CONSTITUIÇÃO DE SERVIDÃO VOLUNTÁRIA DE ESCOAMENTO
NULIDADE DA SENTENÇA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONTRADITA
Sumário


1 – É admissível a constituição de uma servidão voluntária de escoamento, traduzida na utilização de dois tubos que percorrem o subsolo do logradouro do prédio subserviente, para escoar as águas pluviais provenientes dos telhados dos prédios dominantes, e cujas extremidades emergem à superfície do mesmo num único ponto.

2 – A circunstância de não se ter demonstrado que, ao contrário do alegado, as extremidades dos tubos não desembocam num pretenso rego existente no prédio serviente, mas apenas que desaguam no logradouro deste, não representa uma configuração diferente da servidão, uma vez que esta não abrangia o rego, pelo que a sentença não conheceu de matéria de que não podia tomar conhecimento nem condenou em objeto diverso do pedido.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO

1.1. J. L. e mulher, M. R. intentaram contra A. M. e mulher, A. N., acção declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que os Réus sejam condenados a:

a) Reconhecer que os Autores são donos e legítimos possuidores do logradouro que indicam, com o limite poente delimitado pelas bancas da ramada existente;
b) Repor a situação que existia antes dos actos pelos Réus praticados, nomeadamente colocando as bancas da ramada na sua posição natural, com os arames respectivos colocados nos sítios a eles destinados;
c) Destruir o muro que construíram, por forma a deixarem livre e desimpedido todo o terreno situado para nascente de uma linha imaginária definida pela extrema poente das bancas das ramadas do logradouro dos Autores;
d) Reconhecer que a poente do logradouro (e em frente à entrada do prédio dos Autores) existe uma entrada ou um acesso ao caminho de servidão existente, com cerca de três metros de largura;
e) Reconhecer que o caminho de servidão existente e reconhecido pela sentença proferida no âmbito do processo que correu termos sob o nº 808/12.4TBGMR, do 2.º Juízo Cível do Tribunal de Guimarães, prolonga-se desde o caminho público até à entrada referida na alínea anterior, à qual dá acesso;
f) Reconstruir o murete com cerca de 30 cm de altura, que separava o logradouro dos autores do prédio dos Réus;
g) Reconhecer que os Autores são donos e titulares da servidão de escoamento melhor descrita no anterior art. 36º da p.i.;
h) Repor os tubos para escoamento das águas dos telhados das casas, despejando-as no rego existente no prédio dos Réus;
i) Pagar aos Autores a quantia de € 7.000,00 a título de indemnização pelos prejuízos causados com a redução da área do logradouro em cerca de 70 cm, dobrando as bancas (ferros) da ramada e inutilizando os arames exteriores da mesma; com a inutilização do murete, criando transtornos aos Autores e com a obstrução ao escoamento da água;
j) Absterem-se da prática de quaisquer actos lesivos do direito de propriedade e posse dos Autores designadamente sobre a faixa de terreno, entrada e caminho de servidão em causa; e
k) Cancelarem quaisquer registos efectuados em contrário do peticionado.

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Os Réus, na contestação, invocaram a excepção de caso julgado quanto à servidão de passagem e área de logradouro.
Efectuada uma inspecção judicial, foi proferida decisão a declarar verificada essa excepção, mais tendo considerado prejudicado o pedido reconvencional, tendo os autos prosseguido apenas na parte relativa à servidão de escoamento.

Para este estrito efeito, os Autores alegaram o seguinte quadro factual:

Aquando da realização de obras, os Réus taparam dois tubos que transportam as águas dos telhados dos prédios dos Autores. A água dos telhados dos prédios urbanos descritos nas alíneas a) e b) do art. 1º da p.i., desde há mais de 100 anos tem sido escoada através de dois tubos, os quais, recolhendo cada um deles a água em cada um dos telhados das casas dos Autores, transportam-na até ao solo e, atravessando cada um deles, em parte de forma subterrânea, nomeadamente o logradouro que foi objecto da sentença proferida no processo que correu termos sob o nº 808/12, despejavam-na num rego em terra, aberto à superfície do solo, no prédio dos Réus, situado na extrema poente do logradouro referido, onde os tubos desembocavam.

Esses dois tubos, a partir, respectivamente, das duas casas dos Autores, correm no sentido nascente/poente, até se juntarem numa caixa de vigia, em cimento, existente no logradouro dos Autores, de onde partem (os dois tubos) paralelamente e de forma subterrânea, até despejarem a água no rego citado, existente no prédio dos Réus.
A saída desses dois tubos é visível e aquele escoamento foi sempre efectuado de modo público, pacífico, ininterrupto e de boa-fé, na convicção do exercício de um direito próprio.
Verifica-se assim que existem sinais visíveis e permanentes aí colocados que revelam, quer a existência da servidão de passagem, quer a servidão de escoamento, ambas constituídas por usucapião.
Os Réus, ao impedirem o exercício da servidão de escoamento, estão a ofender os respectivos e legítimos direitos, causando prejuízos aos Autores.
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Na sua contestação, na parte relativa à servidão de escoamento, os Réus impugnaram a sua existência.
Alegaram ainda que já há mais 20 ou 30 anos que inexiste o rego a que se referem os Autores, o qual, de resto, foi soterrado, à vista de toda a gente e sem oposição.
Por outro lado, considerando que a obra de cimentação efectuada pelos Réus apenas recolocou cimento onde ele já existia anteriormente, se houvesse perturbação da servidão de escoamento já a mesma existia antes da intervenção.
Acresce que os tubos que os Autores referem são subterrâneos, nascem e terminam no prédio dos Autores, não sendo do conhecimento dos Réus.
Aliás, no início deste século os Autores colocaram uma caixa de vigia no logradouro e instalaram uns tubos no terreno dos Réus, tendo tal obra merecido a oposição destes, tendo consequentemente sido removidos os tubos.
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1.2. Depois de realizada a audiência prévia e a inspecção judicial ao local, foi proferido despacho-saneador – onde se julgou improcedente a excepção dilatória de caso julgado –, identificou-se o objecto do litígio (restringido ao reconhecimento ou não da servidão de escoamento) e enunciaram-se os seguintes temas da prova:

1) Se a água dos telhados dos prédios urbanos identificados no artigo 1º da p.i. é escoada através de dois tubos, os quais, recolhendo cada um deles a água em cada um dos telhados, transportam-na até ao solo e, atravessando cada um deles, em parte de forma subterrânea, nomeadamente o logradouro, despejam-na num rego em terra, aberto à superfície do solo, no prédio dos réus, situado na extrema poente do logradouro.
2) Se esses dois tubos, a partir, respectivamente, das duas casas dos autores, correm no sentido nascente/poente, até se juntarem numa caixa de vigia, em cimento, existente no logradouro dos autores, de onde partem paralelamente e de forma subterrânea, até despejarem a água no rego existente no prédio dos réus.
3) Se a saída desses dois tubos é visível, quer na caixa de vigia, quer na extrema poente do logradouro dos autores.
4) Se, por si, ante proprietários e ante possuidores, desde há mais de 100 anos que, em proveito dos prédios descritos nas alíneas a) e b) do artigo 1º da p.i., os autores procedem ao escoamento nos termos referidos em 1) a 3), de modo exclusivo, à vista de toda a gente, ininterruptamente, sem oposição de alguém e no pressuposto de se estar a exercer um direito próprio.
5) Se ao cimentarem o logradouro do prédio dos autores, os réus obstruíram os tubos e impediram o escoamento referido em 1) a 4).
6) Se no início deste século os autores colocaram uma caixa de vigia no logradouro e instalaram uns tubos no terreno dos réus, tendo tal obra merecido a oposição destes, tendo, nessa altura, sido removidos os tubos.
7) Se foi posteriormente e de forma não visível que os autores colocaram os tubos subterrâneos, que se encontram totalmente no interior do logradouro dos autores.

Realizou-se a audiência de julgamento e a Mma. Juiz proferiu sentença cujo dispositivo se transcreve:

«Pelo exposto, vai a presente acção julgada procedente, na parte em que prosseguiu para julgamento, com a consequente condenação dos réus A. M. e A. N. a reconhecerem que os prédios referidos em 1), pertencentes aos autores, beneficiam de uma servidão de escoamento sobre o prédio referido em 1), pertencente aos réus, a qual tem a definição constante dos artigos 3º e 4º dos factos provados, condenando-se os réus a repor os tubos de escoamento no estado em que se encontravam antes da construção do muro, abstendo-se de praticar actos que obstem ao dito escoamento».
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1.3. Inconformados, os Réus interpuseram recurso de apelação da sentença, formulando as seguintes conclusões:

