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HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
ELEMENTOS TÍPICOS DO ILÍCITO
ACTOS MÉDICOS
PROVA PERICIAL
CONTRADITÓRIO
Sumário
I. Vindo imputado um crime de homicídio negligente decorrente da inobservância das leges artis da profissão dos arguidos (médicos), a prova pericial – especialmente a contida nos pareceres disponibilizados pelo Conselho Médico-Legal ou pelos Colégios da Especialidade da Ordem dos Médicos – assume uma essencial e determinante importância na aferição da causa do resultado e da violação dos deveres de cuidado, por envolver um “plus” de conhecimentos especializados que estão para além das possibilidades de constatação e/ou percepção, efectivas ou presumidas, do tribunal, sendo, por isso, um elemento probatório vinculadamente avaliável.
II. O que se visa com o princípio do contraditório, em processo penal, é assegurar que as decisões que pessoalmente possam afectar os arguidos sejam fundamentadas na discussão dialéctica de argumentos: quanto às perícias mandadas realizar pelo Ministério Público no âmbito do inquérito, esse princípio foi observado, uma vez que os arguidos puderam exercer amplamente os seus direitos, quer na formulação de pedidos de esclarecimentos, quer na realização de novas perícias, caso assim o entendessem, quer solicitando a presença dos peritos em audiência de julgamento, o que se verificou no caso concreto.
III. A verificação do ilícito p. no art. 137º do C. Penal (homicídio por negligência) exige: (i) a violação do dever objectivo de cuidado, que passa pela previsibilidade objectiva do perigo para determinado bem jurídico e pela não observância do cuidado objectivamente adequado a impedir a ocorrência do resultado típico; (ii) a imputação objectiva do resultado típico (“desvalor de resultado”) à acção violadora do dever objectivo de cuidado (“desvalor de acção”), a qual implica o nexo causal efectivo e a conexão típica; (iii) o elemento subjectivo, com representação ou não da possibilidade de resultado; (iv) e a previsibilidade subjectiva do perigo e a possibilidade de o agente ter cumprido o dever objectivo de cuidado por ter representado ou pelo menos tido a possibilidade de representar os riscos da conduta que pratica (a “culpa negligente”).
IV. Ou seja, a par da imputação objectiva do resultado, i. é, que se possa concluir pela sua previsibilidade objectiva, impõe-se, no plano subjectivo, de harmonia com o disposto no art. 15º do C. Penal, que o agente, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, actue sem se conformar com a realização do facto que preenche um tipo de crime, tanto quando represente essa realização como possível (negligência consciente), como quando não chegue sequer a representar a possibilidade de realização desse facto (negligência inconsciente), exigindo-se também, nos termos do art. 10º do mesmo código, um nexo de causalidade adequada entre a omissão do dever de cuidado e a verificação do resultado típico e que a realização deste seja objectivamente evitável.
V. Na falta de específica definição legal, vem sendo entendido que o conceito penal “negligência grosseira” «implica uma especial intensificação da negligência não só ao nível da culpa, mas também do ilícito: a nível do tipo de ilícito torna-se indispensável que se esteja perante um comportamento particularmente perigoso e um resultado de verificação altamente provável à luz da conduta adoptada – sendo que também o tipo de culpa resulta, nestes casos, inevitavelmente aumentado, tendo de alcançar-se a prova autónoma de que o agente revelou no facto uma atitude particularmente censurável de leviandade ou descuido perante o comando jurídico-penal, plasmando nele qualidades particularmente censuráveis de irresponsabilidade e insensatez».
VI. No caso, a avaliação dos elementos sobre a negligência imputada aos arguidos não pode deixar de atender à especificidade dos actos médicos, bem como a de todo o circunstancialismo que enquadra as condutas de quem os pratica e das diversas actividades em que os mesmos se desdobram (a prevenção, o diagnóstico e prognóstico e o tratamento), não se mostrando curial adoptar critérios apriorísticos em função da mera categorização do tipo de actividade médica, mas sim centrá-la, de forma casuística, no contexto e contornos de cada situação.
VII. De um modo geral, o resultado correspondente ao fim visado pela prestação do acto médico reconduz-se a uma obrigação de meios dirigida ao tratamento adequado da patologia em causa mediante a observância diligente e cuidadosa das regras da ciência e da arte médicas (leges artis) e não a uma obrigação de resultado, no sentido de garantir a cura do paciente, contudo, relativamente a um médico, vinculado a uma obrigação geral de prudência e de diligência e a empregar a sua ciência para a obtenção da cura do doente, esta obrigação de meios implica o dever de esgotar todas as possibilidades oferecidas pelo conhecimento científico actual, designadamente para fazer um diagnóstico correcto, pois dele se espera «uma atenta análise dos sintomas reveladas pelo doente», «de acordo com as regras técnicas actualizadas da ciência médica», «um comportamento particularmente diligente, que possibilite o correcto diagnóstico, permitindo, com isso, a adopção da terapia mais idónea».
VIII. Mas, por outro lado, não comporta um desvalor jurídico-penalmente relevante todo e qualquer resultado clinicamente “falhado”, reputado de “erro médico” pela Medicina – que actua no interesse da saúde do doente ou, pelo menos, para suavizar os seus sofrimentos: a alçada do Direito Penal queda-se pelo “erro” que concretize uma indesculpável violação de um dever de cuidado de conteúdo específico e incisivo, aferido pelas “leges artis”, entendidas estas como o conjunto de regras da arte médica conformadas pelo estado actual da ciência e dos procedimentos médicos que, razoavelmente, são exigíveis ao profissional, porque estabelecidos, por exemplo, por protocolos de diagnóstico, de terapêutica e/ou de execução ou de procedimento técnicos.
