DOMÍNIO PÚBLICO HÍDRICO
DOMÍNIO PÚBLICO MARÍTIMO
DOCUMENTO AUTÊNTICO
FORÇA PROBATÓRIA
Sumário


I - O documento certificado, ou seja o Parecer da Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., consubstancia-se numa análise técnico/jurídica sobre o Domínio Público Marítimo nas Ilhas-Barreira da Ria Formosa, pelo que, enquanto expressão da opinião técnico/ jurídica da Entidade Pública Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., deve ser enquadrado, para efeitos probatórios, na última parte do disposto no n.º1 do art.º 371º do Cód. Civ., ou seja, sujeito à livre apreciação do julgador.
II - Em conformidade com a lei em vigor, na melhor interpretação que pensamos retirar do seu dispositivo, pertencem ao domínio público hídrico, as águas do mar, o seu leito e todas as formações naturais que aí emerjam, nomeadamente, e no que interessa ao caso, as ilhas de areia que resultem de deposição aluvial, entendida esta deposição como abrangendo também o depósito de areias devido ao fluxo e refluxo do mar e à acção das ondas.
III - No fundo, o que o legislador pretende estabelecer é a integração no domínio público, em plena propriedade, denominemos assim para dar a ordem da respectiva grandeza, de todo um espaço físico que compreende não só as águas classificadas como do domínio público, os leitos que as suportam, estendidos estes até às respectivas margens e ainda todas as formações naturais que emerjam nesse mesmo espaço, a saber os mouchões, lodeiros e areais nele formados por deposição aluvial.
IV - Sendo a Ilha da Culatra formada pela progressiva deposição de areia e assim constituída em toda a sua extensão por areais formados por tal deposição, faz parte, nos termos do disposto nos art.º 3º, alíneas a) e c), 4º e 10º, n.º1, Lei nº 54/2005, de 15/11, do domínio público marítimo, pertença do Estado Português, e por isso insusceptível de apropriação individual, nomeadamente por aquisição por usucapião.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral


Acordam, na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

Proc. n.º 1003/16.9T8FAR.E1
Apelação
Comarca de Faro (Faro-JLCível-J1)
Recorrente: BB
Recorridos: o Estado Português e Outros
R02.2018

I. BB, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de CC e de DD intentou a presente Acção Declarativa, com Processo Comum, contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público, (II) o Município de Faro, na pessoa do Presidente da Câmara Municipal de Faro, (III) e a "Polis Litoral Ria Formosa - Sociedade para a requalificação e Valorização da Ria Formosa S.A.", pedindo a condenação dos Réus a reconhecerem os direitos de posse e propriedade plena da Herança aberta por óbito dos seus pais quanto à casa n.º …, do núcleo do Farol Nascente, Ilha da Culatra, 8005-… Faro, bem como ao terreno onde a mesma se encontra edificada e respectivo logradouro.
Mais pede que sejam os Réus condenados a reconhecer que tal imóvel (casa e terreno onde a mesma está implantada e respectivo logradouro) foi adquirido por usucapião, dado o decurso do tempo do exercício ininterrupto da posse (pública, pacífica e sem oposição) e com a consciência da propriedade desse imóvel e que com isso não lesam direito ou interesses de terceiros ou do Estado, actuando desde sempre em conformidade com essa consciência.
Alegou para o efeito, em síntese, que a casa em apreço foi construída em 1972 em terreno que pacifica e publicamente ocupou nesse mesmo ano tendo, desde essa altura, começado a exercer a qualidade de proprietária e possuidora, assim se comportando a vista de todos.
Mais alega que, em virtude de deliberação do Conselho de Administração da Pólis Litoral Ria Formosa foi determinada a demolição da aludida casa, o que motivou que a Autora intentasse no Tribunal Administrativo de Loulé acção com vista à declaração de nulidade ou anulação daquela.
Assim e tendo o Tribunal Administrativo de Loulé entendido que a questão da aquisição por usucapião do imóvel em apreço consubstanciava questão prejudicial, lançou mão da presente acção com o intuito de ver, conforme já aludido, reconhecido o direito de propriedade de que se arroga.
Entende a Autora que o núcleo onde se encontra implantada a sua construção (núcleo do Farol Nascente) e que se situa na ilha da Culatra, foi alvo de um processo de apropriação por privados na decorrência da alteração social, política e legislativa que se deu com o 25 de Abril de 1974 e onde se circunscreve a ocupação por parte da Autora.
Desta feita e entendendo que os terrenos em causa integram o domínio privado do Estado, entende a Autora que, por ter preenchido os respectivos requisitos, adquiriu o mesmo por meio da usucapião, o que pede que seja reconhecido.

A Ré "Polis Litoral Ria Formosa - Sociedade para a requalificação e Valorização da Ria Formosa S.A.", defendeu-se por excepção, alegando a ilegitimidade activa e passiva, e impugnou, em termos genéricos, os fundamentos de facto e de direito em que assenta o pedido de reconhecimento de propriedade deduzido pela Autora.
Alegou esta Ré, em síntese, que os terrenos em causa integram domínio público marítimo, circunstância que, desde logo, inviabiliza a pretendida aquisição por usucapião e conforme, de resto, atesta a "Agência Portuguesa do Ambiente, LP.".
Acresce, prossegue esta Ré, que contrariamente ao alegado em sede de petição inicial os terrenos em apreço não foram objecto de "processo de apropriação", tendo a ilha da Culatra sido sempre administrada pelas autoridades competentes com jurisdição no domínio público marítimo tendo, inclusivamente, sido concedidas algumas construções. Desta forma e seguindo a linha de raciocínio da Ré ora em apreço, nunca a Autora actuou com o "animus" característico da posse porquanto actuou ao abrigo de uma autorização tácita e com o consentimento das autoridades públicas pelo que, tendo embora o "corpus" da posse, não o fez com o "animus" de proprietária, mas sim em nome alheio, como mera detentora autorizada: a Autora, conclui, não é dona da construção e terreno identificados nos autos, apenas se aproveitou da tolerância do titular do direito.
Mais adianta que, ao construir em zona de domínio público, incorreu a Autora em crime de violação das regras urbanísticas, sendo que a construção de obra sem projecto aprovado (e ainda que se concebesse a existência de licença ou concessão de uso privativo dos terrenos em apreço) tem como consequência a demolição compulsiva, sendo falsa a invocação de desnecessidade de licença para a construção identificada nos autos.
Por fim, invoca a Ré Polis que, ainda que por hipótese académica se admitisse que os terrenos em causa se inseriam em domínio privado do Estado, sempre a pretensão da Autora teria de naufragar e atendendo à impossibilidade de desanexação da parcela de terreno por efeito da mera posse.
Assim, alega a Ré, o alegado terreno não tem descrição predial, não tendo sido invocada a existência de qualquer prédio autónomo e desanexado (de facto e de direito), sendo que todos os actos de fraccionamento (com ou sem construção) têm que obedecer a um processo formal de loteamento, condicionalismos que não se verificam no caso em apreço.
Desta feita, conclui a Ré Polis pela total improcedência dos pedidos formulados nos autos.

O M.ºP.º, em representação do Estado Português, apresentou a sua Contestação pugnando, igualmente, pela improcedência total dos pedidos formulados nos presentes autos.
Assim, aceitando apenas que o terreno identificado nos autos foi ilegalmente ocupado e as construções ilegalmente edificadas, impugna o Estado Português, em suma, os fundamentos de facto e de Direito vertidos na petição inicial.
Entende o Réu ora em destaque que o sistema da Ria Formosa constitui unidade morfológica onde se inclui a ilha da Culatra, sendo que o sistema de barreiras arenosas protege e assegura a manutenção do sistema lagunar, o qual está sujeito a alterações em resultado do movimento das areias transportadas pelas águas. A ilha da Culatra é, de acordo com' a tese defendida em sede da contestação ora em análise, formada pela progressiva deposição de areias e, assim, constituída em toda a sua extensão por areias formados por deposição aluvial.
É no seguimento deste entendimento que a "Agência Portuguesa do Ambiente, LP." considera e declara toda a ilha da Culatra como área de domínio público marítimo do Estado.
Acresce que, ao longo dos anos, sempre o Estado considerou a ilha da Culatra como pertencente ao domínio público marítimo, seja autorizando a transferência de uma determinada porção terreno para a Marinha (sem mutação dominial), seja emitindo licenças a título precário para a manutenção de barracas, qualificando sempre os terrenos como situados em "domínio público marítimo".
Partindo deste mesmo pressuposto se considerou, em sede de Plano de Ordenamento da Orla Costeira Vilamoura - Vila Real de Santo António, que (toda) a ilha da Culatra "tem carácter de dominialidade do domínio hídrico" e que será "objecto de elaboração de acções renaturalização" .
Sendo para o Estado Português indubitável que a Ilha da Culatra pertence, em toda a sua extensão, ao domínio público do Estado, está afastada do comércio jurídico, não sendo susceptível de aquisição por usucapião, o que desde logo inviabiliza a pretensão da Autora.
Por outro lado, assinala este Réu, não alegou a Autora qualquer fundamento que permita um eventual reconhecimento da propriedade sobre parcelas de leito, nos termos do disposto no artigo 15º do DL 54/2005.
Acresce que, de acordo com o pedido formulado na petição inicial, entende o Reu Estado que a Autora pretende transformar o terreno alheio que ocupou em prédio autónomo e uma vez que pretende igualmente o' reconhecimento da propriedade da construção nele edificada, legalizando, assim, em termos urbanísticos, todo o "prédio". Ora, de acordo com a lei em vigor à data da ocupação, para que se procedesse ao loteamento de um prédio com a destinação da construção, necessário era a competente licença da Câmara Municipal, o que manifestamente não ocorreu no caos em preço.
Desta feita, entende o Digno Procurador da República, que não pode uma sentença judicial ultrapassar exigências e regulamentos urbanísticos de interesse público, o qual deverá, por imperativo legal, ser respeitado, pelo que inexiste, de todo o modo, suporte legal que permita o reconhecimento da pretendida usucapião sobre o peticionado prédio autónomo.

