PERÍCIA PSIQUIÁTRICA
Sumário


I - Para a declaração de inimputabilidade (e a dúvida sobre a imputabilidade, que a precede) não basta a existência de doença do foro psíquico. Exige-se que da anomalia psíquica resulte uma incapacidade para avaliar a ilicitude do facto ou se determinar de harmonia com essa avaliação.

II – Para efeitos de deferimento de perícia psiquiátrica requerida pelo arguido, além da comprovação da doença bipolar, impunha-se ainda a alegação e demonstração duma afectação em concreto, decorrente dessa doença: afectação da capacidade de discernimento e de avaliação pelo arguido da ilicitude dos concretos factos delituosos em apreciação no julgamento.

Texto Integral


Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No proc. n.º 248/12.5TAELV, do Tribunal de Comarca de Portalegre, o arguido MC interpõe recurso da decisão proferida em julgamento, na sessão de 21-01-2019, que lhe indeferiu um requerimento para realização de perícia psiquiátrica à sua pessoa.

Concluiu da forma seguinte:
“1. O presente recurso vem interposto do despacho proferido pelo Tribunal a quo, datado de 21.01.2019, com a referência 29186551, notificado ao Recorrente na mesma data e que indeferiu o requerimento de realização de perícia sobre o estado psíquico do Arguido, ora Recorrente.

2. Com efeito, na sessão de julgamento que teve lugar no dia 07.01.2019 foi ouvida a Testemunha SC, mulher do Recorrente, e cujo depoimento versou, nomeadamente, sobre (i) a doença bipolar da qual o Recorrente padece, (ii) o impacto da mesma na sua vida pessoal, (iii) profissional, (iv) familiar e (v) social.

3. À semelhança do que já tinha ocorrido aquando da inquirição da Testemunha AA (médico psiquiatra do Recorrente), também a Testemunha SC relatou factos concretos e por referência ao período compreendido entre 2005 e 2009 e dos quais foi suscitada dúvida fundada sobre a eventual inimputabilidade – ou imputabilidade diminuída – do Recorrente.

4. O Recorrente não se pode conformar com a decisão proferida pelo Tribunal a quo, por entender que a mesma carece de fundamento legal e cuja fundamentação é manifestamente deficiente e, até, incongruente – à semelhança da decisão anterior e que foi igualmente objecto de recurso – sendo lesiva, de forma absolutamente gravosa e irreparável, dos direitos de defesa constitucionalmente consagrados do Arguido, ora Recorrente.

5. Conforme já decorria dos autos, o Recorrente é doente bipolar (relatório médico e documentos comprovativos da existência de consultas e internamentos juntos à Contestação e Relatório Social elaborado em 24.08.2018).

6. Por considerar essencial apurar até que ponto tal doença psiquiátrica grave poderá ter (e ter tido) impacto no discernimento do Arguido relativamente aos factos que se julgam no presente processo e precisamente por se tratar de uma patologia cujo alcance e compreensão exige, evidentemente, uma abordagem técnico-científica especial, o Recorrente, arrolou como testemunha o seu psiquiatra, AA.

7. A Testemunha AA relatou factos e esclareceu questões concretas relacionadas com a doença de que o Recorrente padece e que suscitaram, de forma fundada, a questão da sua eventual inimputabilidade ou imputabilidade diminuída do Recorrente.

8. Posteriormente, foi inquirida a Testemunha SC, mulher do Recorrente, que relatou diversos factos – inclusivamente por referência ao período relevante para os presentes autos, ou seja, entre 2005 e 2009 – que suscitaram uma vez mais a questão da eventual inimputabilidade ou imputabilidade diminuída do Recorrente.

9. Da conjugação do depoimento das Testemunhas AA e SC bem como da restante prova produzida, resulta uma forte probabilidade de que, aquando da alegada prática dos factos de que vem acusado, a doença bipolar da qual o Recorrente sofre tenha tido reflexos na sua capacidade de avaliar ilicitude dos factos ou de se determinar de acordo com a mesma.

10. Apesar da questão da inimputabilidade (absoluta ou diminuída) do Recorrente ser absolutamente evidente em face dos elementos clínicos trazidos aos autos e dos factos relatados pela Testemunha SC, o Tribunal a quo entendeu “inexistir, pois, qualquer razão, e no âmbito do quadro factual e jurídico delineados, para avaliar o arguido do ponto de vista psíquico”, proferindo o despacho de indeferimento e do qual ora se recorre.

11. A Tribunal a quo não só esteve mal em decidir como decidiu, como parece querer olvidar-se dos princípios gerais subjacentes ao direito processual penal, designadamente – e no que ao caso sub judice diz respeito – o da investigação, oficiosidade e da busca da verdade material, previstos inclusivamente no artigo 340.º do CPP.

