DEPÓSITO BANCÁRIO
DESCOBERTO EM CONTA
SALDO NEGATIVO
RESTITUIÇÃO
PRESSUPOSTOS
Sumário

I– Sendo característica da conceptualização do descoberto em conta a concessão esporádica, acidental ou ocasional de crédito a cliente com insuficiência também ocasional de fundos, feita pelo Banco, ao abrigo da sua livre, porém, boa, eficaz e criteriosa gestão de negócio baseada nas perspectivas de solvabilidade e no âmbito da relação de confiança com o cliente, essa concessão pode prolongar-se no tempo apresentando por um determinado período novas concessões, com agravamento do saldo negativo.

II– Porém, este período tem um limite, de apuramento casuístico, determinado por aplicação do princípio basilar da boa-fé, que se traça no momento em que a perspectiva de solvabilidade se apresentar objectivamente duvidosa.

III– Permitir que um cliente que num período, de oito meses, constante de extracto bancário credita, como primeiro movimento desse extracto, um vencimento de cinco mil euros, e logo o saldo positivo se reduz a sessenta euros, aumentando o saldo ao longo desses oito meses praticamente para o dobro, adiantando o Banco os fundos necessários para o pagamento de prestações de crédito hipotecário e de cartões de crédito, sem que haja novos depósitos de vencimento nem créditos relevantes, ultrapassa o limite referido.

IV– Não se pode assim conceptualizar as operações realizadas como descobertos em conta, dependendo a procedência do pedido de pagamento da totalidade do saldo negativo da prova de que o crédito concedido o fora a pedido do cliente ou com o acordo dele.

Texto Integral

Acordam os juízes que compõem este colectivo do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.–Relatório[1]


Banco … veio apresentar requerimento de injunção contra A … e B…, relativamente à quantia de €9.762,10 de capital, €476,60 relativos a juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento e €444,54 relativos a outras quantias.
Invocou a celebração de um contrato de mútuo, expondo os seguintes factos: “1 - Saldo devedor na conta de depósito à ordem nº (…), que à data de 01/03/2013 ascendia a €9.762,10, originado por movimentação diversa, designadamente pagamentos, comissões de transferência, anuidades de cartões, ordens de pagamento de cartões de crédito, entre outros”.

Opôs-se a requerida, alegando que a conta foi aberta pelo requerido, com quem era casada, mas que se divorciaram em 19 de agosto de 2008, que apenas era movimentada pelo réu e que não efectuou qualquer pagamento de tal conta, nem tinha cartões de crédito associados à mesma, pelo que nada deve, invocando ainda a excepção de litispendência relativamente aos valores peticionados nesta acção e cujo pagamento está a ser reclamado na acção executiva que corre termos sob o n.º (…) e (…).

Na sequência da dedução de oposição pela requerida, o requerimento de injunção foi remetido à distribuição com acção especial para o cumprimento de obrigações pecuniárias.

Foi proferido despacho que convidou a Autora a aperfeiçoar o seu articulado, juntando nova petição onde se faça referência às condições acordadas e à fixação de prazo para restituição das quantias, com junção de documento comprovativo de contrato e dos valores alegadamente em dívida e respectiva data de vencimento.

Na petição aperfeiçoada, além de juntar documentos, a Autora invocou a contratação com os Réus da abertura de uma conta de depósito à ordem, conta essa que foi indicada pelos Réus como “associada aos seguintes financiamentos que lhes foram concedidos pelo Banco Autor:
a)- Crédito pessoal “multifinalidades”, ao qual foi atribuída a designação de ILS (…), celebrado em 06/02/2008, cujo valor financiado ascendeu a € 28.762,31 (…);
b)- Crédito pessoal “multifinalidades”, ao qual foi atribuída a designação de ILS (…), celebrado em 17/01/2008, cujo valor financiado ascendeu a € 15.507,09 (…);
c)- Crédito hipotecário, ao qual foi atribuída a designação de MLS (…), celebrado em 24/04/2007, cujo montante mutuado ascendeu a €53.691,73 (…);
d)- Crédito hipotecário, ao qual foi atribuída a designação de MLS (…), celebrado em 24/04/2007, cujo montante mutuado ascendeu a €15.400 (…);
e)- Crédito hipotecário, ao qual foi atribuída a designação de MLS (…), celebrado em 24/04/2007, cujo montante mutuado ascendeu a €79.953,23 (…);
f)- Crédito hipotecário, ao qual foi atribuída a designação de MLS (…) celebrado em 24/04/2007, cujo montante mutuado ascendeu a €36,336 (…);
Mais invocou que desde 29.06.2012 a conta “passou a registar uma movimentação irregular, traduzida na ocorrência frequente de saldos devedores por inexistência de fundos suficientes para fazer face aos débitos surgidos – conforme extracto bancário de movimentos (…) junta (…) (docs. nºs 8 a 23), e que tais saldos devedores derivaram de débitos referentes, nomeadamente, a ordens de pagamento relativamente a empréstimos concedidos pelo Banco Autor (…) melhor identificados (…) supra; juros; imposto de selo, ordens de pagamento de cartões de crédito, comissões e outros – (Docs. nºs 8 a 23).
Concluiu a Autora que o saldo negativo em questão correspondia a um verdadeiro empréstimo, designado na gíria bancária como “descoberto em conta”, operação pela qual um Banco consente que uma conta de um seu cliente seja debitada, para além do saldo efectivamente existente, até certo limite e por determinado prazo, configurando-se como um verdadeiro contrato de mútuo; traduz-se o “descoberto em conta numa concessão de crédito bancário, com ou sem acordo prévio”, sendo que na “modalidade sem acordo prévio, também, denominada crédito de tesouraria, facilidade de caixa ou “overdraft”, o depositante, cliente de confiança, com necessidades momentâneas e imprevistas, é autorizado a levantar quantias superiores às depositadas, sem necessidade de instruções escritas”.
Aduz finalmente que “O mútuo verificado, tendo sido efectuado por um Banco, pode provar-se por escrito particular, seja qual for o seu montante e seja ou não comerciante a outra parte, de acordo com o preceituado no artigo único do Decreto-Lei nº 32.765, de 29.04.43, disposição legal ainda em vigor (cfr. neste sentido Ac. STJ, de 22.04.84, B.M.J. nº 334, pág. 502 e Ac. STJ de 20.06.90, Act. Jurídica, Ano 2, nº 10/11, Pág. 17, ficha 2314), concluindo que “o extracto da conta junto como docs. nºs 8 a 23 é documento bastante para prova da dívida”.