«1ª Na petição inicial (artigos 31º a 36º da petição inicial) os Autores descrevem a servidão de escoamento e articularam os factos essenciais e que são os constitutivos da servidão que reclamam e, por conseguinte, a causa de pedir e pedem a condenação dos Réus a reconhecer que são donos e titulares da servidão de escoamento melhor descrita no artigo 36º da petição inicial.
2ª Foi proferida sentença que deu como provada a seguinte matéria de facto:
1 Desde há mais de cerca de 28 anos que a água dos telhados dos prédios urbanos identificados no artigo 1º da petição inicial é escoada através de dois tubos, que a recolhem, passam de forma subterrânea no logradouro daqueles prédios e desaguam no logradouro do prédio urbano contíguo que pertence aos Réus.
2 Antes da colocação dos tubos referidos em 1), esse desaguamento ocorria num rego que corria a céu aberto, junto da ramada que existe no prédio dos autores.
3 Os dois tubos referidos em 1 juntam-se pelo menos, numa caixa de vigia, em cimento, existente no logradouro dos prédios dos Autores referidos em 1 e seguem paralelos e subterrâneos, até despejarem a água no logradouro (terreno) do prédio referido em 1) pertencente aos Autores.
4 A saída desses dois tubos está encoberta por terra, mas é visível a saída de águas, particularmente nas alturas em que os tubos são desentupidos.
5 Por si e ante possuidores, desde há mais de 28 anos que, em proveito dos prédios descritos nas alíneas a) e b) do artigo 1º da petição inicial, os Autores procedem ao escoamento nos termos referidos em 1) a 4).
6 Fazendo-o à vista de todos ininterruptamente e sem oposição de alguém, no pressuposto de estarem a exercer um direito próprio.
7 Ao erguerem um muro e cimentarem o logradouro do prédio dos Autores, na sequência de uma outra sentença, os réus obstruíram os tubos e impediram o escoamento referido em 1 a 4).
3ª O Tribunal configura a servidão em moldes substancialmente diferentes daquela que estava alegada pelos Autores na causa de pedir, e constante dos artigos 31º a 36º da petição inicial;
4ª O Tribunal condena os RR a reconhecer uma servidão que não é aquela que foi reclamada pelos Autores.
5ª O Tribunal modifica a servidão tal qual alegada pelos Autores, sem que tal tivesse por estes sido requerido.
6ª O Tribunal completa a servidão na parte em que a mesma era omissa no seu trilho;
7ª O Tribunal condena os Réus em objeto diverso do pedido.
8ª Sendo fundamento da ação a constituição de uma servidão de escoamento de águas, o reconhecimento da mesma pressupõe a alegação dos factos que são constitutivos do direito a que se arrogam os autores e cuja prova a estes incumbe.
9º Na servidão de escoamento, a forma como a mesma está definida constitui parte integrante, pelo que a mudança do local onde a mesma termina (se num rego junto a uma ramada por baixo do logradouro dos Autores; se diretamente no logradouro dos Réus) implica uma modificação do conteúdo da servidão que só pode ter lugar por iniciativa e a requerimento de quaisquer dos proprietários (1568º do Código Civil), sendo nenhuma das partes dirigiu tal pedido ao tribunal, o que torna ainda mais evidente que a Sentença condena os Réus numa servidão diferente daquela que está no pedido formulado pelos Autores.
10ª Os Autores escrevem no artigo 34º que: “A saída desses dois tubos são visíveis quer na caixa de vigia quer na extrema poente do logradouro dos autores”, o que significa que, mesmo para os autores, é indiscutível que os tubos estão necessariamente situados no seu logradouro e não no dos Réus, na medida em que a sua saída fica na extrema poente do seu logradouro.
11ª A matéria de facto alegada não é suficiente para a caracterização da servidão, porquanto os Autores teriam de descrever o trajeto da servidão entre a saída dos tubos (na extrema poente do seu logradouro) e o terreno dos Réus, e não o fizeram.
12ª Sendo este um facto essencial dos elementos constitutivos da servidão, não poderia o Tribunal substituir-se às partes e colocar cima da mesa novos factos, ou seja, que os tubos “desaguam no logradouro do prédio urbano contíguo”.
13ª O Tribunal recorrido ao alterar a servidão tal qual definida pelos próprios Autores violou o disposto nos artigos 552 n.º 1 d) e 5º n.º 1 e 2 do CPC, produzindo a nulidade da Sentença nos termos do artigo 615º d) e e) do CPC.
14ª Assim sendo, não temos grande dúvida em afirmar que o Tribunal conheceu de matérias de que não podia tomar conhecimento e condenou em objeto diverso do pedido. Sendo a sentença nula nessa parte, nos termos das alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 615º do CPC. Nulidade que expressamente se invoca para todos os devidos e legais efeitos.
15ª Consideram os Réus que ocorreu erro manifesto do Tribunal na apreciação da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, seja da prova testemunhal, seja da prova documental, seja da própria inspeção ao local.
16ª Face à prova documental e testemunhal produzida nos autos, deveriam ser dados como não provados os factos constantes dos números 1, 2, 3, 4 e 5 dos temas da prova definidos em sede de despacho saneador. Para mais quando os mesmos são particularmente fáticos.
17ª Os Réus não concordam, e por isso mesmo deixam impugnada, a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal sob os números 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7 tal qual descritos em sede de Sentença, tendo ocorrido erro de julgamento e impondo-se face à prova produzida decisão diferente.
18ª Na sequência da matéria de facto constante da petição inicial, e que compreendem os factos constitutivos da servidão de escoamento, foi proferido despacho saneador que fixou os temas da prova – fls._ dos autos - que delimitam o objeto do litígio, de acordo com a autorresponsabilidades das partes e a forma como estas configuram a causa de pedir e os pedidos que deduz, sendo que os temas de prova têm um carácter muito factualizado que, diga-se, seguem quase à risca o alegado pelos Autores em sede de petição inicial.
19ª Deveria ter sido dada como não provada a factualidade alegada no Tema de Prova 1, particularmente o segmento que refere “despejam-na num rego em terra, aberto à superfície do solo, no prédio dos Réus, situado na extrema poente do logradouro”.
20ª Conforme todas as testemunhas inquiridas o assumem e as fotos evidenciam, o rego já não existe no local há mais de 30 anos, conforme resulta da conjugação dos depoimentos das testemunhas L. P. e F. L. com as fotos extraídas dos processo crime e do processo cível que correram termos no extinto Tribunal de Guimarães.
21ª Face à prova documental e testemunhal produzida nos autos, deveriam ser dados como não provados os factos constantes no tema de prova 2, tal como resulta de forma clara de todas as testemunhas arroladas e ouvidas pelo Tribunal.
22ª Mas também não se pode dar como provado que esse rego fosse situado no prédio dos Réus conforme se evidencia das fotos e do depoimento da testemunha L. P., sendo que este era um ónus dos Autores.
23ª Dos depoimentos das testemunhas não resulta qualquer prova quanto ao local onde era situado o rego. Nem quanto ao local exato onde esses tubos desaguavam no rego. Por esse motivo deveria o Tribunal dar como não provada a matéria de facto referente a este segmento dos temas de prova definidos em sede de despacho saneador.
24º Face à prova documental e testemunhal produzida nos autos, deveriam ser dados como não provados os factos constantes no tema de prova 3, tal como resulta de forma clara de todas as testemunhas arroladas e ouvidas pelo Tribunal.
25ª Escreve o autor no artigo 34º da petição inicial que “A saída desses dois tubos são visíveis quer na caixa de vigia quer na extrema poente do logradouro dos autores.” (sublinhado e negrito nossos), pelo que são os próprios quem refere que a saída dos tubos é sita na extrema poente do logradouro dos autores.
26ª Das fotos vertidas nos autos não se torna visível qualquer tubo.
27ª Conforme resulta do ponto 22 da matéria de facto dada como provada em sede de sentença (doc. 6 da petição inicial), “no mês de Novembro de 2011, os Réus fizeram penetrar máquinas de terraplanagem no trato de terreno onde se encontra implantado o caminho de 16 a 21 e revolveram o solo, tornando-o intransitável”, sendo que, na sequência dessa intervenção dos Réus, o terreno em causa ficou no estado que se encontra documentado nas fotografias que acompanham o processo 808/12.4TBGMR – fls._ dos autos.
28ª Pode-se verificar que a terra em causa foi particularmente revolvida e, tendo em conta o monte de terra que se vê, foi-o de forma profunda. Vê-se bem das fotografias que, com recurso a máquinas:
a) o cimento colocado pelos autores por baixo da ramada foi partido;
b) a terra por baixo desse cimento foi revolvida e movimentada;
c) os blocos que constituíam o muro que foi demolido pela Autora foram arrastados para o interior do logradouro;
d) a extrema poente do logradouro, e onde alegadamente se situavam os tubos, foi alisada/terraplanada pelas máquinas.
29ª Isto para concluir que se a extremidade dos tubos em causa fosse visível, o escoamento da servidão tinha de ter sido afetado com a intervenção das referidas máquinas e aquando dos factos descritos no artigo 22 da matéria dada como provada na sentença original, mas a Autora avançou com uma providência cautelar e nada disse sobre o assunto. Avançou com uma ação (808/12.4RBGMR) e nada disse.
30ª Já após os Embargos de Obra Nova deduzidos pelos Autores ao muro agora edificado pelos Réus, e na pendência dessa providência, foram abertos rasgos no cimento do logradouro dos Autores para que fosse aferida a localização dos famigerados tubos. Os tubos foram efetivamente detetados, sendo que resulta claro dessas fotos a fls._ que tal como alegado, a extrema dos tubos está sita sob a ramada e no logradouro dos autores; os tubos estão colocados de forma bem profunda, pelo que não poderiam ser visíveis à superfície; que a colocação do muro, não ofendendo a extrema do logradouro dos Autores, não poderia afetar, nem destruir os tubos.
31ª Por tudo isto, conjugada a prova documental (fotos), a inspeção ao local, as regras de experiência comum, deveria o Tribunal responder de forma negativa ao tema de prova em causa.
32ª A prova testemunhal, nomeadamente L. P., D. L. e J. S. corroboram esta posição de que não há tubos visíveis.
33ª Relativamente ao tema de prova 4 e à factualidade subjacente deveria o tribunal dar como não provado, na medida em que os Autores não procedem ao escoamento nos moldes que constavam na causa de pedir e que foram levados a tema de prova.
34ª Desde logo o alegado escoamento não é feito no rego, pois não existe rego a céu aberto. Os tubos não estão colocados no terreno dos Réus, como os autores o assumem no citado artigo 34º da petição inicial. Os Autores não referem como a água é conduzida para o terreno dos réus após o fim dos tubos que ficam no terreno dos Autores.
35ª Em conclusão: a servidão não está suficientemente caracterizada, porquanto os autores não alegam o percurso total da água, tendo em conta a que a extrema dos tubos é situada ainda no próprio terreno dos AA.
36ª Assim sendo, o Tribunal deveria ter dado como não provada esta factualidade, particularmente o segmento que refere “os autores procedem ao escoamento nos termos referidos de 1) a 3)”.
37ª Esta posição resulta da conjugação dos depoimentos das testemunhas de L. P., D. L., F. L. e J. S..
38ª Esses testemunhos deverão ser conjugados com as fotos de fls._ que evidenciam de forma clara: a inexistência de rego a céu aberto; a inexistência de tubos visíveis; que os tubos terminassem no logradouro dos RR.
39ª Relativamente ao tema de prova 5 e à factualidade subjacente deveria o tribunal dar como não provado, na medida em que apenas a testemunha D. L. abordou matéria subjacente a este facto.
40ª As testemunhas dos Autores nada dizem relativamente a essa matéria.
41ª A sentença neste particular ponto da prova em nada esclarece. Não refere qual o meio de prova em que se baseou para dar como provado o tema de prova 7, pois no segmento da “Motivação” a Sentença discorre sobre os factos constitutivos da servidão. Refere que deu como provados tais factos, através da valoração positiva de determinados testemunhos. Mas não refere qualquer meio de prova que tenha utilizado para dar como provado o facto 7.
42ª Relativamente ao cimento resulta claro que o terreno em causa estava originariamente cimentado. Resulta das fotos antigas. Resulta da matéria de facto constante na sentença que constitui o documento 6 da petição inicial, sendo que os Réus voltaram a colocar cimento no mesmo local onde ele já existia. No espaço situado sob a ramada, ou seja, no logradouro dos Autores. Não se consegue vislumbrar como a colocação de cimento sob um espaço que anteriormente já era cimentado possa ser apto a impedir o escoamento, sendo que não consta dos autos qualquer prova de que este ato de cimentar possa ter perturbado o escoamento dos tubos.
43ª Em sede de embargos deduzidos em execução para prestação de facto foi proferida decisão que considerou que os Réus executaram a sentença, ou seja, que “na presente data os embargantes/executados já retiraram do logradouro em apreço, a terra, o entulho e as pedras que lá foram depositadas, bem como já cimentaram o logradouro, nos termos ordenados pelo V.T.R.G.”.
44ª Relativamente à construção do muro, este “não viola os limites do logradouro” pelo que não ofende a propriedade dos autores; e “não assenta no pavimento de cimento do logradouro”, conforme perícia de fls._ dos autos realizada a 6 de Dezembro de 2017.
45ª Os tubos não entram no logradouro dos RR. Ficam-se pelo logradouro dos Autores. O muro construído pelos Réus respeita os limites da propriedade. Naturalmente que não pode obstruir ou impedir o escoamento das águas.
46ª Isso mesmo resulta das fotos retiradas ao local com o cimento partido e que exibem os tubos. Que mostram a profundida a que os mesmos estão. E que mostram ainda a distância a que os mesmo estão da estão do muro edificado, daí que tenha de se dar como não provada factualidade inerente a este tema de prova.
47ª Mas o Tribunal andou mal na matéria que fixou como provada, nos factos 1 a 7.
48ª Tendo em conta o alegado pelos autores no artigo 34º da petição inicial não poderia o Tribunal dar como provado que os tubos desaguam no logradouro do prédio urbano contíguo que pertence aos Réus.
49ª É claro para os próprios autores que os tubos subterrâneos terminam no seu próprio logradouro, mais precisamente na extrema poente, pelo que não se percebe como pode o Tribunal, contrariando (repita-se) os próprios autores, dar como provado que os tubos “desaguam no logradouro do prédio urbano contíguo, composto de rés-do-chão, primeiro andar e logradouro, que pertence aos réus”.
50ª Nenhuma das testemunhas que aborda a questão dos limites do tubo, consegue dizer que os mesmos terminam no logradouro dos Réus.
51ª O Tribunal não poderia dar como provado o ponto 2, dado que a mesma nem sequer estava alegada por esta forma pelos Autores.
52ª É absolutamente contraditório com tudo o mais decidido o ponto 4 da matéria de facto, contradição que expressamente se invoca para todos os devidos e legais efeitos, porquanto refere que, afinal a água é despejada no logradouro (terreno) do prédio referido em 1 pertencente aos autores.
53ª Isto quando no artigo 1º da matéria dada como provada que desaguam no logradouro do prédio urbano contíguo que pertence aos Réus.
54ª Impugna-se a matéria de facto dada como provada no ponto 4 aqui se reproduzindo toda a prova ali descrita, seja testemunhal, seja documental.
55ª O Tribunal esquece de mencionar que, na alegação dos próprios autores, os tubos estão situados na extrema poente do seu logradouro. Ora, se é na extrema poente é sinal que é ainda no seu logradouro.
56ª Verifica-se isto mesmo pelas fotos. Seja pelas fotos retiradas do logradouro dos autores com os tubos. Seja pelas fotos retiradas do terreno do Réus, em que não se vislumbra qualquer tubo visível.
57ª Impugna-se a matéria de facto vertida no artigo 6º, sendo que os autores não constituíram a servidão como o Tribunal acabou por decidir que a mesma se desenvolvera, sendo que, particularmente, não conseguem os Réus perceber como pode o Tribunal dar como provado que os tubos desaguam no logradouro dos Réus, quando os mesmos terminam no logradouro dos autores (artigo 34º da petição inicial).
58ª Por tudo isto não pode ser dado como provado que os tubos desaguam no logradouro dos RR.
59ª Face a tudo o alegado o facto 6 tem de naufragar, na justa medida em que não fica provado que os autores exercessem a servidão como dizem que exercem.
60ª De todo o modo, e para além disso, não tem correspondência na factualidade apurado que os Autores exerciam a servidão “á vista de todos”, porquanto não existem sinais visíveis da colocação dos tubos, tudo conforme resulta das testemunhas L. P., F. L., D. L. e J. S. cuja audição se convoca que estiveram no local em diferentes alturas e que referem não ter visto qualquer sinal de tubos que estivessem visíveis.
61ª Posição que é reforçada pelas fotografias existentes nos autos e constantes de fls._.
62ª Tendo em conta os meios de prova então reproduzidos, seja testemunhal, seja documental, seja a alegação dos Réus, facilmente se evidencia que o Tribunal errou ao considerar este facto como provado.
63ª Baseia o Tribunal a sua sentença no depoimento da testemunha R. B. que refere ser “caseira” dos Autores há 28 anos e de forma ininterrupta.
64ª De todo modo muito se estranha tal circunstância, na medida em que em sede de ação principal foi junto pelos Réus um contrato de arrendamento referente a essa mesma testemunha com data de Dezembro de 2001, conforme tudo melhor se alcança de documento que se protesta juntar para todos os devidos e legais efeitos
65ª Sem esquecer que a inscrição da referida testemunha, para fins de obtenção do cartão de eleitor na freguesia de ..., ocorreu em 19.12.2005, conforme documento que se junta para todos os devidos e legais efeitos – doc.1
66ª Face ao exposto a credibilidade da testemunha fica, particularmente, abalada havendo dúvidas sérias sobre o sentido do depoimento e sobre a ciência que a mesma alega ter.
67ª Nessa medida, e nos termos do artigo 662º do CPC pode a Relação alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto que está baseada naquele depoimento, na medida em que os documentos agora juntos suscitam dúvidas sérias sobre o sentido do depoimento da testemunha em causa ou, em alternativa, ordenar a renovação da produção de prova nos termos da alínea a) do n.º2 do artigo 662 do CPC