IX. As finalidades da punição prosseguidas pela substituição da pena de prisão pela suspensão da respectiva execução são, não propriamente de ordem retributiva, mas, essencialmente, de prevenção especial – visando a reintegração do agente na sociedade – e de prevenção geral – para protecção dos bens jurídicos violados, reafirmando a crença da comunidade na sua validade, pelo que, no caso, constituindo a reclusão a última ratio da política criminal e não sustentando os dados fornecidos pelo processo um juízo de prognose de ressocialização desfavorável aos arguidos, a execução da pena de prisão aplicada deve ser suspensa porque, atendendo às personalidades e às condições da vida dos mesmos, às suas condutas anteriores e posteriores ao crime e às circunstâncias deste, se conclui que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I – Relatório
No identificado processo comum singular, do Juízo Local Criminal de X, do Tribunal Judicial da Comarca de ..., os arguidos R. M. e J. M. foram submetidos a julgamento, tendo sido proferido sentença a 11/01/2019, depositada na mesma data, que os condenou pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de homicídio negligente, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º 1 e 2 e 15º, alínea b), do Código Penal, nas penas de 3 (três) anos e de 1 (um) ano de prisão, respectivamente, suspensas na sua execução pelos mesmos períodos de tempo.
Inconformado com o decidido, o Ministério Público interpôs recurso, cuja motivação rematou com as seguintes conclusões (extractos):
«(…) C) Não podemos concordar com as concretas penas em que os arguidos foram condenados;
D) No nosso modesto entendimento, é necessário, adequado e proporcional, sobretudo em termos de prevenção geral, condenar os arguidos, os dois arguidos, em penas de prisão efetivas;
E) Sintetizando, com muita dificuldade de ‘recorte’ factual, pela sua complexidade e extensão, os elementos objetivos relevantes que sustentam e/ou materializam esta nossa posição, temos que:
[como o escreve o Tribunal a quo]
-“(…)
F) Venerandos Desembargadores, nem mais uma linha escreve o Tribunal a quo quanto às concretas penas que aplica aos arguidos nem quanto à suspensão da sua execução e (des)necessidade de sujeição dessa mesma suspensão ao cumprimento de deveres e regras de conduta;
G) Não podemos conceder nem julgar adequadas, de todo, às finalidades de prevenção geral e prevenção especial estas penas nas quais o Tribunal a quo condenou os arguidos R. M. e J. M., pelas razões que infra demonstraremos;
H) Recorremos da medida concreta das penas;
I) Recorremos do juízo de suspensão da execução dessas mesmas penas;
SUBSIDIARIAMENTE, sem prescindir (se assim não se entender),
J) Recorremos do juízo de desnecessidade de subordinação da suspensão da execução dessas penas a deveres e regras de conduta;
K) O crime por que vêm acusados e pronunciados os arguidos (com a particularidade distintiva de, em sede de decisão de pronúncia, a negligência grosseira se reconduzir à alínea b) do art.º 15.º do C.P.), homicídio negligente, com negligência grosseira, previsto nos artigos 137.º, n.os 1 e 2 e 15.º, alí. b), do C.P., é punido com pena de prisão até 5 (cinco) anos;
L) Os arguidos agiram com negligência grosseira;
M) Venerandos Desembargadores, em virtude desta negligência grosseira dos arguidos o menor D. P. faleceu, à data, com 13 anos de idade;
N) O que decidiu o Tribunal a quo? Condenar os arguidos sim, mas em penas de prisão suspensas na sua execução, simplesmente;
O) Morreu uma criança devido à conduta dos arguidos, que agiram com negligência grosseira, repita-se;
P) E o Tribunal a quo, num universo abstrato até 5 (cinco) anos de prisão fixa a pena de um arguido em 3 (três) anos, e a do outro arguido em 1 (um) ano;
Q) Sem qualquer subordinação a deveres e/ou regras de conduta;
R) Sem qualquer condição de pagamento de indemnização seja à família do D. P. seja a uma instituição de beneficiação de crianças;
S) Sem proibição pelos arguidos, no período de suspensão da execução das penas, do exercício da medicina;
T) A justiça material no caso dos autos prossegue-se com um mero aguardar pelos arguidos do período de suspensão de execução das penas? Sobretudo no caso do arguido J. M., de apenas 1 (um) ano? 1 ano?