A Ré apresentou oposição à petição inicial aperfeiçoada, renovando os primitivos termos, excepcionando litispendência relativamente aos valores peticionados nesta acção e cujo pagamento está a ser reclamado na acção executiva que corre termos sob o n.º (…) e (…), e invocando que os cartões de crédito são pessoais e intransmissíveis e não eram da sua titularidade, e que não contratou nenhum negativo em conta sendo ainda que, pelo valor, sempre o mútuo teria de constar de documento escrito por ela assinado.

A autora pronunciou-se sobre a excepção invocada, pugnando pela sua improcedência, e requereu a redução do pedido para €7.651,06 e juntou documentos.

Foi então proferido despacho que admitiu a redução do pedido, julgou improcedente a excepção de litispendência, saneou os autos, concluiu pela possibilidade de conhecimento imediato, fixou o valor da causa em €10.683,24, decidiu a factualidade provada e não provada, sentenciando, sendo o teor da respectiva parte dispositiva o seguinte:
“Pelo exposto, decide-se julgar a presente ação improcedente, por não provada, e, consequentemente, absolver os réus A… e B… do pedido contra eles formulado pelo Banco (…).
Custas pelo autor (artigo 527.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Registe e notifique”.

Inconformada, a Autora interpôs o presente recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões:
a)- O Tribunal a quo julgou erradamente a matéria de facto, violando o estabelecido nos artigos 342º, do Código Civil e o princípio da livre apreciação da prova, devendo por isso a decisão ser alterada, nos termos do disposto no art. 662º do NCPC, devendo ser aditados os factos seguintes à matéria de facto dada como assente, como pontos 4, 5, 6, 7 e 8:

4.– Das Condições Gerais de Depósito da conta de depósito à ordem consta a seguinte cláusula:
11.– Débitos
a)- O Cliente autoriza desde já o Banco a debitar a conta em virtude de quaisquer comissões, portes, encargos e impostos a esta referentes.
b)- Se a conta não se encontrar provida com saldo suficiente para que nela seja lançada a débito qualquer transacção, como pagamento de um cheque, numa ordem de transferência dada pelo Cliente, um levantamento de numerário numa caixa automática ou a regularização de responsabilidades perante o Banco, fica este autorizado a debitar esse montante acrescido dos respectivos juros devedores, sobretaxa de mora e imposto de selo em qualquer outra conta de depósito existente no Banco em nome do cliente (…)
c)- Caso não haja provisão suficiente em qualquer outra conta de depósito do Cliente e se o Banco decidir autorizar o pagamento, não tendo a conta um limite de descoberto associado ou ultrapassando o saldo final aquele limite, o Cliente compromete-se a regularizar nesse mesmo dia, até à hora prevista para o encerramento dos estabelecimentos bancários, o descoberto originado pelo débito na sua conta.
d)- Os descobertos não regularizados dentro do prazo referido na alínea anterior, passarão a vencer juros à taxa mais alta praticada pelo banco para operações a crédito activas, acrescidos da sobretaxa legal de mora em vigor ou de qualquer outra que a venha a substituir (…)”.
5.– Das Condições Gerais do contrato de crédito pessoal “multifinalidades”, ao qual foi atribuída a designação de ILS (…), consta a seguinte cláusula:
Cláusula 7ª
O empréstimo será reembolsado em prestações sucessivas, cujo número, periodicidade e data estão fixados no verso deste contrato. O reembolso do crédito e de todos os pagamentos emergentes do Contrato, incluindo os prémios de seguro a eles afetos, serão efectuados por débito na conta vinculada, obrigando-se os proponentes a mantê-la com provisão necessária para o efeito nas datas respectivas”.
6.– Das Condições Gerais dos contratos de mútuo com hipoteca e fiança, aos quais foi atribuída a designação de MLS (…), MLS (…) e MLS (…), consta a seguinte cláusula:
“Cláusula 6ª
Os pagamentos a efectuar pelos MUTUÁRIOS para liquidação do capital mutuado, respectivos juros ou outros encargos devidos por força do estipulado no presente contrato, serão efectuados por débito na conta de depósitos à ordem mencionada anteriormente ou em qualquer conta de que os mutuários sejam ou venham a ser titulares junto do Banco (…), autorizando, desde já, os Mutuários, os débitos”.
7.– Os débitos que constam dos extratos da conta bancária, no período em causa, resultaram de débitos referentes, nomeadamente, a ordens de pagamento relativamente a empréstimos concedidos pelo Banco Autor aos Réus; juros; impostos de selo e ordens de pagamento de cartões de crédito, comissões e outros.
8.– Os referidos movimentos a débito na conta bancária em apreço foram pedidos, provocados ou, pelo menos, consentidos pelos Réus.
b)- Com efeito, não obstante os movimentos financeiros a débito (concernentes ao pagamento de obrigações contratuais dos contratos de mútuo firmados) terem sido materialmente efetuados pelo Banco recorrente, a verdade é que, por força do acordado entre as partes no contrato de abertura de conta e, bem assim, dos contratos de mútuo concedidos, não poderá deixar de se concluir que os Réus permitiram ao Banco recorrente que efectuasse os débitos necessários da sua conta bancária, como se fossem os próprios a fazê-lo (vide neste sentido, acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, de 04/02/2016, proc. 133764/14.8YIPRT.E1, in www.dgsi.pt).

c)- Acresce, ainda, que da leitura dos extractos bancários juntos aos autos a fls… resulta que foram lançadas a débito várias ordens de pagamento relativas a cartões de crédito e, bem assim, as seguintes ordens de transferência para F… e A… e pagamento de serviços:
- 2012/07/03 2012/07/03 TFR P/ F...
2 TNE12070316474002234 1,150.00 D
- 2012/07/03 2012/07/03 TFR P/ A…
3 TNE12070316510503842 1,000.00 D
- 2012/07/03 2012/07/03 PAG Serviços ENT: (…) REF (…)
4 H00100388178570020 300.00 D
- 2012/07/03 2012/07/03 TFR P/ A…
5 TNE12070322294809843 800.00 D

d)- Ora, é inegável que tais movimentos a débito resultaram de ordens directas dos clientes (aqui réus), pelo que, mal andou a douta sentença recorrida ao dar como não provado que os movimentos a débito espelhados nos respectivos extractos bancários foram efectuados a pedido dos réus.
e)- Tendo em consideração o enquadramento fáctico reflectido na prova documental junta aos autos, não poderia a douta sentença ter deixado de dar como verificados os factos constitutivos do direito invocado pelo Banco Recorrente, enquadrados na figura jurídica do “descoberto em conta” (na modalidade sem acordo prévio) e condenando os Réus no pagamento do valor peticionado.
f)- Ao não ter assim decidido, violou o Tribunal a quo o disposto no D.L. n.º 32.765, de 29/04 e, bem assim, o disposto nos artigos 342º, 805º, 806º, 1142º, 1145º, nº 1, todos do Código Civil.
Nestes termos e nos melhores de direito deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença e, em consequência, deve ser modificada a decisão sobre a matéria de facto nos termos constantes da alínea a) das conclusões.
E, bem assim, julgada procedente por provada a acção intentada pelo Autor e os réus condenados no pedido formulado”.