G) DA CONTRADIÇÃO

68ª Os factos alegados pelos Autores em sede de petição inicial e constantes entre os artigos 30º a 36º são insuficientes para julgar procedente a presente ação.
69º Na verdade, os Autores ficam a meio do caminho, pois referem no artigo 34º da petição inicial que os tubos são visíveis na extrema poente do logradouro dos Autores e não descrevem como depois a água é conduzida para o terreno dos Réus.
70ª Falta um bocadinho para caracterizar a servidão. Mas o facto é que falta. O facto é que os autores não descrevem a totalidade do percurso até chegar ao terreno dos Réus. Sendo estes factos constitutivos da servidão de escoamento reclamada e que se pretende ver declarada.
71ª Assim, também por esta via a ação está votada ao insucesso, vendo os Réus ser absolvidos da instância.
72ª A Sentença contém fundamentos que estão em oposição entre si e que tornam a decisão ininteligível.
73ª Na matéria de facto dada como provada sobre o ponto 1 referem que os tubos desaguam no terreno dos Réus.
74ª Na matéria de facto dada como provada no ponto 3 diz que os tubos despejam a água no prédio referente dos autores.
75ª Na verdade, a factualidade está contraditória entre si e em oposição à decisão, porquanto sendo o despejo nos prédios dos autores não poderemos estar a falar em servidão da forma como está configurada.
76ª Nessa conformidade, a sentença é nula, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615 do CPC
77ª A lei não prevê, em momento algum, a constituição de servidões voluntárias de escoamento.
78ª Os prédios inferiores estão sujeitos a receber as águas que, naturalmente e sem obra do homem, decorrem dos prédios superiores, não podendo o dono do prédio inferior fazer obras que estorvem o escoamento, nem o dono do prédio superior fazer obras capazes de o agravar, ou seja, o artigo 1351.º exige a ausência de obra de homem para impor ao prédio inferior o ónus de receber as águas escoadas do prédio superior.
79ª Tal como resulta do artigo 1351.º, n.º 2 do Código Civil, a única exceção que a lei prevê quanto à exigência de ausência de obra de homem para impor ao prédio inferior o ónus de receber as águas escoadas do prédio superior, é a de constituição de servidão legal de escoamento.
80ª A servidão legal de escoamento está prevista no artigo 1563.º do Código Civil, referindo o seu n.º 4 que “Só estão sujeitos à servidão de escoamento os prédios que podem ser onerados com a servidão legal de aqueduto.”.
81ª Segundo o artigo 1561.º, relativo à servidão legal de aqueduto, o prédio em causa não está sujeito à servidão legal de escoamento, uma vez que não pode ser onerado com servidão legal de aqueduto.
82ª O tribunal a quo decidiu que no caso sub judice se constituiu uma servidão voluntária de escoamento, nomeadamente por usucapião a lei não prevê a constituição de servidões voluntárias de escoamento, não podendo haver constituição de servidão de escoamento por contrato, testamento, usucapião, destinação de pai de família.
83ª Apenas prevendo a lei a constituição de servidões legais de escoamento, nos casos previstos no artigo 1561.º do Código Civil, não podia o tribunal a quo condenar os Réus a reconhecer a existência de uma servidão voluntária de escoamento sobre o seu prédio, adquirida por usucapião.
Termos em que deverá dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se a douta Sentença recorrida, com as legais consequências».
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Os Autores contra-alegaram, pugnando pela manutenção do decidido.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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1.4. QUESTÕES A DECIDIR

Em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a área de intervenção do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial(1). Tal restrição não opera relativamente às questões de conhecimento oficioso, as quais podem ser decididas com base nos elementos constantes do processo. Em matéria de qualificação jurídica dos factos a Relação não está limitada pela iniciativa das partes – artigo 5º, nº 3, do CPC. Por outro lado, o tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, constituem questões jurídicas a decidir:

i) Nulidade da sentença por contradição entre os pontos de facto nºs 1 e 3;
ii) Nulidade da sentença por conhecer de matérias de que não podia tomar conhecimento;
iii) Nulidade da sentença por condenar em objecto diverso do pedido;
iv) Erro da decisão sobre a matéria de facto;
v) Inadmissibilidade da constituição da servidão;
vi) Insuficiência da matéria de facto para a constituição da servidão.
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II – FUNDAMENTOS

2.1. Fundamentos de facto

A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1) Desde há mais de cerca de 28 anos que a água dos telhados dos prédios urbanos identificados no artigo 1º da p.i. [prédio urbano composto por casa de rés-do-chão, dependências, logradouro e 1º andar destinado a habitação, e prédio urbano composto por casa de rés-do-chão, andar, dependências e logradouro, ambos sitos no Lugar de ..., os quais são confinantes] é escoada através de dois tubos, que a recolhem, passam de forma subterrânea o logradouro daqueles prédios e desaguam no logradouro do prédio urbano contíguo, composto de rés-do-chão, primeiro andar e logradouro, que pertence aos Réus.
2) Antes da colocação dos tubos referidos em 1), esse desaguamento ocorria num rego que corria a céu aberto, junto da ramada que existe no prédio dos Autores.
3) Os dois tubos referidos em 1) juntam-se, pelo menos, numa caixa de vigia, em cimento, existente no logradouro dos prédios dos Autores referidos em 1), e seguem paralelos e subterrâneos, até despejarem a água no logradouro (terreno) do prédio referido em 1) pertencente aos Réus [anteriormente constava “Autores” – rectificação operada no despacho que admitiu o recurso e se pronunciou sobre as nulidades da sentença].
4) A saída desses dois tubos está encoberta por terra mas é visível a saída de águas, particularmente nas alturas em que os tubos são desentupidos.
5) Por si e ante possuidores, desde há mais de 28 anos que, em proveito dos prédios descritos nas alíneas a) e b) do artigo 1º da p.i., os Autores procedem ao escoamento nos termos referidos em 1) a 4).
6) Fazendo-o à vista de todos, ininterruptamente e sem oposição de alguém, no pressuposto de estarem a exercer um direito próprio.
7) Ao erguerem um muro e cimentarem o logradouro do prédio dos Autores, na sequência de uma outra sentença, os Réus obstruíram os tubos e impediram o escoamento referido em 1) a 4).
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Factos não provados:

O Tribunal a quo considerou que «com interesse para o mérito da causa não se provaram os demais factos, designadamente:
a) Que no início deste século os autores tenham colocado uma caixa de vigia no logradouro e instalado uns tubos no terreno dos réus, tendo tal obra merecido a oposição destes, havendo os tubos, nessa altura, sido removidos.
b) Que tenha sido posteriormente, e de forma não visível, que os autores colocaram os tubos subterrâneos, que se encontram totalmente no interior do logradouro dos autores».
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2.2. Do objecto do recurso

2.2.1. Nulidade da sentença por contradição entre os pontos de facto 1 e 3

Segundo os Recorrentes, existe uma contradição na matéria dada como provada, na medida em que no ponto de facto nº 1 se diz que a água desagua no prédio dos Réus, enquanto no ponto de facto nº 3 consta que desagua no prédio dos Autores. Do facto de desaguar no prédio dos Autores também resultaria uma oposição entre os fundamentos e a decisão – artigo 615º, nº 1, al. c), do CPC.

Apreciando:

Se nos ativéssemos apenas ao teor literal da sentença, seria incontestável a contradição entres os pontos de facto nºs 1 e 3, bem como deste último facto com a decisão proferida. Naturalmente que a matéria de facto não podia dizer que os tubos desaguam no logradouro do prédio dos Réus e, mais à frente, em completa contradição, que desaguam no prédio dos Autores. Depois, se os tubos desaguassem no prédio dos Autores, não faria sentido, por ser contraditório com a fundamentação (v. também conclusões 75ª e 76ª das alegações dos Recorrentes), o reconhecimento de uma servidão de escoamento sobre o prédio pertencente aos Réus.

Porém, no momento em que admitiu o recurso e se pronunciou sobre as nulidades apontadas à sentença, a Sra. Juiz proferiu despacho nos seguintes termos:

«Quanto à contradição entre os artigos 1º e 3º dos factos provados, creio ser manifesto o lapso de escrita, bem patenteado ao longo da decisão, da qual resulta que no artigo 3º dos factos provados, no lugar de “autores” pretendia ter-se dito “réus”.
Porque este lapso é evidente e revelado pelo contexto da decisão, determino a rectificação, nos termos do nº 1 do art. 614º do CPC.
D.N., designadamente apondo “réus” no lugar de “autores” no artigo 3º dos factos provados, a fls. 298 verso».
A aludida contradição constitui efectivamente de um mero lapso de escrita, relevado pelo contexto da sentença. Logo na motivação da decisão da matéria de facto se esclarece que a água sai «no término dos tubos, já no prédio contíguo, pertencente aos réus». Na fundamentação de direito alude-se ao facto de os tubos desaguarem no prédio dos Réus, designadamente, afirmando-se expressamente o escoamento das «águas pluviais para o logradouro dos réus» e «mais sendo perceptível, no logradouro do prédio dos réus, a saída das referidas águas pluviais pelas extremidades dos tubos».
Portanto, nenhuma dúvida temos em afirmar, como também o fez o Tribunal recorrido, que se trata de um manifesto e simples lapso de escrita.
Tal erro é rectificável e o Tribunal a quo já procedeu – e bem – à respectiva rectificação no ponto nº 3 da matéria de facto.
Termos em que improcede a arguida nulidade da sentença.
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2.2.2. nulidade da sentença por conhecer de matérias de que não podia tomar conhecimento – 615º/1-d)

Dispõe o artigo 615º, nº 1, alínea d), do CPC, que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Esta nulidade está directamente relacionada com o disposto no artigo 608º, nº 2, do CPC, segundo o qual «o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
Significa isto que o juiz deve conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (2). O não conhecimento de todas as questões, no sentido apontado, cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão, constitui nulidade.
Porém, importa distinguir entre “questões a apreciar” e “razões” ou “argumentos” aduzidos pelas partes. Já Alberto dos Reis dizia (3): «São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão».
A questão a decidir não é a argumentação utilizada pelas partes em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos, mas sim as concretas controvérsias centrais a dirimir e não os factos que para elas concorrem. Por isso, não constitui nulidade da sentença por omissão de pronúncia a circunstância de não se apreciar e fazer referência a cada um dos argumentos de facto e de direito que as partes invocam tendo em vista obter a (im)procedência da acção. Por outro lado, o conhecimento de uma questão pode fazer-se tomando posição directa sobre ela, ou resultar da ponderação ou decisão de outra conexa que a envolve ou a exclui.
No que concerne ao correntemente denominado “excesso de pronúncia”, previsto na segunda parte da alínea d) do artigo 615º do CPC, o mesmo ocorre quando o juiz se ocupa de questões que as partes não tenham suscitado, sendo estas questões os pontos de facto ou de direito relativos à causa de pedir e ao pedido, que centram o objecto do litígio.
No caso vertente, os Recorrentes sustentam que o Tribunal recorrido, na sentença, «configurou a servidão de modo completamente diverso da configuração que dela fizeram os Autores na petição inicial».

