
- Mais referiu as suas condições económicas, sociais e familiares.
- F………., vizinho da arguida e da assistente e actual administrador do condomínio, que se encontra de relações cortadas com arguida desde a data dos factos, confirmou, no essencial, as declarações da arguida quanto às circunstâncias que rodearam os factos, nomeadamente no que concerne à discussão que se gerou entre a arguida, o marido da assistente e esta, por causa das obras do telhado. Referiu, ainda que, a arguida chamou a atenção da assistente para os montantes devidos a título de condomínio e que se encontravam em atraso. Os ânimos exaltaram-se, altura em que a arguida disse á assistente “não sou como tu, foste a casa da E………. e roubas-te os sofás”, tendo, depois, jurado pela saúde da filha que o que dizia era verdade, sendo que tal jura foi feita à sua mulher.
- Mais disse que a assistente ficou perturbada, tendo tentado agredir a arguida, não tendo, no entanto, conseguido o seu objectivo.
- Negou que no âmbito da discussão travada entre a arguida e a assistente, esta tivesse injuriado ou dirigido qualquer palavra ofensiva àquela.
- G………., vizinha da arguida e da assistente, e que no decurso do seu depoimento demonstrou não ter boas relações com a arguida, referiu que a assistente e a arguida já se encontravam de relações cortadas nas duas reuniões anteriores. Na reunião de condomínio em causa, o marido da assistente pediu justificações à arguida referentes ao teor da acta de uma reunião passada relacionadas com o facto de este não cumprir as suas obrigações fiscais. Nessa altura gerou-se uma discussão entre a assistente e a arguida, onde houve cobrança mutua e reciproca de dividas e/ou favores, altura em que a arguida dirigindo-se à assistente disse que esta havia roubado os sofás da vizinha, o que fez por duas vezes, jurando pela sorte de sua filha que a assistente havia roubado os sofás.
- Afirmou ainda que, na altura, à assistente vieram as lágrimas aos olhos, tendo esta ficado muito ofendida com tais expressões.
- Negou ter ocorrido qualquer conversa sobre o orçamento das obras do telhado e referiu que ninguém chamou a arguida de ladra.
- H………., vizinha da assistente e da arguida e amiga desta, disse que na referida reunião a arguida interpelou a assistente e o seu marido quanto aos montantes devidos a título de condomínio já que se encontravam em atraso 6 meses, ao que a assistente respondeu estarem em falta apenas dois meses, tendo saído da reunião para ir buscar os recibos comprovativos do pagamento, e depois regressado sem que, no entanto, tivesse mostrado aqueles. Disse que, no âmbito da discussão travada, a assistente disse à arguida “acabou-se-te a mama”, ao que a arguida respondeu que não era como a assistente, que tinha tirado os sofás de casa de E………. . A assistente tentou agredir a arguida, tendo-se interposto entre as duas, e assim evitado que a arguida fosse agredida.
- Negou que a arguida tivesse utilizado a palavra “roubar”, bem como negou ter ouvido quem quer que seja a utilizar a palavra “ladra”, deixando transparecer que tal palavra surgiu no processo por, no seu entender, ser, em termos simples e vulgares, a que qualifica a expressão proferida pela arguida.
- Confrontada com as declarações que prestou em sede de inquérito e que constam a fls. 50, como resulta da respectiva acta de julgamento, deixou transparecer não recordar, neste momento, mais que o relatado, justificando tal com o lapso de tempo decorrido e o facto de sofrer de depressão e tomar, por isso, medicação.
- Revelou ainda a testemunha uma especial consideração pela arguida que a auxiliou num momento difícil da sua vida e em que se viu só e com filhos, menores de idade, a cargo.
- Mais disse que a arguida é sua vizinha há 12 anos e que nunca com a mesma nunca houve qualquer problema.
- I………., vizinho da assistente e da arguida e amigo desta, referiu ter ocorrido, na referida reunião, uma discussão por causa do preço das obras do telhado; mais referiu que a arguida interpelou a assistente por causa dos montantes por esta devidos a título de condomínio. Disse ainda que a assistente defendeu-se dizendo que já havia pago 3 meses de condomínio. Por fim disse que a arguida dirigindo-se á assistente disse que não era igual ela e que não precisava de tirar os sofás de ninguém.
- Afirmou ter ouvido a assistente chamar “ladra” à arguida, dizendo que a mesma andava a roubar os condóminos, o que aconteceu por causa do relatório de contas.
- A testemunha em causa, não obstante o relatado, mostrou-se incapaz de descrever os factos de forma consistente e clara e mostrou-se muito nervoso. Acresce a amizade que une a testemunha á arguida, facto a que o Tribunal não pode ser alheio, e que pela forma como o depoimento foi prestado, afigura-se-nos ter influenciado a isenção do depoimento.
- J………., marido da assistente, disse que na reunião em causa, interpelou a arguida sobre o conteúdo de uma acta das reuniões de condomínio, tendo aquela respondido “vá-se lavar”.
- Por seu turno a arguida interpelou a sua mulher quanto aos montantes em divida a título de condomínio, afirmando encontrarem em divida 6 meses, o que não correspondia á verdade pois em divida estavam só 2 meses. Mais referiu que a assistente e a arguida entraram em discussão cobrando dividas e/ou favores, altura em que a arguida dirigindo-se à assistente disse que esta havia roubado os sofás que eram de E………. . Nessa altura a assistente tentou agredir a arguida, mas sem êxito, já que uma vizinha, de nome H………., se interpôs entre as duas.
- Mais disse que efectivamente a sua mulher ficou com o sofá de E………. .