Não foram produzidas contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir:

II.–Direito
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação, a questão a decidir é a reapreciação da decisão sobre a matéria de facto e a procedência da acção.

III.–Matéria de facto
A decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal recorrido é a seguinte:

“A)–Factos Provados:
Com interesse para a decisão da causa estão provados os seguintes factos:
1.- No dia 22.07.2003, a pedido dos réus, o autor procedeu à abertura de uma conta solidária de depósito à ordem, à qual foi atribuído o nº (…).
2.- Na conta referida em 1. foram imputados débitos decorrentes da cobrança dos empréstimos concedidos pelo autor aos réus com os nºs (…), (…), (…), (…), (…), (…), imposto de selo, pagamento de cartões de crédito, comissões e outros.
3.- No dia 28.02.2013 a conta referida em 1. apresentava um saldo negativo total de €9.762,10.
*

B)–Factos Não Provados:
Com interesse para a decisão, não se provou que:
- Os movimentos a débito referidos em 2. foram efetuados a pedido dos réus.
*

Com interesse para a decisão, não se provaram quaisquer outros factos, sendo certo que aqui não importa considerar as alegações meramente probatórias, conclusivas e de direito, que deverão ser valoradas em sede própria.
*

C)– Motivação da Decisão de Facto:
Os factos acima descritos resultaram assentes com base nos documentos juntos aos autos a fls. 13 a 49 e 52, que consubstanciam a ficha de abertura de conta e o histórico de movimentos da conta, as propostas de crédito pessoal e a cópia das escrituras de mútuo com hipoteca e fiança, e bem assim por acordo das partes, nos termos do artigo 574.º, nº 2, do Código de Processo Civil.
O facto não provado resultou não só do que foi alegado pelo próprio autor de que os débitos em causa se referem a empréstimos concedidos aos réus e associados à conta, a juros, imposto de selo, pagamento de cartões de crédito, comissões e outros, mas também da análise do histórico de movimentos da conta, da qual resulta que esta era movimentada, relativamente a tais débitos, pela própria entidade bancária”.

IV.–Apreciação
Está em causa o facto não provado – que os movimentos foram efectuados a pedido dos réus – o que se coloca como resultado do pretendido aditamento dos factos acima enunciados.
Sustenta-se a recorrente na prova documental, tanto no que diz respeito aos próprios movimentos da conta, como no que diz respeito às condições de abertura da conta e às condições de concessão dos mútuos celebrados por ela com os réus.

