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DOCUMENTO EM LÍNGUA ESTRANGEIRA
TRADUÇÃO DE DOCUMENTOS
Sumário
I. A citação com entrega de uma petição inicial acompanhada de documentos escritos em língua estrangeira não enferma de nulidade, nem sequer de qualquer outro tipo de irregularidade. II. Tão-pouco é obrigatória a ulterior tradução dos documentos juntos em língua estrangeira; ela só terá de ser feita quando o juiz a ordene e o juiz só deverá ordená-la se, no seu prudente arbítrio, entender que a mesma é necessária, nomeadamente por não dominar a língua em causa.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
J…, executado nos autos de execução identificados à margem, em que é exequente C… Limited, notificado do despacho proferido em 07/02/2019, que julgou improcedente a nulidade da citação por si suscitada, e com ele não se conformando, interpôs o presente recurso.
A exequente instaurou o processo executivo em 21/08/2018, alegando ser cessionário do crédito do BCP sobre o executado, titulado pela livrança que oferece à execução.
Citado, veio o executado, por requerimento de 26/11/2018, arguir a nulidade da sua citação com fundamento no facto de desconhecer a exequente e de o requerimento executivo inicial vir acompanhado de um documento, com cerca de 40 páginas, escrito em inglês, língua que desconhece.
Na sua resposta de 11/12/2018, a exequente juntou aos autos a tradução do documento, a qual foi notificada ao executado.
Por requerimento de 07/01/2019, o executado manteve a sua posição no sentido da nulidade da citação.
Foi, então, proferido o despacho recorrido, que, na parte ora relevante, tem o seguinte teor:
«ARGUIÇÃO DE NULIDADE (FLS. 44 E SS.):
«Nos termos do art. 191.°, n.º 1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo do disposto no artigo 188.°, é nula a citação quando não hajam sido, na sua realização, observadas as formalidades prescritas na lei.
«Há, pois, nulidade da citação quando — apesar do conhecimento ou, pelo menos, da cognoscibilidade do ato pelo citando que atue com a diligência devida — não foram integralmente respeitadas, na sua realização, as formalidades prescritas na lei, designadamente, as estabelecidas no art. 227.° do Código de Processo Civil.
«Todavia, a nulidade só relevará se, feita a necessária averiguação, se puder concluir que a irregularidade cometida possa ter relevo suficiente para se repercutir, com prejuízo, no direito de defesa do citando. Com efeito, só haverá nulidade da citação se a falta cometida puder prejudicar a defesa do citando (art. 191.° n.º 4 do Código de Processo Civil), cabendo ao citando provar a existência de prejuízo à sua defesa, sob pena de a nulidade não ser atendida.
«Quer isto dizer que a nulidade da citação só deve ser atendida quando essa circunstância restringir ou suprimir praticamente o exercício do direito de defesa, e não quando a mesma vise somente finalidades puramente formais ou dilatórias (neste sentido, Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1, pág. 341).
«No caso em apreço, o título executivo é constituído por uma livrança, que veio à posse da exequente Por via de um contrato de Cessão de créditos que celebrou com o Banco Comercial Português, S.A.
«Juntamente com o requerimento executivo, juntou a exequente cópia do respetivo contrato de cessão de créditos em língua inglesa, contrariando assim o disposto no art. 133.°, n.º 1 do Código de Processo Civil.
«Com a citação do executado, foi oferecida cópia do dito contrato em língua inglesa. Todavia, tal circunstância não produz necessariamente a nulidade da citação, atento o disposto no n.º 1 do art. 134.° do Código de Processo Civil. E mesmo que assim se entendesse, nos termos do art. 192.° do Código de Processo Civil, não haveria renovação da citação.
«É que, no seguimento da arguição de nulidade da citação, veio a exequente juntar aos autos cópia certificada para a língua portuguesa do mencionado contrato de cessão de créditos, conforme se alcança de fls. 60 e seguintes, notificando o executado concomitantemente, ficando assim sanada a arguida nulidade.
«Ademais, verifica-se que, em tempo, deduziu o executado embargos de executado, no âmbito dos quais alegou a ilegitimidade ativa da exequente, pelo que sempre seria de se considerar que a nulidade invocada em nada prejudicou o exercício da sua defesa (art. 191.º, n.º 4 do Código de Processo Civil).
«Assim sendo, indefere-se a arguida nulidade de citação.»
O recorrente termina as suas alegações de recurso, concluindo:
«1. A citação do Recorrente com a não entrega de todos os documentos em língua portuguesa, em violação do estabelecido no artigo 133.º do Código de Processo Civil, prejudicou a defesa do Recorrente pois esse documento não era necessário, apenas, para aferir da legitimidade do Exequente e Recorrente mas, também, das condições subjacentes à cessão de créditos que o mesmo celebrou com o Banco Comercial Português, SA podendo resultar da sua análise elementos que auxiliassem o Executado e ora Recorrente na sua defesa, nomeadamente, valores cedidos, taxas de juros, condições de preenchimento de livranças que garantissem aqueles créditos, entre outros.