- Referiu que, E………., previamente à limpeza realizada no 1º andar esquerdo pela sua mulher, disse que tudo o que estivesse no seu interior e não prestasse era para deitar fora e que, deu o resto. Esclareceu não ter, no entanto, presenciado tal facto.
- Por fim disse que a sua mulher ficou triste e angustiada e que na reunião em causa nem aquela, nem o próprio proferiram qualquer palavra ou expressão injuriosa dirigida à assistente.
- L………., vizinho da arguida e da assistente, à data tesoureiro da administração do condomínio, disse apenas recordar ter a arguida dito, na referida reunião, que a senhora do 2º/esquerdo (a assistente) havia roubado o sofá da senhora do 1º esquerdo. Disse, ainda, que a arguida referiu estar em divida pela assistente o valor correspondente a 5 meses de condomínio, o que não correspondia inteiramente à verdade, pois aquela já havia pago (à própria testemunha) parte do montante em divida, mais precisamente o correspondente a 3 meses, facto, que, no entanto, era desconhecido da arguida.
- Afirmou nada mais recordar, nem sequer da reacção da assistente e seu marido, sendo que quanto a esta disse pensar que a mesma foi pautada pela calma.
- C………., assistente nos presentes autos, afirmou que o seu marido, na reunião em causa, interpelou a arguida por causa do conteúdo de uma cata de condomínio, ao que esta respondeu que “se aquele tinha o nome sujo que se fosse lavar”, “que nunca tinha roubado nada a ninguém”. Mais disse que, nesse momento, a arguida dirigiu-se-lhe dizendo que ela tinha roubado os sofás de E………. . Mais jurou pela boa sorte da filha que era verdade o que estava a dizer.
- Referiu os motivos que determinaram a limpeza que efectuou no 1º andar/esquerdo, juntamente com outra vizinha, sendo que a chave de tal habitação lhe foi entregue pela arguida.
- Afirmou que previamente à limpeza efectuada encontrou E………., com quem falou, tendo-lhe esta transmitido que todos os objectos que estivessem no interior do aludido andar eram para deitar fora, facto que era do conhecimento da arguida.
- Afirmou ter-se sentido envergonhada com as palavras proferidas pela arguida.
- Explicou que após a reunião pediu a E………. para subscrever a declaração de fls. 214, o que esta fez.
- Por fim esclareceu que, à data dos factos, já se encontrava de relações cortadas com a arguida.
- E………., explicou como deixou de habitar no 1º andar/esquerdo, do n.º .., da R. ………., e porque ali deixou parte dos seus pertences.
- Mais referiu como teve conhecimento dos problemas surgidos no andar desabitado e como autorizou a limpeza que veio a ser efectuada, tendo para o efeito entregue as chaves daquele por forma a viabilizar o seu acesso.
- Referiu que, por não ter onde colocar os seus pertences já não tinha interesse nos mesmos, tendo pensado em vende-los, o que acabou por não acontecer.
- Admitiu ter falado com a assistente que a abordou na rua, em data que não recordou, por querer para si o móvel da casa-de-banho e a porta da banheira, objectos que logo deu àquela. Mais disse ter autorizado a deitarem fora tudo o que estivesse no chão ou estivesse não utilizável (podre), mais precisamente todo o lixo existente.
- Quanto aos sofás referiu nunca ter autorizado a sua retirada do aludido apartamento, nem tão pouco ter, previamente, autorizado a assistente a ficar com o mesmo, apenas tendo tido conhecimento do destino dado aqueles quando, uma vez em que foi visitar o seu filho (que se encontra á guarda e cuidados da madrinha, M………., também moradora no n.º .., da rua ……….), foi abordada pela assistente, que a levou a sua casa e lhos mostrou já estofados.
- Disse ainda que, a arguida e a assistente desconheciam a suas decisões e intenções quanto aos destino dos bens que se encontravam no mencionado apartamento.
- Mais disse que antes de ver os sofás em casa da assistente nunca lhos havia dado; que os referidos sofás não se encontravam de tal forma degradados que pudessem ser considerados lixo e que nunca referiu não estar interessada nos mesmos, nem tão pouco referiu à assistente que esta poderia levar do interior do apartamento o que quisesse.
- Confrontada com a declaração de fls. 214 referiu ter escrito e subscrito a mesma, bem como afirmou ter assinado a declaração de fls. 97, explicando que ambas as declarações foram por si assinadas de forma livre e voluntária, pretendendo com as mesmas evitar mais conflitos e apaziguar as senhoras envolvidas.
- M………., madrinha do filho de E………. e vizinha da arguida e da assistente, referiu que na reunião em causa várias pessoas interpelaram a arguida por causa das contas referentes ás obras do telhado, tendo-se insurgido contra a administração de condomínio.
- Referiu terem sido proferidas expressões como “bando de ladrões” e “que estavam a sustentar a casa da arguida, que o dinheiro era para as obras da cozinha desta.”
- Referiu ainda ter, nessa reunião, sido abordado o facto de existirem condóminos com prestações em atraso, nomeadamente a assistente, entre outros, ao que esta reagiu, dizendo que tal era mentira e apelidando a arguida de intrujona. Mais disse a assistente que ia buscar os respectivos comprovativos de pagamento, sendo que a mesma acabou por nunca exibir qualquer recibo.
- Afirmou que a assistente avançou para a arguida com o fim de a agredir, tendo esta, por sua vez, dito que “eu não sou ladra, eu ladra não sou, não ando a tirar nada de casa da E……….”. Perante tal a assistente afirmou não ter tirado quaisquer sofás de casa de E………. .