Vejamos:
Alínea a)[2] - “4.- Das Condições Gerais de Depósito da conta de depósito à ordem consta a seguinte cláusula:
11.–Débitos
a)- O Cliente autoriza desde já o Banco a debitar a conta em virtude de quaisquer comissões, portes, encargos e impostos a esta referentes.
b)- Se a conta não se encontrar provida com saldo suficiente para que nela seja lançada a débito qualquer transacção, como pagamento de um cheque, numa ordem de transferência dada pelo Cliente, um levantamento de numerário numa caixa automática ou a regularização de responsabilidades perante o Banco, fica este autorizado a debitar esse montante acrescido dos respectivos juros devedores, sobretaxa de mora e imposto de selo em qualquer outra conta de depósito existente no Banco em nome do cliente (…)
c)- Caso não haja provisão suficiente em qualquer outra conta de depósito do Cliente e se o Banco decidir autorizar o pagamento, não tendo a conta um limite de descoberto associado ou ultrapassando o saldo final aquele limite, o Cliente compromete-se a regularizar nesse mesmo dia, até à hora prevista para o encerramento dos estabelecimentos bancários, o descoberto originado pelo débito na sua conta.
d)- Os descobertos não regularizados dentro do prazo referido na alínea anterior, passarão a vencer juros à taxa mais alta praticada pelo banco para operações a crédito activas, acrescidos da sobretaxa legal de mora em vigor ou de qualquer outra que a venha a substituir (…)”.
Alínea b) - 5. Das Condições Gerais do contrato de crédito pessoal “multifinalidades”, ao qual foi atribuída a designação de ILS (…), consta a seguinte cláusula:
Cláusula 7ª
O empréstimo será reembolsado em prestações sucessivas, cujo número, periodicidade e data estão fixados no verso deste contrato. O reembolso do crédito e de todos os pagamentos emergentes do Contrato, incluindo os prémios de seguro a eles afetos, serão efectuados por débito na conta vinculada, obrigando-se os proponentes a mantê-la com provisão necessária para o efeito nas datas respectivas”.
Alínea c) - 6. Das Condições Gerais dos contratos de mútuo com hipoteca e fiança, aos quais foi atribuída a designação de MLS (…), MLS (…) e MLS (…) consta a seguinte cláusula:
“Cláusula 6ª
Os pagamentos a efectuar pelos MUTUÁRIOS para liquidação do capital mutuado, respectivos juros ou outros encargos devidos por força do estipulado no presente contrato, serão efectuados por débito na conta de depósitos à ordem mencionada anteriormente ou em qualquer conta de que os mutuários sejam ou venham a ser titulares junto do Banco (…), autorizando, desde já, os Mutuários, os débitos”.
Visto o teor dos documentos referidos e que constam dos autos e não foram impugnados, pode de facto aditar-se à matéria de facto provada o teor das alíneas anteriores.
Alínea d) - 7. Os débitos que constam dos extratos da conta bancária, no período em causa, resultaram de débitos referentes, nomeadamente, a ordens de pagamento relativamente a empréstimos concedidos pelo Banco Autor aos Réus; juros; impostos de selo e ordens de pagamento de cartões de crédito, comissões e outros.
Visto o extracto bancário, não há dúvida que dele constam menções relativas a “ordem de pagamento de cartão de crédito”, “pagamento parcial de empréstimo”, “com(issão) de processamento”, “reg (ularização) de prestações”, “juros devedores”, “imposto de selo”, “ocidental vida”, “pagamento de cartão de crédito”, “trf (transferência) para F…”, “trf para A…”, “com(issão) de intervenção”, “com proc prest atraso” e similares.
Portanto, não há dúvida sobre a nominação dos movimentos e, se cotejarmos o texto proposto nesta alínea com o facto provado nº 2 – “Na conta referida em 1. foram imputados débitos decorrentes da cobrança dos empréstimos concedidos pelo autor aos réus com os nºs (…), (…), (…), (…), (…) e (…), juros, imposto de selo, pagamento de cartões de crédito, comissões e outros”, o que encontramos de novo na proposta de redacção é que, para a recorrente, os movimentos a débito resultam de ordens de pagamento (quer de prestações de empréstimo, quer de cartões de crédito) enquanto para o tribunal recorrido, esses movimentos a débito “foram imputados”, sendo que no que toca às prestações de empréstimo se trata de “cobrança”.
No fundo, o tribunal resolve a favor da Ré quanto ela disse - não fiz nada, nada mandei, não tenho nada a ver com isto – ao dizer que os movimentos resultam da imputação, naturalmente feita pelo Banco, enquanto a recorrente pretende uma fórmula que resulta da conjugação das alíneas ora aditadas – nas condições gerais dos empréstimos que contratámos e nas condições gerais da abertura de conta, os mutuários e depositantes autorizaram os movimentos a débito necessários, relativos às prestações que se vencessem e ao mais que relevasse debitar, e nós Banco, agimos em conformidade segundo as autorizações/ordens dadas.
Acrescenta ainda a recorrente que (embora tenha admitido que foi ela quem fez as movimentações, a mando ou sob autorização prévia e genérica dos clientes) nem tudo procedeu da sua exclusiva iniciativa, pois o extracto reflecte transferências bancárias quer para o (outra conta do) réu, quer para terceiro, e que por isso não pode valer a fórmula “foram imputados”.
Ora, sem embargo da especiosidade de tudo isto – porque, mesmo sem o aditamento, se consegue perceber que a imputação é um lançamento e que a sua autora é a recorrente, no exercício das suas funções e obrigações decorrentes dos contratos celebrados, ou dito mais simplesmente, o autor do extracto logo se vê que não é o réu nem a ré – a verdade é que o facto alegado o foi na versão da autora como “Tais saldos devedores derivaram de débitos referentes, nomeadamente, a ordens de pagamento relativamente a empréstimos (..) juros, imposto de selo, ordens de pagamento de cartões de crédito (…); foram sendo lançadas na referida conta de depósito valores de débito decorrentes das operações atrás descritas” conforme artigos 4º e 5º da petição inicial aperfeiçoada, e constitui melhor prática, salvo o devido respeito, respeitar a redacção da alegação.
É ainda verdade que de facto as transferências bancárias constantes do extracto reflectem não uma actuação voluntária do Banco, de sua iniciativa, mas o cumprimento de uma ordem do depositante. E é verdade que tendo sido acordadas ou aceites as condições gerais acima aditadas, o Banco estava autorizado a ter a iniciativa de lançar os débitos na conta.
Por isso, substitui-se a redacção do facto provado nº 2 pelo facto mencionado nesta alínea d), ou seja, “Os débitos que constam dos extratos da conta bancária, no período em causa, resultaram de ordens de pagamento relativamente a empréstimos concedidos pelo Banco Autor aos Réus; juros; impostos de selo e ordens de pagamento de cartões de crédito, comissões e outros.”
Alínea e) - “Os referidos movimentos a débito na conta bancária em apreço foram pedidos, provocados ou, pelo menos, consentidos pelos Réus”.
Tendo a decisão sido proferida sem que os autos tivessem prosseguido até julgamento, não havendo qualquer prova testemunhal ou por declarações de parte, só a partir dos documentos referidos, das condições contratadas, se pode aferir se a movimentação que o Banco fez, materialmente, na conta, foi feita a pedido, ou provocada ou pelo menos consentida pelos réus.
Ora, o único meio de prova que poderia sugerir esta resposta são precisamente os documentos contendo as condições gerais acima aditadas. Esta questão será abordada mais abaixo, para onde aliás se remete, mas aqui daremos apenas a conclusão dessa abordagem: - autorizar que os débitos sejam lançados em conta não implica, segundo as mesmas condições, uma autorização de lançamento mesmo quando a conta não está provisionada.
Improcede a pretensão de reapreciação quanto a este ponto.
Revista a factualidade provada, que dizer?
Dizer, com todo o respeito, que o réu nem se defendeu, e que a ré se defendeu dizendo: - a conta era do réu, casei com ele e entrei para a conta, depois divorciei-me, sempre foi ele quem mexeu nesta conta, os cartões de crédito eram dele e não me eram transmissíveis.
O tribunal entendeu poder logo conhecer sem que tivesse apurado qualquer facto relativo ao divórcio, aos termos do acordo patrimonial dele resultante em matéria de dívidas relativas a uma eventual casa de morada da família, à titularidade dos cartões de crédito, e isto fez, com o devido respeito pela sua autonomia decisória, por, se bem interpretamos, um argumento da oposição ser particularmente relevante. Disse a ré, sobre um saldo negativo de quase dez mil euros: não se percebe como se chega a um saldo destes e com que legitimidade o A. decidiu imputá-lo a uma conta que não tinha fundos, ao longo de nove meses (Junho 2012 a Fevereiro 2013) e ainda que diga que isto é um descoberto em conta, eu, ré, não o contratei.
Sensível a esta argumentação, considerou o tribunal recorrido: “A autora provou que os débitos foram efetuados na conta de depósito à ordem dos réus, mas não provou que foi por iniciativa destes que os débitos foram realizadas e que os réus pretendiam recorrer ao crédito ou ao descoberto bancário para proceder ao pagamento de tais valores, pelo que o saldo negativo foi despoletado pela própria entidade bancária que cedeu o crédito, dado que procedeu ao débito de prestações de empréstimos bancários, juros, imposto de selo, débitos de cartões de crédito, comissões, e outros, sem que a conta estivesse aprovisionada para o efeito e durante cerca de oito meses”.
A sentença recorrida considerou ainda que a situação em causa não corresponde a um descoberto em conta, caso em que se podia apelar a um acordo tácito, e por isso teria a autora de provar que os réus lhe tinham dado ordem ou pedido ou contratado o crédito que resultava dos débitos lançados na conta sem fundos.
Invoca a recorrente que a realização material por si, das operações de lançamento, foi autorizada, e que estamos perante um descoberto em conta, em função do que deve proceder o pedido.
Não tendo a recorrida contra-alegado e não estando em causa saber se os autos deviam ter prosseguido para julgamento[3], não está também em causa que os lançamentos realizados pela recorrente na conta estão cobertos pelas autorizações de débito constantes das condições gerais aceites ou acordadas.
Com efeito, sim, relativamente à abertura de conta, “a) O Cliente autoriza desde já o Banco a debitar a conta em virtude de quaisquer comissões, portes, encargos e impostos a esta referentes”, relativamente a empréstimos, de novo sim, “O reembolso do crédito e de todos os pagamentos emergentes do Contrato, incluindo os prémios de seguro a eles afetos, serão efectuados por débito na conta vinculada (…)” e sim, “Os pagamentos a efectuar pelos MUTUÁRIOS para liquidação do capital mutuado, respectivos juros ou outros encargos devidos por força do estipulado no presente contrato, serão efectuados por débito na conta de depósitos à ordem mencionada anteriormente ou em qualquer conta de que os mutuários sejam ou venham a ser titulares junto do Banco (…), autorizando, desde já, os Mutuários, os débitos”.