Concretizam a aludida afirmação da seguinte forma:

«Em termos práticos, facilmente se constata que o Tribunal alterou a servidão tal qual foi definida pelos autores. Na verdade, os Autores em sede de petição inicial descrevem a servidão: “Desde a construção dessas duas casas e consequentemente desde há mais de 20, 30, 50, 100 e mais anos que os Autores e seus proprietários e ante possuidores têm o direito de escoar as águas dos telhados das casas através dos dois tubos atrás referidos, pelo modo descrito, despejando-as no rego existente no prédio dos RR assim como o direito de passagem referido no anterior 21º” (sublinhado nosso).
O Tribunal, por sua vez, condenou os RR a reconhecer que “a servidão termina com os tubos a despejarem a água no logradouro (terreno) do prédio referido em 1) pertencente aos autores.”».

Apreciada a argumentação dos Recorrentes, verifica-se que o Tribunal a quo em lado algum se pronunciou sobre questões não suscitadas pelas partes.

Em primeiro lugar, os Recorrentes parecem tentar, em parte, socorrer-se do manifesto erro de escrita que constava do ponto de facto nº 3, onde se trocara “Réus” por “Autores”, o qual foi entretanto corrigido pela Sra. Juiz. Daí que não seja lícito afirmar que «a servidão termina com os tubos a despejarem a água no logradouro (terreno) do prédio referido em 1) pertencente aos autores» (negrito da nossa autoria).
Em segundo lugar, é perfeitamente claro para esta Relação que os Autores alegaram, nos artigos 31º, 32º, 33º, 35º e 36º da petição inicial, algo simples e fácil de perceber: que há mais de cinquenta/cem anos que as águas que provinham dos telhados das suas duas casas eram despejadas no “prédio dos Réus”. Portanto, recorrendo a conceitos básicos, tínhamos dois pontos relevantes: as águas partiam dos telhados e chegavam ao prédio dos Réus; o ponto de partida eram os telhados e o de chegada o prédio dos Réus, sendo que isso era o essencial da pretensa servidão de escoamento, pois tudo o mais só interessa à sua caracterização.
Mas os Autores também indicaram o que sucede entre esses dois pontos, pois afirmam na petição inicial que o escoamento é feito através de dois tubos, os quais recolhem a água em cada um dos dois telhados (um tubo recolhe a água de um telhado e o outro tubo recolhe a água do outro telhado) das casas dos Autores (v. art. 32º) e, correndo no sentido nascente-poente, juntam-se numa caixa de vigia, feita em cimento, existente no logradouro dos Autores (v. art. 32º, 1ª parte); dessa caixa de vigia partem dois tubos, paralelamente e de forma subterrânea, que desembocam à superfície do solo do prédio dos Réus (v. art. 32º, 2ª parte, e art. 31º, última parte).
Com o que se acabou de descrever, os Autores descreveram e caracterizaram suficientemente a servidão de escoamento (alegando os demais elementos relevantes para efeitos de aquisição por usucapião nos artigos 36º, 37º e 38º). Na economia do pretendido reconhecimento da servidão era quase irrelevante o alegado facto de existir um rego no sítio onde os tubos chegavam ao prédio dos Réus, sendo que, em todo o caso, os Autores alegaram que o mesmo existiu até à data em que surgiu o conflito descrito na petição inicial. O rego não faz parte da alegada servidão de escoamento, a qual termina onde findam os tubos. Os Autores em lado algum pretenderam estender a servidão ao rego, que é referido apenas como referência ao sítio onde os tubos desaguavam.
Em terceiro lugar, os factos que o Tribunal a quo apreciou e deu como provados encontram-se todos dentro do apontado núcleo factual alegado pelos Autores e, por via disso, no âmbito da questão jurídica suscitada pelos Autores (sendo que os Réus colocaram nos artigos 118º a 127º outra questão factual relacionada com o alegado pelos Autores), como passamos a demonstrar.
Antes de mais, como nota prévia, queremos deixar bem patente que não tem qualquer acolhimento legal a ideia de que o tribunal no julgamento da matéria de facto, ao pronunciar-se sobre os factos alegados pelas partes, não pode dar respostas explicativas, desde que com isso não introduza qualquer facto essencial não alegado ou um facto complementar ou concretizador daquele e, neste último caso, as partes não tenham tido a possibilidade de sobre ele se pronunciar. Isso é hoje perfeitamente pacífico na doutrina ou na jurisprudência, em consonância com a interpretação que é correntemente feita do artigo 5º, nºs 1 e 2, do CPC. A delimitação da matéria de facto deve seguir um critério funcional que atenda às necessidades do concreto litígio, desde que seja respeitada a correspondência com a prova produzida e bem assim os limites materiais da acção e da defesa (4), como foi feito no caso vertente.
O ponto de facto nº 1 limita-se a afirmar a recolha da água pluvial nos telhados das casas dos Autores e o seu escoamento através de dois tubos que, após a recolherem, atravessam o logradouro do prédio dos Autores e desaguam no logradouro dos prédios dos Réus. Em nada exorbita do alegado pelos Autores. Apenas contém uma restrição temporal, que é um menos em relação ao alegado: em vez dos cinquenta ou cem anos (v. art. 32º, na parte que se encontra entre parêntesis) alegados pelos Autores, o Tribunal apenas dá como certo que isso ocorre há mais de 28 anos.
No ponto de facto nº 2 aborda-se a questão do rego alegado pelos Autores, através de uma resposta que é simultaneamente restritiva e explicativa. É restritiva por se dizer que o rego existia antes de terem sido colocados os tubos, pelo que já não existe há mais de 28 anos. É explicativa, uma vez que refere onde o mencionado rego existia e corria, sendo que a concretização de que corria a “céu aberto” é a descrição de uma mera evidência, pois se é um rego corre a céu aberto; se não corre a céu aberto, por natureza já não será um rego. Também daqui não resulta qualquer caracterização diferente da servidão, sendo certo que o facto aí descrito não alicerçou a decisão relativa à servidão, cuja definição baseia-se nos factos nºs 2 e 3, com exclusão da realidade circunstancial referente ao rego, que há mais de 28 anos que deixou de existir.
O ponto de facto nº 3, depois da correcção do erro material de escrita, limita-se a responder afirmativamente à questão factual alegada pelos Autores sobre os dois tubos, provenientes do telhado, se juntarem na caixa de vigia, em cimento, existente no logradouro dos prédios dos Autores e seguirem paralelos e subterrâneos, até despejarem no logradouro do prédios dos Réus. Em nada – rigorosamente nada – o aludido facto exorbita do alegado pelos Autores nos artigos 32º, 1ª e 2ª partes e 31º, última parte, todos da petição inicial.
Finalmente, quanto ao ponto de facto nº 4, o Tribunal a quo, e muito bem, sentiu a necessidade de carrear para os autos dois factos instrumentais, os quais foram discutidos durante a audiência de julgamento (v. os depoimentos das testemunhas R. B. e T. N., bem como as instâncias dos mandatários, que até se encontram transcritos nos autos; além disso foi perguntado a várias testemunhas sobre se vêem ou viram tubos no prédio dos Réus). Isto porque, em contraposição à versão dos Autores a que já aludimos, os Réus alegaram que os tubos não são «do conhecimento dos AA» (art. 121º da contestação), que «no início deste século os AA colocaram uma caixa de vigia no logradouro e instalaram uns tubos no terreno dos RR, tendo tal obra merecido a oposição destes, tendo mesmo sido removidos os tubos» (arts. 122º e 123º da contestação) e que «sem autorização e conhecimentos dos RR, posteriormente e de forma não visível, os AA colocaram uns tubos subterrâneos». Da contraposição destas duas versões, que expressam uma questão jurídica relevante, havia aqui uma concreta controvérsia a dirimir, que era a de saber se a saída dos tubos ainda era visível e em que termos, e o Tribunal, pronunciou-se sobre ela através de dois factos instrumentais que concorrem para a resolução daquela: a) a saída dos tubos está encoberta por terra; b) apesar disso, é visível a saída de águas, particularmente nas alturas em que os tubos são desentupidos.
Esses factos, fixados na sentença, não constituem uma configuração diversa da servidão que foi feita pelos Autores na petição inicial. Tal como resulta do disposto no artigo 5º, nº 2, al. a), do CPC, não só a Sra. Juiz tinha o poder de considerar tais factos, como, atenta aquela concreta controvérsia, sobre ela recaía o dever de os carrear para a sentença. Mais, sem que isso constituísse qualquer violação de disposição legal ou princípio geral, a sua consideração nem sequer constitui qualquer surpresa, atento o que foi discutido na audiência final.
Pelo exposto, desatende-se a arguição da nulidade invocada.
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2.2.3. nulidade da sentença por condenar em objecto diverso do pedido – 615º/1-e)

Nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea e), do CPC, é nula a sentença quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
É uma causa de nulidade directamente relacionada com o disposto no artigo 609º, nº 1, do Código de Processo Civil, segundo o qual a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir.
Esta nulidade emerge, em primeira linha, da violação do princípio dispositivo que atribui às partes a iniciativa e o impulso processual. Encontra ainda fundamento no princípio do contraditório segundo os quais o tribunal não pode resolver o conflito de interesses sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
Pese embora toda a evolução entretanto ocorrida, mantêm-se actuais as palavras de Alberto dos Reis (5): «O juiz não pode conhecer, em regra, senão das questões suscitadas pelas partes; na decisão que proferir sobre essas questões, Não pode ultrapassar, nem em quantidade, nem em qualidade, os limites constantes do pedido formulado pelas partes. (...) Também não pode condenar em objecto diverso do que se pediu, isto é, não pode modificar a qualidade do pedido. Se o autor pediu que o réu fosse condenado a pagar determinada quantia, não pode o juiz condená-lo a entregar coisa certa; se o autor pediu a entrega de coisa certa, não pode a sentença condenar o réu a prestar um facto; se o pedido respeita à entrega de uma casa, não pode o juiz condenar o réu a entregar um prédio rústico, ou a entregar casa diferente daquela que o autor pediu; se o autor pediu a prestação de determinado facto (a construção dum muro, por hipótese), não pode a sentença condenar na prestação doutro facto (na abertura duma mina, por exemplo)».
A regra do nº 1 do artigo 609º do CPC deve ser interpretada em sentido hábil e flexível, de modo a permitir ao tribunal corrigir o pedido, quando este traduza mera qualificação jurídica, sem alteração do teor substantivo, ou quando a causa de pedir, invocada expressamente pelo autor, não exclua uma outra abarcada por aquela (6).
Segundo Manuel Tomé Gomes (7), «Também no que respeita à fixação ou condenação em objecto diferente do pedido se tem suscitado dúvidas sobre o alcance prático deste limite, em particular nos casos em que a solução passa por uma qualificação jurídica diversa da sustentada pelo autor ou reconvinte. É o que acontece quando, por exemplo, o autor pede a resolução de um contrato com fundamento em incumprimento, mas em que se verifica que o contrato em crie é nulo por falta de forma; ou quando, por exemplo, o autor instaura uma acção de impugnação pauliana, concluindo, erradamente, pela invalidade (nulidade ou anulabilidade) do negócio impugnado, sendo que o efeito adequado é o da ineficácia relativa, à luz do disposto no artigo 616º, nºs 1 e 4 do CC. Será que o tribunal poderá, na primeira hipótese, declarar a nulidade do contrato e decretar a respectiva consequência restituitória, ao abrigo do disposto nos artigos 286º e 289º do CC, e, na segunda hipótese, decretar a ineficácia do negócio impugnado, dando ainda provimento à pretensão do autor.
A solução desta questão pressupõe, antes de mais, a interpretação do pedido e o entendimento de que este consiste no efeito prático-jurídico pretendido e não tanto na coloração jurídica que lhe é dada pelo autor. Na verdade, é unânime a doutrina de que o tribunal não está adstrito à qualificação jurídica dada pelas partes, já que, à luz do disposto no artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. Assim sendo, se a situação se reconduzir a um mero erro de qualificação jurídica na formulação do pedido, aferido em função do contexto da pretensão, parece que nada obsta a que o tribunal decrete o efeito prático pretendido, ainda que com fundamento em base jurídica diversa».
Teixeira de Sousa (8) responde a essa questão, dizendo que «Quando o tribunal convola uma qualificação errada (por exemplo, nulidade ou propriedade) numa qualificação correta (por exemplo, anulabilidade ou usufruto), está apenas a usar a sua liberdade de qualificação jurídica. Sendo assim, se o tribunal conhecer do pedido de acordo com a qualificação que considera correta, esse órgão não está a extravasar do âmbito do seu conhecimento.
A circunstância de a nova qualificação corresponder a uma qualificação de que o tribunal não pode conhecer oficiosamente (ou seja, sem ser a pedido da parte) é irrelevante. Na verdade, a parte formulou um pedido, limitando-se o tribunal a conhecer desse pedido segundo a qualificação correta que a parte também deveria ter utilizado. Portanto, o tribunal conhece do pedido da parte, embora segundo a qualificação que a mesma lhe devia ter atribuído».