12. A questão da inimputabilidade (ou imputabilidade diminuída) constitui uma circunstância absolutamente decisiva para a prolação de um juízo de culpa essencial à punição criminal ou do respectivo grau, pelo que, o indeferimento da realização perícia é grave e lesiva dos direitos de defesa do Recorrente, pelo simples facto de o Tribunal não poder ignorar sem mais se a livre vontade humana do Recorrente em que a assenta a responsabilidade penal se encontra(va) comprometida, hoje e à data dos factos.

13. Em primeiro lugar, e numa óptica de enquadramento da fundamentação do despacho, o Tribunal a quo afirma que: “a invocada doença psiquiátrica do arguido, ainda que já verificada à datas dos acontecimentos que constituem objecto deste processo, não significa, automaticamente, que a mesma lhe tenha afectado a capacidade de avaliação dos factos que lhe estão imputados e a capacidade de se determinar com tal avaliação

14. O Recorrente está em sintonia com o Tribunal a quo no que à referida consideração diz respeito uma vez que é evidente que o facto do Recorrente ser doente bipolar há mais de 20 anos não significa “automaticamente” que a sua capacidade de avaliação se encontrava diminuída no período temporal em questão.

15. Contudo, tal automatismo não foi em momento algum invocado pelo Recorrente para sustentar a perícia ao estado ao estado psíquico do Recorrente.

16. Tanto que é precisamente por não ser automática que se requer, na sequência dos factos relatados pela Testemunha SC e AA, o Tribunal ordene a comparência de um perito para se pronunciar sobre o estado psíquico do Recorrente nos termos do artigo 351.º do CPP.

17. Se a questão foi considerada como tendo sido “suscitada” no decurso da audiência e discussão de julgamento, não pode em momento algum ser afirmado – ou insinuado como parece estar subjacente à citada afirmação do Tribunal a quo – que a mesma seria automática.

18. Pelo que a referida afirmação deverá ser desconsiderada por a mesma não reflectir o espírito e a letra dos do(s) requerimento(s) para realização de perícia psiquiátrica sobre o estado do Recorrente apresentado.

19. Em segundo lugar, o Tribunal a quo fundamenta a sua decisão alegando que a Testemunha SC não narrou factos concretos ocorridos no período temporal referenciado na acusação que permita indiciar, sequer, a questão da inimputabilidade do Recorrente.

20. Ora, concordando ou não com tal posição, é certo que é aceitável que - em termos meramente subjectivos - o Tribunal a quo considere como não suscitada a questão da inimputabilidade na sequência do depoimento da Testemunha.

21. Questão diferente é a afirmação feita pelo Tribunal a quo, de forma absolutamente peremptória, que a Testemunha SC não narrou quaisquer factos concretos no período em questão (2005-2009) que permitam “indiciar, sequer” a eventual diminuição da capacidade de diminuição da ilicitude do Recorrente e/ou capacidade de se determinar com tal avaliação

22. Da análise da transcrição integral do depoimento da Testemunha SC retira-se, sem qualquer margem para dúvidas, que a mesma (i) balizou o período temporal em questão (ii) explicou, de forma credível, e com conhecimento direito, a evolução e o impacto da doença bipolar no quotidiano do Recorrente, e (iii) relatou episódios ocorridos naquele período temporal absolutamente indiciadores de desregulação da estabilidade mental do Recorrente e que, consequentemente, poderão demonstrar uma possível diminuição da sua capacidade de avaliação da ilicitude dos factos que lhe estão imputados e a capacidade de se terminal com tal avaliação.

23. A título de exemplo, a Testemunha SC relatou que, durante o período em causa, terá identificado no Recorrente excesso de cansaço, descuido na alimentação e ainda falha na toma da medicação prescrita para a doença bipolar.

24. Pelo que andou mal o Tribunal a quo ao afirmar que do depoimento da Testemunha SC não foram narrados quaisquer factos que permitissem “indiciar, sequer” a eventual inimputabilidade do Recorrente ou imputabilidade diminuída.

25. Em terceiro lugar, o Tribunal a quo entende que do depoimento da Testemunha SC não resultam indícios que permitam concluir pela eventual inimputabilidade (ou imputabilidade diminuída) do Recorrente, reforçando tal entendimento com a “conjugação de outros meios de prova já produzidos”

26. Ora, no que a este ponto concreto diz respeito, o despacho que ora se recorre padece de um manifesto erro de raciocínio uma vez que não se vislumbra como e em que medida poderá o Tribunal a quo negar a existência de factos narrados pela Testemunha SC por conjugação com a restante prova produzida (nomeadamente depoimento e declarações de testemunhas e arguido).