Só que, em complemento destas autorizações e em coerência com elas, quanto à conta de depósito: “b) Se a conta não se encontrar provida com saldo suficiente para que nela seja lançada a débito qualquer transacção, como pagamento de um cheque, numa ordem de transferência dada pelo Cliente, um levantamento de numerário numa caixa automática ou a regularização de responsabilidades perante o Banco, fica este autorizado a debitar esse montante acrescido dos respectivos juros devedores, sobretaxa de mora e imposto de selo em qualquer outra conta de depósito existente no Banco em nome do cliente (…) e “c) Caso não haja provisão suficiente em qualquer outra conta de depósito do Cliente e se o Banco decidir autorizar o pagamento, não tendo a conta um limite de descoberto associado ou ultrapassando o saldo final aquele limite, o Cliente compromete-se a regularizar nesse mesmo dia, até à hora prevista para o encerramento dos estabelecimentos bancários, o descoberto originado pelo débito na sua conta. Só que também, quanto aos débitos autorizados para liquidação de responsabilidades no âmbito do crédito multifinalidades, “obrigando-se os proponentes a mantê-la com provisão necessária para o efeito nas datas respectivas” e finalmente, o que também resulta da cláusula 6ª “Os pagamentos a efectuar pelos MUTUÁRIOS para liquidação do capital mutuado, respectivos juros ou outros encargos devidos por força do estipulado no presente contrato, serão efectuados por débito na conta de depósitos à ordem mencionada anteriormente ou em qualquer conta de que os mutuários sejam ou venham a ser titulares junto do Banco Comercial Português, S.A., autorizando, desde já, os Mutuários, os débitos”, pela referência a “qualquer conta”, é que tudo isto, toda a autorização para o lançamento de débitos, supõe a obrigação de ter a conta respectiva ou qualquer outra provisionada, supõe que o cliente tenha fundos para satisfazer os débitos, ou, como resulta da menção “não tendo a conta um limite de descoberto associado ou ultrapassando o saldo final aquele limite”, tudo isto independe, ou melhor, a questão da autorização de débito não se confunde com o descoberto em conta, pois no máximo o que encontramos é que autorizando o Banco o débito na conta sem fundos ou cujo descoberto associado tenha sido ultrapassado, então o débito (este sim resultante duma concessão pontual de crédito) tem de ser regularizado no próprio dia em que ocorre – portanto, com bastante pontualidade, sob pena de começar a vencer juros à taxa mais alta. (sublinhados e negritos nossos).

Tal como se tem entendido, o descoberto em conta, quando não expressamente contratado, corresponde a uma concessão de crédito em vista a facilitar a tesouraria do cliente, que se situa no âmbito das relações de facto e da disponibilidade do banco para crer na solvência do cliente e em todo o caso dentro do seu poder de gestão e de estratégia de negócio, e que se caracteriza pelo seu carácter pontual, e que, concedido, transforma o cliente, de credor do depósito, em devedor do depositário. Mister será que o cliente a quem o descoberto é concedido ou autorizado, beneficie da disponibilidade do crédito concedido.

Num exemplo, o cliente, ultrapassados os fundos disponíveis, levanta numerário em caixa automática e o banco consente-lhe esse levantamento. Noutro exemplo, a conta da luz é debitada quando a conta bancária já não tem saldo suficiente, e o banco paga à companhia de electricidade. Noutro exemplo ainda, o típico cliente que compra uma casa com recurso ao crédito bancário tem de pagar a prestação dum determinado mês, o que normalmente faz pelas forças do seu ordenado, mas viu-se forçado a pagar outra despesa e já não tem fundo suficiente quando é debitada a prestação do empréstimo habitacional. O que sucede aqui é que o cliente beneficiou, antecipadamente, da possibilidade de gastar o seu ordenado para o pagamento daquela outra despesa e o banco adiantou-lhe o fundo suficiente para pagar a despesa que também tinha para com ele.

Se lermos o acórdão da Relação do Porto (9.10.2018) que a sentença recorrida utilizou, nele se ressalva precisamente esta hipótese: “Aliás, nem sequer foi alegado, e não foi demonstrado, que a Ré tenha beneficiado da “falta do saldo” peticionado para cobrir as obrigações pecuniárias resultantes de autorizações de débito por si transmitidas ao banco para lançamento naquela concreta conta à ordem”.

Repare-se aliás que neste acórdão a situação de facto é diversa, na medida em que o que foi debitado e constitui o saldo negativo que veio a ser peticionado foram despesas por serviços prestados pelo Banco, e voltamos a citar: “Porém, tais extratos, como afirma o banco Recorrente na sua alegação, revelam terem sido debitados na conta somente juros de diversas operações bancárias, despesas bancárias, designadamente de serviços de avaliação, imposto de selo, IVA e comissões bancárias”. E é por isto que o Tribunal da Relação do Porto conclui “Quadro factual que não encaixa na figura do “descoberto em conta” a que apela o Autor”. E assim diz o mesmo acórdão que “isto” não pode ser, porque senão o Banco, a final prestador de serviços, ficava dispensado de provar a causa do débito, bastando-lhe lançar a dívida em conta e cobri-la com a figura do descoberto, e por isso terá de recorrer aos meios pertinentes e aí invocar as verdadeiras e originais causas da dívida.

Voltando ao caso dos autos, o que aqui pode impressionar é que, tirando um depósito inicial de vencimento e “meia dúzia” de movimentos a crédito e que apenas e pouco reduzem o negativo, o extracto bancário é um longo rol de operações a débito – que ilustram com suficiência o benefício tirado pelo cliente, designadamente pela utilização do cartão de crédito ou por não despender fundos próprios no pagamento das prestações do crédito hipotecário habitacional – ou seja, o que pode impressionar perante o desenho típico do descoberto em conta que acima muito linearmente fizemos, é a falta do carácter pontual dos descobertos autorizados ou concedidos, a tal dificuldade pontual, ocasional, esporádica que o cliente tem e que o banco entende prover por, na situação normal, regular e contínua, o mesmo cliente apresentar um histórico de cumprimento e de suficiência de fundos.