- Por fim disse que, no dia seguinte, E………. chegou atrasada em relação à hora estipulada para a visita de seu filho, tendo justificado o atraso com o facto de ter sido retida pela assistente por causa do problema surgido com os sofás e que tinha assinada uma declaração. Quanto à declaração de fls. 97, referiu que os tópicos da mesma foram redigidos por si, pela arguida e por E………., de forma livre e de comum acordo, tendo depois sido composto o seu texto de acordo com os aludidos tópicos.
- Acareadas as testemunhas E………., M………. e a assistente, face às contradições detectadas nos respectivos depoimentos, cada uma manteve a sua versão dos factos, tendo M………. afirmado que, na referida reunião, a assistente negou a existência dos sofás, tendo depois reconhecido que pelo restauro dos mesmos havia pago 60 mil escudos, pelo que os mesmos se encontravam em sua casa; a assistente negou tal facto e continuou a afirmar ter obtido o prévio consentimento de E………., enquanto esta continuou a afirmar não o ter feito por qualquer forma expressa ou tácita.
- N………., vizinho da arguida e da assistente, referiu a discussão havida entre aquelas por causa dos valores de condomínio em divida, que nessa ocasião, a assistente disse que ia buscar os recibos, comprovativos do pagamento e que dava com os mesmos “nas trombas” da arguida; mais referiu que a assistente apelidou a arguida de ladra por causa dos custos das obras do telhado, ao que a arguida respondeu “que não precisava de tirar sofás”.
- Negou que a arguida tivesse proferido a expressão ladra ou ladrão.
- O depoimento em causa, revelou-se pouco preciso e espontâneo, mostrando-se a testemunha preocupada em explicar como surgiu a palavra “ladrão”, não obstante a arguida não a ter proferido, explicação essa que se mostrou descabida, sendo certo que a testemunha afirmou repetidamente que tal palavra é a que se usa perante um filho, por forma a ensiná-lo o que se não deve fazer.
- O………. e P………., referiram ter visto a assistente a retirar os sofás do apartamento em causa.
- Q………. e S………., abonaram o comportamento da arguida.
- Relativamente à ausência de antecedentes criminais, o Tribunal estribou-se no CRC da arguida.
- Foram, ainda, valorados os documentos juntos a fls. 88 a 97, 165 e 205 a 214
- Ora procedendo à análise critica e comparativa da prova testemunhal produzida, verificamos que os depoimentos colhidos dão maior ou menor ênfase aos problemas surgidos na aludida reunião de condomínio e discussões travadas, relatando de forma distinta, mas não totalmente antagónica um mesmo facto, consoante a empatia das testemunhas com as respectivas partes envolvidas.
- Assim, se não podemos considerar qualquer um dos depoimentos prestados isento e credível na sua globalidade, também não se nos afigura legitimo, concluir o contrário.
- Por isso, restou retirar de cada um dos depoimentos prestados, tendo em conta os seus pontos convergentes, aquilo que, conjugado com o teor dos documentos juntos aos autos, as regas da experiência comum e os juízos de normalidade, nos permite concluir, com a necessária segurança, pela veracidade dos factos efectivamente ocorridos.
- Por outro lado, o depoimento de E………., no que concerne ao facto de ter ou não autorizado a assistente a ficar com os sofás, afigurou-se-nos, a final, e atenta a análise da prova que se vem fazendo, credível. Mais, a justificação que apresentou para o facto de ter subscrito duas declaração de teor antagónico sobre o mesmo facto, pela forma como foi apresentada também se mostrou credível, já que a testemunha não só verbalizou de forma clara a intenção que presidiu a sua conduta, como a sua linguagem gestual acompanhou de forma incisiva as suas declarações.
- Por isso não obstante o resultado da prova por acareação realizada, somos a valorar tal depoimento, em detrimento das declarações da assistente. O depoimento de M………. foi valorado com restrições como os demais prestados pelas restantes testemunhas.
- A matéria de facto não provada, deve-se à não produção de prova suficiente ou segura quanto à sua veracidade, atentas as contradições patentes nos depoimentos prestados e supra assinaladas e a forma parcial como a assistente prestou declarações.
- Nenhuma outra prova foi produzida
3. O Direito
Tendo sido documentada a prova produzida em audiência de julgamento, os poderes de cognição deste tribunal abrangem a matéria de facto e de direito (art.º 428.º do C.P.P.).
No entanto, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, as questões essenciais que importa decidir são as seguintes:
- erro no julgamento da matéria de facto ao considerar-se que a afirmação proferida pela recorrente era apta a ofender a honra e consideração pessoal da assistente;
- erro no julgamento da matéria de facto ao considerar-se que a recorrente agiu com dolo;
- verificação da causa de justificação prevista no nº 2 do art. 180º do C. Penal;
- exclusão da obrigação de indemnização.
3.1. A recorrente entende que o tribunal a quo fez um errado julgamento da matéria de facto ao considerar que a afirmação por ela proferida era apta a ofender a honra e consideração pessoal da assistente; que tal expressão, embora não seja socialmente recomendável, não tem a virtualidade de lesar a honra e dignidade da visada e que, nessa medida, a conduta da recorrente não é criminalmente punível.
Embora invoque o erro de julgamento, ao questionar o facto de o tribunal recorrido ter considerado que a afirmação feita pela recorrente era potencialmente ofensiva da honra e consideração da assistente, a recorrente convoca, como resulta da motivação do recurso, o erro notório na apreciação da prova, sendo por esta vertente que vamos apreciar os invocados erros de julgamento.
O erro notório na apreciação da prova está elencado no nº 2 do art. 410º do C.P.P., a par da insuficiência para a decisão da matéria de facto e da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, como um dos vícios da decisão passíveis de serem detectados através do mero exame do próprio texto da mesma, sem recurso a quaisquer outros elementos constantes do processo, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum.