Efectuado julgamento foi proferida Sentença, em que se decidiu o seguinte:
“Termos em que julgo improcedente a presente acção e respectivos apensos e, em consequência, absolvo os Réus "Polis Litoral Ria Formosa - Sociedade para a requalificação e Valorização da Ria Formosa S.A." e Estado Português do pedido.
…”

Inconformado com tal Decisão, veio o Autor interpor Recurso de Apelação, cujas Alegações terminou com a formulação das seguintes Conclusões:
A).- A Ilha da Culatra é uma Ilha, em ambiente marinho, cercada de água do mar; pelo que quanto a ela e à natureza e regime jurídico do seu leito, no que releva para a integração ou não no domínio público marítimo, regem o nº 2 do art. 10º e os nº 1, 2 e 6 do art. 11º da Lei nº 54 /2005 de 15 de Novembro, e ainda o art. 121, nº 1 da Convenção da Nações Unidas sobre o Direito do Mar, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 60-B/97 de 14 de Outubro.
B).- A Ilha da Culatra não constitui um leito e muito menos, enquanto Ilha em ambiente marinho, não é aluvião nem foi constituída por deposição aluvial ou aluvionar.
C).- Os mouchões, lodeiros e areais formados por aluvião são fenómenos específicos de ambiente familiar e realidades que só existem e se verificam em rios, como ficou provado nos autos pelos professores catedráticos e investigadores de geologia que aí testemunharam e emitiram parecer.
D).- Como flui desses depoimentos e parecer, nos leitos das águas do mar – e concretamente nas ilhas barreira da Ria Formosa (onde se inclui a Ilha da Culatra) – não existem aluviões ou depósitos aluvionares, mas sim deposição por deriva longilitoral ou diagénese.
E).- A Ilha da Culatra – bem como as demais ilhas barreira – possuem duas praias (a lagunar, no lado norte e a oceânica, no lado sul) e um núcleo central diferenciado, de dunas consolidadas e robustas, este formado por acção do vento e aquelas (praias) formadas por acção das correntes marinhas e das ondas. Mas nunca por deposição aluvial.
F).- O legislador, atenta as diferentes natureza, génese, dinâmica, morfologia e fenomenologia das águas e dos leitos lacustres, fluviais e estuarinos, por um lado, e marinhos, por outro; e atenta a harmonia e o contexto da legislação bem como a unidade do sistema, redigiu (e manteve essa redacção ao longo dos anos) para essa pluralidade de situações normas diferentes (as do nº 1 e as do nº 2, ambas do art. 10º daquela citada Lei nº 54/2005, aquele quanto aos leitos dos rios e este para as águas do mar; as diferentes medidas de margens, indicadas no art. 11º daquela Lei, no que se refere a margens, consoante o tipo de águas; a titularidade do domínio público hídrico repartido em função das diversas realidades, como previsto no nº 2 do art. 2º daquele mencionado diploma).
G).- Por isso, a interpretação literal, sistemática e teleológica necessária a reconstituir o pensamento do legislador, teria que levar o Tribunal a correctamente incluir os solos da Ilha da Culatra no âmbito do nº 2 daquele art. 10º da Lei em alusão, considerando que nessa Ilha o domínio público marítimo verifica-se apenas sobre os leitos e margens das praias existentes nessa Ilha até 50 metros contados da linha da máxima preia-mar das águas vivas equinociais.
H).- Ao ter concluído que toda a Ilha da Culatra é de formação aluvionar (contra o parecer técnico e testemunhos de professores catedráticos de geologia cientificamente habilitados), e ao inclui-la, assim e na sua totalidade como leito, na noção do nº 1 daquele citado art. 10º (e não no seu nº 2), o Tribunal recorrido fez um errado exame da prova e uma incorrecta análise dos factos que deu como provados, conjugada com uma deficiente e inadequada interpretação e aplicação das normas correspondentes, ao declarar todo o solo da Ilha da Culatra, por isso, como do domínio público.
I).- Assim, ao concluir e decidir – erradamente – que a Ilha da Culatra, em toda a sua extensão e largura, constitui leito por deposição aluvial e integra o domínio público marítimo, a sentença em apreço violou, por desfasada interpretação e errada análise crítica dos factos provados, os art. 10º e 11º da Lei nº 54/2005 de 15 de Novembro, o disposto no art. 121º, nº 1, da Convenção das Nações Unidas Sobre o Direito do Mar, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 60-B/97 de 14 de Outubro e, do ponto de vista processual, o disposto no art. 607º do Código de Processo Civil por errada interpretação e aplicação do Direito aos factos provados, cujo exame crítico foi desajustado, que deveria ter considerado e aplicado.
J).- Igualmente errou o Tribunal recorrido quanto à conclusão que extraiu dos factos provados (conclusão por eles não permitida) de que não existiu animus do Autor e dos seus antecessores quanto à posse na qual fundaram o seu pedido de usucapião. O animus não só se presume pela posse efectiva exercida e reiterada, há mais de 40 anos ininterruptos, e pelos actos materiais considerados provados, como também existe clara e patentemente esse animus pela comprovada convicção do Autor (e, antes, dos seus progenitores) de que agiam em nome próprio e não em nome de qualquer entidade do Estado, em casa sua que erigiram e onde, durante aqueles mais de 40 anos investiram e utilizaram em seu benefício, sem oposição do Estado e sem necessidade de obtenção, de organismos deste, de qualquer autorização para o que aí entendiam fazer..
K).- O Recorrente e, antes, os seus pais, exerceram a posse sobre o terreno e a habitação aí erigida à vista de toda a gente, inclusive dos órgãos, agentes e aparelho do Estado que, localmente, representavam esse mesmo Estado; ocuparam o terreno e edificaram em parte dele; muraram-no; tinham – e têm – a chave do local; só ali entrava quem eles quisessem – inclusive agentes do Estado. Foram a departamentos e serviços do Estado (Junta Autónoma dos Portos, Governo Civil, Registo Predial, Capitania de Porto, Guarda Fiscal, Serviço de Finanças, Câmara Municipal) para tentar obter documentação que titulasse o direito de propriedade que na prática exerciam. Comunicaram assim, desse modo prático e evidente, a todos esses serviços – e portanto, ao Estado – que pretendiam formalizar esse direito de propriedade que na prática já detinham, sendo toda esta conduta reiterada no tempo e insistente, e que veio a concluir-se pela interposição da presente acção, uma manifestação clara e objectiva do animus necessário à usucapião.
L).- Nem parece poder proceder o argumento expresso na sentença recorrida de que esse animus inexiste pelo facto de o A. e os seus pais, à data da ocupação, perspectivarem a possibilidade de o terreno onde edificaram poder ser do Estado (mesmo que no seu domínio privado). Tal animus existia e era objectivado através dos actos práticos materiais permanentes e reiterados por décadas, além de públicos e evidentes, levados ao conhecimento directo do Estado através dos seus agentes, polícias, organismos, governos civis, capitanias e departamentos, daí se extraindo, com segurança que a intenção do A. e, anteriormente, dos seus pais, sempre foi o de possuir o terreno e a habitação em termos de direito de propriedade.
M).- Daí se alcança também que tais actos materiais são, igualmente, além de uma evidente manifestação do animus, uma clara inversão do título de posse, comunicada de forma ecuménica ao Estado, pelos meios práticos mais expeditos, face à concreta situação descrita, resultando claramente provada a existência do animus possidendi e, bem assim, mesmo que de mera detenção ou posse precária se pudesse entender (e não pode), a manifestação de oposição que sempre consubstanciaria a inversão do título de posse.
N).- Ao entender de forma e em sentido contrários, excluindo a existência do animus possedendi e exigindo, para putativa procedência da usucapião, a inversão do título de posse, a sentença em recurso elaborou uma errada análise dos factos provados e uma incorrecta e deficiente interpretação dos preceitos aplicáveis, com violação dos arts. 1252º, 1255º, 1265º, 1287º e 1290º todos do Código Civil, bem como do art. 607º do Código de Processo Civil.
O).- Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser revogada a sentença recorrida, proferindo-se decisão que, apreciando devidamente os factos provados e interpretando correctamente os preceitos aplicáveis, determine a procedência do pedido.”

Os Réus Estado e Sociedade Polis Litoral Ria Formosa, S.A. deduziram contra-alegações, em que concluíram nos seguintes termos:
O Réu Estado:
a) não tendo o recorrente impugnado a decisão sobre a matéria de facto fixada na sentença, todos os factos (dados por provados e não provados) têm que se considerar como assentes;
b) a certidão da APA junta aos autos foi emitida no âmbito das suas competências, constituindo um documento autêntico;
c) assim, atento o disposto no art. 371 do CC, tal certidão deveria bastar para se julgar que (toda) a Ilha da Culatra é domínio público marítimo;
d) sendo (toda) a Ilha da Culatra domínio público marítimo do Estado, não pode ser objecto de usucapião, conforme art. 19 do DL 280/2007 e art. 202 do CC, pelo que o pedido do A. não poderia proceder;
e) de todo o modo, mesmo que assim não se entenda, a sentença fundamenta de forma lógica e inquestionável a decisão de facto e de direito, inclusive quanto á qualificação do solo da Ilha da Culatra;
f) a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, nomeadamente o seu art. 121, quer por se reportar a matéria de regulação das relações entre Estados, quer por se aplicar somente ao espaço marítimo situado para além da linha base a partir da qual se considera o mar territorial, não releva para a caracterização e/ou qualificação (do solo) da Ilha da Culatra;
g) a caracterização (do solo) da Ilha da Culatra consta dos factos (não impugnados) assentes na sentença;
h) a interpretação do art. 10, nº:1 da Lei 54/2005 tem que ser feita nos termos do art. 9 do CC, com apelo aos diversos elementos que podem esclarecer o seu sentido, como fundada e convincentemente fez a sentença recorrida;
i) tal interpretação não pode ser feita com base numa discussão académica sobre o duvidoso âmbito técnico e o preciso significado geológico do termo “aluvial” – se inclui ambientes marinhos ou se se limita a fluxos de água não marinhos – como pretende o recorrente;
j) assim tem que se concluir, como fez a sentença recorrida, que toda a Ilha da Culatra é “domínio público marítimo”, pelo que a usucapião não é possível e o pedido do A. tem que improceder;
l) também, como diz a sentença, uma vez que o A. não fez prova dos factos que representam o “animus” necessário á usucapião, esta nunca poderia ser reconhecida e declarada;
m) anota-se, de todo o modo, que tendo o A. alegado que foi ocupado e mantida a posse de um terreno do Estado, mas pretendendo que seja reconhecida a usucapião sobre um prédio urbano, o seu pedido nunca poderá proceder;
n) por outro lado, esse pedido também não poderia proceder porque a usucapião não permite a legalização de actos desconformes com disposições imperativas de natureza jurídico-administrativa, nomeadamente as normas que disciplinam o ordenamento do território e os regulamentos referentes ao urbanismo, disposições de protecção de interesses públicos;
o) consequentemente, o recurso apresentado pelo A. não merece provimento, devendo ser mantida a decisão recorrida.