27. Ora, no caso concreto existem duas hipóteses possíveis: ou 1) a Testemunha SC narrou factos concretos, ocorridos no período temporal referenciado; ou 2) a Testemunha SC não narrou factos concretos, ocorridos no período temporal referenciado

28. Se, como o Tribunal a quo afirma, a Testemunha SC não narrou, então é absolutamente falacioso dizer-se que, com base nos factos por si narrados – ainda que em conjunto com a restante prova produzida – se retiram evidências da “capacidade de discernimento, avaliação e determinação do arguido”

29. Em quarto lugar, o Tribunal a quo afirma – sem indicar a que excertos em concreto se reporta - que o Arguido FG e as Testemunhas JF e ML evidenciaram que o Recorrente teria capacidade de discernimento e determinação no período temporal em causa.

30. Sucede que da análise integral das suas declarações de depoimentos resulta que tal não ocorreu.

31. É que à excepção das Testemunhas AA e SC, mais nenhuma Testemunha ou Arguido prestou declarações sobre tal matéria. Não se vislumbrando por isso como poderá o Tribunal a quo concluir que de tais declarações e depoimentos resulta “evidenciada” a capacidade de discernimento, avaliação e determinação do Recorrente – uma vez que, reitere-se, nenhum se pronunciou sobre essa questão.

32. E se, no caso concreto, não é possível fazer prova de factos negativos, requer-se desde já a audição das declarações do Arguido FG e Testemunhas JF e ML para prova do ora alegado.

33. Pelo que à semelhança dos fundamentos do Tribunal a quo e referidos anteriormente, também este deverá ser desconsiderado precisamente por não resultar demonstrado – nem ser sequer possível – quais os factos concretos narrados pelo Arguido e Testemunhas indicadas pelo Tribunal a quo para suportar as “evidentes” capacidades do Recorrente

34. É ainda curioso constatar que o Tribunal a quo utiliza dois pesos e duas medidas para a fundamentação das suas decisões.

35. Se para ao Recorrente exige que as Testemunhas por si indicadas nos requerimentos de perícia ao estado psíquico tenham narrados factos concretos que “permitam indiciar” uma eventual inimputabilidade, a si mesmo, o Tribunal a quo admite que a mera referência genérica a “depoimentos de Testemunhas e declarações de Arguido” é suficiente para fundamentar as suas decisões e juízos conclusivos de que o Recorrente é – e sempre foi – uma pessoa com uma doença bipolar mas em momento algum tal doença lhe tenha afectado a capacidade de avaliação da ilicitude.

Em quinto lugar, conclui inexistir fundamento para equacionar a realização de da perícia ao estado psíquico do Recorrente por referência aos depoimentos do Arguido FG e Testemunhas JF e ML, e que terão, alegadamente sinalizado:

a. o sucesso profissional do arguido;
b. a sua capacidade de avaliação e negociação de contratos de avultados valores;
c. de renegociação dos mesmos (cf. contrato de prestação de serviços celebrado entre a FSCD, da qual é administrador, e a MRG);
d. de administração de sociedades;
e. orientação profissional dos trabalhadores das sociedades que administrava;
f. assessoria de projetos de parcerias público privadas, numa fase embrionária deste tipo de contratos; de colaboração com entidades bancárias na divulgação de tais contratos, com vista à sua implementação

36. É curioso constatar que o Tribunal a quo considera como incompatível um doente bipolar ser (a) bem sucedido (b) ter capacidade de negociação de contratos de valores avultados (c) administrar sociedades (d) orientar profissionalmente os seus trabalhadores (e) assessorar projectos de PPP e colaborar com entidades bancárias com vista à sua implementação.

37. Ao concluir como conclui, o Tribunal a quo demonstra um absoluto desconhecimento da anomalia psíquica em questão, parecendo querer confundir a doença bipolar (que é uma psicose endógena) com, por exemplo uma oligofrenia.
38. No cerne do presente recurso encontra-se, a questão da inimputabilidade ou imputabilidade diminuída do Recorrente suscitada na sequência do depoimento da Testemunha SC.

39. Numa perspectiva médico-legal, a inimputabilidade em razão de anomalia psíquica, consiste na destruição, por essa anomalia, das conexões reais e objetivas entre o agente e o facto, de tal modo e em grau, que torne impossível a compreensão do facto (ilícito) como facto do agente. Desta forma o agente torna-se como um objeto passivo de processos funcionais

40. Do ponto de vista da teoria geral do crime, a inimputabilidade em razão da anomalia psíquica obsta à condenação do agente respectivo com base na culpa, apenas podendo ser-lhe aplicada medida de segurança como reacção à perigosidade já verificada no facto típico e ilícito

41. O artigo 20.º do CP determina, no seu número 1, a inimputabilidade em razão da anomalia psíquica e, no seu número 2, a imputabilidade diminuída em razão da anomalia psíquica.