Este vício verifica-se “quando se retira de um facto dado como provado uma consequência logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto provado uma consequência ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”[3]. Desdobra-se, pois, em erro na apreciação dos factos e em erro na valoração da prova produzida.
Verifica-se, igualmente, quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis.
A notoriedade do erro (sendo este a ignorância ou falsa representação da realidade) exigida pela lei traduz-se numa incongruência que “há-de ser de tal modo evidente que não passe despercebida ao comum dos observadores, ao homem médio (...), ao observador na qualidade de magistrado, dotado de formação e experiência adequadas a um tribunal de recurso. Esse erro há-de ser evidente aos olhos dos que apreciam a decisão e seus destinatários, sem necessidade de argúcia excepcional (...)”[4],[5],[6].
Antes de determinarmos se do texto da decisão recorrida transparece algum erro desta natureza, nomeadamente no segmento visado por este fundamento do recurso, há que fazer algumas considerações acerca da delimitação da tutela penal conferida ao bem jurídico em causa.
O direito ao bom nome e reputação encontra-se consagrado, a par de outros direitos da personalidade, no nº 1 do art. 26º da CRP, preceito que constitui “expressão directa do postulado básico da dignidade humana que a Constituição consagra logo no artigo 1.º como valor básico logicamente anterior à própria ideia do Estado de Direito democrático e que constitui a referência primeira em matéria de direitos fundamentais”[7]
A tutela penal deste direito é assegurada pelos arts. 180º e 181º do C. Penal, o segundo dos quais comina com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração”[8],[9].
O bem jurídico tutelado pela incriminação, a honra, é visto, na concepção dominante, “como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior”[10]
Injuriar é ofender, insultar, ultrajar, afrontar. Porém, nem todos os juízos que envolvam uma apreciação negativa de outrem, seja das suas qualidades intrínsecas ou extrínsecas, seja dos seus comportamentos, têm a carga ofensiva necessária para que caiam sob a alçada penal e mereçam o respectivo sancionamento. Ao direito penal não cabe a tarefa de prever e regular todos os comportamentos incorrectos ou menos próprios, no sentido de estender a sua intervenção a todos os casos em que se mostrem ultrapassados os limites traçados pela boa educação e pelas regras de cortesia; a tutela penal deve estar reservada a comportamentos graves, violadores do mínimo de respeito ético, cívico e social que a generalidade das pessoas, num determinado contexto histórico e geográfico, considera imprescindível ao relacionamento em sociedade[11].
“Nem todo o facto que perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos arts. 180 e 181”, tudo dependendo da «intensidade» da ofensa ou perigo de ofensa” havendo que “reconhecer existir uma linha demarcativa, mais ou menos nítida, através da qual se podem excluir certos comportamentos, sem mais, na medida em que claramente estão aquém da antijuricidade (…)” A ofensa merecedora da tutela penal radica num “sentir comum em que se reconhece que a vida em sociedade só é possível se cada um não ultrapassar certos limites de convivência com os outros. Tais limites como que se acham inseridos num «Código de Conduta» de que todos são sabedores, o qual reflecte o pensamento próprio da comunidade e por isso, é por todos reconhecido ou, pelo menos, pela maioria. Do elenco desses limites ou normas de conduta, fazem parte as «regras» que estabelecem «a obrigação e o dever» de cada cidadão se comportar relativamente aos demais com um mínimo de respeito moral, cívico e social” que “não se confunde com educação ou cortesia”, e do qual não fazem parte “os comportamentos indelicados, e mesmo boçais” não devendo nem podendo o direito penal “proteger as pessoas face a meras impertinências.”[12],[13].
“A injúria não se confunde com a simples indelicadeza, com a falta de polidez, ou mesmo com a grosseria, que são comportamentos que apenas podem traduzir falta de educação. A injúria é mais do que isso, e quando se pune um acto injurioso não se visa a protecção da susceptibilidade pessoal deste ou daquele, mas tão só da sua dignidade, da sua honra e consideração”[14].
A mera censurabilidade ética de uma determinada conduta não implica necessariamente a sua censurabilidade em termos penais; “um facto ou juízo, para que possa ser havido como ofensivo da honra e consideração devida a qualquer pessoa, deve constituir um comportamento com objecto eticamente reprovável, de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento. Supõe, pois, a violação de um mínimo ético-necessário à salvaguarda sócio-moral da pessoa, da sua honra e consideração.”[15]
Cumpre ainda referir o facto de o bem jurídico honra, “de menor densidade axiológica do que o grosso daqueles outros que a tutela do ser impõe”, como o comprovam os limites extraordinariamente baixos das molduras penais atinentes, tem vindo a sofrer um “estreitamento e uma perda da sua importância relativa”, em parte devido a uma “verdadeira erosão interna, associada à autonomização de outros bens jurídicos que até há algumas décadas estavam misturados com essa pretensão a ser tratado com respeito em nome da dignidade humana que é o núcleo daquilo a que hoje chamamos honra”, em parte devido à “erosão externa a que a honra tem sido sujeita, quer por banalização dos ataques que sobre ela impendem (…), quer por força da consequente consciencialização colectiva em torno do carácter inelutável de tais agressões e da eventual imprestabilidade da reacção criminal”[16].
Feita esta breve incursão teórica e jurisprudencial, analisemos a expressão em causa no caso sub judice.