A Ré Polis:
A) A sentença recorrida não merece qualquer censura, tendo feito uma correta interpretação (i) da qualificação jurídica do terreno em causa, situado na ilha barreira da Culatra, e correspondente regime jurídico dos terrenos do domínio público marítimo, insusceptíveis de usucapião – o que desde logo determinou a improcedência da ação; e ainda que assim não fosse (ii) o não preenchimento dos requisitos da “posse” boa para usucapião, designadamente a ausência de “animus” característico da posse.
B) Na conclusão H) das alegações o Recorrente invoca que «o Tribunal recorrido fez um errado exame da prova e uma incorrecta análise dos factos que deu como provados»; acontece que manifestamente não satisfez o ónus a cargo daquele que impugne a decisão relativa à matéria de facto, de acordo com o disposto no artigo 640º, nº1 do CPC.
C) Estando definitivamente assente a decisão da matéria de facto, no que respeita à qualificação dos terrenos aqui em apreço, de acordo com a resposta dada nos pontos 33 a 38, 42 e 43 do probatório, o presente recurso está ab initio fadado ao insucesso.
D) No caso dos autos, a natureza do domínio público marítimo dos terrenos em causa encontra-se desde logo assente nos autos, atenta a força probatória da certidão emitida pela APA, porque exarado pela autoridade competente para o cadastro e registo dos bens do domínio público hídrico (art. 363º, nº2, C.C.).
E) O Recorrente, para além de não ter arguido a falsidade da certidão, ou falta ou vício da vontade na origem da emissão da declaração, não apresentou qualquer princípio de prova escrita suficientemente verosímil para possibilitar a prova do contrário, através da produção de prova testemunhal (art. 393º, nº2 do Código Civil).
F) Ao contrário do Recorrente, não merece qualquer censura a conclusão da douta sentença recorrida de que, para efeitos de aplicação da Lei 54/2005 de 15 de Novembro, as ilhas barreira e, em concreto, a ilha da Culatra, são constituídas por areais formados por deposição aluvial e, consequentemente, subsumem-se ao conceito de leito previsto no artigo 10º, n.º1 da mesma lei, integrando, assim, o Domínio Público Marítimo de acordo com o disposto no artigo 3º, al. c) da Lei 54/2005 e 15 de Novembro
G) O técnico que presta esclarecimento, ao juiz, a seu pedido, não é agente de prova, pois que “…não constitui prova pericial, estando por isso subtraída à respectiva disciplina, o parecer técnico requisitado pelo juiz, no âmbito do estipulado pelo artigo 649.º do CPC [actual art. 601º]” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11/11/2003, in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVIII, 2003, Tomo 5, pág. 19).
H) Sendo domínio público, o terreno invocado não pode ser objecto de usucapião, como determina o artigo 19º do DL 280/2007, que não é mais do que uma expressão da regra já estabelecida no artigo 202º, nº2 do Código Civil.
I) Sem conceder, ainda que por hipótese vingasse a tese defendida pelo Recorrente – o que por mera cautela de patrocínio se considera – a solução dada pela sentença não poderia deixar de ser exatamente a mesma, e ser negado provimento ao recurso, uma vez que o A. ora Recorrente não logrou comprovar que o terreno em causa se situa fora da faixa de 50 metros que constitui a margem das águas do mar (como resulta da distância assente nos pontos 32 do probatório e pontos 5 a 7 da matéria de facto não provada).
J) Bem andou o Tribunal “a quo” ao concluir que o Autor sempre soube que o terreno por si ocupado tinha dono e, não tendo invocado qualquer facto que pudesse alterar tal consciência ou a ocorrência de um facto que pudesse justificar a alteração do “título” de tal ocupação, precludida ficaria, de todo o modo, a possibilidade de aquisição nos termos pretendido nos presentes autos, por falta do requisito relativo ao animus da posse
K) Tal como invocado nos artigos 89º e seguintes. da contestação da ré Polis, a própria petição inicial revela que o A. (e antes dele os seus falecidos pais) nunca agiram com o “animus” característico da posse.
L) Segundo o A, tanto ele e sua irmã como os seus pais agiram “autorizadamente”, ao abrigo de uma autorização tácita e com o conhecimento e o consentimento das autoridades públicas com jurisdição na área, pelo que, tendo embora o “corpus” da posse, não o fizeram com o “animus” de proprietários, mas fizeram-no em nome alheio, como meros detentores autorizados por essas autoridades, que são a face do Estado.
M) Assim sendo, de acordo com o disposto no artigo 1253º do C.C., o A. e os seus pais de quem alega ter sucedido no domínio de facto terão de ser havidos como meros detentores ou possuidores precários, por duas ordens de razões —, nos termos da al.ª a), porque exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiário do direito; e, nos termos da al.ª b), porque se aproveitam da tolerância do titular do direito.
N) Ao contrário do que o Recorrente vem agora tardiamente tentar disfarçar, o certo é que o facto constitutivo da aquisição da posse originária invocada na P.I. refere-se somente à alegação de que a “parcela de terreno foi “ocupada” em 1972 e que naqueles anos após o 25 de Abril houve um “processo de apropriação” “por privados” – ocupação subsumível ao chamado apossamento ou investidura na posse previsto na al.ª a) do artigo 1263º do Cód Civil (mas que claramente não configura um modo de aquisição por inversão do título da posse previsto na al.ª d) do mesmo preceito legal).
O) Finalmente – por máxima cautela de patrocínio –, prevenindo a hipótese de procedência do recurso, não deixará, subsidiariamente, de requerer o conhecimento pelo Tribunal “ad quem”, ao abrigo do disposto no artigo 665º, nº2 do CPC, das seguintes questões suscitadas pela defesa, mas que ficaram prejudicada pela solução dada ao litígio: (i) do não preenchimento dos requisitos da usucapião, face à oposição do Estado através dos invocados atos interruptivos do respetivo prazo, invocada nos artigos 101º a 105º, 190º e 191º da contestação da ré Polis; e (ii) da inobservância das regras imperativas do ordenamento do território e urbanismo, mormente os formalismos atinentes ao processo do loteamento (arts. 27.º do D.L. n.º 289/73, de 6/6), e em face da impossibilidade de legalização da construção em causa, por se encontrar em terreno qualificado no Plano de Ordenamento da Orla Costeira Vilamoura – Vila Real de Santo António, aprovado pela Resolução de Conselho de Ministros n.º 103/2005, de 5 de Junho de 2005, invocada nos arts. 45º a 53º e 165º a 182º da contestação da ré Polis.
P) Também pelos motivos expostos na antecedente conclusão, invocados na defesa mas cujo conhecimento ficou prejudicado pela solução dada ao litígio, o recurso interposto sempre teria de improceder, podendo e devendo o Tribunal “ad quem” julgar em substituição, se necessário for, nos termos do disposto no artigo 665º, nº2 do CPC.
NESTES TERMOS, e com o douto suprimento de V. Exas., deve ser negado provimento a esta apelação e, consequentemente, confirmando-se a decisão recorrida, que não merece qualquer reparo ou censura, …”