42. Tanto num caso (inimputabilidade previsto no n.º 1) ou no outro (imputabilidade diminuída previsto no n.º 2), a lei exige uma relação directa entre a (i) anomalia psíquica no momento da prática do facto (elemento biopsicológico) e (ii) incapacidade (ou capacidade sensivelmente diminuída) de avaliar a ilicitude ou de se determinar de acordo com essa avaliação.

43. Como se referiu, encontra-se provado que o Recorrente é portador de uma anomalia psíquica grave (doença bipolar).

44. Portanto, a circunstância essencial para decidir sobre a inimputabilidade (ou imputabilidade diminuída) é, apenas e só, se, no momento da prática dos factos, o Recorrente este se encontrava ou não incapaz de avaliar a ilicitude dos factos ou, como se disse, de se determinar de acordo com essa avaliação.

45. Sendo certo que tal questão foi suscitada, num primeiro momento, no decurso do depoimento da Testemunha AA e, num segundo, da Testemunha SC – momentos em que a defesa (e, expectavelmente, o Tribunal a quo) compreende os efeitos e o alcance da referida psicose, bem como da elevada probabilidade de, à data dos factos, o Recorrente, em virtude da mesma, não ser capaz de avaliar a ilicitude ou de se determinar de acordo com essa avaliação.

46. A Testemunha AA explicou de forma e esclarecedora o historial clínico do Recorrente, declarando que tinha o diagnóstico de doença bipolar desde os 27 anos de idade (há cerca de 20 anos) e esclareceu ainda de forma exaustiva e pormenorizada em que consiste a doença bipolar, bem como os seus efeitos na vida quotidiana dos doentes e, em concreto, no quotidiano do Recorrente.

47. Ora, de tal depoimento resulta que a psicose do qual o Recorrente padece é uma doença crónica – sendo, por isso, irrelevante para a apreciação de uma eventual dúvida sobre a questão de inimputabilidade o facto de a testemunha AA ter, ou não, acompanhado clinicamente o Recorrente no período em questão.

48. A verdade é que, para a referida testemunha, a análise dos factos e do quadro clínico do Recorrente ao longo da sua vida (inclusivamente em período anterior ao do seu acompanhamento) tem por base, não só a sua avaliação do caso concreto à luz do saber médico e psicológico, mas também a sua experiência profissional em situações análogas enquanto médico psiquiatra especializado na patologia em causa.

49. Sendo desnecessário que a Testemunha tivesse de ter acompanhado clinicamente o Recorrente no período compreendido entre 2005-2009 uma vez que a compreensão sobre o estado clínico de cada paciente num determinado período temporal é passível de análise póstuma.

50. A ser assim, nenhuma perícia nos termos do artigo 351.º do CPP seria passível de demonstrar e comprovar eventual inimputabilidade dos agentes do crime, dado que, à semelhança do que sucede no caso concreto, o perito designado para o efeito não terá qualquer conhecimento sobre os factos concretos em discussão, nem sobre o comportamento dos arguidos durante o período em questão.

51. Aliás, incompreensível seria admitir a realização da perícia sobre o estado psíquico dos Arguidos nos termos do artigo 351.º do CPP apenas e só quando a questão da inimputabilidade (ou imputabilidade diminuída) fosse demonstrada (e não, “suscitada”, como refere a referida disposição legal).

52. Imprescindível é sim que, durante a audiência de julgamento, sejam invocados motivos fundamentadamente capazes de fazer despoletar a dúvida (plausível) sobre uma eventual imputabilidade – o que sucedeu.

53. E sucedeu não só em virtude do depoimento prestado pela Testemunha AA, mas também pelo depoimento da Testemunha SC no qual foram narrados factos concretos e passíveis de, em conjunto com as explicações técnicas da primeira, ser passíveis de suscitar, de forma evidente, uma eventual inimputabilidade ou imputabilidade diminuída do Recorrente à data da prática dos factos.

54. O Tribunal a quo socorre-se da apreciação conjunta de prova para fundamentar o despacho em crise em sentido desfavorável ao Recorrente mas, convenientemente, olvida-se de utilizar a mesma estratégia com os depoimentos das Testemunhas AA e SC.

55. Aparentemente o que é para o Tribunal a quo importante e evidência bastante para aferir sobre a questão da imputabilidade é o facto de, no seu entender, o Arguido FG e as Testemunhas JF e ML terem alegadamente atestado que o Recorrente era uma pessoa inteligente e capaz de gerir negócios.