U) Cremos, manifestamente, que não;
V) Estamos perante uma situação de facto e de direito em que se verifica um total sentimento pela comunidade, mas sobretudo, pela família do D. P., de absoluta impunidade;
W) Venerandos Desembargadores, basta pesquisarmos superficialmente jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores em casos de homicídios negligentes praticados no exercício da condução automóvel que, diga-se em abono da verdade, pode acontecer a qualquer pessoa, a qualquer um de nós, três anos de prisão e um ano de prisão, suspensas na sua execução, sem quaisquer deveres e/ou regras de conduta, não encontrei nenhuma decisão;
X) Nos autos a situação é substancialmente mais grave;
Y) É que, por um lado, não se trata de negligência na sua forma simples; não, trata-se de negligência grosseira;
Z) Trata-se de negligência grosseira de arguidos que estavam investidos de uma especial qualidade, de um dever de garante, médicos aos cuidados dos quais o D. P. se entregou aquando da admissão no serviço de urgência na tarde do dia 20 de agosto de 2010;
AA) Não só se produziu prova cabal e concludente de todos os factos da acusação e da pronúncia como também se provou, sem qualquer dúvida para o Tribunal a quo, que:
“(…)
BB) Condenar os arguidos em penas de prisão nos termos em que condenou, salvo o devido respeito pelo Tribunal a quo, não há justiça material, sobretudo, de forma absolutamente inexplicável, na nossa humilde perspetiva, em relação ao arguido J. M.;
CC) Pela matéria de facto dada como provada e respetiva motivação (que, diga-se, o Tribunal a quo, de facto, como já nos tem habituado, é irrepreensível, rigoroso e só espelha com total completude e assertividade, a prova cabal, abundante e concludente produzida em audiência de discussão e julgamento), na nossa modesta perspectiva, são absolutamente desadequadas, em primeiro lugar, as medidas concretas das penas;
DD) O Tribunal a quo violou, neste particular, pelo menos, os artigos 40.º, n.os 1 e 2, 70.º, n.º2, 71.º, n.º1 do C.P.;
EE) No caso em apreço, entendemos que o grau de ilicitude do crime de homicídio, com negligência grosseira, é muito elevado, na medida em que era a vida do D. P. (e não a sua integridade física ou liberdade e muito menos o património) que corria perigo e isso não inibiu os arguidos de não lhe prestarem os cuidados a que estavam obrigados e de que eram capazes [relembramos neste ponto tudo quanto se transcreveu na conclusão E) e AA)];
FF) A falta de previsibilidade do resultado típico por parte dos arguidos torna acrescidas as suas exigências de prevenção especial (se estivéssemos perante uma situação de negligência grosseira, sim, mas só consciente, a culpa dos arguidos não era tão elevada, não era tão censurável, não careceria de um juízo de culpa tão implacável e material);
GG) Tendo presente o circunstancialismo que envolveu a prática dos factos, muito graves, o modo de execução dos mesmos, a inserção social dos arguidos, o comportamento anterior e posterior aos factos e as suas personalidades, não obstante a ausência de antecedentes criminais, consideramos que, no caso dos autos, as exigências de prevenção especial são significativas;
HH) As exigências de prevenção geral também se reputam muito elevadas, aliás, ainda mais elevadas, atenta a frequência trágica, cada vez maior, de situações como a dos autos, com condutas médicas associadas a violação das leges artis, com imprudência grosseira, o alarme social associado a este crime e o forte sentimento comunitário de reprovação de condutas de que resulte a morte de outrem, sobretudo como nos autos, a morte de uma criança de 13 anos de idade, ou em que não sejam empreendidas por médicos especialistas todos os conhecimentos e procedimentos de que dispõem para salvar vidas que é a função última de um médico, em particular as ações necessárias e exigíveis para acautelar esse resultado quando a vida de terceiros, crianças como o D. P., se encontrem em perigo emergente;
II) O arguido R. M. deverá ser condenado, no nosso humilde entendimento, pelos factos tão gravosos que praticou e/ou omitiu, numa pena de prisão, efetiva, nunca inferior a 4 (quatro) anos;
JJ) O arguido J. M. deverá ser condenado, no nosso humilde entendimento, pelos factos tão gravosos que praticou e/ou omitiu, numa pena de prisão, efetiva, nunca inferior a 3 (três) anos;
KK) Estas penas de prisão efetivas são o mínimo reclamado pelas necessidades de prevenção geral, sobretudo prevenção geral, ou seja, pela reposição e reforço das expectativas comunitárias na validade da norma violada, sendo que, na nossa perspetiva, de modo algum excedem a medida da culpa, grave, grosseira, dos arguidos;
LL) Se, in casu, existem as atenuantes que o Tribunal a quo deu como provadas nos pontos 103. e 197. a 231. dos factos provados, também existem inúmeras agravantes, como acima escalpelizamos, mas que ora, sinteticamente, relembramos: dois médicos, com especiais qualidades, médicos especialistas, investidos de um dever de garante, desde sexta-feira, dia 20/08/2010, a domingo, dia 22/08/2010, nos termos de facto dados como provados em 1. a 196., não repetiram análises sequer, não levaram a efeito qualquer exame complementar de diagnóstico, nem um simples e rápido raio x, nada; agiram com negligência, sim, mas grosseira; com as suas ações e/ou omissões teriam evitado o resultado e ainda hoje o D. P. estaria vivo;