Cumpre decidir.
II. Em 1ª instância, foi dada como provada a seguinte matéria factual:
1. Em 15 de Janeiro de 1993 faleceu CC, no estado de casado com DD, em primeiras núpcias de ambos.
2. Em 4 de Agosto de 2013 veio esta a falecer, no estado de viúva daquele.
3. Ambos faleceram intestados.
4. São seus únicos herdeiros BB e EE.
5. O Autor é o cabeça de casal das heranças abertas por óbito dos mencionados CC e DD.
6. Os autores da herança que o aqui Autor administra e representa ocuparam, desde pelo menos 1973, a casa a que foi dado o n° de Lote …, no arruamento designado como Rua da Ria, das casas e arruamentos que constituem o Núcleo do Farol Nascente, na Ilha da Culatra, actual União de Freguesias da Sé e São Pedro, do concelho de Faro.
7. Apenas que a identificada casa começou a ser construída em Outubro de 1972 e foi concluída em Julho/Agosto de 1973, confrontando pelo Norte com praia da Ria.
8. Apenas que a implantação da casa foi efectuada em local que, para esse particular efeito, foi indicado pelos serviços da então Guarda Fiscal e da Capitania do Porto de Olhão (pelos então denominados cabos-de-mar).
9. CC foi marítimo de profissão, com a categoria de motorista marítimo de embarcação de pesca, devidamente inscrito e com a Cédula Marítima nº 7024 passada pela Capitania do Porto de Olhão, em 18 de Janeiro de 1961, e beneficiário da Caixa de Previdência do Pessoal da Marinha Mercante Nacional na 19.491.
10. Apenas que a construção da casa foi levada a cabo pelo mencionado CC, à sua conta e encargos.
11. Apenas que a implantação, construção e posterior utilização da casa em referência foram efectuadas sem recurso à violência, à vista de todos e sem oposição de ninguém;
12. Apenas que a construção, o transporte de materiais para o local e a implantação no local indicado eram acompanhadas pelos aludidos cabos de mar, ocorrendo as implantações em local por estes indicados.
13. Apenas que, a partir de Julho ou Agosto de 1973 os identificados CC e mulher, DD, passaram a usar a casa construída na Ilha do Farol, o que fizeram à vista de toda a gente.
14. Desde então e até às datas das suas mortes, os CC e DD utilizaram ininterruptamente, como muito bem entenderam, aquela casa,
15. Aí residindo com o seu agregado familiar (primeiramente filhos e, depois, filhos, nora, genro e netos e bisnetos) nomeadamente nos três meses de todos os Verões,
16. Aí dormindo, confeccionando e tomando refeições;
17. Aí recebendo familiares e amigos;
18. Nessa casa fazendo melhoramentos, reparações e obras de conservação,
19. Instalando, mantendo e substituindo equipamento e mobiliário.
20. Nessa casa passavam, com a família, a maior parte dos fins de semana e os festejos e férias do Natal, do Ano Novo e da Páscoa e, sempre que possível, os feriados e os tempos livres.
21. Apenas que, já reformado, o CC e a esposa, DD, passaram a residir permanentemente nessa casa, durante todo o ano, chegando a DD a deter, na Ilha do Farol, durante alguns anos consecutivos a exploração de Minimercado, de Posto de Padaria e de um pequeno quiosque.
22: Apenas que, desde a sua ocupação e até hoje, de forma ininterrupta e sucessiva, pelo CC e mulher e, agora, pelos seus filhos, a aludida casa sempre foi utilizada, reparada, melhorada, beneficiada, equipada e possuída, à vista de todos - incluindo autoridades marítimas, nomeadamente os cabos de mar e Guarda Fiscal -, sem recurso a violência e com exclusão de terceiros.
23. Apenas que ocupação e construção levada a cabo pelo CC e, depois, pelos seus filhos, foi efectuada à vista de toda a gente, designadamente dos cabos de mar.
24. Houve públicos anúncios e promessas de futura legalização das construções efectuadas, que os políticos garantiam nas sucessivas campanhas eleitorais (autárquicas e legislativas).
25. Apenas que, a ocupação da parcela indicada para a construção ocorreu à vista de todos e sem oposição de quem quer que fosse, nomeadamente dos cabos de mar e guarda fiscal, que acompanharam a construção da casa.
26. Apenas que, sendo a face visível do Estado ante os particulares, as autoridades aludidas em 25 mantinham no local, com permanência e/ou em patrulhamento regular, agentes, funcionários e representantes.
27. BB e a sua irmã - e antes destes, os seus pais - utilizam a casa nos termos que supra se indicaram, desde 1972/1973;
28. Aonde vão quando assim pretendem e decidem, ao longo dos anos, aí dormindo em largos períodos do ano, com as respectivas famílias;
29. Aí confeccionando e tomando as refeições, recebendo amigos, mantendo os seus móveis, pertences e utensílios domésticos, aí cuidando do pequeno espaço de logradouro que integra a casa, da qual têm a chave e a inteira disponibilidade, com exclusão de terceiros, que não os seus descendentes.
30. Tudo o que, aliás, já vinham fazendo os seus pais.
31. À data em que a casa em alusão foi construída (1972/1973), atenta a sua localização, não estava sujeita a licenciamento municipal da Câmara Municipal de Faro (não carecia de licenciamento nem de construção, nem de utilização, por se localizar na Ilha do Farol),
32. A distância actual da casa aludida em I e as margens das águas de mar é de l6,39metros.

Da contestação do Réu Estado
33. O sistema da Ria Formosa constitui uma unidade morfológica, que engloba duas penínsulas e cinco ilhas barreira, Ilhas da Barreta, Culatra, Armona, Tavira e Cabanas, individualizadas por seis barras de maré.
34. O sistema de barreiras arenosas protege e assegura a manutenção o sistema lagunar, nomeadamente exercendo o efeito barreira contra os processos de galgamento oceânico e de erosão provocada pelas ondas e pelo vento.
35. Nos últimos séculos a localização e o número das barras de maré e, simultaneamente, o número e forma das ilhas, têm variado, traduzindo a dinâmica do sistema de ilhas-barreira que caracteriza a Ria Formosa.
36. As barras referidas têm carácter migratório, deslocando-se ao longo do tempo, acabando por assorear e abrindo-se então nova barra, sendo as ilhas progressivamente destruídas e construídas durante esse processo;
37. As alterações e dinâmica das barras e das ilhas resultam do movimento das areias transportadas pelas águas, sendo a Ilha da Culatra formada pela progressiva deposição de areia e assim constituída em toda a sua extensão por areais formados por tal deposição.
38. O movimento e transporte das areias aludidas em 37 ocorre em águas marinhas.
39. A 8 de Maio de 1986, a Comissão de Domínio Público Marítimo emitiu parecer aprovado por unanimidade no sentido de que se autorizasse a transferência de um terreno com a área de 1.024.324 m2 para a Marinha na ilha da Culatra.
40. Ao longo dos anos, através dos seus diversos departamentos, o Estado emitiu diversas licenças, por períodos limitados de tempo, para, nomeadamente, legalização e manutenção de barracas na ilha da Culatra.
41. Nas licenças referidas em 40 dos factos provados, consta, de forma expressa, que os terrenos em apreço pertencem ao "domínio público marítimo".

Da contestação da Ré "Polis Litoral Ria Formosa - Sociedade para a requalificação e Valorização da Ria Formosa S.A."
42. Por certidão de 17/03/2016, subscrita pelo Sr. Vice-Presidente do conselho directivo da APA, LP., foi declarado que:
«Para os devidos efeitos, a Agência Portuguesa do Ambiente, LP., certifica, com fundamento na Nota Técnica - DLPC n02/2015, anexa à Informação nº 1006057-201505-DLPC, de 5 de maio de 2015, cujas cópia que se juntam abrangem 49 folhas, numeradas e rubricadas, que a unidade morfológica comummente denominada Ilha da Culatra, bem como as restantes ilhas barreira da Ria Formosa, são consideradas leitos das águas do mar, na acepção do artigo 10º, nº 1, da Lei n° 54/2005, de 15 de novembro, por as características do solo terem a natureza de areais formados por deposição aluvial, pertencendo ao domínio público marítimo do Estado, nos termos dos artigos lº, nº l, 3º alínea c), e 4º mesma Lei.».
43. A referida Nota Técnica, constante da Informação n.º l006057-201S0S- DLPC, de OS/OS/2015, mereceu despacho de concordância do Sr. Presidente da APA, LP, datado de 05/0S/201S.

***
III. Nos termos do disposto nos art.ºs 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, ambos do N.C.P.C., o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n.º 2 do art.º 608º do mesmo Código.

As questões a decidir resumem-se, pois, a saber:
a) Quais os efeitos jurídicos para este Processo, nomeadamente no domínio da sua força probatória, da “certidão” emitida pela Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., junta a fls. 153 e sgs.;
b) Da qualificação morfológica das Ilhas Barreira da Ria Formosa, nomeadamente da denominada Ilha da Culatra;
c) Da integração das Ilhas Barreira, em particular da Ilha da Culatra, no Domínio Público Marítimo;
d) Qual a solução a dar ao pleito.

A primeira questão a decidir, prende-se com a definição dos efeitos jurídicos para este Processo, nomeadamente no domínio da sua força probatória, da “certidão” emitida pela Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., junta a fls. 153 e sgs.

Entendeu o legislador moderno, conhecendo a complexidade dos litígios entre o Estado e os particulares, quanto à dominialidade pública ou privada dos recursos hídricos, deixar à competência dos Tribunais Comuns a decisão dos atinentes conflitos entre o Estado e os particulares.
São afloramentos desse princípio geral, pilar constituinte do Estado de Direito, que tem expressão constitucional no art.º 202º da Constituição da República Portuguesa, o disposto nos art.ºs 15º, n.º1 e 16º, n.º 5, ambos da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, princípio esse que devemos estender a todos os litígios relativos aos recursos hídricos, nomeadamente no que ao caso interessa, à dominialidade das formações naturais no leito do mar.
Perante este quadro, qualquer acto pelo qual a Administração se pronuncie sobre a dominialidade do Estado quanto a determinado recurso hídrico natural, enquadrando-o no âmbito do domínio público hídrico, não poderá, nunca, em caso de litígio sobre a matéria com um particular, ter qualquer prevalência probatória, sob pena de desequilibrar a relação de forças perante os Tribunais, entre o Estado e os particulares.

No caso em apreço, estamos perante um “certidão” emanada da Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., e subscrita pelo Vice-Presidente do seu Conselho Directivo, que nos diz o seguinte: ”Para os devidos efeitos, a Agência Portuguesa do Ambiente, I.P. certifica, com fundamento na Nota Técnica – DLPC n.º 2/2015, anexa à informação n.º 1006057-201505-DLPC, de 5 de maio de 2015, cujas cópias que se juntam abrangem 49 folhas, numeradas e rubricadas, que a unidade morfológica comummente denominada Ilha da Culatra, bem como as restantes ilhas barreira da Ria Formosa, são consideradas leito das águas do mar na aceção do artigo 10º, n.º1 da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, por as características do solo terem a natureza de areais formados por deposição aluvial, pertencendo ao domínio público marítimo do Estado, nos termos dos artigos 1º, n.º1, 3º, alínea c) e 4 da mesma Lei.”
Por anexo ao texto certificativo, a Ré Polis juntou aos autos, uma Informação dos competentes Serviços da Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., qualificada pelos mesmos como Nota Técnica, tendo por assunto “o Domínio Público Marítimo nas Ilhas-Barreira da Ria Formosa (Península do Ancão, Ilha da Barreta, Ilha da Culatra, Ilha da Armona, Ilha de Tavira, Ilha de Cabanas e Península de Cacela)”, em que se “discute e analisa os aspectos tidos como relevantes para melhor compreender e esclarecer esta temática, de modo a suportar a tomada de decisão em relação à ocupação actualmente verificada em determinadas áreas das ilhas-barreira.”