Na verdade, o extracto inicia-se com um movimento a crédito datado de 29.6.2012 intitulado “pagamento de vencimento”, no valor de cinco mil euros, que origina um saldo de €62,16 e dali em diante são debitados os valores pelos títulos já referidos acima e que a 31.7.2012 já importa num negativo de €5.344,35, sem que volte a ver outro crédito de vencimento, saldo que vai paulatinamente aumentando, com a excepção de pontuais créditos no valor de €182,27, até 10.10.2012, para €5.942,17, temos um depósito de numerário/valores com data de 15.10.2012 no valor de €1.470,34 que reduz o saldo negativo para €4.471,48, e os débitos, salvo os pontuais mesmos créditos, continuam até 20.11.2012 para um saldo negativo de €6.392,66, segue-se o depósito dum cheque no valor de €893,38, que continua a aumentar, com as oscilações dos tais mesmos créditos de €182,27, até 7.2.2013 para o valor negativo de €7.035,89, no dia seguinte sendo debitado o pagamento de cartão de crédito no valor €2.258,97, subindo o saldo negativo para €9.564,86 e prosseguindo com selagem de livrança e mais uma ordem de pagamento de cartão de crédito e dois movimento de regularização das prestações de Janeiro e Fevereiro, depois de um depósito de €364,54, chegando-se ao valor negativo final de €9.762,10 em 1.3.2013.

Portanto, estamos a falar sensivelmente de oito meses, em que não sendo depositados com regularidade fundos suficientes para cobrir a conta, face às despesas cujos débitos a ela estavam associados, a recorrente foi autorizando ou concedendo crédito.

Sustenta a recorrente que este prolongamento não desvirtua a possibilidade de enquadramento na figura, conceptual, do descoberto em conta, e refere a propósito o Acórdão desta Relação de 3.11.2005, onde se lê, não apenas o que a recorrente transcreve, mas globalmente o seguinte: “Esta prática bancária, ainda que traduzida em actos esporádicos, pode prolongar-se no tempo. Daí não resulta para o cliente qualquer direito, como se tivesse celebrado contrato com o banco, pelo que sempre o banqueiro, de acordo com os índices de confiança que o cliente lhe merece, poderá ou não fazer pagamentos para além do saldo”. Com o devido respeito, e por lógica, actos esporádicos prolongados no tempo não perdem o seu carácter de esporádicos, e portanto não estamos a falar da autorização dum negativo por meses. Em todo o caso, a afirmação do acórdão citado rebate a tese ali discutida da legitimidade da confiança na manutenção do descoberto por parte do cliente, e por isso a primeira frase não se lê sem a segunda.

Para se responder à questão da pontualidade caracterizadora da figura conceptual do descoberto bancário, tem relevância parte do que se escreveu nesse mesmo acórdão desta Relação de 3.11.2005, e citamos:
“Como refere Menezes Cordeiro (Manual de Dir. Bancário, 2ª edc. Pag.489, «a abertura de conta é um contrato celerado entre o banqueiro e o seu cliente, pelo qual, ambos assumem deveres recíprocos relativos a diversas práticas bancárias. Trata-se do contrato que marca o início de uma relação bancária complexa e duradoura, fixando as margens fundamentais em que ele se irá desenrolar».

A abertura de conta tem associado o «depósito bancário». «O depósito bancário em sentido próprio é um depósito em dinheiro, constituído junto de um banqueiro. Trata-se duma operação que surge sempre associada a uma abertura de conta, de tal modo que, em regra, o banqueiro já deu o seu assentimento genérico» (autor e obra citada, pag. 524). «Quando é efectuado um depósito bancário, este dá origem à abertura de uma conta, constituindo esta a expressão contabilística do depósito efectuado. Assim, é na conta que se vão registar todas as entregas feitas pelo cliente ao abrigo do contrato de depósito celebrado, bem como todos os levantamentos das quantias nela depositadas» (Paula Ponces Camanho – Do Contrato de Depósito Bancário, pag. 93 a 98).

O depósito bancário de dinheiro, traduz-se no «contrato pelo qual uma pessoa, entrega uma quantia pecuniária a um banco, o qual dela poderá livremente dispor, obrigando-se a restituí-la, mediante solicitação, e de acordo com as condições estabelecidas» (Do Contrato de Depósito Bancário – Paula Ponces Camanho – pag. 93).

O contrato de «depósito bancário» não se encontra expressamente previsto na lei. Daí que a natureza jurídica do «depósito bancário à ordem», continue a ser discutida, sendo que os dois entendimentos dominantes, o qualificam, ora como «depósito irregular», ora como «contrato de mútuo». Ambas as teses, apresentam argumentos da peso, mantendo-se apesar disso a divergência. Sem pretender resolver a questão, dir-se-á, que propendemos para a primeira tese (depósito irregular), sendo certo que como refere Menezes Cordeiro «a pedra de toque está na disponibilidade permanente do saldo», não se devendo esquecer que «o depósito bancário é um claro tipo contratual social, perfeitamente determinado por cláusulas contratuais gerais e pelos usos e que não corresponde, precisamente, a nenhuma figura pré-existente» (Obra e autor citados pag. 525).

Fez-se já referência a um princípio importante «os usos», o qual decorre directamente da lei (art. 407 C. Com.).

Do que fica referido resulta que, no seguimento do contrato de depósito bancário, o banqueiro fica no essencial, obrigado a restituir o valor depositado, nas condições acordadas e a cumprir as ordens que o cliente lhe der, desde que a coberto do saldo existente. Não tem pois o banqueiro que satisfazer ordens de saque, para além do saldo.

As relações entre banqueiro e cliente regem-se no essencial, por razões de ordem de confiança. «A abertura de conta tem, pois, o seu fundamento numa aproximação fiduciária das partes, ou, como se diz em linguagem dos juristas, ela é concluída intuitu personae, isto é, tendo em consideração a pessoa do outro contraente. Não apenas a sua identidade e capacidade jurídica, mas também as suas qualidades de honestidade, pontualidade e solvência» (Dir.
Bancário Alberto Luís. – pag. 65).

É neste contexto, que aparece a figura que na prática do comércio bancário, se designa de «descoberto em conta». Esta consiste no essencial, na operação pela qual, o banco consente que o seu cliente saque para além do saldo existente na conta de que é titular, até um certo limite e por determinado prazo.


O «descoberto em conta», pode ter origem em negócio previamente celebrado com o banqueiro, constituindo nesse caso uma forma de concessão de crédito por este, que se regerá pelas cláusulas acordadas.