MM) Penitenciamo-nos se por vezes a descrição factual e/ou a nossa motivação recursória se traduz como que num “escrever como se fala”, mas tal deve-se, desde logo, ao melindre dos próprios factos, ao sentimento de impunidade que para nós é patente nos autos com as penas por que os arguidos foram condenados e ao facto, sobretudo a este último facto, que é a morte de uma criança de apenas 13 anos de idade;
NN) E, continuando a “escrever como se fala”, quando morre uma criança num hospital ao cuidado de dois médicos especialistas é porque algo, eventualmente, tudo, correu muito mal;
OO) Não ignoramos que o art.º 70.º do C.P. encerra em si uma prevalência pela pena não privativa de liberdade, se esta for adequada às necessidades preventivas do caso concreto. Na escolha da pena aplicável entram, pois, em consideração as necessidades de prevenção geral ou de garantia comunitária da validade e vigência da norma violada, bem como as necessidades de prevenção especial, designadamente, de ressocialização dos arguidos;
PP) Deste mesmo normativo resulta estarem excluídas, na fase de escolha da pena, as considerações atinentes à culpa, o que se compreende, na medida em que a culpa funciona apenas como limite, mas não como fundamento da pena;
QQ) No caso vertente, na nossa humilde perspetiva, pela factualidade dada como provada e pela escalpelizada fundamentação de facto do Tribunal a quo, as exigências de prevenção geral encontram-se num patamar elevadíssimo, relativamente aos dois arguidos, devido ao alarme social causado pelo crime, de extrema gravidade, que colheu uma vida humana ainda em crescimento, frágil e vulnerável, sem capacidade sequer de se proteger e furtar à ação e/ou omissão dos dois arguidos, e ao fortíssimo sentimento comunitário de reprovação de condutas de que resulte a morte de outrem, como in casu, mais ainda por se tratar da morte de uma criança de 13 anos de idade, e que passou a encontrar-se em perigo de vida pelas ações e/ou omissões dos arguidos, acabando mesmo por morrer;
RR) Um dos arguidos encontra-se já aposentado, o arguido J. M., mas o arguido R. M. apesar da sua negligência grosseira na morte do D. P. continua a exercer as mesmas funções no Hospital de X, ainda hoje...;
SS) A realização das finalidades preventivas das penas não é compatível com a aplicação aos arguidos das penas concretas em que foram condenados, não é compatível com penas de prisão que não sejam de cumprimento efetivo;
TT) “Investigada” a materialidade factual sob julgamento e tendo sempre presente os factos dados como provados, não vislumbramos, sempre sem prejuízo de melhor entendimento de Vossas Excelências, que essa matéria de facto provada seja insuficiente para fundar a solução de direito que pugnamos, ou seja, a prisão efetiva dos arguidos;
SUBSIDIARIAMENTE, sem prescindir (se assim não se entender), se não forem os arguidos condenados em penas de prisão efetivas, como propugnamos em II) e JJ),
UU) É para nós absolutamente necessária a subordinação da suspensão da execução das penas de prisão a deveres e/ou regras de conduta, nos termos e para os efeitos das disposições conjugadas dos artigos 50.º, 51.º e 52.º do Código Penal;
VV) É uma vida humana que está em causa, é a vida o bem jurídico atingido e/ou violado, eminentemente pessoal;
WW) O grau de ilicitude das condutas dos arguidos é significativamente elevado, não só pela natureza do bem jurídico lesado, mas também porque ‘ceifou’ a vida de uma criança, a vida do D. P. (penitenciamo-nos pela excessiva repetição mas não pode ser de outra forma);
XX) Bem sabemos que a jurisprudência tem vindo a pronunciar-se com frequência sobre a suspensão da execução das penas de prisão aplicadas em crimes de homicídio negligentes;
YY) Mas a situação dos autos, extravasa e/ou vai muito além da maioria, quase totalidade, da jurisprudência publicada;
ZZ) Não se trata, como dissemos supra, de uma morte causal num acidente de viação;
AAA) Trata-se de uma morte de uma criança, num hospital, por omissão de dois médicos especialistas que a tinham aos seus cuidados (mas sem eles);
BBB) Não se trata de um homicídio negligente na sua forma simples;
CCC) Estamos perante um homicídio negligente, com negligência grosseira dos arguidos. Negligência inconsciente;
DDD) E, a negligência inconsciente, como é sabido, é uma forma ainda mais grave de realização do facto;
EEE) Se é certo que a aplicação das penas nos crimes negligentes coloca questões de fronteira nos pressupostos de aplicação das penas de substituição, nomeadamente, a suspensão da execução da pena de prisão, não menos certo é que a jurisprudência dos tribunais superiores e especialmente do nosso Supremo Tribunal de Justiça (S.T.J.) tem construído na matéria alguns modelos referenciais, verdadeiras ‘linhas-guia’, que constituem precedentes orientadores para a realização da justiça material, respeitando a proporcionalidade comparativa e, consequentemente, a igualdade;
FFF) A concordância prática de finalidades das penas, entre a prevenção geral e a necessidade ou desnecessidade de prevenção especial, tem, aqui, um espaço problemático de afirmação. Também devido à matéria especialmente em avaliação e, sobretudo, pela violação do bem jurídico mais precioso e mais grave: a vida humana;
GGG) Com uma fundamentação teórica em que coloca o acento precisamente na prevenção geral, a jurisprudência do nosso Supremo Tribunal de Justiça atende à especificidade de cada caso concreto, ponderando casuisticamente o problema, mas acentuando, de forma decisiva, as exigências de prevenção geral;