Na definição do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, “certidão” é o “documento legal com o qual se atesta ou certifica como verdadeiro determinado dado, acto ou facto”.
Tratando-se de certidões de teor extraídas de documentos existentes em repartições públicas, têm a força probatória dos respectivos originais, nos termos do art.º 383º do Cód. Civ., não podendo as certidões extravasar os limites da sua certificação, ou seja ir para além do documento que certificam.
Da leitura do documento anexo ao texto certificativo, verifica-se que se trata de um parecer técnico/histórico/jurídico dos serviços técnicos Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., sob a forma de informação, que mereceu a concordância do Presidente do Conselho Directivo da Agência Portuguesa do Ambiente, I.P..
Do que se pode retirar que, a partir do Despacho do Sr. Presidente do Conselho Directivo da Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., a Nota Técnica acima referida, passou a ser o Parecer da Agência Portuguesa do Ambiente, I.P. sobre o assunto, que aliás foi enviado, como tal, à Sociedade Polis.
Sendo assim, como não pode deixar de ser, o que o texto certificativo devia documentar era que Agência Portuguesa do Ambiente, I.P. tinha emitido um parecer sobre o assunto “o Domínio Público Marítimo nas Ilhas-Barreira da Ria Formosa (Península do Ancão, Ilha da Barreta, Ilha da Culatra, Ilha da Armona, Ilha de Tavira, Ilha de Cabanas e Península de Cacela)” de que se juntava cópia integral.
Tudo o mais que o texto certificativo pretenda certificar, extravasa por completo as funções da certidão em causa, pelo que não pode ser atendido nestes autos.

Aqui chegados, o documento em apreço, como vimos dizendo, consiste num parecer técnico/histórico/jurídico da Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., sobre o assunto “o Domínio Público Marítimo nas Ilhas-Barreira da Ria Formosa (Península do Ancão, Ilha da Barreta, Ilha da Culatra, Ilha da Armona, Ilha de Tavira, Ilha de Cabanas e Península de Cacela)”.
Por ter sido emitida por uma Entidade Pública, no âmbito das suas competências, esta “certidão”, na delimitação que lhe demos, tem a mesma força probatória do original que certifica, em face do disposto no art.º 383º do Cód. Civil, original esse que deve ser qualificado como documento autêntico.

Como decorre do disposto no n.º1 do art.º 371º do Cód. Civ. “Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que se referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador.
Do que decorre que “ O valor probatório pleno do documento autêntico não respeita a tudo o que se diz ou se contém no documento, mas somente aos factos que se referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo (ex.: procedi a este ou àquele exame), e quanto aos factos que são referidos no documento com base nas percepções da entidade documentadora. Se, no documento, o notário afirma que, perante ele, o outorgante disse isto ou aquilo, fica plenamente provado que o outorgante o disse, mas não fica provado que seja verdadeira a afirmação do outorgante, ou que esta não tenha sido viciada por erro, dolo ou coacção, ou que o acto não seja simulado (…). Um exemplo: numa escritura de compra e venda de imóveis o vendedor declara que recebeu o preço convencionado; o documento só faz prova plena de que esta declaração foi proferida perante o notário, nada impedindo que mais tarde se prove que ela foi simulada e que o preço não foi pago (…)” (Antunes Varela, Cód. Civ. Anotado, Vol. I, em nota ao art.º 371º).
Reforçando o valor probatório dos documentos autênticos, na parte em que fazem prova plena do seu teor, dispõe o art.º 372º do Cód. Civ. que a força probatória dos documentos autênticos, consagrada no n.º1 do art.º 371º, só pode ser ilidida com base na falsidade.

O documento certificado, ou seja o Parecer da Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., consubstancia-se numa análise técnico/jurídica sobre o Domínio Público Marítimo nas Ilhas-Barreira da Ria Formosa, pelo que, enquanto expressão da opinião técnico/ jurídica da Entidade Pública Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., deve ser enquadrado, para efeitos probatórios, na última parte do disposto no n.º1 do art.º 371º do Cód. Civ., ou seja, sujeito à livre apreciação do julgador.