56. A capacidade intelectual do doente não é directamente afectada pela doença bipolar. O que é afectado é, como se referiu os excertos acima transcritos, o discernimento dos doentes para avaliar o caso concreto durante os estados de euforia ou mania.

57. Nunca foi posta em causa por nenhuma das Testemunhas e Arguido referidos o quociente de inteligência do Recorrente. Não é disso que trata. O doente bipolar pode, dependendo da fase da doença em que se encontra, ter uma vida de sucesso profissional mas ter episódios durante a mesma que lhe toldam o discernimento. E a essa avaliação apenas uma perícia médica pode realizar, e não uma qualquer testemunha.

58. Em suma, do exposto resulta, desde logo que os argumentos invocados pelo Tribunal a quo carecem de qualquer fundamento, devendo, por consequência, o despacho proferido ser revogado e substituído por outro que ordene a realização da perícia sobre o estado psíquico do ora Recorrente nos termos do artigo 351.º do CPP

59. Como se demonstrou, do depoimento da Testemunha SC – amplamente reforçada pelo depoimento técnico da Testemunha AA – constata-se a existência de uma mais do que evidente dúvida plausível quanto à capacidade do Recorrente entender e querer a sua conduta nos estados de euforia, de forma livre e consciente, tal como é exigível no nosso direito penal

60. A apreciação dos efeitos e consequências, no caso concreto, da anomalia psíquica para efeitos de (in)imputabilidade constitui uma questão de cariz técnico/científico e relativamente aos quais o Tribunal a quo não se deveria considerar competente para aferir, per si e sem o contributo de profissionais do foro.

61. Assim, existindo nos autos evidências concretas de que:
(iii) o Recorrente é doente bipolar (doença psiquiatra grave que afecta o discernimento dos doentes e é causa de inimputabilidade penal) diagnosticada pelo menos desde os 27 anos;

(iv) Durante o período em questão (2005-2009) foram relatados episódios passiveis de serem considerados como indícios de desvios à estabilidade psíquica do Recorrente e manifestações de crises de euforia, não tem o Tribunal competência técnica para aferir se o Recorrente tinha ou não a sua imputabilidade afectada à data dos factos.

62. Enferma assim de erro grave a decisão tomada pelo Tribunal a quo ao considerar não existirem dúvidas acerca de imputabilidade do Recorrente à data dos factos (2005-2009) quando todos os elementos no processo apontam em sentido diverso

63. Acresce que, se analisarmos a Jurisprudência produzida sobre esta matéria constatamos que a doença bipolar é uma doença considerada pelos nossos Tribunais como susceptível de gerar uma situação de inimputabilidade certamente em face do compromisso do discernimento que a mesma causa a quem dela sofre – decisões todas elas tomadas com base relatórios periciais recolhidos nos respectivos processos.

64. Noutra óptica, veja-se também que é o próprio legislador a criar mecanismos de protecção específicos para pessoas que padeçam, por exemplo, da doença bipolar (Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto que cria o regime jurídico do maior acompanhado e que eliminou os institutos da interdição e da inabilitação, previstos no Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344 de 25 de Novembro de 1966).

65. Não cabendo sequer ao Tribunal a quo apreciar os fundamentos da invocada inimputabilidade, mas apenas ordenar a realização de perícia psiquiátrica que permita chegar a uma conclusão quanto à mesma, desde que se mostrem fundadas as suspeitas de que o Arguido em questão poderá sofrer de uma doença que diminua de forma considerável a sua consciência da ilicitude e a sua livre vontade de agir.”

O Ministério Público respondeu, concluindo:
“Dos elementos do processo constata-se que a decisão do Tribunal “a quo” foi uma decisão correcta e acertada, respeitando todos os direitos fundamentais do arguido.

O simples depoimento de testemunha não pode fundamentar uma alegada inimputabilidade ou imputabilidade diminuída do arguido, designadamente no período de tempo em que ocorreram os factos de que vem acusado, pelo que não há dúvidas sobre a capacidade de avaliação e autodeterminação do mesmo arguido relativamente à ilicitude dos factos em tal período temporal.

Não se observa a necessidade de realização da perícia sobre o estado psiquiátrico do arguido MC, sendo certo que essa perícia não é obrigatória como também não é necessária para descoberta da verdade e para a boa decisão da causa.

O tipo de doença (bipolar), alegada pelo recorrente, não coloca em causa a sua imputabilidade, tanto mais que, tratando-se de doença crónica, cujo diagnóstico terá sido conhecido há décadas, não tem impedido o arguido de gerir as suas empresas e os seus negócios.