HHH) E, nesta medida, e prisma de análise, tem sido decidido, veja-se a menor gravidade dessas decisões face à matéria factual dos autos, que em relação a acidentes de viação mortais ocorridos por culpa exclusiva do condutor, seja ela de que vertente de intervenção for, a pena de prisão aplicada não deve ser substituída por multa, e só muito excecionalmente poderá ser suspensa na sua execução (in allium, Acórdão do S.T.J. de 26-02-09, proc. nº 045169; predominantemente convergem fortes razões de prevenção no sentido de negar a suspensão da execução da pena em crimes de homicídio negligente, nomeadamente, no âmbito rodoviário, com culpa exclusiva do agente (Acórdão do S.T.J., de 05-02-1997, BMJ n.º 464. p. 176);
III) Imperam fortes razões de prevenção geral para não decretar a suspensão quando é reduzido o valor das atenuantes provadas. No caso dos autos, apenas temos a ausência de antecedentes criminais e o curriculum vitae dos arguidos;
JJJ) É já consistente a corrente jurisprudencial no sentido de que as penas de prisão correspondentes a crimes de homicídio por negligência, cometidos com negligência grosseira, não devem, em princípio, ser suspensas na sua execução (in allium, Acórdão do S.T.J., de 20-02-2002, proc. 2104/02; Acórdão do S.T.J. de 26-02-09, proc. nº 045169, predominantemente convergem fortes razões de prevenção no sentido de negar a suspensão da execução da pena em crimes de homicídio negligente, nomeadamente, no âmbito rodoviário, com culpa exclusiva do agente (Acórdão do S.T.J., de 05-02-1997, BMJ n.º 464. p. 176); Acórdão do S.T.J. datado de 21-04-2016, processo n.º 29004/10.3T2SNT.L1.S1, 7.ª Secção, relator: Juiz Conselheiro, Dr. Lopes do Rego, disponível para consulta in www.dgsi.pt; acórdão este que se refere também de forma direta por conexo, ao Acórdão deste mesmo Supremo Tribunal de Justiça, datado de 17-10-2012, processo 87/11.0PJAMD.S1);
KKK) Ensina-nos o Supremo Tribunal de Justiça neste último Aresto referido em MMM), de 21-04-2016, que “(…) O conceito penal de negligência grosseira implica uma especial intensificação da negligência não só ao nível da culpa, mas também do ilícito: a nível do tipo de ilícito torna-se indispensável que se esteja perante um comportamento particularmente perigoso e um resultado de verificação altamente provável à luz da conduta adoptada - sendo que também o tipo de culpa resulta, nestes casos, inevitavelmente aumentado, tendo de alcançar-se a prova autónoma de que o agente revelou no facto uma atitude particularmente censurável de leviandade ou descuido perante o comando jurídico-penal, plasmando nele qualidades particularmente censuráveis de irresponsabilidade e insensatez. (…)” (sublinhado nosso);
LLL) No caso dos autos, foram os arguidos que realizaram as próprias condutas, por ação e/ou omissão, consubstanciadas no resultado negligente, e, com a agravante ainda mais decisiva, fizeram-no de forma grosseira (neste sentido, Figueiredo Dias, in Direito Penal I, 2.ª ed, Coimbra: Coimbra Editora, 207, 35/ §§ 47 e ss, p. 893 e ss);
MMM) A materialização das condutas dos arguidos culminou no resultado lesivo, mais grave que poderia ter ocorrido, de bens jurídicos eminentemente pessoais, in casu, a vida;
NNN) Os arguidos, no caso dos autos, não chegaram sequer a admitir a possibilidade de efetivamente o D. P. vir a morrer resultante daqueles seus comportamentos — mas aí está a negligência, ainda que possa ser inconsciente, que é a sua forma mais grave, mais censurável. Negligência, sim, inconsciente e grosseira;
OOO) As exigências de prevenção geral obstam à suspensão da pena de prisão aplicada pelo crime de homicídio por negligência grosseira, ainda que o tribunal possa concluir por um prognóstico favorável à eficácia da pena para afastar o arguido da prática de novos crimes, na medida em que, como explica o Professor Figueiredo Dias (ob. cit.), esta não é a única finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto e se a defesa do ordenamento jurídico for posta em causa pela suspensão de execução da pena não deve ser aplicada;
PPP) A ressonância social da negligência grosseira do homicídio negligente é elevadíssima no sentido de reclamar-se justiça material e punição adequadas ao bem jurídico violado, que é a vida; sendo que não há bem jurídico mais relevante que este e é irrecuperável…;
QQQ) A negligência grosseira constitui uma culpa qualificada pela falta de previsão, ponderação, atenção, diligência e cuidados mais elementares;
RRR) A negligência grosseira é uma forma qualificada de negligência que ocorre quando a violação dos deveres de cuidado e diligência que consubstancia a negligência simples assume uma mais intensa gravidade, quando os mais elementares deveres de precaução e prudência são de todo omitidos, quando o ato omissivo revela grande irreflexão ou ligeireza…;
SSS) A imprevisão do resultado que a norma pretende evitar pode, em si mesma, ser muito mais desvaliosa, daí encerrar em si um desvalor muito mais gravoso a conduta perpetrada pelos arguidos, por ter sido praticada com negligência inconsciente;
TTT) A defesa do ordenamento jurídico também reclamará o cumprimento de uma pena efetiva, a não ser que haja atenuantes de relevo a considerar ou outras circunstâncias excecionais que atenuem a reprovação social da conduta e a necessidade de aplicação de penas particularmente severas aos arguidos;