2. O Recorrente não tem nem é obrigado a ter conhecimento que lhe permitam entender o conteúdo de tal documento não tendo, por conseguinte, a capacidade de avaliar se o seu conteúdo é importante ou fundamental para estruturar devidamente a sua defesa quer através da arguição da ilegitimidade da Recorrida quer através da arguição de outros fundamentos que obstassem à sua condenação no pagamento da dívida titulada por aquela livrança.
3. Não se pode concluir, como fez o douto despacho recorrido, que pelo facto de o Recorrente, sem prescindir, ter deduzido oposição à execução onde arguiu a ilegitimidade de Recorrida que tal não prejudicou a sua defesa dado que o documento apresentado não visava, apenas, suportar a legitimidade da Recorrida mas, também, o facto de esta ser portadora da livrança que serve de suporte à execução e as condições do seu preenchimento podendo, a Recorrente com essa análise deduzir outros fundamentos que levassem à improcedência da ação executiva.
4. É ao Recorrente que cabe ajuizar mediante a análise do documento intitulado "Contrato de Cessão de Créditos" quais os fundamentos de defesa que irá apresentar não podendo o Tribunal, num juízo próprio, fazer essa avaliação por si.
5. Com a entrega da cópia certificado para língua portuguesa do contrato de cessão de crédito nos presentes autos de execução estava, processualmente, o Recorrente impedido de se pronunciar sobre o mesmo nos autos dos embargos deduzidos e de vir a arguir, eventualmente, alguma exceção ou defesa por impugnação com base nalgum fundamento constante do mesmo.
6. A oposição à execução deduzida por meio de embargos foi apresentada, por mera cautela e sem prescindir de vir a apresentar nova oposição, porque se encontrava a correr o prazo para a mesma.
7. A não apresentação de nova oposição mediante embargos sem ter em consideração o conteúdo do documento apresentado em língua inglesa é a negação de defesa ao Recorrente e a violação do princípio do contraditório.
8. A citação do Recorrente, sem observância das formalidades prescritas na lei designadamente as estabelecidas no artigo 277°. do Código do Processo Civil, por prejudicar a defesa do Recorrente nos termos expostos, é nula nos termos e para os efeitos do artigo 195°. do atual Código do Processo Civil.»
A recorrida não apresentou contra-alegações.
Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.
Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (arts. 635, 637, n.º 2, e 639, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, a questão que se coloca é a de saber se se a citação é nula.
II. Fundamentação de facto
Os factos relevantes são os que constam do relatório.
III. Apreciação do mérito do recurso
Sem prejuízo do disposto no artigo 188 (respeitante à falta de citação, que in casu não se coloca), é nula a citação quando não hajam sido, na sua realização, observadas as formalidades prescritas na lei (assim o determina o n.º 1 do art. 191 do CPC).
As formalidades prescritas na lei são as constantes dos artigos 219 a 246 que contêm as regras que regulam os procedimentos de citação. Entre elas conta-se a de que o ato de citação implica a remessa ou entrega ao citando do duplicado da petição inicial e da cópia dos documentos que a acompanhem (art. 227, n.º 1, do CPC). Em nenhuma se impõe que os documentos tenham de ser escritos em língua portuguesa.
Poderia, na sequência, colocar-se a hipótese de uma nulidade atípica, por via do disposto no art. 195, nos termos do qual, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
Sucede, porém, que não foi praticado qualquer ato que a lei proíba, nem foi omitido qualquer que a lei imponha. Concretamente, a lei não impõe que os documentos a integrar nos autos estejam escritos na nossa língua.
Sobre a questão rege o art. 134, n.º 1, do CPC, nos termos do qual, quando se ofereçam documentos escritos em língua estrangeira «que careçam de tradução, o juiz, oficiosamente ou a requerimento de alguma das partes, ordena que o apresentante a junte».
Cabe ao juiz decidir se a tradução é necessária, não fornecendo a lei um critério objetivo para aferir essa necessidade. A regra é idêntica à que constava do anterior Código de Processo Civil, então no art. 140, n.º 1, desde as alterações introduzidas pelo DL 329-A/95, de 12 de dezembro.
Na interpretação desta norma, nomeadamente do seu inciso «que careçam de tradução», não podemos deixar de recuar àquela que vigorava antes da reforma de 1995 do velho Código (e que se mantinha inalterada desde a sua origem – DL 44.129, de 28 de dezembro de 1961). Dizia, então, o primeiro número do art. 140: «Quando se ofereçam documentos escritos em língua estrangeira, desacompanhados de tradução legalmente idónea, e no tribunal não houver tradutor oficial, pode o juiz ordenar, oficiosamente ou a requerimento da parte contrária, que o apresentante junte tradução feita por notário ou autenticada pelo funcionário diplomático ou consular do Estado respetivo». Mesmo então, a tradução dos documentos escritos em língua estrangeira não era obrigatória – o juiz podia ordená-la. Nas palavras de Alberto dos Reis, «[ficava], pois, ao prudente arbítrio do juiz mandar ou não fazer a tradução», ainda que a parte a requeresse, o juiz podia indeferi-la se a entendesse dispensável – Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, II, Coimbra Editora, 1945, p. 41. No entanto, a ideia subjacente à norma era a de que os documentos escritos em língua estrangeira eram apresentados com a respetiva tradução legalmente idónea.