O recorrente, ouvido em audiência de julgamento, na qualidade de arguido, sobre a sua identidade, não suscitou ao tribunal sequer qualquer aparência de inimputabilidade ou de imputabilidade diminuída.

E, como não prestou depoimento sobre os factos que lhe são imputados na acusação, não surgiu ao tribunal qualquer dúvida sobre a imputabilidade do mesmo arguido.

Pois que o tribunal não percepcionou, na imediação com o arguido, qualquer incapacidade de localização espácio-temporal ou qualquer incapacidade de entendimento ou valoração da realidade.

A decisão do Tribunal a quo não violou qualquer norma legal, nomeadamente não violou o estatuído nos artigos 20.º do Código Penal e/ou 340.º e 351.º do Código de Processo Penal.

Decisão que foi correctamente aplicada face aos elementos constantes dos autos.

Revelando cuidadosa fundamentação no que concerne ao indeferimento da pretendida perícia psiquiátrica.

Expressando uma acertada subsunção dos factos à lei.

Louvando-nos, pois, no bem fundado da douta decisão recorrida somos de parecer que o recurso dela interposto não merece provimento.”

Mas já neste Tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto emitiu desenvolvido parecer no sentido da procedência do recurso. E colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. O despacho recorrido tem o seguinte teor:
“O arguido MC veio, novamente, desta feita com base no testemunho de SC, sua mulher, e ao abrigo do disposto no art. 351.º do Código de Processo Penal, requerer a realização de perícia sobre o seu estado psíquico, alegando pra tanto, e apoiado na transcrição de parte do depoimento daquela testemunha (cf. requerimento com registo de entrada 1308964, de 9 de janeiro), que:

- O arguido sofre de uma anomalia psíquica – bipolaridade, como já está demonstrado nos autos;

- Trata-se duma doença muito grave, que lhe foi diagnosticada há pelo menos 20 anos;

- Desde essa altura que o arguido toma medicação de forma regular para controlar a referida patologia;

- À semelhança do que resultou do depoimento da testemunha AA (médico psiquiatra), a testemunha SC esclareceu que a anomalia psíquica de que sofre o arguido é caracterizada por oscilações de humor que alterna entre estados de depressão profunda e de euforia (mania), retirando aos doentes a perceção exata da realidade (principalmente nos períodos de mania);

- Ainda segundo a mesma testemunha, desde o momento em que o casal veio residir para o Continente (2006) que o estado de euforia (mania) do arguido foi crescendo na mesma proporção do êxito profissional, tendo caído depois, em meados de 2011, num estado de depressão profunda, que levou a vários internamentos psiquiátricos.

- Não podem restar dúvidas de que tal estado de euforia diminui de forma grave a perceção da realidade e a noção dos limites, o que se traduz inevitavelmente numa inimputabilidade ou imputabilidade diminuída, nos termos do artigo 20.º do Código Penal, justificando-se, assim em face dos elementos fornecidos pela dita testemunha, a realização da requerida prova pericial, por resultarem do seu depoimento fundadas suspeitas sobre a capacidade de avaliação e autodeterminação do arguido em relação à ilicitude dos factos de que vem acusado.

O Ministério Público pronunciou-se sobre o pedido formulado pelo arguido MC, dizendo, em síntese, que o mesmo revela-se insuficiente e inconsistente, por não se basear em factos concretos atinentes ao comportamento daquele, suscetíveis de colocarem em dúvida a capacidade do mesmo para avaliar a ilicitude dos seus atos ou de se determinar de acordo com essa avaliação.

Cumpre decidir.
Dispõe o art. 351º, do Código de Processo Penal:
“1.Quando na audiência se suscitar fundadamente a questão da inimputabilidade do arguido, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, ordena a comparência de um perito para se pronunciar sobre o estado psíquico daquele.

2. O tribunal pode também ordenar a comparência do perito quando na audiência se suscitar fundadamente a questão da imputabilidade diminuída do arguido.

3. Em casos justificados pode o tribunal requisitar a perícia a estabelecimento especializado”.

De acordo com o disposto no art. 20º, nº 1, do Código Penal, “É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação”, daqui se inferindo que o nosso Código Penal acolheu na determinação da imputabilidade/inimputabilidade do agente, o denominado “método misto”, isto é, um método que combina um elemento biológico - traduzido na necessidade de existência de uma anomalia psíquica, pese embora a mesma, apenas por si, não seja suficiente para produzir os efeitos normativos – com um elemento normativo ou psicológico, de acordo com o qual, é inimputável quem for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação, ou seja, não tiver capacidade de valoração nem a capacidade de se determinar de harmonia com tal valoração.

