I. Na falta de disposição em contrário, o cumprimento do legado incumbe aos herdeiros, no lugar em que se encontrava ao tempo da morte do testador e no prazo de um ano a contar dessa data.
II. A circunstância do imóvel legado se encontrar ocupado pela neta da testadora e filha do herdeiro não impede este de fazer a entrega.
III. Estando o imóvel ocupado por terceiro, o herdeiro tem obrigação de diligenciar pela entrega e, em in extremis, requerer a tutela jurisdicional efetiva, para obter a restituição.
IV. A falta de entrega do legado, dentro do prazo em que devia ter sido realizada, determina o incumprimento da obrigação, sendo o obrigado responsável pelos prejuízos causados ao legatário.
V. Evidenciando-se uma total ausência do dano e, assim, a falta de um dos pressupostos da efetivação da responsabilidade civil, não há obrigação de indemnizar.
I – RELATÓRIO
AA instaurou, em 5 de fevereiro de 2015, no Juízo Central Cível de …, Comarca de Lisboa, contra BB e mulher, CC, ação declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que a Autora fosse declarada legítima proprietária da fração autónoma designada pela letra “Q”, correspondente ao 1.º andar “H”, do prédio urbano sito na Rua …., n.º s 16, 16-A, 18, 20 e 20-A, freguesia da …, concelho de …, e descrita, sob o n.º 1259, na Conservatória do Registo Predial de …, e os Réus condenados a restituírem-lhe o prédio livre e desocupado de pessoas e bens e a pagarem-lhe a quantia de € 7 500,00 por mês, pelo dano de privação do uso do imóvel, desde a citação até à entrega do prédio, acrescida dos juros de mora, à taxa legal.
Para tanto, alegou, em síntese, que, por testamento outorgado em 25 de junho de 2012, DD legou à A., por conta da quota disponível, a referida fração; aquela faleceu em 7 de março de 2013, tendo deixado, como único e universal herdeiro, o R., seu filho, que, invocando ofensa à legítima, não entregou o prédio, continuando a ocupá-lo; esta conduta causa-lhe prejuízos.
Contestaram os Réus, por exceção, invocando a ilegitimidade da Ré, e por impugnação, alegando ter a fração estado sempre na posse de terceiros, e concluindo pela improcedência da ação.
A A. respondeu à matéria de exceção.
Oportunamente, foi proferido o despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a ilegitimidade da R., identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 28 de setembro de 2016, a sentença, que, julgando a ação parcialmente procedente, reconheceu o direito de propriedade da Autora sobre a mencionada fração autónoma e condenou o Réu a entregá-la livre e desocupada de pessoas e bens.
Inconformados, apelaram os Autores e os Réus (estes subordinadamente) para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 26 de junho de 2018, julgando improcedentes as apelações, confirmou a sentença.
Continuando inconformada, a Autora recorreu, em revista excecional, para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou essencialmente as conclusões:
a) É juridicamente impercetível o entendimento seguido no sentido de que o lesante nada tem a pagar, a título de indemnização, pelo dano de privação do uso da coisa em que o lesado apenas prove o valor patrimonial da mesma, que pretendia aliená-la e afetar o produto da alienação a uma sua atividade lucrativa (ou não), mas não prove o valor pelo qual teria vendido a fração, nem a perda pecuniária decorrente da desvalorização da fração no mercado a partir de então, por forma a equacionar os prejuízos sofridos com a demora no cumprimento do legado.
b) Esta jurisprudência viola o disposto nos arts. 4.º, 483.º, n.º 1, 566.º, n.º 3, 1305.º, 2265.º, n.º 1, 2270.º e 2271.º, do Código Civil.
c) Há mora na entrega da coisa legada, com a atribuição da indemnização, desde o prazo de um ano sobre a data do óbito do testador até à entrega.
Com a revista, a Recorrente pretende a revogação do acórdão recorrido.
Contra-alegaram os Réus, no sentido de ser totalmente mantida a decisão recorrida.