No atual regime, importado do velho Código na versão da reforma de 1995, o paradigma alterou-se. Está implícito na norma contida no art. 134, n.º 1, do CPC, que os documentos escritos em língua estrangeira sejam oferecidos sem tradução; o juiz ordenará ao apresentante a junção da tradução quando o documento dela careça.
Está, portanto, na discricionariedade do juiz determinar a necessidade da tradução. Se o juiz compreender cabalmente o teor do documento e se o mesmo estiver escrito numa das línguas habitualmente compreendidas pelos portugueses, e especialmente se for pouco extenso e/ou redigido numa linguagem simples, não deverá solicitar a tradução. Neste sentido, exemplificativamente, os Acórdãos do TRL de 10/05/2007, proc. 1612/2007-6; do TRP de 26/06/2010, proc. 73/1988.P1; e do TRC de 29/01/2013, proc. 2116/10.6TJCBR.C1. A solicitá-la, ela não carece de ser oficial. Apenas quando surjam dúvidas fundadas sobre a idoneidade da tradução, será ordenada a junção de tradução com as formalidades previstas no n.º 2 do art. 134 do CPC.
O art. 133 do CPC, invocado pelo recorrente, não se reporta aos documentos, mas aos atos judiciais. Exemplificando: na citação – ato judicial – usa-se a língua portuguesa (art. 133); os documentos podem oferecer-se em língua estrangeira (art. 134).
Em suma, a citação com entrega de uma petição inicial acompanhada de documentos escritos em língua inglesa (ou em qualquer outra língua estrangeira) não enferma de nulidade, nem sequer de outro tipo de irregularidade. Tão-pouco é obrigatória a junção aos autos de tradução dos documentos juntos em língua estrangeira. Tal junção só terá de ser feita quando o juiz a ordene e o juiz só deverá ordená-la se, no seu prudente arbítrio, entender que a tradução é necessária.
De referir, a latere, que a tendência verificada em vários lugares do sistema é de abertura à dispensa de tradução de documentos apresentados em línguas estrangeiras.
No âmbito do Código do Registo Comercial e do Código do Registo Predial, por exemplo, desde as alterações que lhes foram introduzidas pelo DL 76-A/2006, de 29 de março, e pelo DL 116/2008, de 4 de julho, respetivamente, não carecem de tradução documentos redigidos em língua inglesa, francesa ou espanhola, se o funcionário competente dominar essa língua (arts. 32, n.º 2, do CRCom e 43, n.º 3, do CRP). Desde as alterações introduzidas no CRCom pelo DL 73/2008, de 16 de abril, a informação constante do registo comercial é disponibilizada através de certidão permanente em língua inglesa (ou noutras línguas estrangeiras determinadas por despacho do presidente do Instituto dos Registos e do Notariado, I. P.), quando assim seja solicitado, tendo a informação disponibilizada em língua estrangeira efeitos jurídicos equivalentes à informação disponibilizada em língua portuguesa (art. 58, n.ºs 3 e 4, do CRCom).
No Regime jurídico da atividade de medicação imobiliária (Lei 15/2013 de 8 de fevereiro), há total paridade entre documentos redigidos em língua portuguesa e em língua inglesa. Nos termos do art. 37 do RJAMI, os documentos necessários aos procedimentos ali regulados devem ser redigidos em português ou em inglês. Somente no caso de documentos originalmente redigidos noutras línguas estrangeiras, o IMPIC (Instituto dos Mercados Públicos do Imobiliário e da Construção, antigo InCI) pode solicitar a apresentação da respetiva tradução, mas, ainda assim, apenas quando tal se justifique em função da tecnicidade ou complexidade dos mesmos.
No Código do Notariado, a regra de que os documentos escritos em língua estrangeira devem ser acompanhados da tradução correspondente (art. 44, n.º 3, do CN), comporta três importantes exceções: as letras redigidas em língua estrangeira podem ser admitidas a protesto sem tradução, desde que o notário domine a língua em causa (art. 119, n.º 1, al. b), do CN); podem ser reconhecidas assinaturas apostas em documentos escritos em língua estrangeira não acompanhados de tradução, desde que o notário domine a língua em questão, ou que o documento seja traduzido, ainda que verbalmente, por perito da sua escolha (art. 157, n.º 2, do CN); podem ser reproduzidos por meio de pública-forma documentos escritos em língua estrangeira que o notário domine (art. 171, n.º 5, do CN).
São apenas exemplos; há outros casos. No âmbito do processo civil, que ademais se aplica supletivamente a outras leis processuais, a admissibilidade da junção aos autos de documentos escritos em língua estrangeira não depende da sua tradução, nem esta terá de ser feita ulteriormente, a menos que o juiz entenda que o documento dela carece.
Por tudo o exposto se conclui que a citação do executado não está ferida de nulidade.
IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 28/05/2019
Higina Castelo
José Capacete
Carlos Oliveira