Começaremos por convocar para o efeito a matéria consignada nos seguintes pontos da decisão recorrida:
19) Os ânimos exaltaram-se, tendo a assistente e seu marido dito, referindo-se à administração do condomínio, e dirigindo-se à arguida, que eram todos uns ladrões, tendo inclusive a assistente avançado na direcção da arguida para a agredir, o que acabou por não acontecer, por no meio das duas se ter interposto uma terceira pessoa.
20) Então a arguida respondeu à assistente dizendo-lhe, pelo menos, que não era como ela, que se era ladra então o que era a assistente que havia roubado os sofás da vizinha.
Muito embora a expressão não tenha sido reproduzida em discurso directo, como seria desejável, a fim de evitar as eventuais distorções que o discurso indirecto pode introduzir, e admitindo que traduza fielmente o que foi dito pela recorrente (que esta, aliás, não põe em causa), verificamos que a mesma contém duas afirmações (“não era como ela” e “que havia roubado os sofás da vizinha”) e uma insinuação (“então o que era a assistente”). Fazendo a conjugação de todas elas, e bem assim com a expressão anteriormente dirigida pela assistente à recorrente, é inequívoco que o sentido que delas se retira não é outro se não o de implicitamente deixar entender que a assistente seria “ladra”. É caso para dizer “para bom entendedor, meia palavra basta”… É certo que a recorrente não levou as suas afirmações ao ponto de afirmar que a assistente era ladra, mas em termos hipotéticos admitiu que como tal pudesse ser considerada, ao afirmar que ela havia roubado os sofás da vizinha.
Ora, a mera imputação de um tal comportamento (roubar objectos que lhe não pertencem), que, além de socialmente reprovável, é também passível de sancionamento penal, complementada, ainda para mais, pela formulação de um juízo depreciativo acerca do carácter da assistente (que não era como a recorrente, pois se aquela havia roubado os sofás da vizinha, o que era ela então – subentende-se – senão uma ladra?), tem, sem margem para dúvidas, aptidão para objectivamente ofender a honra e consideração pessoal da visada, situando-se muito além lá da mera violação das regras de cortesia e boa educação e atingindo já o âmago daquele mínimo de respeito indispensável ao relacionamento em sociedade.
Assim, ao dar como provada essa aptidão ofensiva, retirando-a da natureza da concreta expressão proferida pela recorrente, não fez a decisão recorrida mais do que retirar de um facto provado uma consequência que dele logicamente decorre.
Não se detecta, pois, qualquer erro e, por isso, também não colhe este fundamento do recurso.
3.2. Sustenta a recorrente que a decisão recorrida também incorreu em erro no julgamento da matéria de facto (ou erro notório na apreciação da prova, conforme vem identificado na motivação do recurso) ao considerar-se que agiu com dolo, ou seja, com a consciência de que a afirmação proferida atentasse contra a honra e consideração da assistente, na medida em que dava conta de um facto objectivamente verdadeiro conforme resultou provado e atentas as condições de tempo e lugar em que foi proferida. De qualquer forma, o dolo sempre se deveria ter por excluído, quer por força do disposto no nº 2 do art. 16º do C. Penal, quer porque a recorrente agiu com “animus retorquendi”.
Em ordem a dilucidarmos as questões colocadas pela recorrente, há que fazer algumas considerações prévias acerca do elemento subjectivo nos crimes contra a honra, crimes exclusivamente dolosos, em torno de cuja definição e delimitação se tem gerado alguma polémica na doutrina e na jurisprudência que remonta à vigência do C. Penal de 1886[17]. Ultrapassada, com a entrada em vigor do C. Penal de 1982, a querela que dividia os que entendiam que a lei exigia a verificação de dolo específico (animus injuriandi vel diffamandi) e aqueles que consideravam bastar o dolo genérico, e prevalecendo este segundo entendimento, outra se tem vindo a desenvolver, embora de forma mais subtil, entre aqueles que exigem a “intenção por parte do agente ou a previsão de que o seu comportamento é ofensivo da honra e consideração alheias, de modo a que lhe seja imputável a título de dolo directo, necessário ou eventual” e os que retiram a intencionalidade da “natureza objectivamente difamatória ou injuriosa das palavras ou expressões utilizadas, com tal se contentando, por considerar que o comportamento de quem as profere constitui presunção ilidível da ocorrência de dolo”. No entanto, e pese embora utilizem “metodologias distintas, não há diversidade assinalável de entendimentos nas duas posições apontadas quanto ao conceito de perigo, bem como quanto à classificação dos correspondentes crimes”, sendo aceite, maioritariamente segundo julgamos, que no nosso ordenamento penal os crimes contra a honra são crimes de perigo, já que neles o resultado (a efectiva lesão do bem jurídico tutelado, no caso a honra ou a consideração) não é elemento do tipo, bastando-se a lei com a potencialidade do facto para produzir a ofensa. Assim, a conduta do agente deve ser “adequada à criação do «evento perigoso»”, no sentido de comportar “uma genérica aptidão para produzir o evento danoso”, avaliada com recurso aos critérios da experiência comum, bastando para a verificação do elemento subjectivo “a consciência da genérica perigosidade da conduta ou do meio da acção previstos nas normas incriminatórias respectivas”.
Tratando-se de crimes dolosos, dir-se-á ainda que o dolo, enquanto conceito que designa actos internos, de carácter psicológico e espiritual, é de difícil valoração, inferindo-se geralmente das circunstâncias objectivas que rodearam a prática do facto e da ausência ou afastamento das causas que o possam excluir, conferidas com as regras da experiência e as presunções judiciais admissíveis[18],[19].