A testemunha SC, mulher do arguido MC, depôs em audiência, além do mais, sobre a doença de que aquele padece, sobre o impacto da mesma na sua vida pessoal, social, familiar e profissional, nomeadamente desde há pelo menos vinte anos.

Tal como AA, médico psiquiatra, que acompanha aquele arguido desde o ano de 2012 e que também depôs em julgamento na qualidade de testemunha, SC afirmou que o arguido é doente bipolar.

A invocada doença psiquiátrica do arguido, ainda que já verificada à data dos acontecimentos que constituem o objeto deste processo não significa, automaticamente, que a mesma lhe tenha afetado a capacidade de avaliação da ilicitude dos factos que lhe estão imputados e a capacidade de se determinar com tal avaliação, sendo certo que a testemunha não narrou qualquer facto concreto, ocorrido no período temporal referenciado na acusação, que permita indiciar, sequer, e com referência aos factos ali narrados, qualquer uma daquelas situações.

A transcrição parcial do seu depoimento permite-nos concluir nesse sentido. Mas tal conclusão é reforçada pelo teor integral das suas declarações, que se encontram gravadas, nomeadamente, quando conjugadas com outros meios de prova já produzidos (declarações do arguido FG, e testemunhos de JF e ML), e que evidenciam a capacidade de discernimento, avaliação e determinação do arguido, no período temporal em causa, de acordo com os seus conhecimentos e a sua vontade; o sucesso profissional do arguido; a sua capacidade de avaliação e negociação de contratos de avultados valores; de renegociação dos mesmos (cf. contrato de prestação de serviços celebrado entre a FSCD, da qual é administrador, e a MRG); de administração de sociedades (SC não tinha qualquer intervenção em atos de administração e resultou inequivocamente do seu depoimento que a condução da atividade das sociedades estava a cargo do arguido); de orientação profissional dos trabalhadores das sociedades que administrava; de assessoria de projetos de parcerias público privadas, numa fase embrionária deste tipo de contratos; de colaboração com entidades bancárias na divulgação de tais contratos, com vista à sua implementação.

Acresce, e na sequência do que decidimos em despacho anteriormente proferido, relativamente a pedido idêntico, que também o médico psiquiatra, Dr. AA, não fez alusão a qualquer situação fáctica, verificada à data dos factos, que fundadamente permita questionar a inimputabilidade ou imputabilidade diminuída do arguido à data e no momento dos factos que lhe são imputados.

Inexiste, pois, qualquer razão, e no âmbito do quadro factual e jurídico delineados, para avaliar o arguido do ponto de vista psíquico, indeferindo-se em consequência a pretensão daquele.
Notifique.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, a questão a apreciar respeita à sindicância dos fundamentos do indeferimento da perícia psiquiátrica requerida pelo arguido MC, na sequência do depoimento prestado pela sua mulher, em julgamento.

Na delimitação do objecto do recurso há ainda a considerar a pendência de um outro recurso (anterior ao presente) com objecto similar ao presente (mas não totalmente coincidente). A questão ali em apreciação respeita também às repercussões da doença bi-polar do arguido na sua imputabilidade. Mas a vertente em que foi colocada não se encontra em apreciação aqui. O que se consigna.

Na verdade, a decisão recorrida é já o segundo despacho proferido no processo sobre a mesma questão da (in)imputabilidade (questão colocada em momento anterior pelo mesmo arguido, como se disse). Na sequência do primeiro requerimento formulado após prestação do depoimento do seu médico psiquiatra, em julgamento, fora já negada a perícia psiquiátrica (em despacho anterior ao ora recorrido).

Foram assim, por duas vezes, indeferidos ao arguido os (dois) requerimentos que formulou para realização de perícia sobre o estado psíquico, face ao padecimento de doença bi-polar, e cumpre tão só sindicar os fundamentos do actual despacho.

Inexistindo uma identidade total do objecto de apreciação, não sendo exactamente igual a “base factual” que fundamentou o novo requerimento do recorrente (no primeiro caso, o requerimento foi feito na sequência do depoimento prestado pelo seu médico psiquiatra; no presente caso, na sequência de declarações prestadas pela mulher do arguido), considera-se que inexiste um problema de caso julgado formal que obste agora à apreciação. O que também se consigna.

O recurso interposto do despacho anterior ao presente foi decidido por recente acórdão desta Relação (de 11.04.2019). Neste acórdão determinou-se a anulação do primeiro despacho, porque decidido por juiz singular (ilegalidade que não sucede no caso presente), ordenando-se o conhecimento da questão em colectivo (tratando-se de um julgamento por tribunal colectivo, entendeu a Relação que a decisão competiria ao colectivo de juízes). Deverá ser pois proferida ali nova decisão, de acordo com o já determinado no apenso de recurso com a letra B.