Por acórdão de 21 de fevereiro de 2019, a Formação a que alude o art. 672.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), admitiu a revista excecional.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
Neste recurso está, essencialmente, em discussão a indemnização pelo dano da privação do uso de imóvel legado.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. No acórdão recorrido foram dados como provados os seguintes factos:
1. No dia 25 de junho de 2012, no Cartório Notarial, sito na Rua …, n.º 382-A, …., perante a Notária, DD outorgou o testamento de fls. 20 a 23, pelo qual declarou legar, por conta da quota disponível, à “Liga Portuguesa EE”, NIPC 50…., a fração autónoma designada pela letra “Q”, correspondente ao 1.º andar, letra “H”, do prédio urbano sito na Rua …, n.º s 16, 16-A, 18, 20 e 20-A, na freguesia da …, concelho de ….
2. DD faleceu, no estado de viúva, no dia 7 de março de 2013.
3. O R. é filho e o único herdeiro de DD.
4. A Liga Portuguesa EE registou a seu favor, em 27 de setembro de 2013, a aquisição, por legado, da fração autónoma identificada.
5. Em 5 de novembro de 2013 foi registada a aquisição da mesma fração autónoma a favor da A., tendo por causa a “fusão”.
6. A A. dirigiu ao R., que a recebeu, a carta de fls. 36, onde, além do mais, se afirma: “(…) o Conselho de Administração da AA, a que presido, vem intimar Vª Exª a entregar as chaves da mencionada fração na sede da AA no prazo de cinco dias, contados da data de receção da presente, sob pena de, não o fazendo, responder civilmente pelos danos que está provocando a esta instituição de solidariedade social”.
7. Os RR. não entregaram à A. a fração autónoma.
8. A A. é uma instituição de solidariedade social, em atividade desde 1954, desenvolvendo trabalho em prol da comunidade, à qual foi conferido o título de Membro Honorário da Ordem do Mérito, pelo Presidente da República, em 8 de junho de 2007.
9. Os donativos que são entregues à A. e os rendimentos que esses donativos proporcionam são integralmente aplicados na atividade social da mesma.
10. Caso a fração autónoma identificada se encontrasse na posse da A. esta aliená-la-ia para aplicar o produto da venda nas atividades sociais por si desenvolvidas.
11. A fração autónoma está ocupada pela neta de DD, FF.
12. Os RR. não têm nem nunca tiveram a posse da fração autónoma
2.2. Delimitada a matéria de facto, importa conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, nomeadamente da indemnização pelo dano da privação do uso do imóvel legado.
Tanto a 1.ª instância como a Relação reconheceram, à Recorrente, o direito de propriedade sobre o imóvel legado, por efeito da deixa testamentária, assim como condenaram o Recorrido na entrega do imóvel, mas ambas as instâncias negaram a atribuição da indemnização, pelo dano causado pela privação do uso.
A Recorrente, todavia, continua a insistir no direito à indemnização pelos danos causados por tal privação do uso.
Embora estando em presença de ação declarativa de reivindicação, caracterizada pela cumulação de pedidos, nomeadamente a declaração do direito de propriedade sobre bem imóvel, por um lado, e a condenação na sua restituição, por outro, em conformidade com a enunciação feita pelo art. 1311.º, n.º 1, do Código Civil (CC), nesta revista, porém, está apenas em discussão a atribuição da indemnização, pelo dano da privação do uso do imóvel legado, cujo pedido foi também cumulado, e que as instâncias não atenderam.
Nestas condições, a decisão do reconhecimento do direito de propriedade a favor da Recorrente sobre o imóvel reivindicado e da condenação na sua restituição transitou em julgado, tornando-se definitiva.
Resta, assim, a questão da indemnização pela privação do uso do imóvel, resultante da mora na entrega do legado.
O art. 2270.º do CC regula os termos da entrega do legado, no caso de inexistência de declaração do testador, nomeadamente quanto ao lugar da entrega da coisa legada e ao prazo dentro do qual a entrega deve ser efetuada.
Nesta conformidade, e sendo legado um imóvel, a sua entrega deve ser feita no lugar em que se encontrava ao tempo da morte do testador e no prazo de um ano a contar dessa data, salvo se por facto não imputável ao onerado se tornar impossível dentro desse prazo.
Na falta de disposição em contrário, o cumprimento do legado incumbe aos herdeiros, como decorre do disposto no art. 2265.º, n.º 1, do CC, pelo que o onerado se identifica com os herdeiros do de cujus.