Feitas estas considerações gerais, vejamos a sua pertinência no caso concreto.
Está em causa uma alegada condenação em objecto diverso do pedido.

No que respeita à servidão de escoamento, na petição inicial os Autores pediram que os Réus fossem condenados a:

«g) Reconhecer que os Autores são donos e titulares da servidão de escoamento melhor descrita no anterior art. 36º da p.i.;
h) Repor os tubos para escoamento das águas dos telhados das casas, despejando-as no rego existente no prédio dos Réus;
(…)
j) Absterem-se da prática de quaisquer actos lesivos do direito de propriedade e posse dos Autores (…)».

Para efeitos do peticionado da alínea g), recorda-se aqui que os Autores alegaram no artigo 36º da p.i. que «De facto, por si, ante proprietários e ante possuidores, estão os AA na posse e sempre utilizaram em proveito dos prédios descritos nas alíneas a) e b) do anterior artigo 1º, há mais de 10, 20, 30, 50, 100 e mais anos a servidão de escoamento atrás referida através dos dois tubos citados (…), procedendo permanentemente à reparação e limpeza dos tubos (…), posse essa que sempre foi exercida publicamente, de forma pacífica, titulada, contínua e de boa-fé, como seus verdadeiros donos e seus possuidores e como exercendo um direito próprio». Nesse artigo, os Autores remetem a configuração e definição da servidão para os artigos anteriores da p.i., aos quais já nos referimos em 2.2.2.
Na primeira instância, os Réus foram condenados «a reconhecerem que os prédios referidos em 1), pertencentes aos autores, beneficiam de uma servidão de escoamento sobre o prédio referido em 1), pertencente aos réus, a qual tem a definição constante dos artigos 3º e 4º dos factos provados, condenando-se os réus a repor os tubos de escoamento no estado em que se encontravam antes da construção do muro, abstendo-se de praticar actos que obstem ao dito escoamento».
Até à parte do dispositivo que alude a «prédio referido em 1)», o Tribunal nada mais faz do que identificar os prédios dominantes e o prédio serviente, em conformidade com o alegado nos autos e a definição de servidão constante do artigo 1543º do Código Civil. Sempre que esteja em causa a constituição ou reconhecimento de uma servidão é necessário que a sentença proceda à identificação do prédio sujeito à servidão e daquele que dela beneficia.
Porém, a sentença tem que abordar o objecto da servidão, ou seja, as utilidades susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante.
Vejamos então se o objecto da servidão é diferente daquele que tinha sido objecto do pedido.
O pedido formulado pelos Autores remetia, nesse aspecto, para os factos constitutivos da causa de pedir alegados na petição inicial. Como já vimos em 2.2.2., os pontos de facto nºs 3 e 4 conformam-se com a causa de pedir invocada na petição inicial, não exorbitando do seu âmbito factual. Sendo assim, a natural conclusão só pode ser que a sentença, ao fixar o objecto da servidão por referência aos factos nºs 3 e 4, não condena em objecto diverso do pedido pelos Autores.
A parte do dispositivo da sentença em que se condenam os Réus a repor os tubos no estado em que se encontravam antes da construção do muro, contém-se na alínea h) do petitório, com a precisão sobre o concreto evento lesivo que obstou ao exercício da servidão de escoamento.
A última parte, relativa à abstenção futura de actos que obstem ao escoamento, integra-se no pedido formulado na alínea j) da petição inicial.
Por conseguinte, e em conclusão, a sentença não condenou em objecto diverso do pedido, não ocorrendo qualquer violação do princípio do dispositivo ou do princípio do contraditório. Nem sequer estamos perante uma situação de convolação jurídica, operada na sentença, quanto ao pedido formulado. O dispositivo da sentença está em conformidade com a pretensão material deduzida pelos Autores, ou seja, o efeito jurídico que visam alcançar, enquanto elemento individualizador da acção. O efeito prático-jurídico por eles pretendido era o reconhecimento de uma servidão de escoamento das águas pluviais dos telhados dos seus prédios, através de dois tubos até à caixa de vigia situada no logradouro dos seus prédios e desta, mediante dois tubos, até ao logradouro do prédio dos Réus, não representando o que consta da sentença julgamento de objecto diverso do peticionado.
Termos em que indefere a apontada arguição de nulidade da sentença.
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2.2.4. Da impugnação da decisão da matéria de facto

2.2.4.1. Em sede de recurso, os Recorrentes impugnam a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1ª instância.
Estão efectivamente atribuídos à Relação poderes de reapreciação da matéria de facto no âmbito de recurso interposto, que a transformam num tribunal de instância que também julga a matéria de facto, garantindo um duplo grau de jurisdição.
Para que a Relação possa conhecer da apelação da decisão de facto é necessário que se verifiquem os requisitos previstos no artigo 640º do CPC, que dispõe assim:

«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do nº 2 do artigo 636º».

No fundo, recai sobre o recorrente o ónus de demonstrar o concreto erro de julgamento ocorrido, apontando claramente os pontos da matéria de facto incorrectamente julgados, especificando os meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida e indicando a decisão que, no seu entender, deverá ser proferida sobre a factualidade impugnada.

Em todo o caso importa enfatizar que não se trata de uma repetição de julgamento, foi afastada a admissibilidade de recursos genéricos sobre a decisão da matéria de facto e o legislador optou «por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente» (9).
Delimitado pela negativa, segundo Abrantes Geraldes (10), o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto será, total ou parcialmente, rejeitado no caso de se verificar «alguma das seguintes situações:

a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4, e 641º, nº 2, al. b);
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a);
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação».
*
Aplicando os aludidos critérios ao caso que agora nos ocupa, verifica-se que os Recorrentes indicam quais os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados, especificam os meios probatórios que imporiam decisão diversa e mencionam a decisão que, no seu entender, deveria ter sido proferida sobre as questões de facto controvertidas. No que se refere à prova gravada em que fazem assentar a sua discordância, procedem à indicação dos elementos que permitem minimamente a sua identificação e localização; apesar de não indicarem os minutos e segundos das passagens dos depoimentos, como os transcrevem na parte relevante, consideramos suprida aquela indicação (sendo certo que consideramos sempre preferível a transcrição por permitir à Relação uma mais fácil apreciação das concretas questões factuais impugnadas).

Por isso, podemos concluir que os Recorrentes cumpriram suficientemente o ónus estabelecido no citado artigo 640º do CPC e, por outro lado, tendo sido gravada a prova produzida na audiência de julgamento e dispondo dos elementos que serviram de base à decisão sobre os factos em causa, esta Relação pode proceder à reapreciação da matéria de facto impugnada.

Quanto ao âmbito da intervenção deste Tribunal, tal matéria encontra-se regulada no artigo 662º do CPC, sob a epígrafe “modificabilidade da decisão de facto”, que preceitua no seu nº 1 que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».

Por isso, passa-se a reapreciar a matéria de facto impugnada.
*

2.2.4.2. Por referência às suas conclusões (v., além do mais, a conclusão 17ª), extrai-se que os Réus/Recorrentes consideram incorrectamente julgados os pontos nºs 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7 da factualidade provada, ou seja, todos os factos provados.

Pretendem que sejam dados como não provados todos os factos que na sentença constam da matéria de facto provada.
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2.2.4.3. O Tribunal a quo exprimiu a motivação da decisão sobre a matéria de facto nos seguintes termos:

«A mais do que foi possível visionar aquando da inspecção judicial - designadamente a caixa existente no logradouro dos prédios dos autores, na altura da inspecção judicial aberta e com dois tubos juntos e bem visíveis, aparentemente com início nessa caixa – atendeu-se ao depoimento conjugado de várias testemunhas, na medida em que se conjugaram com as regras da normalidade e experiência comum.
Neste sentido, assumiu particular relevância o depoimento prestado por R. B., caseira dos autores e residente numa moradia contígua (visível, a título de exemplo, na fotografia de fls. 278), a qual explicou que, pelo menos desde há 28 anos – quando para lá foi – que existe uma caixa no logradouro dos prédios dos autores, através da qual se efectua o escoamento das águas pluviais.
Quando essa caixa entope, a água recua e vai até à casa onde a mesma reside com o irmão, T. N., o qual, nessas alturas, procede ao desentupimento da dita caixa.
Isto mesmo foi confirmado pelo próprio, que esclareceu que para o efeito liga uma mangueira e injecta água nos tubos que partem dessa caixa, saindo a água no término dos tubos, já no prédio contíguo, pertencente aos réus, tubos esses que são visíveis, já que só superficialmente revestidos de terra.
Estes depoentes revelaram razão de ciência assinalável, já que, considerada a casa onde residem, tinham um contacto muito directo com a caixa da qual se efectuava o escoamento.
Além disso, prestaram um depoimento isento, não tendo revelado comprometimento com a posição dos autores, não obstante a relação de maior proximidade que mantêm com estes.
Por tal razão, os seus depoimentos foram positivamente valorados.
Acresce que outros depoimentos vieram corroborá-los: R. M., irmã da autora, referiu que a caixa actualmente existente no logradouro do prédio dos autores está lá colocada, pelo menos, desde os anos 80, tendo sido o seu marido e o seu cunhado quem ali colocou os tubos para o escoamento das águas pluviais.
Antes disso, o que havia era um cano que escoava as águas para um rego.
Ora, este rego foi referido pelas partes (apesar das manifestas dificuldades do autor, quer em ouvir, quer em colaborar, mesmo quando ouvia o que estava a ser-lhe perguntado) e por várias testemunhas (F. F., prima da autora; L. P., que ali viveu até aos 17 anos, e que esclareceu que um dos consortes desse rego era o seu pai; F. L., que vive naquele local há 83 anos). Todos afirmaram que tal rego deixou de existir há mais de 30 anos, antes mesmo das obras de reconstrução da casa da ré A. N..
Não obstante, como referiu F. F., com a eliminação do rego não surgiram quaisquer inundações no prédio dos autores, o que leva a crer que existiria algum tipo de escoamento.
Ora, tudo conjugado, e tendo em conta que a caseira R. B. e o seu irmão T. N. não conheceram o rego (que há 28 anos atrás já não existia), tendo, contudo, desde sempre conhecido a caixa com os tubos de escoamento (que o segundo desentupia quando necessário, nos termos já referidos), o tribunal não teve dúvidas em dar como provada a factualidade acima elencada, muito embora não seja possível afirmar a existência dos tubos e da caixa por um período superior ao que veio a ter-se por provado.
Já quanto aos factos atinentes à conduta imputada aos autores, no sentido de terem sub-repticiamente colocado tubos, já depois de os réus se terem oposto a tal actuação, não foi produzida prova absolutamente nenhuma (a mais de não haver qualquer elemento objectivo que o ateste, nenhuma das testemunhas acima indicadas se pronunciou quanto a tais factos, sendo ainda que as testemunhas J. M. e J. S. nenhum conhecimento da matéria em causa nestes autos possuíam)».
*

2.2.4.4. Com vista a ficarmos habilitados a formar uma convicção autónoma, própria e justificada, procedemos à análise de todos os documentos juntos aos autos e à audição integral da gravação dos depoimentos de parte dos Réus A. M. e A. N. e dos depoimentos das testemunhas R. B. (caseira dos Autores há 28 anos), R. M. (cunhada do Autor e irmã da Autora, que conhece os prédios envolvidos desde criança – nasceu naquele lugar – e presenciou parte substancial das vicissitudes inerentes ao escoamento das águas pluviais), F. F. (prima dos Autores – a sua avó era irmã do pai da Autora – e que demonstrou conhecer os prédios e a sucessão de factos relativos aos mesmos), T. N. (irmão da caseira dos Autores e que reside com a irmã numa moradia daqueles, tendo conhecimento dos factos em virtude de tal circunstância e de já algumas vezes ter desentupido o sistema de escoamento das águas pluviais provindas dos telhados), L. P. (conhece as partes por ter sido criado naquela zona e o seu pai ter sido um dos dois consortes que utilizava o rego referido pelos Autores na petição inicial), D. L. (conhece as partes, trabalha na Câmara Municipal e é o procurador dos Réus, representando-os para efeitos de prática de vários actos quando aqueles estão no estrangeiro; além disso é daquela zona e em 2008 deslocou-se ao prédio dos Réus com vista a desenvolver diligências para implementar um muro), F. L. (é vizinho das partes, morando, segundo declarou, a cerca de 50 metros destes, local onde nasceu e foi criado, nunca tendo saído dali; o seu pai era um dos dois consortes que recorria ao rego referido pelos Autores na petição inicial), J. M. (realizou a construção de um muro para os Réus em 2008 e desconhecia a generalidade dos factos objecto de discussão) e J. S. (elaborou em 2008 um projecto para um muro a pedido dos Réus, tendo-se deslocado então ao local onde se situam os prédios das partes; dos Autores apenas conhece a Autora mulher).
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2.2.4.5. Os Recorrentes impugnam a decisão da matéria de facto na sua globalidade, pois consideram que todos os factos provados devem ser considerados como não provados.