Isto posto, sendo inequívoco, como já o dissemos atrás, que as expressões dirigidas pela recorrente à assistente são aptas a ofender a honra e consideração desta, também nos parece incontornável que aquela não desconhecia essa aptidão. Resulta das regras da experiência comum que alguém que imputa a outrem um facto ilícito, e para mais criminoso, e dá a entender que essa pessoa seja uma ladra, a menos que não esteja no uso das suas capacidades mentais (como não era, de todo, o caso), sabe perfeitamente que põe ou que, pelo menos, pode pôr em causa o carácter e a reputação da pessoa visada.
Nessa medida, a inferência de que a recorrente sabia que, com a sua conduta, podia atingir a honra e consideração da recorrente, feita na decisão recorrida, não denota qualquer erro ou vício de raciocínio.
Vejamos, então, se o dolo se pode considerar afastado nos termos sustentados pela recorrente.
Desde logo pelo art. 16º do C Penal, que dispõe que:
“1. O erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime, ou sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo.
2. O preceituado no número anterior abrange o erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto ou a culpa do agente.
3. Fica ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais”.
São, pois, três as hipóteses que a lei contempla como erro excludente do dolo (ressalvada a punibilidade da negligência, quando admissível):
- quando incida sobre elementos, de facto ou de direito, de um tipo de crime;
- quando incida sobre os pressupostos de uma causa de justificação ou de uma causa de exclusão de culpa;
- quando incida sobre proibições (ou imposições, tratando-se de omissão) cujo conhecimento seria razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência do ilícito.
Interessa-nos em particular a segunda hipótese enunciada, já que a recorrente sustenta a exclusão do dolo no convencimento de que a sua conduta não era ilícita (ofensiva da honra e consideração da assistente) na medida em que seria objectivamente verdadeiro o facto de que a sua afirmação dava conta.
Recordamos aqui os pontos da matéria de facto com interesse para esta questão:
(ponto 2) Em data não concretamente apurada do ano de 2004, mas situada no Verão, a assistente e uma vizinha sua, procederam à limpeza do 1º andar/esquerdo do n.º .., da Rua ………., em ………., que por se encontrar desabitado estava a causar problemas (cheiros e bichos) nas outras fracções, nomeadamente na habitada pela assistente.
(ponto 3) Para tanto, a arguida como administradora do condomínio, funções que, à data exercia, tratou de obter junto de E………., pessoa que havia habitado o referido apartamento, a chave do mesmo e a necessária autorização para a realização da limpeza.
(ponto 4) E………. autorizou a limpeza e entregou as chaves do imóvel, tendo por sua vez a arguida entregue estas à assistente. E……… pediu ainda que, aquando da limpeza, todo o lixo que se encontrasse no chão ou o que não estivesse utilizável (podre) fosse deitado fora.
(ponto 5) Nesse apartamento estavam, ainda, algumas mobílias, incluindo uns sofás propriedade de E………. .
(ponto 6) E………. nada disse quanto aos referidos sofás que, não obstante serem usados, encontravam-se em condições de serem (re)utilizados.
(ponto 7) A assistente e a arguida desconheciam as decisões e intenções de E………. quanto ao destino dos sofás que se encontravam no mencionado apartamento, não tendo esta, por qualquer forma, autorizado a sua remoção, nem a sua utilização por terceiro.
(ponto 8) Aquando da limpeza realizada, a hora não concretamente apurada, a assistente, sem previamente ter obtido o consentimento de E………. retirou, por forma não apurada, os ditos sofás do aludido 1º andar/esquerdo, mandou estofá-los e posteriormente colocou-os em sua casa, passando assim a utilizá-los como se fossem seus.
(ponto 9) Tal facto só posteriormente chegou ao conhecimento da arguida.
(ponto 24) E………., enquanto proprietária dos sofás, em 29.01.05 e a pedido da assistente, veio a subscrever a declaração junta a fls. 214 cujo teor se dá por integramente reproduzido, tendo ainda, em 28.02.05, subscrito, a solicitação da assistente, a declaração de fls. 97, cujo teor se dá igualmente por reproduzido, visando com tais declarações apenas e tão só apaziguar as vizinhas desavindas.
(ponto 25) E………. apenas teve conhecimento do destino dos sofás em 29.01.05.
Deles se pode concluir que, efectivamente, a assistente se apoderou ilicitamente de uns sofás pertencentes a uma vizinha (E……….), pois dela não obteve previamente consentimento para o efeito, levando-os para sua casa, mandando-os estofar e passando a utilizá-los como se fossem seus. A isso não obsta o facto de, posteriormente (e já depois da data em que os factos foram praticados), tal apropriação ter sido legitimada pelo facto de a proprietária, colocada perante o facto consumado (os sofás estofados de novo e já colocados em casa da assistente) e visando pacificar os conflitos, ter acabado por lhos dar, facto que - obviamente e porque ainda não havia ocorrido - a recorrente desconhecia.
Considerando que as habilitações escolares (4º ano da escolaridade) e a área profissional (auxiliar de acção educativa) da recorrente fazem presumir que o verbo “roubar” foi utilizado não na sua acepção técnico-jurídica, mas na acepção popular correspondente a “apropriar-se do alheio furtivamente”, podemos concluir que o facto imputado pela recorrente à assistente – o de ter roubado os sofás da vizinha – correspondia, na essência, à representação que ela tinha dos factos. Daí se pode concluir que ela estava convencida de que estava a fazer uma afirmação verdadeira.