Assim, o Recorrido, como único herdeiro da herança aberta por óbito de DD, tinha o dever de entregar o imóvel à Recorrente, por efeito do legado, nomeadamente até ao dia 7 de março de 2014, um ano depois do falecimento da testadora.
Não obstante a interpelação para tal efeito, nos termos da carta de fls. 36, datada de 8 de janeiro de 2014, a entrega do imóvel à legatária não se concretizou até hoje.
A circunstância do imóvel se encontrar ocupado pela neta da testadora e filha do herdeiro não impedia o Recorrido de fazer a entrega à legatária.
Com efeito, o Recorrido, enquanto administrador da herança, podia pedir a entrega do imóvel, nomeadamente à filha, de modo a cumprir a vontade da testadora. Não havendo essa vontade, podia ainda dispor da ação possessória a fim de obter a restituição da posse, como decorre expressamente do disposto no art. 2088.º do CC.
É certo que a legatária também podia reivindicar o imóvel legado perante a pessoa que o vem ocupando, como resulta do disposto no art. 2279.º do CC, mas a obrigação da entrega do imóvel compete, sempre, ao herdeiro. Estando o imóvel ocupado por terceiro, o herdeiro tem obrigação, como se viu, de diligenciar pela entrega e, em in extremis, requerer a tutela jurisdicional efetiva, para obter a restituição.
Por isso, estando a entrega do imóvel no domínio do herdeiro, o incumprimento da obrigação não pode deixar de ser imputado ao Recorrido, com as consequências legais inerentes.
Na verdade, com a falta da entrega do legado, nomeadamente dentro do prazo em que devia ter sido realizada, o Recorrido incorreu em incumprimento, sendo responsável, por isso, pelos prejuízos causados à legatária (I. GALVÃO TELLES, Direito das Sucessões, 2.ª edição, 1978, pág. 174, e PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, VI, 1998, 426).
É no âmbito da responsabilidade civil extracontratual que se insere o pedido de indemnização formulado na ação.
Para o efeito, é indispensável, além do mais, que se prove o dano ou prejuízo, pois sem este requisito não é possível efetivar a responsabilidade civil.
No caso sub judice, a Recorrente identificou o prejuízo como correspondendo à privação do uso do imóvel.
Em abstrato, a privação do uso do imóvel podia corresponder a um prejuízo ou dano, por a legatária não gozar plenamente dos direitos de uso, fruição e disposição da coisa, decorrente do direito de propriedade (art. 1305.º do CC), como resultado da falta da entrega do imóvel pelo herdeiro.
Se, nalgumas situações, esse prejuízo é evidente, noutras, porém, tal sucede.
Na verdade, tendo ficado provado que a Recorrente pretendia alienar o imóvel e aplicar o produto da venda na sua atividade social, era indispensável ter alegado e demonstrado que o incumprimento da entrega do imóvel lhe trouxera prejuízo, designadamente por não ter podido realizar o negócio por um preço mais vantajoso, quer por efeito da conjuntura mais favorável, quer da maior desvalorização do imóvel, decorrente do decurso do tempo.
Esta matéria era apropriada a traduzir o prejuízo emergente da privação do imóvel, dado o fim concreto destinado pela Recorrente, num caso que difere daqueles em que alguém a fruir de imóvel é usurpado do seu gozo.
Por outro lado, também não se alegou e demonstrou em que medida a falta da venda do imóvel se repercutiu na atividade social da Recorrente, não sendo possível também, neste caso, identificar o prejuízo que pudesse ter sofrido.
Não se tendo provado esta materialidade, cuja prova incumbia à Recorrente (art. 342.º, n.º 1, do CC), evidencia-se uma total ausência do dano e, assim, a falta de um dos pressupostos da efetivação da responsabilidade civil, afastando a constituição de qualquer obrigação de indemnizar.
Nesta decorrência, improcede a revista e confirma-se a decisão recorrida, proferida em conformidade com o direito aplicável.
2.4. A Recorrente, ao ficar vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento proporcional das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC.
III – DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
1) Negar provimento à revista, confirmando a decisão recorrida.
2) Condenar a Recorrente (Autora) no pagamento das custas.
Lisboa, 30 de abril de 2019
Olindo dos Santos Geraldes (Relator)
Maria do Rosário Morgado
José Sousa Lameira