UUU) In casu, inexistem essas atenuantes de relevo;
VVV) Nunca por nunca, numa situação de facto como a dos autos, poderia o Tribunal a quo (no nosso humilde entendimento) condenar os arguidos em penas de prisão suspensas na sua execução, na sua forma simples, sem subordinação a deveres e/ou regras de conduta, nos termos e para os efeitos das disposições conjugadas dos artigos 50.º, 51.º e 52.º do Código Penal;
WWW) Violou também o Tribunal a quo, nesta parte, pelo menos, os artigos 50.º, 51.º e 52.º do Código Penal;
XXX) No caso dos autos, se Vossas Excelências decidirem que os arguidos deverão ser condenados em penas de prisão suspensas na sua execução (o que, com todo o elevado respeito, não concedemos), pois que essa suspensão seja condicionada ao cumprimento de deveres;
YYY) Entre eles, julgamos adequado, a título exemplificativo, de acordo com a justiça material do caso concreto, e sempre sem prejuízo de diferentes deveres que Vossas Excelências julguem mais adequados ao caso, que sejam os arguidos obrigados, no período de suspensão da execução da pena, a entregar aos pais do D. P., assistentes nos autos, o arguido R. M., a quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros) [a pagar em 4 anos, em parcelas de € 5.000,00 por ano], e o arguido J. M., a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros) [a pagar em 3 anos, em parcelas de € 5.000,00 por ano], isto de acordo com a especial possibilidade de pagamento, que resultou demonstrada e/ou provada à saciedade nos autos [seguimos, neste particular, o entendimento de que a condição de pagamento é conjunta mas a fixar a proporção da reparação a cargo de cada um, em separado, e não solidariamente – in allium, Acórdão do Tribunal da Relação de Porto, datado de 17-09-2014, processo n.º 1137/07.0GAVNF.P1, n.º convencional JTRP000, relator: Juiz Desembargador, Dr. Alves Duarte, disponível para consulta in ww.dgsi.pt);
ZZZ) Se Vossas Excelências assim não entenderem, eventualmente por sobreposição de valores indemnizatórios com o processo cível que se encontra a correr termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, pois que aqueles valores indemnizatórios sejam pagos, nos termos da referida alínea c) do art.º 51.º do C.P., a favor do Patronato de (...), sito em Vilar de (...) – X, Lar de Crianças e Jovens e que, por prosseguir os interesses das crianças, as protege e beneficia;
AAAA) Este pagamento constitui, na nossa humilde perspetiva, a imposição de um dever que reforça o sancionamento penal e que no caso dos autos é manifesta a sua necessidade;
BBBB) “(…) A suspensão da execução da pena condicionada ao pagamento ao ofendido de uma determinada quantia, não está dependente da necessidade de um pedido de indemnização civil prévio formulado pelo lesado. (…)” (neste sentido, in allium, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 02-10-2013, processo n.º 1054/10.7TALRA.C1, n.º convencional JTRC, relator: Juiz Desembargador, Dr. F. M. Chaves, disponível para consulta in ww.dgsi.pt);
CCCC) Nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 50.º, n.º3 do C.P., também pugnamos pela subordinação desta suspensão da execução das penas de prisão (se Vossas Excelências não decidirem que as penas de prisão serão de cumprimento efetivo), pelo menos à regra de conduta de não exercício da medicina, relativamente a cada um dos arguidos, cumulativamente com aquele dever indemnizatório, porque, como aduzimos supra, se o arguido J. M. se encontra já aposentado do exercício público, pois que, sempre poderá exercer particularmente, mas o arguido R. M. ainda exerce exatamente as mesmas funções de Médico Especialista, Pediatra, neste Hospital de X;
DDDD) É premente determinar este não exercício pelos arguidos da medicina, em sede de regra de conduta, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 52.º, n.os 1 e 2, alí. a), do C.P., com apoio e fiscalização pelos serviços de reinserção social, nos termos do art.º 51.º, n.º4 do C.P., ex vi n.º4 do art.º 52.º do mesmo diploma;
EEEE) Violou o Tribunal a quo, agora na globalidade da motivação que apresentamos, pelo menos, os artigos 15.º, alínea a), 50.º, n.os 1 a 5, 51.º, n.º1, alíneas a) e c), n.os 2 e 4, 52.º, n.º1. c) e n.º2, alínea a) e n.º4, 70.º, 71.º e 137.º, n.os 1 e 2, todos do Código Penal.
Nestes termos, deverá, pois, proceder o presente recurso, substituindo-se a Sentença proferida por outra que condene os arguidos R. M. e J. M. nas seguintes penas concretas:
- O arguido R. M. numa pena de prisão, efetiva, nunca inferior a 4 (quatro) anos;
- O arguido J. M. numa pena de prisão, efetiva, nunca inferior a 3 (três) anos;
Se assim não se entender,
Deverá decidir-se pela subordinação da suspensão da execução das penas de prisão a deveres e/ou regras de conduta, nos termos e para os efeitos das disposições conjugadas dos artigos 50.º, 51.º e 52.º do Código Penal, nestes termos:
- Deverão os arguidos ser obrigados, no período de suspensão da execução das penas, a entregarem aos pais do D. P., assistentes nos autos, o arguido R. M., a quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros) [a pagar em 4 anos, em parcelas de € 5.000,00 por ano], e o arguido J. M., a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros) [a pagar em 3 anos, em parcelas de € 5.000,00 por ano], isto de acordo com a especial possibilidade de pagamento, que resultou demonstrada e/ou provada à saciedade nos autos.