Isto não basta, no entanto, para que se possa considerar afastado o dolo, pois a atribuição de factos ofensivos da honra e consideração, ainda que verdadeiros, só por si, não constitui causa de justificação. Além disso, a recorrente não se limitou a produzir aquela afirmação; antecedeu-a das seguintes palavras: “não era como ela, que se era ladra então o que era a assistente” que havia praticado tal facto, o que se traduz na formulação de um juízo que toca a personalidade da visada, e tem uma ressonância social mais acentuada[20], transcendendo largamente o âmbito do facto imputado à assistente. E, admitindo embora que a recorrente estivesse convencida de que a sua conduta não era ilícita na medida e na parte em que relatava um facto essencialmente verdadeiro, já não se aceita que esse convencimento englobe igualmente a extrapolação que desse facto fez para a insinuação acerca do carácter da assistente.
Passamos ao animus retorquendi, que podemos definir como a intenção de contrapor a uma injúria outra injúria.
Da descrição dos factos dados como provados, parece inequívoco que a actuação da recorrente é passível de integrar esta figura jurídica. De facto, a assistente, agastada com o facto de a recorrente a estar a interpelar pelo atraso no pagamento das quotas devidas a título de condomínio em montante superior ao que efectivamente era devido, já que parte dele havia sido pago ao vizinho que exercia as funções de tesoureiro do condomínio - facto que não era do conhecimento da recorrente, mas de que ela se devia ter previamente informado, dadas as suas funções de administradora do condomínio - dirigiu-lhe uma injúria prévia. E a actuação da recorrente surge na sequência dessa injúria, em resposta imediata a ela, o que é reforçado pelo advérbio de tempo “então” utilizado no início do ponto 20 daquela matéria de facto. Tal não afasta, porém, a existência de dolo, que não requer a verificação de uma intenção específica, pois, mesmo admitindo-se que a pretensão primeira da recorrente foi a de contra-atacar, isso não invalida que, ao proferir as expressões que utilizou, extrapolando o tema da injúria que lhe foi dirigida, tivesse a consciência de que as mesmas tinham aptidão para atingir a honra e a consideração devidas à ofendida (cfr. o segmento do ponto 22 dos factos provados onde se consignou que: “A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que o seu comportamento, nomeadamente o descrito em 20), podia ofender a honra, consideração e bom nome da visada”), tanto bastando para que se considere verificado o dolo. Na figura da retorsão está presente o animus retorquendi e isso, só por si, não obsta a que a conduta seja punível, como resulta claramente do disposto no nº 3 do art. 186º do C. Penal. O que bem se compreende porque a retorsão não deixa de ser uma forma de vingança privada e o nosso estádio civilizacional já remeteu para os anais da história o “olho por olho, dente por dente” dos tempos pré-cristãos de Hamurábi. E se a lei prevê a possibilidade de dispensa de pena quando a uma ofensa se responde com outra ofensa, isso não é senão o reconhecimento de que a prévia actuação censurável da vítima desculpa nalguma medida a reacção, atenuando a culpa do agente e a necessidade da pena, mas não legitima a sua conduta.
Improcede, pois, mais este fundamento do recurso.
3.3. Entende a recorrente que, no caso, sempre se verificava a causa de justificação prevista no nº 2 do art. 180º do C. Penal, já que proferiu a afirmação em causa num contexto em que havia sido apelidada de ladra pela própria assistente, para realizar um interesse legítimo, e havendo necessidade do meio porque, nas circunstâncias concretas verificadas, só o retorquir ao insulto da forma como o fez lhe poderia dar a necessária satisfação social e funcional.
O nº 2 do art. 181º do C. Penal estende a aplicação da causa de justificação prevista no nº 2 do art. 180º do mesmo diploma legal à injúria, quando a mesma se traduz na imputação de factos; não abrange, pois, “a «formulação de juízos ofensivos», bem como a simples articulação de palavras a que se alude no crime de injúrias. De fora deverão ficar também as imputações de factos genéricos ou abstractos”[21].
Ora, no caso sub judice, como já vimos, a conduta da recorrente não se limitou à imputação de factos; para além de afirmar que a assistente tinha roubado os sofás da vizinha, a recorrente afirmou também que “não era como ela que se era ladra então o que era a assistente”, o que comporta, como já atrás referimos, a formulação de um juízo ofensivo.
Mostrando-se, assim, desde logo afastada a aplicabilidade desta causa de justificação, torna-se despiciendo indagar se se mostram preenchidos os requisitos cumulativos em que ela assenta.
Conclui-se, pois, que bem andou a decisão recorrida ao condenar a recorrente pela prática do crime de injúria que lhe vinha imputado. E, se merece algum reparo, o mesmo deve-se ao facto de ter considerado verificados os pressupostos da dispensa de pena. Não sendo imperativa a dispensa de pena prevista nos nºs 2 e 3 do art. 186º do C. Penal, antes se revestindo de carácter facultativo, ela apenas poderia ter lugar, por força do disposto no n° 3 do artº 74° do C. Penal, verificados que fossem os requisitos gerais constantes das três alíneas do n° 1 deste preceito, de verificação cumulativa. Ora, é evidente que um deles (a reparação do dano) se não mostra preenchido. No entanto, a proibição da reformatio in pejus (cfr. art. 409º do C.P.P.) não permite a alteração da sanção aplicada na decisão recorrida que, por isso, se deve manter.
3.4. Por fim, entende a recorrente que em circunstância alguma se deveria ter atribuído à assistente uma indemnização em espécie, seja porque não resultaram provados os factos em que foi alicerçado o correspondente pedido, seja porque não foi levado em consideração o disposto no art. 570º nº 1 do C. Civil.
Par que o recurso da parte da sentença relativa a indemnização civil seja admissível, exige a lei (cfr. nº 2 do art. 400º do C.P.P.) o preenchimento de dois requisitos cumulativos: que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido (que é, e já era à data em que foi formulado, de 3.740,98 € - cfr. nº 1 do art. 24º da Lei nº 3/99 de 13/1, na redacção que lhe foi introduzida pelo art. 3º do DL nº 323/2001 de 17/12) e que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada (1.870,49 €).