Como refere Menezes Cordeiro, (o. c. Pag. 590) «na sua forma mais típica, o descoberto em conta é tolerado pelo banqueiro, por curto período, como modo de facilitar, momentaneamente a tesouraria de certos clientes», não resultando pois de qualquer acordo prévio. Há quem, negue a qualificação de «descoberto em conta» quando não precedido de acordo prévio (Ac STJ de 09.02.95, relator Costa Soares, proc. nº 085502, consultável na internet – onde se refere: «O saldo negativo da conta de depósitos tem carácter acidental e chama-se de crédito de tesouraria ou facilidade de caixa ou overdraft e não descoberto em conta que tem natureza contratual»).

Na forma mais comum, supra referida (inexistência de acordo prévio) o «descoberto em conta» tem carácter acidental e momentâneo. Ocorre «quando acidentalmente, se verificam dificuldades de tesouraria para cuja solução o banco consente, através de acto espontâneo, ou pelo menos sem haver necessariamente prévio contrato com o cliente, que este saque uma quantia que ultrapassa o saldo da conta de que é titular (overdraft facility). Também se diz crédito ou facilidade de caixa, em hipóteses como a de o banqueiro pagar os cheques não provisionados emitidos pelo cliente» (Dir. De Crédito – José Simões Patrício- pag. 30).

Será que nesses casos (inexistência de acordo), o banqueiro, para ver restabelecido o saldo, (em que antes o cliente tinha a posição de credor e agora tem a de devedor), carece, de notificar o cliente, para no prazo de trinta dias proceder ao depósito do valor necessário?
(…)
Aqui, o banqueiro age, atenta a confiança que o seu cliente lhe merece, pontual e acidentalmente, na defesa de interesses do cliente, que momentaneamente apresenta dificuldades (que emitiu cheques ou outras ordens de pagamento, sem ter saldo suficiente), esperando que este de imediato, efectue depósitos, por forma a que o saldo fique (a favor de cliente) credor.
Esta prática bancária, ainda que traduzida em actos esporádicos, pode prolongar-se no tempo. (…)”. (fim de citação).
Ora, se o banqueiro age, atenta a confiança que o cliente lhe merece, por sua conta, isto é, ponderando e decidindo, em cada caso, da vantagem de autorizar o descoberto, se estamos no âmbito da gestão comercial, porque em última análise do que se trata é de manter um cliente interessante ou com potencial, qual é o prazo pelo qual se pode prolongar o saldo negativo autorizado (esta não é a questão deste recurso e por isso não vamos responder) e qual é o prazo durante o qual o banqueiro pode continuar a achar que o cliente lhe merece confiança e lhe interessa, e continuar a autorizar débitos que agravam o saldo negativo?
Tudo depende do concreto e duma casuística que no caso dos autos não é muito abundante.

Voltemos aos exemplos:
O cliente perdeu o emprego mas tem um enorme potencial próprio de arranjar outro, o cliente perdeu o emprego mas tem uma casa de férias que pode vender, o cliente divorciou-se e perdeu a contribuição do ordenado do cônjuge, foi acometido de doença grave que implica tratamentos muitos caros, seja o que for, mas está perto de liquidar uma herança ou simplesmente pondera reconsiderar os seus gastos, ir viver com os pais e vender a sua casa no mercado livre obtendo um preço de mercado, em lugar de a vender numa venda executiva por preço muito abaixo.
O que faz aqui o banqueiro no âmbito duma boa gestão comercial? Muito possivelmente pondera o tempo de recuperação do seu crédito, pondera o tempo que o cliente precisa para se recompor ou para arranjar a melhor solução alternativa, na medida da confiança que tenha na capacidade do cliente arranjar essa solução. Este tempo pode ser quanto? Deve haver um limite e na afirmativa, onde o ir buscar?
Precisamente à citação que fizemos: “As relações entre banqueiro e cliente regem-se no essencial, por razões de ordem de confiança. «A abertura de conta tem, pois, o seu fundamento numa aproximação fiduciária das partes, ou, como se diz em linguagem dos juristas, ela é concluída intuitu personae, isto é, tendo em consideração a pessoa do outro contraente. Não apenas a sua identidade e capacidade jurídica, mas também as suas qualidades de honestidade, pontualidade e solvência» (Dir. Bancário Alberto Luís – pag. 65)”.
Ora, a base da confiança assenta num pilar estrutural do direito privado que é precisamente a boa-fé. Ela apresenta-se como pressuposto da abertura de conta, como pressuposto da relação entre o Banco e o cliente, e ela e a sua exigência permanecem em vigor durante toda a relação.
Dessa boa-fé decorre que o Banco fica com a obrigação de se confrontar, e de confrontar o cliente, quando o valor do negativo e persistência temporal dele, o façam começar a duvidar da capacidade de solvabilidade rápida do cliente.
É neste momento em que ocorre a dúvida que podemos traçar o limite, a partir do qual a conduta do Banco que persiste em autorizar e até avolumar o negativo caracteriza inércia negligente sua na activação do contencioso, na declaração de incumprimento definitivo dos contratos de mútuo e na resolução do contrato de depósito, com o necessário ingresso na fase de cobrança eventualmente judicial, caracteriza eventualmente negócio abusivo de “venda de crédito”, e ao mesmo tempo caracteriza a violação do dever de esclarecimento e aconselhamento do cliente sobre a gravidade da sua situação, sobre o avolumar da dívida e a necessidade do cliente rapidamente agir para solver a sua dívida.
Digamos então que podemos “esticar” o tempo durante o qual o negativo pode ser acrescido por novos descobertos, sem descaracterizar a figura do descoberto em conta, pelo tempo necessário a se atingir este limite de dúvida. Até ele, continuamos a encontrar-nos no âmbito da boa, oportuna, eficaz e razoável gestão do negócio bancário.
Vindo ao caso concreto, esse limite que identificámos foi ultrapassado, já não estamos perante um descoberto em conta e portanto a autora tinha que provar o acordo ou o pedido dos réus no crédito concedido?
Revisitando o extracto, temos alguns dados: a conta não revela o pagamento de despesas quotidianas, outra conta haveriam os réus de usar para tanto, e revela um vencimento (cinco mil euros) que não está ao alcance de quem não tem capacidade para, mesmo em caso de infortúnio, retomar emprego ou ocupação compatível. Por outro lado, estávamos em plena crise económica sendo notório que os bancos se viram assoberbados de incumprimentos por parte de muitíssimos devedores com menos potencial. Mas, o extracto revela ainda o seguinte: - o primeiro movimento é o pagamento de vencimento no valor de cinco mil euros e o saldo positivo que fica na conta é de €62,16, o que significa necessariamente que os movimentos anteriores não documentados pelo extracto junto aos autos já apresentavam um saldo negativo de quase cinco mil euros. Ou seja, logo no primeiro movimento do extracto, o banco podia eventualmente concluir por uma solvabilidade “à pele”, muito nos limites quase integrais do vencimento. A partir deste negativo anterior, permitir que, ao longo de oito meses, sem se voltar a verificar nenhum depósito de vencimento (supostamente mensal) se chegue praticamente ao dobro, significa objectivamente que ao longo desse período, e sobretudo por causa do não depósito do vencimento e dos poucos e minguados créditos que foram lançados, existiam razões fundadas para se desacreditar da solvabilidade do cliente/clientes, passando o pagamento, pelo banco, das dívidas do cliente, a ser temerário.
Ou seja, evidencia o extracto que o limite que usamos para expandir conceptualmente o descoberto em conta, para manter a natureza deste, foi ultrapassado, e que por isso não podemos já defender que os movimentos extractados correspondem a “descobertos em conta”.
Donde, quer porque, como referimos, não resulta automaticamente das condições gerais cujo texto aditámos aos factos provados, não resulta automaticamente da autorização de lançamento a débito, que esse lançamento tenha sido acordado pelos clientes mesmo no caso de não terem fundos suficientes na sua conta, e como fenece a base conceptual do descoberto em conta, já não se podendo dizer que estamos perante atribuições pontuais de crédito, desprovidas da necessidade de acordo do cliente, improcede o recurso, devendo confirmar-se a sentença recorrida.