Quando os recorrentes defendem que nada se aproveita da decisão sobre a matéria de facto, regra geral, estamos confrontados com uma de duas situações: a decisão sobre a matéria de facto labora num completo e flagrante erro (só assim se pode qualificar uma sentença que, segundo os recorrentes, errou relativamente a todos os factos provados, que deveriam ser considerados não provados) ou o recurso traduz apenas uma manifestação de inconformismo sobre o decidido.

No caso dos autos, estamos claramente na presença da segunda situação enunciada, na medida em que tudo se põe em causa ao propugnar-se que toda a factualidade fixada deve ser considerada como não provada, mesmo factos que se afiguram incontroversos e que até se mostram invocados e dados por adquiridos em várias passagens das alegações.

Neste enquadramento, revistos todos os meios de prova produzidos, este Tribunal da Relação formula uma convicção idêntica à do Tribunal recorrido, cujo juízo probatório formulado acompanhamos integralmente, havendo até motivos para o reforçarmos.

Entendemos que a prova foi exemplarmente apreciada pelo Tribunal a quo e o processo de formação da convicção e da sua expressão na decisão está devidamente fundamentado, na medida em que permite seguir racionalmente o respectivo raciocínio e a inerente motivação. Todos os factos se encontram devidamente fundamentados e em termos que qualquer pessoa consegue alcançar.
*

2.2.4.6. Em primeiro lugar, face ao invocado nas alegações dos Recorrentes, antes de procedermos à revisão da prova produzida (mas após leitura dos fundamentos jurídico-factuais invocados pelas partes nos articulados, dos temas da prova, da sentença e das posições que as partes assumem sobre a decisão da matéria de facto e respectivos fundamentos), estávamos à espera de encontrar situações de manifesta e frontal discrepância entre meios de prova, sobretudo ao nível testemunhal, com testemunhas a afirmar um facto e outras a afirmar precisamente o contrário.
Revista toda a prova, a realidade é que nem sequer existem discrepâncias directas entre o afirmado pelas diferentes testemunhas e isso não deixa de ser surpreendente, sobretudo se atendermos a que este parece ser o último acto de um intenso e longo conflito entre as partes, iniciado há mais de dez anos, com vários processos judiciais, um deles de natureza criminal, sendo que, por exemplo, consta do registo áudio o Exmo. Advogado dos Recorrentes a afirmar que era para aí a décima vez que estava a inquirir uma certa testemunha (L. P.).
Por outro lado, como aspecto francamente positivo face à existência do apontado conflito, verificamos que as testemunhas procuraram cingir-se aos factos que presenciaram (foram emitidas algumas opiniões ou meras deduções, mas as mesmas conseguem facilmente detectar-se), sem “criarem” realidades artificiais, o que só as dignifica.
*
2.2.4.7. Da recolha da água dos telhados nos prédios dos Autores

Como os Recorrentes consideram que todos os factos provados devem ser considerados como não provados, esta Relação, para demonstrar o acerto da decisão da primeira instância, irá abordar alguns factos nucleares constantes daquela decisão e de seguida fazer a respectiva articulação.
Os Recorrentes não propõem qualquer resposta restritiva, mas um simples “não provado” a cada um dos factos provados e é para nós incontestável que alguns desses factos até resultam dos meios de prova produzidos pelos próprios Réus.
No que respeita ao ponto de facto nº 1, desde logo, é indiscutível, face ao já fixado em processo anterior (nº 808/12.4TBGMR), que os Autores são proprietários dos prédios identificados no artigo 1º da p.i. (apesar disso, os Réus impugnaram tal facto no art. 49º da contestação, assim como a generalidade dos factos alegados na p.i.). Também resulta desse anterior processo que os Réus são proprietários do prédio referido no ponto de facto nº 1 da matéria de facto. Mesmo que isso não estivesse já demonstrado, todas as pessoas ouvidas na audiência final, incluindo os Réus, deram por adquiridos tais factos. Continuando ainda no que para nós continua a ser algo de básico e, salvo o devido respeito por opinião contrária, incontroverso, os prédios dos Autores têm telhados (basta olhar para as múltiplas fotografias juntas aos autos) e, quando chove, as águas pluviais por algum lado hão-de ser escoadas. Até aqui nenhuma dúvida existe.
Todas as testemunhas arroladas pelos Autores indicaram que a água dos telhados das duas casas dos Autores é escoada através de dois tubos. Nem os Réus nos seus depoimentos nem as suas testemunhas contraditaram a realidade de tal facto, sendo que algumas dessas pessoas alegaram desconhecer (mas afirmar desconhecer é diferente de dizer que determinado facto não corresponde à realidade). Tal forma de recolha das águas pluviais já existe há muitos anos, sendo que infra abordaremos esse factor temporal.
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2.2.4.8. Da caixa de visita/vigia

Durante a inquirição das testemunhas tanto o Tribunal como os dois Mandatários se referiram à existência da caixa de visita (ou de inspecção) existente no logradouro dos prédios dos Autores. Em vários segmentos da gravação refere-se que foi vista durante uma inspecção judicial ao local, mas do respectivo auto nada consta a esse respeito. Porém, no auto de inspecção judicial ao local existente nos embargos de obra nova que constituem o apenso A (fls. 159 verso a 162) consta a referência à aludida caixa a qual é acompanhada por uma fotografia da mesma. Sobre essa matéria, consta expressamente da motivação da decisão da matéria de facto que «foi possível visionar aquando da inspecção judicial - designadamente a caixa existente no logradouro dos prédios dos autores, na altura da inspecção judicial aberta e com dois tubos juntos e bem visíveis, aparentemente com início nessa caixa». Estamos portanto a falar de factos que foram directamente observados pelo Tribunal a quo, que exarou isso mesmo na sentença e em lado algum se põe em causa que tal facto foi objecto de visualização directa.
Portanto, tal caixa de visita ou de inspecção existe e isso mesmo foi confirmado por todas as testemunhas arroladas pelos Autores, que descreveram a respectiva função, ou seja, é aí que vai dar toda a água recolhida nos telhados, depois de passar pelos dois tubos, nos exactos termos dados como provados.
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2.2.4.9. Da data em que foi feita a caixa de vigia

Segundo a testemunha R. M., a caixa de visita, e respectivos ramos complementares, foi feita pelo seu marido e pelo seu cunhado – o Autor –, ainda na década de oitenta do século passado. Por sua vez, a testemunha R. B. afirmou que foi viver para a casa que é dos Autores há 28 anos e que nessa altura já existia a caixa de visita. Também a testemunha T. N. confirmou que a caixa de visita já existia quando a sua irmã foi morar, como caseira, na casa pertença dos Autores.
Portanto, de harmonia com estes depoimentos é seguro que a caixa de visita existe há pelo menos 28 anos e, tal como essas testemunhas afirmaram, desde então o sistema de escoamento, a montante e a jusante da caixa de visita, manteve-se inalterado até à data em que surgiu o presente litígio.
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2.2.4.10. Do rego

Observa-se que durante a produção de prova na audiência final as testemunhas (tal como os Réus) foram recorrente e exaustivamente confrontados com o tema do rego, sem dúvida o que ocupou mais tempo aos intervenientes no julgamento.

Apesar disso, era um assunto apenas com relevo “histórico”. Isto porque depois de ouvidas as três primeiras pessoas já se sabia que o referido rego tinha desaparecido há mais ou menos trinta anos, embora sem que se saiba a data exacta em que o mesmo deixou de existir (mas se fosse necessário, facilmente se conseguia saber com exactidão a respectiva data: bastava apurar em que data a estrada foi construída – v. depoimento do Réu marido – e quando os Réus procederam à ampliação da sua casa). A existência do rego foi desde logo confirmada pelos Réus durante os seus depoimentos. Sabe-se, desde logo por ter sido afirmado pela Ré e pela testemunha R. M. (mas também por F. F., L. P. e F. L.), que o rego deixou de existir quando os Réus fizeram obras na sua casa, que foi então ampliada. As testemunhas R. M. e F. F. descreveram como era feito o escoamento da água dos telhados dos Autores na altura em que existia o rego, concretizando onde este passava, tal como se deu como se deu como provado no ponto 2 da matéria de facto. Ainda com relevo, a testemunha F. F. referiu que o escoamento era antigamente feito através de um cano que passava por baixo do portão, atravessava a ramada e, já no terreno dos Réus, despejava no rego que aí passava, «frente à casa da D. A. N.», que foi posteriormente arrasado/soterrado («desapareceu porque a Dona, a outra fez a casa, que puxou a casa cá fora. A Dona A. N.».

Apesar de impugnado pelos Réus na contestação, durante os seus depoimentos de parte referiram que o rego existia e indicaram por onde passava e em que momento deixou de existir (segundo o Réu marido, há cerca de 30 anos). Duas das testemunhas dos Réus confirmaram que tal rego existiu e por onde passava. Foi isso que esclareceram as testemunhas L. P. e F. L., cujos respectivos progenitores eram os dois consortes que recorriam ao rego, o qual iniciava-se num poço que entretanto secou e foi arrasado, e seguia até aos campos, transportando água para ser utilizada na agricultura. Se o espaço onde estava o referido rego foi ocupado durante a ampliação da casa dos Réus, a conclusão legítima é que se situava no terreno destes e não dos Autores. É verdade que várias testemunhas afirmaram que seguia perto da ramada dos Autores, mas, embora isso (a propriedade do terreno por onde passava o rego) não conste directamente da decisão da matéria de facto, nem em rigor seja relevante, esta Relação está convicta que nesse local o percurso do rego era ainda no terreno dos Réus (por exemplo, as testemunhas R. M. e F. F., referiram por onde o rego corria e a descrição que fazem leva à conclusão que era pelo terreno dos Réus; o Tribunal fixou na matéria de facto que corria junto “junto à ramada que existe no prédio dos Autores” e os Réus, nas alegações do seu recurso, interpretam isso como significando que o rego seguia pelo terreno dos Autores, mas é uma interpretação indevida), ao contrário do alegado pelos Recorrentes. Basta atentar que a Ré, quando confrontada com a pergunta sobre se «o rego estava no limite do seu prédio?», respondeu: «Pois, estava no meu terreno» (negrito da nossa autoria – v. fls. 353). Contra factos não há argumentos.

Apesar de interessar à história daquele lugar, a questão do rego não tem relevo directo, uma vez que não integra a alegada servidão de escoamento. Em todo o caso, atenta a controvérsia suscitada pelas partes a respeito do rego, fez bem o Tribunal recorrido em pronunciar-se sobre essa questão nos termos que fez constar do facto nº 2.
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2.2.4.11. Do escoamento de águas a jusante da caixa de visita

Sabendo-se que existe uma caixa de visita e que a água pluvial desemboca na mesma, naturalmente que para algum lado essa água há-de desaguar.

Os Autores alegavam que a água, depois da caixa de vigia, seguia por dois tubos, paralelos e subterrâneos, até despejarem no logradouro do prédio dos Réus.