Ora, é manifesto que tais requisitos não se mostram, no caso, preenchidos, não sendo, por isso, admissível o recurso daquela parte da sentença.
Assim sendo, não se conhecerá de tal questão, sendo certo que a inadmissibilidade do recurso, nesta parte, conduz à sua rejeição (cfr. arts. 420º nº 1 e 414º nº 2 do C.P.P.).
4. Decisão
Em face do exposto, rejeitam o recurso na parte respeitante ao pedido indemnizatório, e julgam-no improcedente quanto ao mais, mantendo integralmente a sentença recorrida.
Vai a recorrente condenada em 5 UC de taxa de justiça.
Porto, 14 de Março de 2007
Maria Leonor de Campos Vasconcelos Esteves
Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva Dias
António Augusto de Carvalho
José Manuel Baião Papão
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[1] (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] cfr. Simas Santos e Leal Henriques, CPP, 2ª ed. V. II, pág. 740.
[4] Tolda Pinto, A Tramitação Processual Penal, 2ª ed., págs. 1036 ss.
[5] “O conceito de erro notório na apreciação das provas tem que ser interpretado como o tem sido o conceito de facto notório em processo civil, ou seja, de que todos se apercebem directamente, ou que, observados pela generalidade dos cidadãos, adquire carácter notório” (Ac. STJ de 6/4/1994, CJ, ano II, t.2, p. 186.
[6] Menos exigente ainda é a corrente representada pelo Ac. STJ 30/1/02 Proc. n.º 3264/01 - 3.ª Secção, ("http://www.stj.pt/nsrepo/cont/Anuais/Criminais/Criminais2002.pdf") , segundo o qual “para que se verifique o requisito da notoriedade do vício não é indispensável que o erro não passe despercebido ao comum dos observadores, isto é, que seja por eles facilmente apreensível. Atentos os fins judiciários visados com a previsão do vício e a regulação dos seus efeitos, a sua evidência deve ser aferida por referência à possibilidade de não passar despercebido, de ser facilmente detectável, por julgador com a preparação e a experiência pressupostas pelo exercício da função. Aquela visão de maior exigência para a verificação do vício - resultante de se referenciar a sua evidência à possibilidade da sua fácil percepção pela pessoa comum - diminuiria injustificadamente o efeito pretendido com a previsão do seu conhecimento, mesmo oficiosamente; efeito esse radicado no objectivo de evitar tanto quanto possível decisões de facto não consentâneas com a prova produzida, de forma a limitar o risco de decisões injustas.”
[7] cfr. Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda – Rui Medeiros, tomo I, pág. 282
[8] “A honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale. A consideração é aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração e ao desprezo público”, Prof. Beleza dos Santos, RLJ, ano 92°, págs. 161 e 168.
[9] “a honra pode ser entendida como «a essência da personalidade humana, referindo-se, propriamente, à probidade, à rectidão, à lealdade, ao carácter (…)” enquanto que a consideração é o “património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspecto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros”, Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, 3ª. Edição, pág. 469.
[10] cfr. Comentário Conimbricense, Parte Especial, Tomo I, pág. 607
[11] “O direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função” cfr. Ac. RP de 12/6/02, recurso nº 332 /02.
[12] cfr. Oliveira Mendes, “Tutela Penal do Direito à Honra”, págs. 37-39.
[13] “A injúria não se confunde com a grosseria; esta poderá ferir a susceptibilidade individual, todavia não atinge a dignidade pessoal referida à sua honra e consideração.” cfr. Ac. RL 21/11/90, proc. nº 0262323.
[14] cfr. Leal Henriques e Simas Santos, “Código Penal Anotado”, 2.º vol., 1977, págs. 328-329.
[15] cfr. Ac. RE de 2/7/96, CJ ano 1996, t. IV, pág. 295.
[16] cfr. Faria e Costa, “Direito Penal Especial”, Coimbra Ed., 2004, págs. 104-105.
[17] Dela nos dá conta, desenvolvidamente, Oliveira Mendes, ob. cit, págs. 40 ss., que aqui acompanhamos de perto e à qual pertencem as citações adiante feitas.
[18] cfr. Ac. RP de 23/2/93, BMJ nº 324, pág. 620: “Dado que o dolo pertence à vida interior de cada um, é portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência.”
[19] cfr. Ac. RL de 26/9/06, proc. nº 3381/2006-5: “(…) nem sempre a prova em que se baseia o tribunal é prova directa.
Não pode, contudo, deixar de ser valorada à luz da experiência comum e de forma concertada com todos os elementos de prova, designadamente no que concerne a aspectos que digam respeito ao foro íntimo das pessoas, tal como sucede com as intenções e também com a consciência da ilicitude.
E, tratando-se de processos interiores, se não forem admitidos pelos próprios, só uma avaliação alicerçada em presunções judiciais, não proibidas por lei, com base nos demais factos apurados e nas circunstâncias e contexto global em que se verificam e em dados da personalidade do agente, avaliação essa permitida se feita com respeito pelas regras da experiência comum, permite retirar tais conclusões.
[20] cfr. Comentário…, t. I, pág. 610, onde se salienta que “(…) apesar de tudo, são coisas diferentes – e sobretudo diferentes de um ponto de vista de ressonância social – o propalar que B é um ladrão ou que este foi condenado por furto”.
[21] cfr. Oliveira Mendes, ob. cit., pág. 62 ss.