Tendo nele decaído, é a recorrente responsável pelas custas – artigo 527º nº 1 e 2 do CPC.

V.–Decisão
Nos termos supra expostos, acordam negar provimento ao recurso e em consequência confirmam a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.



Lisboa, 04 de Julho de 2019



Eduardo Petersen Silva
Cristina Neves
(X) vencida, conforme declaração anexa
Manuel Rodrigues



(X) «DECLARAÇÃO DE VOTO»

Discordo dos fundamentos e da decisão, pelo que daria provimento, ainda que parcial à apelação, pelas razões que se passam a expor:
Conforme se refere no Acórdão acima prolatado, “as transferências bancárias constantes do extracto reflectem não uma actuação voluntária do Banco, de sua iniciativa, mas o cumprimento de uma ordem do depositante. E é verdade que tendo sido acordadas ou aceites as condições gerais acima aditadas, o Banco estava autorizado a ter a iniciativa de lançar os débitos na conta.”, o que aliás resulta das condições gerais dos contratos de mútuo com hipoteca e fiança (MLS …, MLS … e MLS …), nomeadamente da sua clausula 6ª, do contrato de crédito pessoal “multifinalidades” (ILS …), na sua clausula 7ª e das próprias condições gerais da conta de depósito à ordem, associada aos referidos créditos.
Acresce que, conforme resulta do extracto de conta, para além destes débitos decorrentes de contratos de mútuo e crédito pessoal, efectivamente utilizado pelo titular, outros houve que decorreram de pagamentos e transferências para terceiros, ordenados pelo(s) titulare(s), ou pelo menos pelo titular R. uma vez que pela R. foi alegado o divórcio ocorrido em 2008 e o desconhecimento dos aludidos pagamentos e transferências.
Assim, contratualmente estipulado a autorização para débito nest conta decorrente dos supra mencionados contratos, assim como a faculdade de o banco autorizar o débito mesmo que a conta não tivesse provisão e a consequente obrigação de o devedor provisionar esta conta, o que o(s) R.(s) não fez(izeram), a acção procede, pois que, efectivamente se tem de considerar, pelo menos por reporte a parte desta quantias que o(s) R(s) beneficiaram destas disponibilidades monetárias, consistente quer nos pagamentos e transferências que constam destes extractos, quer na disponibilização e utilização dos saldos de cartões de crédito, a elas associados.
Por último sempre se dirá que a questão ora equacionada pelo tribunal como não integradora da figura do descoberto em conta, não foi sequer colocada pelo(s) R(s), os débitos em causa não resultam sequer impugnados, o acordo do cliente resulta prestado, não existindo igualmente impugnação neste circunspecto, e que, ao contrário do referido neste Acórdão, não defendemos que “o Banco fica com a obrigação de se confrontar, e de confrontar o cliente, quando o valor do negativo e persistência temporal dele, o façam começar a duvidar da capacidade de solvabilidade rápida do cliente.(…) a conduta do Banco que persiste em autorizar e até avolumar o negativo caracteriza inércia negligente sua na activação do contencioso, na declaração de incumprimento definitivo dos contratos de mútuo e na resolução do contrato de depósito, com o necessário ingresso na fase de cobrança eventualmente judicial, caracteriza eventualmente negócio abusivo de “venda de crédito”, e ao mesmo tempo caracteriza a violação do dever de esclarecimento e aconselhamento do cliente sobre a gravidade da sua situação, sobre o avolumar da dívida e a necessidade do cliente rapidamente agir para solver a sua dívida.”
Existindo extractos de conta que, na normalidade das situações, são remetidos mensalmente ao cliente e nada sendo dito sobre o facto de o banco ter ou não interpelado o cliente para regularizar a conta, mas não sendo credível que este desconhecesse a existência deste descoberto, não se pode considerar a actuação do Banco “abusiva” ou integrando uma violação de um dever legal de aconselhamento e esclarecimento do cliente, sem considerar igualmente “abusiva” a conduta do cliente que não aprovisiona esta conta bancária. Assim sendo, o descoberto em conta, cfr. Ac. do STJ de 07/10/10 (Serra Baptista, proc. nº 283/05.0TBCHV.S1) “em si mesmo, tem relevância jurídica conferindo ao banco o direito à restituição da quantia adiantada ao cliente e a este a obrigação de a restituir.”    
Lisboa, 04 de Julho de 2018
       (Cristina Neves)



[1]Com aproveitamento do relatório da decisão recorrida.
[2]Alineação nossa.
[3]Caso em que se haveria de ponderar a parte essencial da defesa da Ré e eventualmente concluir pela sua absolvição, aplicando, até por maioria de razão para o descoberto não negociado, a tese do Ac. desta Relação de 22.1.2015, em cujo sumário se lê, além do mais: “Recai sobre o banco depositário que pretenda prevalecer-se de uma cláusula contratual que, no momento da abertura de conta, estabeleça a possibilidade de “sacar a descoberto”, o ónus da prova de que a mesma resultou de negociação entre as partes e que foi adequada e efectivamente comunicada aos titulares da conta, e só neste caso se poderá inferir uma vontade de cada um dos co-titulares se obrigar por saldos negativos da conta, ainda que o descoberto haja sido criado
por outro dos co-titulares”.