Se assim não se entender,
Se, por eventual sobreposição de valores indemnizatórios com o processo cível que se encontra a correr termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, Vossas Excelências assim não decidirem, pois que aqueles valores indemnizatórios sejam pagos, nos termos da referida alínea c) do art.º 51.º do C.P., a favor do Patronato de (...), sito em Vilar de (...) – X, Lar de Crianças e Jovens e que, por prosseguir os interesses das crianças, as proteger e beneficiar;
Cumulativamente com aquele dever indemnizatório, é premente determinar o não exercício pelos arguidos da medicina, em sede de regra de conduta, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 52.º, n.os 1 e 2, alí. a), do C.P., com apoio e fiscalização pelos serviços de reinserção social, nos termos do art.º 51.º, n.º4 do C.P., ex vi n.º4 do art.º 52.º do mesmo diploma.».
O arguido R. M. também se insurgiu contra a decisão recorrida extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
Como parece incontroverso e o Tribunal aceita, o D. P. faleceu em resultado de patologia muito rara (foi até dito excecionalmente rara”) em crianças (úlcera duodenal) sendo que, neste elenco de raridade, é mais rara ainda a perfuração da úlcera. Médicos há nesta área de conhecimento de trabalho e estudo que tiveram em dezenas de anos um ou dois casos. Ou nenhum. A literatura científica não faz referência a estatísticas sobre o caso ou refere os números como quase desprezíveis.
O Tribunal deveria ponderar com o relevo devido que um quadro de raridade assim sublinhado merece afastar o dever de previsibilidade que está contido no crime negligente.
Por fim o: recorrente chama à colação a este propósito as muito judiciosas considerações fundamentadoras do acórdão deste Tribunal da Relação (proc° 717/04.1 de 3 de maio de 2004) cujo sumário se transcreve:
“I - O dever cuja violação a negligência supõe, consiste em o agente não ter usado aquela diligência que era exigida segundo as circunstâncias concretas para evitar o evento, dever esse decorrente quer de normas legais, quer do uso e experiência comum. II- Por outro lado, é fundamental que produção do resultado seja previsível e que só o facto de se ter omitido aquele dever tenha impedido a sua previsão ou a sua justa previsão, previsibilidade e dever de prever estes, que como refere Eduardo Correia (Direito Criminal, 1, Vol, pág. 426), não são todavia uma previsibilidade absoluta mas uma previsibilidade determinada de acordo com as regras da experiência dos homens, ou de certo tipo profissional de homem.” III- Sendo assim, parece que deve haver um dever de prever, e, portanto, a objectiva possibilidade de negligência, sempre uma conduta em si sem as necessárias cautelas e cuidados, seja adequada a produzir um evento, o que quer dizer, que é um nexo de causalidade adequada que vem a fixar objetivamente os deveres de previsão, os quais, quando violados, podem dar lugar à negligência, ou seja, que vem dizer quando se deve prever um resultado como consequência duma conduta, em si ou na medida em que se omitem as cautelas e os cuidados adequados a evitá-lo. IV - Nestes termos, terá de concluir-se que, para que o resultado em que se materializa o ilícito típico possa fundamentar a responsabilidade, não basta a sua existência fáctica, sendo necessário que possa imputar-se objetivamente à conduta e subjectivamente ao agente, significando isto que a responsabilidade apenas se verifica se existir um nexo de causalidade entre a conduta do agente e o resultado ocorrido. V- Por isso que, embora existam elementos nos autos que nos permitem concluir pela violação das leges artis por parte do arguido, tendo este tido um comportamento omissivo censurável que podia e deveria ter sido diverso, atentos os elementos de diagnóstico - sintomatologia e historial clínico pessoal e familiar - de que dispunha e que lhe tinham sido facultados, impondo-se um diagnostico distinto e, em consequência, uma terapia também diversa e adequada a remover o perigo em que a menor se encontrava e que terá mesmo sido potenciado pela omissão da mesma, não poderá, sem um verdadeiro salto no desconhecido, dizer-se que essa conduta omissiva por parte do arguido foi a causa de morte da menor.” É injusto - é chocante ! - que se diga, como na sentença sub judicio, que o D. P. faleceu em resultado de ato ou omissão do recorrente e que se o recorrente tivesse agido de outro modo o D. P. não tinha falecido!
Como é que pode o Tribunal, órgão de soberania com a missão de fazer Justiça, assumir tal conclusão?
Como pode ter tal certeza? Como pode sequer enunciar, numa sentença, tal mera e eventual e longínqua e nunca demonstrada possibilidade?