Neste sentido vai também o Acórdão desta Relação de 08/03/2018 (Relator Francisco Matos), proferido no Processo n.º 1146/16.9T8FAR.E1, do seguinte teor (extracto):
Convém iniciar por apontar o óbvio; não está em causa a força probatória da certidão enquanto tal, mais concretamente a sua conformidade com o original de que foi extraída (artº 385º, do CC), mas a força probatória deste último; a conformidade da certidão com original não foi questionada e, como tal, para os autos, podemos com a necessária segurança assentar que foi expedida por depositário público autorizado (artº 383º, nº 1, do CC) e que retrata fielmente o original que reproduz, mostrando-se a sua força probatória dependente, no dizer da lei, da força probatória que vier a ser conferida ao original (artº 383º, nº 1, do CC).
Este apontamento justifica-se porque a decisão recorrida, na fundamentação de direito – e não na motivação de facto, como cremos tecnicamente apropriado – faz menção a uma nota técnica do Departamento do Litoral e Proteção Costeira que, enquanto documento particular não impugnado, também justificaria a prova plena da matéria julgada assente de 1 a 6.
Se bem vemos, há nesta argumentação dois equívocos; o primeiro, resultante de se haver desconsiderado que os documentos particulares só fazerem prova plena das declarações atribuídas ao seu autor depois deste reconhecer que é sua a letra ou a assinatura (artºs 374º e 376º do CC) e que não é manifestamente o caso, porque a nota técnica se mostra subscrita por dois técnicos superiores do referido Departamento e não pelo A., assim, soçobrando a sua força probatória, enquanto documento particular, contra este; o segundo, porque a nota técnica constitui precisamente parte do documento original donde foi extraída a certidão – esta certifica uma nota técnica, uma informação de serviço e um despacho – e, nesta medida, constitui parte integrante da certidão da APA que a sentença considera, e nos autos não se questiona, um documento autêntico.
A força probatória que nos interessa é, assim, a do documento que a certidão reproduz para a qual releva o disposto no artº 371º, do Código Civil, que dispõe:
“1. Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador.
2. Se o documento contiver palavras emendadas, truncadas ou escritas sobre rasuras ou entrelinhas, sem a devida ressalva, determinará o julgador livremente a medida em que os vícios externos do documento excluem ou reduzem a sua força probatória.”
Pondo de parte a previsão do nº 2, por irrelevante para os autos, os documentos autênticos apenas fazem prova plena sobre duas espécies de factos:
- aqueles que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo;
- aqueles que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora.
A força probatória material dos documentos autênticos circunscreve-se, assim, na lição de Manuel de Andrade, “(…) à veracidade das atestações do funcionário documentador (nos limites da sua competência), até onde versem atos praticados por ele próprio, ou praticados na sua presença (declarações emitidas, entregas em dinheiro, etc.), isto é, sobre ações e perceções suas (quorum notitiam et scientiam habet propriis, visus et auditus). (…) O documento faz assim prova plena quanto à materialidade (prática, efetivação) de tais atos e declarações; mas não quanto à sua sinceridade, à veracidade ou à falta de qualquer outro vício ou anomalia”.[3]
As razões desta força probatória, seguindo na mesma lição, entroncam na “(…) fé pública atribuída ao funcionário documentador, com as respetivas garantias preventivas (recrutamento cauteloso, inspeções, caução) e repressivas (sanções disciplinares, civis e criminais” e na “(…) própria natureza das atestações a que se reconhece tal força, pois, versando elas sobre factos de que o funcionário se certificou propriis sensibus, visu et auditu, está praticamente excluída a possibilidade de erro.”[4]
Opinião perfilhada por Alberto dos Reis: “Tenha-se sempre presente que a prova plena atribuída ao documento autêntico é consequência da fé pública de que o funcionário está revestido, segundo a lei. Ora essa fé só pode abranger os factos de que o funcionário foi agente ou testemunha, isto é, os factos que ele próprio executou e os que se passaram na sua presença, que ele viu ou ouviu (…). A fé pública do notário ou do funcionário cobre as suas ações e as suas perceções; mas não pode ir além destes limites”.[5]
Fora da fé pública ficam os “juízos pessoais do documentador” sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova.
A distinção entre os factos praticados pelo documentador e os juízos pessoais do documentador, decorrendo já da génese da própria formulação tem, a nosso ver, relevância para os autos; a primeira reporta-se a factos, a segunda a juízos, ou seja, a lei não confere força probatória plena aos juízos dos funcionários, mas tão só aos factos que os documentos referem por eles praticados ou percecionados.
O que se compreende, os juízos são suscetíveis de erro e os factos não (existem ou não existem).
Por esta razão – suscetibilidade de erro dos juízos – as sentenças emanados dos tribunais, juízos pessoais por excelência, produzem efeitos na ordem jurídica não por razões de validade ou coerência intrínsecas, mas por razões extrínsecas; o que confere força obrigatória à sentença é o trânsito em julgado (artº 619º, nº 1, do CPC) e não a valia dos seus argumentos ou justeza da decisão, justa ou injusta, a sentença transitada torna-se obrigatória dentro e fora do processo nos termos em que a lei o prevê (artº 619º, nº 1, do CPC); ora, traduzindo a sentença, por natureza, um juízo para cuja formação concorrem ativamente as partes em conflito, já se vê que o juízo formulado por uma autoridade ou oficial público, sem qualquer intervenção ou influência dos interessados, não poderia, sem mais, considerar-se verdadeiro, no sentido de insuscetível de erro, ou na terminologia da lei real (artº 341º, do CC).
Os juízos do documentador podem incidir sobre factos e, sendo outra a sua natureza, podem envolver factos por si praticados ou percecionados, sendo da maior importância distinguir uns e outros, uma vez que só os segundos gozam de fé pública.
Citando outros, Alberto dos Reis, anota: “Uma coisa são os factos praticados pelo funcionário e os ocorridos na sua presença, outra as apreciações do mesmo funcionário. Estas são fruto do seu trabalho intelectual, a que não pode atribuir-se presunção de infabilidade, pelo que tais apreciações são suscetíveis de impugnação mediante simples prova em contrário, sem que seja necessário argui-las de falsas.”[6]
A distinção entre os factos praticados pelo documentador e ocorridos na sua presença e os juízos por este formulados está pois, em implicarem estes últimos, uma operação intelectual, ou seja, algum tipo de conhecimento que entra em relação com o facto e permite a sua apreensão, não por via da simples perceção mas por via de um qualquer adquirido (ou emprestado) saber; neste sentido, os factos praticados pelo documentador e os ocorridos na sua presença são os apreensíveis pelos sentidos (visão, audição, etc.), enquanto os juízos pessoais do documentador, ainda que sobre factos – ou supondo-os – são apreensíveis pelo intelecto, o juízo envolve uma operação logico-racional que a simples perceção do facto dispensa; no primeiro caso, o documentador executa ou constata imediatamente os factos, no segundo caso, a constatação é mediata, no sentido que a apreensão do facto resulta da intermediação de um qualquer saber ou conhecimento.
Se, como cremos, estivermos certos nesta nossa aceção e adiantando, a certidão da APA, na parte em que serve de fundamento à matéria considerada assente nos pontos 1 a 6 supra constitui um caso típico de juízo pessoal do documentador, por comportar um ato opinativo elaborado por peritos especializados num determinado ramo do saber, ou com mais propriedade, um parecer tal como resulta da lição de Batista Machado: “(…) uma opinião crítica autorizada, em que são aprofundados os mais difíceis problemas técnicos, jurídicos e políticos e proposta uma solução final firmada em fundamentos cuidadosamente apurados, depois de examinados todos os ângulos e possíveis incidências de tal solução.”[7]
Demonstrando.
A nota técnica que a certidão documenta termina com as seguintes conclusões:
“O sistema de ilhas-barreira da Ria Formosa carateriza-se por uma intensa morfodinâmica de constantes variações naturais (migração dos areais e galgamentos oceânicos). Todas as suas unidades arenosas (península do Ancão, Ilha da Barreta, Ilha da Culatra, Ilha da Armona, Ilha de Tavira, Ilha de Cabanas e península da Cacela) têm efetivamente génese aluvionar, sendo constituídas por areais mobilizados pela ação conjunta das ondas e corrente de maré.
Consequentemente, nos termos do disposto no artº 10º, nº 1, da Lei 54/2005, as ilhas barreira devem ser consideradas, à face da lei, como parte integrante do leito das águas do mar e, por conseguinte, compreendidas no domínio público marítimo pertencente ao Estado: primeiro, porque são formadas por efeito de aluviões; e segundo, porque se modificam constantemente em virtude da dinâmica dos areais, acontecendo com frequência que tais ilhas sofrem importantes modificações morfológicas nos seus extremos, alternando fases de erosão com acumulação”.
Pondo de parte as considerações de direito, por evidenciarem juízos pessoais do documentador de que ninguém duvidará, resta-nos (i) a intensa morfodinâmica de constantes variações naturais (migração dos areais e galgamentos oceânicos) que caracteriza o sistema de ilhas-barreira da Ria Formosa e (ii) a génese aluvionar (constituição por areais mobilizados pela ação conjunta das ondas e corrente de maré) de todas as unidades arenosas que compõem o sistema de ilhas-barreira da Ria Formosa (península do Ancão, Ilha da Barreta, Ilha da Culatra, Ilha da Armona, Ilha de Tavira, Ilha de Cabanas e península da Cacela).
A apreensão destes factos resultou, no dizer da nota técnica, de “representações cartográficas”, de “descrições coevas”, do “padrão geral identificado pela bibliografia (Dias, 1988, Andrade, 1990)” e do estudo elaborado por investigadores da Universidade do Algarve (Bernardo e Dias, 2002)”, ou seja, nenhum deles foi percecionado (afastada que se mostra, por natureza, a possibilidade da sua execução) pelos técnicos que o subscreveram e a sua apreensão não dispensou a interpretação de documentos – representações cartográficas – e a aplicação de saberes técnicos - padrão geral identificado pela bibliografia e estudo elaborado por investigadores da Universidade do Algarve – numa apreciação intelectual que concorreu a final para a apreensão dos factos anotados nas conclusões e, assim, em juízos pessoais do documentador que, por falíveis, não fazem fé pública.
Aliás, a decisão recorrida, divergindo desta conclusão, converge nos pressupostos ao designadamente consignar: “É de realçar que esta declaração é emitida com fundamento em estudos científicos (…)”.
Não está em causa, nesta fase, dizê-lo é anotar o óbvio, o acerto ou valia intrínseca do juízo técnico, ou pericial, que a nota técnica documenta, mas tão só a constatação desta sua natureza, pois é ela que obsta aos efeitos – força probatória plena – que a decisão recorrida atribuiu ao documento.
Assim, e revendo o relator o entendimento expresso no acórdão desta Relação de 11/1/2018[8], subscrito enquanto 1º adjunto, conclui-se que a nota técnica donde foi extraída a certidão da APA, junta aos autos designadamente de fls. 131 a 165, em contrário do ajuizado na decisão recorrida, não faz prova plena quanto à matéria julgada provada nos pontos 1 a 6, comportando meros juízos pessoais do documentador, sujeitos à livre apreciação do julgador, o que significa para os autos, que tal matéria permanece controvertida (o A. alega que a sua casa se situa numa ilha e os RR defendem que a casa se situa em areais formados por deposição aluvial) e, assim, carecida de prova.
…”
Concluindo, quanto a esta primeira questão, o Parecer da Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., consubstanciando-se numa análise técnico/jurídica sobre o Domínio Público Marítimo nas Ilhas-Barreira da Ria Formosa, deve ser enquadrado, para efeitos probatórios, na última parte do disposto no n.º1 do art.º 371º do Cód. Civ., ou seja, sujeito à livre apreciação do julgador.

Prende-se a segunda questão, com a qualificação morfológica das Ilhas Barreira da Ria Formosa, nomeadamente da denominada Ilha da Culatra.
E a terceira questão, com a integração das Ilhas Barreira, em particular da Ilha da Culatra, no Domínio Público Marítimo.
Abordaremos estas questões, em simultâneo, por facilidade de raciocínio.

Numa introdução histórica sobre as fontes que se sucederam quanto à delimitação do domínio público marítimo, diz-nos o Acórdão do STJ de 04/06/2013, proferido no Proc.º n.º 584/06.2TBVNG.P1.S1 (extracto):
“Para melhor compreensão da legislação vigente, e antes de entrarmos na sua análise, façamos um breve excurso nas suas fontes históricas, para dizer que foi com a entrada em vigor do remoto Decreto de 31 de Dezembro de 1864, que a “dominialização” das praias foi expressamente assumida, nele se estabelecendo que eram do domínio público, “imprescritível”, para além das estradas e das ruas, “os portos de mar e praias, os rios navegáveis e flutuáveis com as suas margens, os canais e valas, portos artificiais e docas existentes ou que de futuro se construam” (artigo 2.º).
O Código Civil de 1867, no art. 380.º, classificava como públicas “as águas salgadas das costas, baías, fozes, rias e esteiros...”[12].
Seguiram-se o Decreto nº 8, de 1 de Dezembro de 1892[13], que aprovou a organização dos serviços hidráulicos, considerando serem públicas “as águas salgadas das costas, enseadas, baías, portos, docas, fozes, rios, esteiros e respectivos leitos, cais e praias, até onde se alcançasse o colo da máxima preia-mar de águas vivas”, e o Decreto nº 952, de 15 de Outubro de 1914, no qual se fixou um limite externo para a jurisdição marítima em terrenos do domínio público, determinando-se que a mesma se estendia a uma “faixa de 50m de largura a contar da linha da máxima preia-mar de águas vivas”.
Cabe referir também o Decreto nº 5787-IIII, de 10 de Maio de 1919, designado por “Lei das Águas”, que reuniu diversas disposições que se encontravam dispersas sobre recursos hídricos, e o Decreto nº 12.445, de 29 de Setembro de 1926 que estabeleceu considerar-se como margem sujeita à fiscalização dos Serviços Hidráulicos nas águas marítimas uma faixa mínima com 50 metros de largura contada a partir da linha do máximo preamar (art. 14.º, nº 3).
Finalmente, surge o DL nº 468/71, de 5/11[14], a proceder à revisão, actualização e unificação do regime jurídico dos terrenos incluídos no domínio público hídrico abrangendo, nos termos do artigo 1.º, “Os leitos das águas do mar, correntes de água, lagos e lagoas, bem como as respectivas margens e zonas adjacentes”, segundo as definições constantes dos artigos seguintes.
Este diploma só anos mais tarde veio a ser revogado pela Lei nº 54/2005, de 15/11, que estabeleceu a titularidade dos recursos hídricos, e pela Lei nº 58/2005, de 29/12 que estabeleceu as bases e o quadro institucional para a gestão sustentável das águas.
Actualmente, de acordo com a Constituição ..., pertencem ao domínio público (art. 84.º, n.º 1, alínea a)), não só as águas territoriais, que abrangem fundamentalmente as águas exteriores onde se incluem o mar territorial e águas arquipelágicas[15], com os seus leitos e os fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respectivos leitos, mas também (art. 84.º, n.º 1, alínea f)) outros bens como tal classificados por lei.”

Em face da legislação em vigor, plasmada na Lei 54/2005, relevam para o caso, as seguintes disposições:
Artigo 2.º
Domínio público hídrico
1 - O domínio público hídrico compreende o domínio público marítimo, o domínio público lacustre e fluvial e o domínio público das restantes águas.
2 - O domínio público hídrico pode pertencer ao Estado, às Regiões Autónomas e aos municípios e freguesias.