Ou seja, neste momento, cumpre apenas determinar se na sequência do depoimento prestado pela mulher do arguido se deveriam ter suscitado dúvidas ao tribunal sobre a imputabilidade do arguido para a prática dos factos pelos quais está a ser julgado, demonstrada que parece estar a doença psíquica de que padece. E não cumpre apreciar se do depoimento do médico psiquiatra deveria ter resultado essa dúvida, como se precisou.

O padecimento de doença bi-polar pelo arguido não se apresenta controvertida em recurso. Recorrente, recorrido e juízes subscritores da decisão judicial convergem no sentido da doença mental de que o arguido sofre há anos.

Procedendo-se então à sindicância do despacho recorrido, constata-se que o tribunal, reconhecendo a existência da doença bi-polar, considerou que esta, só por si, não bastaria para suscitar a dúvida sobre a imputabilidade do arguido. E considerou-o justificadamente.

É isto que se retira do despacho, uma vez que se observou que seria de exigir a narração, pela testemunha, “de qualquer facto concreto, ocorrido no período temporal referenciado na acusação, que permita indiciar, sequer, e com referência aos factos ali narrados, qualquer uma daquelas situações”, uma vez que “a invocada doença psiquiátrica do arguido, ainda que já verificada à data dos acontecimentos que constituem o objeto deste processo não significa, automaticamente, que a mesma lhe tenha afetado a capacidade de avaliação da ilicitude dos factos que lhe estão imputados e a capacidade de se determinar com tal avaliação”.

Mas ciente dessa doença, e da dúvida que a mesma pode, em abstracto, suscitar sobre a questão da imputabilidade, o tribunal acertadamente atentou em todos os elementos que lhe permitissem formular a decisão que proferiu.

Considerou assim que “o sucesso profissional do arguido; a sua capacidade de avaliação e negociação de contratos de avultados valores; de renegociação dos mesmos (cf. contrato de prestação de serviços celebrado entre a FSCD, da qual é administrador, e a MRG); de administração de sociedades” seria incompatível com um “questionamento da inimputabilidade ou imputabilidade diminuída do arguido à data e no momento dos factos que lhe são imputados”.

O recorrente procedeu à transcrição dos excertos do depoimento da mulher do arguido considerados por si mais impressivos no sentido da demonstração do que alegou. Mas desses excertos não resulta que o tribunal tenha incorrido num erro de julgamento, na avaliação que fez, não só da prova em causa (oferecida pela defesa), mas de outros elementos de que, na imediação de que dispõe, se socorreu.

Assim, após identificação correcta da norma jurídica aplicável (“De acordo com o disposto no art. 20º, nº 1, do Código Penal, “É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação”), no despacho considerou-se pertinentemente que “o nosso Código Penal acolheu na determinação da imputabilidade/inimputabilidade do agente, o denominado “método misto”, isto é, um método que combina um elemento biológico - traduzido na necessidade de existência de uma anomalia psíquica, pese embora a mesma, apenas por si, não seja suficiente para produzir os efeitos normativos – com um elemento normativo ou psicológico, de acordo com o qual, é inimputável quem for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação, ou seja, não tiver capacidade de valoração nem a capacidade de se determinar de harmonia com tal valoração”.

Ou seja, para a declaração de inimputabilidade (e a dúvida sobre a imputabilidade, que a precede) não basta a existência de doença do foro psíquico. Exige-se que da anomalia psíquica resulte uma incapacidade para avaliar a ilicitude do facto ou se determinar de harmonia com essa avaliação.

Para além da comprovação da doença bi-polar, impõe-se ainda a alegação e demonstração duma afectação em concreto, decorrente dessa doença: afectação da capacidade de discernimento e de avaliação pelo arguido da ilicitude dos concretos factos delituosos em apreciação no julgamento.

Do depoimento da mulher do arguido retira-se a demonstração do que estaria, aliás, já demonstrado: que o arguido é bi-polar e que já o seria à data dos factos (elemento biológico). Mas desse depoimento não se retira que o tribunal tenha incorrido em erro ao decidir considerar como concretamente não verificado o elemento normativo, que a lei exige também na ponderação sobre a (in)imputabilidade.

Os recursos são sempre e só remédios jurídicos, destinados a reparar erros de decisão. No caso presente, a argumentação desenvolvida pelo recorrente com base no depoimento da sua mulher (e é só da avaliação do problema com base neste fundamento que se trata) não consegue fragilizar a decisão recorrida, a qual se mantém, por isso, como suficientemente fundamentada e justificada.

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCC.

Évora, 04.06.2019

(Ana Maria Barata de Brito)

(António João Latas)