Como já se referiu, a Mma. Juiz a quo fez constar da motivação da decisão da matéria de facto que «foi possível visionar aquando da inspecção judicial - designadamente a caixa existente no logradouro dos prédios dos autores, na altura da inspecção judicial aberta e com dois tubos juntos e bem visíveis, aparentemente com início nessa caixa». De harmonia com o que aí se referiu como tendo sido directamente presenciado, na caixa de vigia existem dois tubos, que estão juntos e são bem visíveis. Por isso, o problema está em saber onde os dois tubos vão dar.

As testemunhas L. P., D. L., F. L. e J. S. disseram que não viram tubos no logradouro do prédio dos Réus. Porém, a testemunha L. P. acabou por dizer que agora sabe que existem tubos pois viu-os (perguntado se «o senhor sabe que estão lá tubos», respondeu «Estão, que eu vejo-os lá»). Afirmou que há 30 anos os tubos não estavam visíveis.

Por sua vez, resulta dos depoimentos das testemunhas R. B., R. M. e T. N. que a água pluvial, depois de passar pela caixa de vigia, segue por dois tubos, no subsolo, que acabam por despejar no logradouro do prédio dos Réus. Destes três depoimentos, são especialmente relevantes os de R. B. e T. N. por morarem numa moradia contígua que, segundo o Tribunal a quo, «é visível, a título de exemplo, na fotografia de fls. 278», a qual também visualizamos (na folha 278 constam duas fotografias, sendo que a de cima tem um enquadramento mais amplo do que a de baixo, mas em ambas é visível a casa da caseira R. B.), bem como por terem contacto directo com a caixa da qual se efectuava o escoamento.
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2.2.4.12. Da saída dos dois tubos – facto nº 4

O depoimento de T. N. é inteiramente esclarecedor sobre a realidade do facto nº 4, secundado pelo depoimento da testemunha R. B.. Esta última testemunha descreveu que por vezes a caixa de vigia entope e que é o seu irmão (o referido T. N.) que procede ao seu desentupimento.

A testemunha T. N. descreveu, além do mais, como procede ao desentupimento da caixa de vigia. Mostra-se inteiramente conforme com o que consta da gravação a referência que a esse propósito consta da motivação da decisão, na parte em que se diz que a testemunha «esclareceu que para o efeito liga uma mangueira e injecta água nos tubos que partem dessa caixa, saindo a água no término dos tubos, já no prédio contíguo, pertencente aos réus, tubos esses que são visíveis, já que só superficialmente revestidos de terra» (aliás, tal esclarecimento foi prestado quando a testemunha foi directamente inquirida pela Sra. Juiz sobre tal facto).

Por isso, não existe qualquer razão para não dar como provado tal facto.
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2.2.4.13. Da “contradita” deduzida nas alegações de recurso

Nas conclusões 63ª a 67ª das suas alegações, os Recorrentes invocam que a credibilidade da testemunha R. B. «fica, particularmente, abalada havendo dúvidas sérias sobre o sentido do depoimento e sobre a ciência que a mesma alega ter», «na medida em que em sede de ação principal foi junto pelos Réus um contrato de arrendamento referente a essa mesma testemunha com data de Dezembro de 2001 (…). Sem esquecer que a inscrição da referida testemunha, para fins de obtenção do cartão de eleitor na freguesia de ..., ocorreu em 19.12.2005».

Dispõe o artigo 521º do CPC que «a parte contra a qual for produzida a testemunha pode contraditá-la, alegando qualquer circunstância capaz de abalar a credibilidade do depoimento, quer por afectar a razão de ciência invocada pela testemunha, quer por diminuir a fé que ela possa merecer».
A contradita é deduzida quando o depoimento termina – artigo 522º, nº 1, do CPC.
Verifica-se que os Réus não exerceram a aludida faculdade na audiência final, apesar de já então serem conhecedores do alegado circunstancialismo que agora invocam.
Além disso, não confrontaram a testemunha nem suscitaram qualquer questão sobre essa matéria perante o Tribunal a quo. E a aludida questão, seja a que título fosse, tinha que ser suscitada na primeira instância e não somente em sede de recurso, para poder ser considerada aquando da prolação da decisão sobre a matéria de facto.
Ora, o tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.
Em todo o caso, sempre se dirá que analisamos com atenção o depoimento da testemunha R. B. e em momento algum notamos qualquer proximidade ou comprometimento com a posição dos Autores.
Em primeiro lugar, é bem patente na gravação que as respostas foram “arrancadas a ferros” pelo Mandatário dos Autores (v. em especial a parte referente aos tubos), sendo notório que tinha pouco interesse em prestar depoimento e que estava ali como que contrariada. Tal postura não é a de uma pessoa que procura defender a posição de uma parte.
Em segundo lugar, os parcos factos que trouxe ao conhecimento do Tribunal foram confirmados por outros meios de prova. O seu depoimento nada tem de inovador e não contraria elementos objectivos constantes dos autos.
Em terceiro lugar, reconhecendo a subjectividade da apreciação, consideramos que o depoimento foi prestado de forma isenta, com respostas simples e não elaboradas, que foram expressadas de uma maneira humilde.
Em quarto lugar, não se consegue retirar qualquer elemento útil e decisivo do facto de, alegadamente (não está demonstrado nos autos), o contrato de arrendamento ter sido formalizado em Dezembro de 2001 e de o cartão de eleitor ter sido obtido em 19.12.2005, podendo haver múltiplas razões para isso, sendo que a testemunha não foi confrontada com essas circunstâncias e por isso não pôde dar uma explicação. Em todo o caso, uma das possíveis explicações pode emergir do facto de a testemunha ter inicialmente morado numa das casas dos Autores e depois ter mudado para a outra casa. É isso que consta da transcrição do seu depoimento (e foi directamente escutado aquando da reprodução da gravação da prova), na parte em que diz: «Eu morei deste lado, onde mora a minha senhoria agora, mas já estou daquele lado, do outro lado há muitos anos».
Além disso, a testemunha L. P. (pessoa que morou na zona até aos 17 anos, de seguida esteve emigrado em França durante 45 anos, vinha àquele lugar quando estava de férias por ter lá casa encostada à casa dos Réus, e regressou definitivamente há sete anos, a 10 de Julho, segundo disse), arrolada pelos Réus, afirmou durante o seu depoimento que os caseiros estão lá há mais de 20 anos e que ia lá visitá-los («eu conheço os caseiros que estão lá, já para aí uns 20 e tal anos. E de vez em quando ia lá visitá-los» - fls. 438). Portanto, afirmando a testemunha R. B. que é caseira dos Autores há cerca de 28 anos e também a testemunha L. P. que os caseiros moram lá há mais de 20 anos, a versão factual da testemunha parece confirmar-se, contrariando-se a relevância da data da formalização do contrato de arrendamento e da obtenção do cartão de eleitor.
Apesar disso, é agora absolutamente despropositado, em sede de recurso, estarmos numa autêntica “caça às bruxas”, a procurar apurar factos relativos a uma questão que não foi colocada à primeira instância.
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2.2.4.14. Dos factos nºs 5 a 7

O ponto 5 contém um facto-conclusão que tinha que ser dado como provado pelas razões enunciadas na sentença e que desenvolvemos anteriormente. Enquanto existiu o rego, o escoamento era feito para o mesmo. Posteriormente, foi criada a caixa de visita e colocados os tubos, nos termos que se deram como provados nos pontos 1 e 3.

Também não nos fica qualquer dúvida sobre a realidade facto nº 6. Desde que foi criada a caixa de visita, há pelo menos 28 anos, o escoamento sempre foi feito nos termos que se deram como provados nos pontos nºs 1 e 3. Nunca o escoamento foi feito às escondidas, nunca, até surgir o conflito, houve oposição e os Autores faziam-no, tal como a sua caseira e o irmão dela, quando procediam ao desentupimento já referido, na convicção de estarem a exercer um direito próprio. Isso resulta directamente dos depoimentos das testemunhas R. B., R. M. e T. N..

Que os Réus ergueram um muro é um facto que é observável em várias fotografias juntos aos autos (aliás, segundo resulta da análise dos documentos juntos aos autos, os Réus começaram por construir um primeiro muro, que foi destruído pela Autora – v. sentença criminal a fls. 127 do apenso A - e depois voltaram a construir outro muro, sendo este último aquele que foi objecto do embargos de obra nova). Também não existem dúvidas de que o logradouro foi cimentado. Que isso impediu o escoamento também corresponde à realidade, tanto que na transacção celebrada nos autos de embargos de obra nova consta uma alínea c) que só faz sentido no caso de ter ocorrido um efectivo impedimento ao escoamento, pois previa-se aí «criar uma abertura no muro para permitir o escoamento de águas pluviais provindas dos telhados propriedades dos Requerentes».

Apesar disso, os Recorrentes sustentam que nenhuma prova foi feita sobre o facto nº 7, mas isso não corresponde à realidade. Por exemplo, a testemunha R. B. afirmou: «Pois, mas também nunca houve problemas com a água porque ela saía para fora e ninguém embargava. Eles é que foram para lá e embargaram tudo. E cortaram. E puseram (imperceptível) e isso não se fazia. Agora quando chove muito, dentro do quinteiro é lá um tanque, enorme» (negrito e sublinhado nossos – v. fls. 367 verso).Tal passagem do depoimento atesta que os Réus obstruíram os tubos e impediram o escoamento.
Daí que não se vislumbre qualquer erro na decisão da matéria de facto.
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2.2.5. Da reapreciação de Direito

O quadro factual relevante com vista à sua subsunção jurídica é exactamente o mesmo que serviu de base à prolação da sentença recorrida.
No nosso entender, atento o acerto da sentença, a eventual alteração da solução jurídica alcançada na decisão impugnada, quanto à defendida improcedência da acção, dependia, na sua totalidade, da modificação da matéria de facto, o que não sucedeu.
Em todo o caso, não deixará de se abordar a questão de saber, em abstracto, se é admissível a constituição de uma servidão voluntária de escoamento, designadamente por usucapião. Depois, caso se conclua pela sua admissibilidade, importa saber se estão concretamente reunidos os respectivos requisitos, uma vez que os Recorrentes alegam que a matéria de facto é insuficiente para a constituição da servidão.
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2.2.5.1. Da constituição de servidão voluntária de escoamento

A sentença abordou exaustivamente essa questão, citou extensa doutrina e jurisprudência, e concluiu no sentido da sua admissibilidade.
Os Recorrentes insurgem-se contra aquele entendimento (v. conclusões 77ª a 83ª das suas alegações), argumentando que «A lei não prevê, em momento algum, a constituição de servidões voluntárias de escoamento (…). Tal como resulta do artigo 1351.º, n.º 2 do Código Civil, a única exceção que a lei prevê quanto à exigência de ausência de obra de homem para impor ao prédio inferior o ónus de receber as águas escoadas do prédio superior, é a de constituição de servidão legal de escoamento».

Seria fastidioso estar aqui a reproduzir doutrina e jurisprudência quando a generalidade da mesma já foi mencionada na sentença. Apenas queremos dar nota que nos parece ser actualmente dominante a corrente que defende a admissibilidade de constituição de servidões voluntárias de escoamento.

O primeiro e principal argumento invocado pelos Recorrentes não nos parece ter qualquer carácter decisivo.
É verdade que a lei não prevê expressamente a constituição de servidões voluntárias de escoamento. Todavia, também a lei não prevê as servidões voluntárias de passagem e, apesar disso, é unânime o entendimento de que as mesmas são admissíveis.
O segundo argumento também não impressiona.
O artigo 1351º do Código Civil acolhe no seu nº 1 o princípio, remotamente proveniente do direito romano, de que as águas devem seguir o seu curso normal. Por isso, os prédios inferiores estão sujeitos a receber as águas que decorrem, naturalmente e sem obra do homem, dos prédios superiores. Tal situação de sujeição – um verdadeiro encargo - não constitui sequer uma servidão, mas algo inerente à natureza das coisas, emergente do direito de propriedade e das suas condicionantes. É uma restrição legal do direito de propriedade (11) e não uma servidão legal de escoamento, que todavia, como se previne no nº 2, pode ser constituída nos casos em que é admitida.
Não podendo o dono do prédio inferior fazer obras que estorvem o escoamento, nem o dono do prédio superior obras capazes de o agravar, o nº 2 daquele artigo admite como excepção ao aludido princípio a possibilidade de constituição da servidão legal de escoamento, prevista no artigo 1363º do Código Civil.
Em lado algum o nº 2 do artigo 1351º do Código Civil veda, expressa ou implicitamente, a constituição de uma servidão voluntária de escoamento. Apenas se limita a aflorar a possibilidade de ser coactivamente imposta a servidão de escoamento. Limita-se a circunscrever tal direito potestativo, dentro do princípio de que as servidões legais são típicas.
A argumentação dos Recorrentes só adquiriria alguma consistência se o nº 1 do artigo 1351º do Código Civil consagrasse uma servidão legal de escoamento, o que não é o caso.