Artigo 3.º
Domínio público marítimo
O domínio público marítimo compreende:
a) As águas costeiras e territoriais;
b) As águas interiores sujeitas à influência das marés, nos rios, lagos e lagoas;
c) O leito das águas costeiras e territoriais e das águas interiores sujeitas à influência das marés;
d) Os fundos marinhos contíguos da plataforma continental, abrangendo toda a zona económica exclusiva;
e) As margens das águas costeiras e das águas interiores sujeitas à influência das marés.

Artigo 4.º
Titularidade do domínio público marítimo
O domínio público marítimo pertence ao Estado.

Artigo 5.º
Domínio público lacustre e fluvial
O domínio público lacustre e fluvial compreende:
a) Cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respectivos leitos, e ainda as margens pertencentes a entes públicos;
b) Lagos e lagoas navegáveis ou flutuáveis, com os respectivos leitos, e ainda as margens pertencentes a entes públicos;
c) Cursos de água não navegáveis nem flutuáveis, com os respectivos leitos e margens, desde que localizados em terrenos públicos, ou os que por lei sejam reconhecidos como aproveitáveis para fins de utilidade pública, como a produção de energia eléctrica, irrigação, ou canalização de água para consumo público;
d) Canais e valas navegáveis ou flutuáveis, ou abertos por entes públicos, e as respectivas águas;
e) Albufeiras criadas para fins de utilidade pública, nomeadamente produção de energia eléctrica ou irrigação, com os respectivos leitos;
f) Lagos e lagoas não navegáveis ou flutuáveis, com os respectivos leitos e margens, formados pela natureza em terrenos públicos;
g) Lagos e lagoas circundados por diferentes prédios particulares ou existentes dentro de um prédio particular, quando tais lagos e lagoas sejam alimentados por corrente pública;
h) Cursos de água não navegáveis nem flutuáveis nascidos em prédios privados, logo que transponham abandonados os limites dos terrenos ou prédios onde nasceram ou para onde foram conduzidos pelo seu dono, se no final forem lançar-se no mar ou em outras águas públicas.

Artigo 6.º
Titularidade do domínio público lacustre e fluvial
1 - O domínio público lacustre e fluvial pertence ao Estado ou, nas Regiões Autónomas, à respectiva Região, salvo nos casos previstos nos números seguintes.
2 - Pertencem ao domínio público hídrico do município os lagos e lagoas situados integralmente em terrenos municipais ou em terrenos baldios e de logradouro comum municipal.
3 - Pertencem ao domínio público hídrico das freguesias os lagos e lagoas situados integralmente em terrenos das freguesias ou em terrenos baldios e de logradouro comum paroquiais.
4 - O disposto nos números anteriores deve entender-se sem prejuízo dos direitos reconhecidos nas alíneas d), e) e f) do n.o 1 do artigo 1386.o e no artigo 1387.º do Código Civil.

Artigo 10.º
Noção de leito; seus limites
1 - Entende-se por leito o terreno coberto pelas águas quando não influenciadas por cheias extraordinárias, inundações ou tempestades. No leito compreendem-se os mouchões, lodeiros e areais nele formados por deposição aluvial.
2 - O leito das águas do mar, bem como das demais águas sujeitas à influência das marés, é limitado pela linha da máxima preia-mar de águas vivas equinociais.
Essa linha é definida, para cada local, em função do espraiamento das vagas em condições médias de agitação do mar, no primeiro caso, e em condições de cheias médias, no segundo.
3 - O leito das restantes águas é limitado pela linha que corresponder à estrema dos terrenos que as águas cobrem em condições de cheias médias, sem transbordar para o solo natural, habitualmente enxuto. Essa linha é definida, conforme os casos, pela aresta ou crista superior do talude marginal ou pelo alinhamento da aresta ou crista do talude molhado das motas, cômoros, valados, tapadas ou muros marginais.

Artigo 11.º
Noção de margem; sua largura
1 - Entende-se por margem uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas.
2 - A margem das águas do mar, bem como a das águas navegáveis ou flutuáveis que se encontram à data da entrada em vigor desta lei sujeitas à jurisdição das autoridades marítimas e portuárias, tem a largura de 50 m.
3 - A margem das restantes águas navegáveis ou flutuáveis tem a largura de 30 m.
4 - A margem das águas não navegáveis nem flutuáveis, nomeadamente torrentes, barrancos e córregos de caudal descontínuo, tem a largura de 10 m.
5 - Quando tiver natureza de praia em extensão superior à estabelecida nos números anteriores, a margem estende-se até onde o terreno apresentar tal natureza.
6 - A largura da margem conta-se a partir da linha limite do leito. Se, porém, esta linha atingir arribas alcantiladas, a largura da margem é contada a partir da crista do alcantil.
7 - Nas Regiões Autónomas, se a margem atingir uma estrada regional ou municipal existente, a sua largura só se estende até essa via.

Compulsadas as normas citadas, afigura-se-nos ressaltar a ideia do legislador, plasmada nas referidas normas, que, como regra, pertencem ao domínio público hídrico não só as águas do mar e dos cursos de água flutuáveis ou navegáveis, como os seus leitos, incluindo nestes todas as formações naturais que aí emerjam, e ainda as respectivas margens.
No fundo, o que o legislador pretende estabelecer é a integração no domínio público, em plena propriedade, denominemos assim para dar a ordem da respectiva grandeza, de todo um espaço físico que compreende não só as águas classificadas como do domínio público, os leitos que as suportam, estendidos estes até às respectivas margens e ainda todas as formações naturais que emerjam nesse mesmo espaço, a saber os mouchões, lodeiros e areais nele formados por deposição aluvial.

Pode-se questionar se a expressão depósito aluvial a que alude o n.º1 do art.º 10º, é a mais correcta, do ponto de vista científico, para qualificar o depósito de areias num determinado local do leito de mar, devido ao fluxo e refluxo do mar ou à acção das ondas, que, por via da sua acumulação, emerja à sua superfície criando como que uma ilha de areias.
Bem sabemos que, muitas das vezes, as noções jurídicas e científicas não coincidem em absoluto, devendo prevalecer, pela sua força legal, as normas jurídicas.
Como acima dissemos, afigura-se-nos poder retirar da legislação em vigor, que o legislador quis consagrar na lei, a plena propriedade do Estado sobre determinados espaços hídricos, em que se incluirão, necessariamente, as formações resultantes de depósitos aluviais, entendidas estas em sentido não rigorosamente científico, ou seja no sentido do depósito de materiais sobre o leito do mar ou de cursos de água que emerjam dessas águas.
Não seria compreensível, em nosso entender, que um depósito de areias formando uma elevação num determinado local do leito do mar, por acção do fluxo ou refluxo do mar ou pela acção das ondas, mas que não emergisse do mesmo, fosse considerado _ como ninguém discute que o seja _, como fazendo parte do domínio público hídrico e, se emergir já não faça parte desse mesmo domínio público hídrico, por não se integrar no conceito científico de depósito aluvial.

Daí que, em conformidade com a lei em vigor, na melhor interpretação que pensamos retirar do seu dispositivo, pertencem ao domínio público hídrico, as águas do mar, o seu leito e todas as formações naturais que aí emerjam, nomeadamente, e no que interessa ao caso, as ilhas de areia que resultem de deposição aluvial, entendida esta deposição como abrangendo também o depósito de areias devido ao fluxo e refluxo do mar e à acção das ondas.

Aqui chegados, podemos concluir que os depósitos de areias que resultam do fluxo ou do refluxo do mar, ou da acção das ondas, que emerjam do mesmo, formando ilhas de areia, devam ser considerados como fazendo parte do domínio público marítimo, e, como tal, pertença do Estado.

Em conformidade com o disposto no n.º 2 do art.º 202º do Código Civil, os bens que pertencem ao domínio público do Estado estão fora do comércio jurídico, sendo insusceptíveis de apropriação individual, e por isso não é admissível a sua aquisição originária por usucapião.

Pelo que importa concluir, descendo ao caso dos autos, que “ sendo a Ilha da Culatra formada pela progressiva deposição de areia e assim constituída em toda a sua extensão por areais formados por tal deposição” (Ponto 37 dos Factos Provados), faz parte, nos termos do disposto nos art.º 3º, alíneas a) e c), 4º e 10º, n.º1, do domínio público marítimo, pertença do Estado Português, e por isso insusceptível de apropriação individual, nomeadamente por aquisição por usucapião.

No mesmo sentido, embora com alguns argumentos diversos, vai o Acórdão deste Tribunal proferido no Processo n.º 13/09/2018 (Relator Francisco Matos), proferido no Proc. n.º 761/16.5T8FAR.E1, do seguinte teor (extracto):
“3. Direito.
3.1. Se a Ilha da Culatra não pertence ao domínio público do Estado.
A decisão recorrida concluiu que as ilhas barreira da Ria Formosa e, em concreto, a ilha da Culatra integram o domínio público marítimo e, como tal, são coisas fora do comércio insuscetíveis de apropriação individual, assim declinando a pretensão dos AA destinada ao reconhecimento da apropriação, por usucapião, de parte dos solos da referida Ilha.
A imprescritibilidade aquisitiva de coisas do domínio público resulta da sua inserção legal como coisas fora do comércio (artº 202º, nº 2, do CC) e, assim, o seu uso é insuscetível de atribuir posse (artº 1267º, al. b), do CC), instituição do comércio jurídico privado, princípio geral de imprescritibilidade especialmente reiterado, quanto a bens imóveis, pelo D.L. nº 280/2007, de 7/8, ao estabelecer que os imóveis do domínio público não são suscetíveis de aquisição por usucapião (artº 19º).
Os AA não questionam a vigência e amplitude deste regime mas defendem a sua inaplicabilidade ao caso dos autos, argumentando essencialmente que a Ilha da Culatra é uma Ilha, isto é, uma formação natural de terra, rodeada de água, que fica a descoberto na preia-mar, tal como definida pelo artº 121º, nº 1, da Convenção da Nações Unidas sobre o Direito do Mar, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 60-B/97, de 14/10 e não um lodeiro, mouchão ou areal aluvionar que só existe nos rios e nas zonas estuarinas, condições naturais imprescindíveis à sua inclusão no domínio público marítimo.
A resolução desta inicial questão convoca a disciplina dos artºs. 3º, 4º, 10º e 11º da Lei 54/2005, de 15/11, que dispõem respetivamente:

A inclusão das águas territoriais com os seus leitos e dos fundos marinhos contíguos no domínio público do Estado decorre da Constituição da República Portuguesa [artº 84º, nº 1, al. a)], à semelhança do preconizado pela Constituição de 1933 que atribuía ao domínio Público do Estado “as águas marítimas e os seus leitos” (artº 49º, 2º).
Assim e na parte em que os artºs 3º e 4º preveem a inclusão no domínio público do Estado das águas costeiras e territoriais (3º, al. a) e do leito das águas costeiras e territoriais (3º, al. c), 1ª parte), limitam-se a reproduzir a solução constitucional há muito vigente; a novidade da Lei, digamos assim, reside em estabelecer o regime dos terrenos públicos conexos com as águas públicas ou, mais concretamente para o que agora releva, o regime dos terrenos públicos (leitos e margens) conexos com as águas do mar.
Como se anotou, aliás, no preâmbulo do D.L. nº 468/71 de 5/11, que reviu, atualizou e unificou o regime jurídico dos terrenos incluídos no que designou domínio público hídrico, antecedente legislativo da Lei 54/2005 por esta revogado (artº 29º), o diploma embora reportado ao “domínio público hídrico do continente e das ilhas adjacentes (…) não visa regular o regime das águas públicas que o compõem, antes pretende estabelecer apenas o regime dos terrenos públicos conexos com tais águas ou sejam, na terminologia adotada, os leitos, as margens e as zonas adjacentes”.
O leito é o terreno coberto pelas águas, quando não influenciadas por cheias extraordinárias, inundações ou tempestades e nele se compreendem ainda os mouchões, lodeiros e areais nele formados por deposição aluvial (artº 10, nº 1), noção normativa que não coincide com o sentido comum da palavra leito, uma vez que para além da superfície coberta pelas águas, o leite coberto, propriamente dito, também inclui os mouchões (ilhas cultiváveis), lodeiros (acumulações de lodo que emergem das águas) e areais (acumulações de areias que emergem das águas), já designado por leito descoberto.
A margem é a faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas e no caso das águas do mar tem uma largura de 50 metros contados, em princípio, a partir da linha limite do leito, sem prejuízo de se estender para lá dos 50 metros nos casos em que a margem tiver natureza de praia (artº 11º, nºs 1, 2 e 5).
Os nºs 1 dos artºs 10º e 11º estabelecem o que deve entender-se por leito e por margem e os restantes números estabelecem respetivamente os limites do primeiro e da segunda e nesta expressa, e a nosso ver clara, técnica legislativa não se vê forma de defender, como defendem os AA, que a noção de leito constante do nº 1 do artº 10º não se aplica às águas do mar e tão só ao leito das águas lacustres, fluviais e estuarinos e que noção do leito das águas do mar decorre do nº 2 da mesma disposição legal; este número reporta-se, a nosso ver, aos limites do leito das águas do mar – o leito das águas do mar, bem como das demais águas sujeitas à influência das marés, é limitado pela linha da máxima preia-mar de águas vivas equinociais. Essa linha é definida, para cada local, em função do espraiamento das vagas em condições médias de agitação do mar, no primeiro caso, e em condições de cheias médias, no segundo – pressupondo a noção de leito configurada no nº 1 – entende-se por leito o terreno coberto pelas águas quando não influenciadas por cheias extraordinárias, inundações ou tempestades. No leito compreendem-se os mouchões, lodeiros e areais nele formados por deposição aluvial.
O leito compreende os areais nele formados por deposição aluvial e o alcance desta nomenclatura legal - deposição aluvial – suscitou ampla discussão nos autos uma vez que os AA defenderam (e reiteram no recurso) que ela se reporta a rios e outras correntes de água doce e não ocorre em ambientes marinhos, razão pela qual os areais da ilha da Culatra, formados com sedimentos do mar, não são depósitos aluviais, não pertencem ao leito do mar e mostram-se assim excluídos do domínio público.
Numa análise terminológica puramente geológica parecem ter alguma razão, uma vez que o parecer junto aos autos de fls. 1010 a 1015, elaborado por uma professora de geologia, nomeada assistente técnica pelo tribunal, consigna nas suas conclusões que “aluviões são corpos sedimentares única e exclusivamente associados a rios e outras correntes de água doce, incluindo águas torrenciais geradoras de enxurradas como é o caso da madeira” e dos dois professores especialistas na área da geologia ouvidos como testemunhas, apenas um admitiu a possibilidade da expressão aluvião se poder associar a ambientes marinhos, tal como se anota na decisão recorrida.
Facultando, porém, a lei um conceito de aluvião é a este que importa recorrer, uma vez que a unidade do sistema jurídico, enquanto elemento de interpretação, assim o impõe (artº 9º, nº 1, do CC) e o legislador, ao estabelecer as regras da titularidade dos recursos hídricos, não esclareceu o que deve entender-se por deposição aluvial; não o disse na Lei 54/2005, nem o mencionou no revogado D.L. 468/71 que continha idêntica noção de leito – entende-se por leito o terreno coberto pelas águas, quando não influenciadas por cheias extraordinárias, inundações ou tempestades. No leito compreendem-se os mouchões, lodeiros e areais nele formados por deposição aluvial (artº 2º).
Dispõe o artº 1328º, do C.C.:
“Pertence aos donos dos prédios confinantes com quaisquer correntes de água tudo o que, por ação das águas, se lhes unir ou neles for depositado, sucessiva e impercetivelmente.”
Aluviões, para efeitos da lei, são os sedimentos que, por ação das águas, se unirem a um prédio ou neles forem depositados, sucessiva e impercetivelmente.
Conceito normativo que se afasta do conceito geológico uma vez o depósito sucessivo e impercetível que expressamente caracteriza a figura legal de aluvião, afasta as águas torrenciais geradoras de enxurradas incluídas no conceito geológico de aluvião – se a corrente das águas for violenta e arrojar coisas, como no caso das enxurradas, o conceito normativo que lhe corresponde é avulsão (artº 1329º do CC) – e não exclui, a nosso ver, a possibilidade legal dos aluviões ocorrem em ambientes marítimos.
A literatura jurídica, aliás, reporta-se ao aluvião, ou à aluvião, associado às águas do mar; para além da doutrina já citada pela decisão recorrida, em comentário ao artº 1331º, do CC, relativo à formação de ilhas e mouchões, explicam P. Lima e A. Varela que “segundo a lei geral, que é a contida no novo Código, em caso de aluvião, se as ilhas ou mouchões se formarem no mar ou nas correntes navegáveis ou flutuáveis, integram-se no domínio público do Estado”;[1] no mesmo sentido, refere Carvalho Martins que “as aluviões marítimas não pertencem aos proprietários da borda mar. Essas aluviões, em regra, ficam constituindo praia; e fazem parte, sempre, do domínio marítimo do Estado”[2].
Visto o disposto no artº 10º, nº 1, da Lei 54/2005, à luz do conceito de aluvião tal como definido pelo artº 1328º, nº 1, do C.C., o leito das águas costeiras e territoriais comporta o terreno coberto pelas águas e tudo o que, por ação destas, se lhes unir ou nele for depositado, sucessiva e impercetivelmente.
Solução legal que, vistas as coisas, constitui uma emanação do princípio geral segundo o qual pertence ao dono da coisa tudo o que a esta acrescer por efeito da natureza (artº 1327º, do CC); a coisa como ensina Mota Pinto, tem um destino unitário na sua totalidade e, assim, “se uma coisa é unida ou incorporada com outra, por facto natural ou por indústria do homem, aquilo que assim acresceu passa a ser abrangido pelo direito real que incidia a coisa antes do aditamento verificado”[3], assim se compreendendo que pertencendo as águas territoriais com os seus leitos e fundos marinhos contíguos ao domínio público do Estado (artº 84º, nº 1, da CRP) os areais ou ilhas nestas formadas (acrescidas no leito) por deposição aluvial sejam sujeitas a idêntico domínio.
Em conclusão, para efeitos do artº 10º, nº 1, da Lei 54/2005, de 15/11, o leito das águas do mar comporta o terreno coberto pelas águas e os areais nele formados por deposição, sucessiva e impercetível, de tais águas.
No caso dos autos prova-se que a ilha da Culatra se integra num sistema dinâmico de ilhas barreira, cujas alterações resultam do movimento das areias transportadas pelas águas do mar, sendo a Ilha da Culatra formada pela progressiva deposição de areia e assim constituída em toda a sua extensão por areais formados por tal deposição (pontos 371 a 376 do facto provado), razão pela qual se insere no leito das águas costeiras e territoriais, pertencente ao domínio público do Estado e é insuscetível de usucapião.
Havendo sido este o entendimento da decisão recorrida resta confirmá-la, mostrando-se prejudicado o conhecimento da remanescente questão colocada no recurso, pois seja qual for o seu resultado a solução final não se altera.
…”

Concluindo, em face do que acima expusemos, somos levados a concluir que a denominada Ilha da Culatra, pertence ao domínio público marítimo do Estado Português, sendo qualquer das suas parcelas insusceptível de ser adquirida individualmente, nomeadamente por usucapião.

Improcede assim o presente recurso.
***
IV. Decisão
Pelo acima exposto, decide-se pela improcedência do recurso, confirmando-se a Decisão recorrida
Custas pelo Apelante.
Registe e notifique.

Évora, 08 de Novembro de 2018
Silva Rato - Relator
Mata Ribeiro - 1º Adjunto
Sílvio Sousa - 2º Adjunto