Sustentam ainda os Recorrentes, nas conclusões 80ª e 81ª, que o nº 4 do artigo 1563º do Código Civil refere que «Só estão sujeitos à servidão de escoamento os prédios que podem ser onerados com a servidão legal de aqueduto» e que, por sua vez, «Segundo o artigo 1561.º, relativo à servidão legal de aqueduto, o prédio em causa não está sujeito à servidão legal de escoamento, uma vez que não pode ser onerado com servidão legal de aqueduto».
Este argumento nada acrescenta ao segundo já analisado, uma vez que o artigo 1563º, nº 4, apenas estabelece um dos requisitos para a constituição da servidão legal de escoamento. Estamos ainda no âmbito da delimitação do exercício potestativo da servidão legal de escoamento, que é coisa diferente, sublinhe-se, da servidão voluntária de escoamento. Não é por o prédio não poder ser onerado com uma servidão legal de aqueduto que não pode ser constituída, relativamente ao mesmo, uma servidão voluntária de escoamento por usucapião. A hipótese dos autos é de uma servidão voluntária, enquanto a servidão legal consiste no direito potestativo de constituir coercivamente uma servidão sobre o prédio alheio mediante o pagamento de uma indemnização.
No que respeita ao aproveitamento de águas, as modalidades de servidões legais, previstas no Código Civil, são: a) de aproveitamento de águas parta gastos domésticos ou para fins agrícolas (arts. 1557º e 1558º); b) de presa de águas particulares ou públicas (arts. 1559º e 1560º); c) de aqueduto para aproveitamento de águias particulares ou públicas (arts. 1561º e 1562º); e de escoamento (art. 1563º).
Nenhuma dessas servidões tem qualquer parecença com a situação que é objecto destes autos.
A servidão de aqueduto (12) pode ser constituída a favor de prédios com explorações agrícolas ou empreendimentos industriais, e também, para gastos domésticos, e dela estão isentos os quintais, jardins ou terreiros contíguos a casa de habitação. Nas quintas muradas, o aqueduto só pode consistir em obra subterraneamente construída. Seja qual for a situação, a sua constituição coerciva está sujeita à optimização do proveito para o prédio dominante e minimização do encargo para o prédio onerado.

Posto isto, importa concretizar por que razão se considera admissível a constituição de servidões voluntárias de escoamento.

O artigo 1543º do Código Civil define servidão como «o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente». Mas a disposição legal que releva sobremaneira para o caso dos autos é o artigo 1544º, que define o conteúdo de aproveitamento que este tipo de direito real propicia ao seu titular. Segundo este preceito, «podem ser objecto da servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante».

Portanto, em vez de servidões típicas, o Código Civil consagra «um único tipo de direito de servidão, que pode ter como conteúdo qualquer utilidade» (13). Num determinado sentido, qualifica-se o actual regime das servidões prediais como sendo de «atipicidade do conteúdo» (14). Como o conteúdo típico está descrito por um conceito jurídico indeterminado - «quaisquer utilidades» - estamos em presença de um tipo aberto (15), o qual não se confunde com servidões atípicas (16). O direito de servidão, enquanto direito real, não é atípico, pois constitui um tipo legal ao lado dos outros direitos reais que compõem o numerus clausus de direitos reais.
Face ao disposto no artigo 1544º do Código Civil, tudo o que seja utilidade susceptível de ser extraída de um prédio para benefício de outro pode dar origem a um direito de servidão (17), pelo que este pode conceder o aproveitamento de utilidades não concretizadas na lei.
Todas as utilidades que um imóvel possa fazer beneficiar outro são susceptíveis de servidão. O erro, ou petição de princípio, que habitualmente se comete é o de considerar que apenas as utilidades especificadas numa servidão legal podem dar origem à constituição voluntária de uma servidão, ou seja, como que se exigindo uma tipicidade indirecta das servidões voluntárias.

No caso dos autos, o escoamento ordenado das águas pluviais dos prédios dos Autores para o logradouro do prédio vizinho dos Réus, através de dois tubos que seguem subterraneamente e aí emergem – num único ponto - até ao solo para desaguar, constitui uma utilidade objectiva para aqueles prédios (18). A colocação dos tubos no subsolo e o seu desaguamento no solo do logradouro são aptos a satisfazer a concreta necessidade de escoamento das águas pluviais dos prédios dos Autores que, de uma maneira ou de outra, sempre tinha que ser feita.
Não se descortina qualquer norma que proíba tal forma de escoamento de águas pluviais pelo terreno do prédio vizinho, nem a mesma se afigura contrária ao sistema jurídico. Não se pode considerar que a mesma ofende os princípios por que se rege a comunidade jurídica.
Pelo exposto, tal como a sentença recorrida, concluímos pela admissão da constituição da servidão voluntária de escoamento.
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2.2.5.2. Da alegada insuficiência da matéria de facto

Nas conclusões 68ª a 71ª das suas alegações, os Recorrentes suscitam a questão de «os factos alegados pelos Autores em sede de petição inicial e constantes entre os artigos 30 a 36º são insuficientes para julgar procedente a presente acção. (…) pois referem no artigo 34º da petição inicial que os tubos são visíveis na extrema poente do logradouro dos Autores e não descrevem como depois a água é conduzida para o terreno dos Réus».

Já em 2.2.2. abordamos esta questão.

Importa apenas dar conta que os Autores alegaram, nos artigos 31º, 32º, 33º, 35º e 36º da petição inicial, que há mais de cinquenta anos que as águas que provinham dos telhados das suas duas casas eram despejadas no “prédio dos Réus”. Afirmaram que o escoamento é feito através de dois tubos, os quais recolhem a água em cada um dos dois telhados (um tubo recolhe a água de um telhado e o outro tubo recolhe a água do outro telhado) das casas dos Autores (v. art. 32º) e, correndo no sentido nascente-poente, juntam-se numa caixa de vigia, feita em cimento, existente no logradouro dos Autores (v. art. 32º, 1ª parte); dessa caixa de vigia partem dois tubos, paralelamente e de forma subterrânea, que desembocam à superfície do solo do prédio dos Réus (v. art. 32º, 2ª parte, e art. 31º, última parte).

Em termos objectivos, ficou demonstrado que desde há mais de 28 anos que a água dos telhados dos prédios dos Autores é escoada através de dois tubos, que a recolhem, passam de forma subterrânea o logradouro daqueles prédios e desaguam no logradouro do prédio urbano contíguo dos Réus. Os dois tubos juntam-se numa caixa de vigia, em cimento, existente no logradouro dos prédios dos Autores e seguem paralelos e subterrâneos, até despejarem a água no logradouro (terreno) do prédio dos Réus.

Como então concluímos, consideramos que os Autores descreveram e caracterizaram suficientemente a servidão de escoamento e na sentença o seu conteúdo está minimamente identificado, face à singeleza da utilidade que é objecto de aproveitamento. Não estamos a falar de uma servidão de passagem, mas sim de uma mera (e limitada) servidão de escoamento, reduzida a dois tubos que chegam ao solo do terreno dos Réus num único ponto, pois todo o percurso é feito no subsolo, não interessando a qualquer dos prédios que os tubos andem “às curvas e contracurvas” pelo subsolo.
Assim sendo, concluímos inexistir insuficiência da matéria de facto.
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2.2.5.3. Dos requisitos

O que os Autores pretenderam, através desta acção foi o reconhecimento da existência de uma servidão de escoamento, a favor dos seus dois prédios, sobre o prédio dos Réus. Por conseguinte, o direito que os Autores pretendem fazer valer através da presente acção inscreve-se no domínio dos direitos reais.

As servidões, que podem ter diversos conteúdos (v. artigo 1544º do Código Civil), são susceptíveis de ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família - artigo 1547º, nº 1, do Código Civil.

No caso dos autos, face ao alegado pelos Autores, o modo de constituição de servidão que importa apreciar é a usucapião.

Como é sabido, sendo a usucapião o título constitutivo do ónus, a extensão e o modo de exercício da servidão aferem-se pela posse do titular, em obediência à máxima tantum prescriptum quantum possessum.

Essa «posse da servidão», o que em rigor significa exercício efectivo da servidão, conduzirá, operada a usucapião, à constituição do ónus com o conteúdo e extensão dessa posse.

Com efeito, em conformidade com o disposto no artigo 1287º do Código Civil, a posse da servidão, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor a aquisição da servidão, nos exactos termos em que exercia essa posse.

No caso de a posse ser de boa fé, o lapso de tempo de manutenção da posse, necessário para a aquisição da servidão por usucapião, é de 15 anos, isto no caso de a posse ser pública e pacífica; se for de má-fé esse período de tempo é de 20 anos - cfr. artigo 1296º do Código Civil.

No caso sub judice está demonstrado que desde há pelo menos 28 anos os prédios dos Autores beneficiam da colocação de dois tubos para escoar as águas pluviais, provenientes dos telhados, para o terreno do prédio dos Réus.

Essa forma de escoamento tem sido feita pelos Autores à vista de todos, ininterruptamente, sem oposição de alguém e na convicção de estarem a exercer um direito próprio, portanto de forma pública e pacífica.

Existem, há mais de 28 anos, sinais visíveis e permanentes reveladores da servidão, como sejam a existência da caixa de vigia e a saída das águas pluviais pelas extremidades dos tubos. O escoamento só foi interrompido com as obras realizadas pelos Réus. Essa limitação superveniente, emergente do conflito, à utilização normal do escoamento das águas pluviais a favor dos prédios dos Autores é irrelevante, uma vez que a definição do seu direito é aferida pelos exactos termos em que anteriormente exercia a posse. Isto porque a constituição da servidão não é moldada pela forma como o dono do prédio serviente impede o aproveitamento das utilidades, mas sim pela extensão e o modo de exercício da posse do titular do direito a constituir.

Assim, a posse da aludida servidão, mantida durante 28 anos, facultava aos Autores a aquisição da servidão, por usucapião, com o conteúdo e extensão dessa posse, tal como fez a sentença recorrida.
Termos em que improcede a apelação.
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2.3. Sumário

1 – É admissível a constituição de uma servidão voluntária de escoamento, traduzida na utilização de dois tubos que percorrem o subsolo do logradouro do prédio subserviente, para escoar as águas pluviais provenientes dos telhados dos prédios dominantes, e cujas extremidades emergem à superfície do mesmo num único ponto.
2 – A circunstância de não se ter demonstrado que, ao contrário do alegado, as extremidades dos tubos não desembocam num pretenso rego existente no prédio serviente, mas apenas que desaguam no logradouro deste, não representa uma configuração diferente da servidão, uma vez que esta não abrangia o rego, pelo que a sentença não conheceu de matéria de que não podia tomar conhecimento nem condenou em objecto diverso do pedido.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença.
Custas pelos Recorrentes.
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Guimarães, 13.06.2019

(Acórdão assinado digitalmente)
­ Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar
(2º adjunto)


1. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, 2018, pág. 115.
2. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª edição, Almedina, pág. 737.
3. Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 143.
4. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, págs. 600 e 601.
5. Código de Processo Civil Anotado, vol. V, págs. 67/68.
6. Ac. do STJ, de 18.11.2004, relator Ferreira Girão, proc. 04B2640.
7. Da Sentença Cível, págs. 43/44.
8. In https://blogippc.blogspot.pt/2017/01/jurisprudencia-540.html#links.
9. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, 2018, pág. 163. No mesmo sentido Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, vol. II, Almedina, 2015, pág. 463.
10. Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 168 e 169.
11. Segundo Oliveira Ascensão, in Direito Civil Reais, 5ª edição, Coimbra Editora, pág. 506, trata-se de «uma relação propter rem de vizinhança».
12. Tem como elemento essencial a implantação de cano ou rego condutor em prédio alheio, pelo qual se fazem passar as águas a que se tem direito, em proveito da agricultura ou da indústria, ou para gastos domésticos.
13. José Alberto Vieira, Direitos Reais, 2ª edição, Almedina, pág. 730.
14. Mota Pinto, Direitos Reais, Almedina, 1972, pág. 317.
15. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais,5ª edição, pág. 459.
16. As servidões legais resumem-se a dois tipos genéricos: as servidões de passagem (com dois subtipos) e as servidões de águas (como descrevemos no texto supra, têm quatro subtipos).
17. José Alberto Vieira, ob. cit., pág. 731.
18. Servitus fundo utilis esse debet.