Deve assim concluir-se, para além do mais acima exposto e numa tentativa de fazer a sinopse exigida pela lei de processo, que
a) deve ser alterada a matéria de facto julgada provada à luz dos fundamentos acima explicitados, e nos termos também aqui detalhados;
b) o Tribunal a quo erra quando refere uma e outra vez um pretenso “processo Inflamatório em curso”, coisa que jamais existiu;
c) e não existiu porque a úlcera era desconhecida, o recorrente não foi informado nem lhe cabia, porque respeita as leges artis, adivinhar, menos ainda, se assim se pode dizer, sem sinais clínicos;
d) isto porque os sinais de irritação peritoneal só aparecem com a perfuração da úlcera, a sequência da perfuração da úlcera, e a Ciência no prevê sequer a possibilidade de haver sinais peritoneais antes de haver peritonite, e a peritonite no se pode nem deve presumir ou adivinhar também à luz da Medicina;
e) e este facto - a perfuração - ocorreu seguramente durante a manhã do dia 22;
f) o sendo então urgente - emergente 1 - a intervenção cirúrgica, tal intervenção não competia ao pediatra recorrente, mas ao cirurgião que se encontrava em serviço há horas e entendeu mandar fazer TAC em vez de optar pela imediata cirurgia;
g) a raridade extrema da patologia cria a natural imprevisibilidade do desfecho - perfuração e sequente peritonite, a afasta por si só a mera hipótese de negligência;
i) por maioria de razão afasta a existência do crime de que o recorrente vem pronunciado;
j) as Sras Enfermeiras em serviço na noite de 21 para 22 não chamaram o recorrente porque terão entendido que para isso não havia motivo, sendo certo que o recorrente estava em casa como teria de ser em conformidade com o horário de trabalho que lhe competia, mas em minutos comparecia no Hospital, se tivesse sido chamado;
k) em todo o caso, qualquer intervenção cirúrgica de urgência que fosse adequada — e provou-se que era 1 - teria de ser decidida e efetuada pelo cirurgião único em serviço desde as 8:00 h. do dia 22, o Dr. J. C., e que ainda por cima era o chefe da equipa de urgência;
l) o Tribunal a quo violou as normas do art.° 127.° do Código de Processo Penal; 32.°, n.° 5 da Constituição, e art.° 200, nº 4 do mesmo diploma; art. 6°, par. 1° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; art. 140 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos; art° 137.°, n.° 1 e 2 do Código Penal; art°s 10º. e 15.° do mesmo código;
m) a condenação é, com o devido respeito, uma imensa injustiça, e
n) deve ser revogada, com o que será feita Justiça.
Igualmente o arguido J. M. apresentou recurso, que rematou com as seguintes conclusões:
«1. O presente recurso vem interposto da decisão final que condenou o arguido pela prática de um crime de homicídio por negligência grosseira p. p. 137º nº 2 CP.
2. Desde logo, o recorrente entende que ocorre nulidade da sentença por violação do disposto nas al. a) do n.º 1 do art.º 379.º do CPP porquanto os factos 68 (não provados); 35.º; 36.º; 57.º e 91.º não se encontram fundamentados, impondo-se a devolução do processo ao Tribunal que proferiu a sentença, a fim de suprir a nulidade, com elaboração de nova sentença.
3. O recorrente defende que se verifica nulidade da sentença por violação do disposto das al. c) do n.º 1 do art.º 379.º do CPP ou, caso assim não se entenda, da violação pela sentença recorrida do disposto na al. a), n.º 2 do art.º 410.º do CPP, porquanto o Tribunal não se pronunciou quanto à matéria constante da contestação penal apresentada pelo recorrente, designadamente nos pontos 29.º a 33.º; 118.º a 125.º ; - 34.º a 35.º; 126.º a 127.º; 132.º a 139 e 142; - 64.º e 65.º ; 85.º a 100.º; 107.º; 147.º; 162.º a 175.º; 229.º a 243.º; 246.º a 247 a 249 e 250.º; 252.º a 257º; 259.º a 268; 270 a 279; 281.º a 282.º; 189.º; 191.º; 202.º e 203.º ; 218.º; 295.º, 297.º; 304.º; 313.º a 316.º; 318.º; 322.º a 325; 327.º; 340.º; 375.º a 379.º; 384.º; 404.º a 405.º; - 420.º, 439.º; 440.º e 447.º; - 451.º a 454.º, sendo que a procedência da invocação do referido vício importará ou a devolução do processo ao Tribunal que proferiu a sentença, a fim de suprir a nulidade, com elaboração de nova sentença, ou a anulação da decisão recorrida e o reenvio do processo para nova decisão, antecedida de novo julgamento, conforme disposto no artigo 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
4. Propugna o recorrente pela verificação dos vícios contidos no art.º 410.º do CPP relativamente aos seguintes pontos da matéria de facto:
Existência de factos que mais não são mais do que meras conjecturas, repetições, conclusões e alegações de direito: 56, 61, 62, 67 a 74, 76 a 82, 90, 92 e de factos que são meras conclusões e ilações sem devido suporte na matéria de facto fixada - (84, 86 a 101 factos provados), os quais devem ser eliminados.
Art.º 2.º dos factos provados - vício de insuficiência para a matéria de facto dada como não provada, por não se ter consignado a administração de Brufen ao D. P. – 410º,º 2, al. a) do CPP
Art.º 1.º, 4.º e 138. º dos factos provados - vício de contradição da matéria de facto dada como provada, quanto ao número de dias de evolução da doença. 410,º 2, al. b) do CPP
Art.º 21.º e 31.º dos factos provados - vício de contradição da matéria de facto dada como provada, quanto às horas em que ocorreu a observação do D. P. pelo pediatra na noite do dia 22 de Agosto. 410.º 2, al. b) do CPP
Art.º 49.º dos factos provados - contradição entre facto provado e fundamentação quanto à identidade do médico que informou a transferência do D. P. - 410,.º 2, al. b) do CPP.
Art.º 89.º; 90 e 92.º a 102 e 164 a 178 dos factos provados - contradição entre factos provados no que respeita à concreta actuação do recorrente. - 410,.º 2, al. b) do CPP.
Art.º 9, 11, 16 e 19 (128 e 191) e não provado 31/44 e 67 – contradição entre factos provados no que respeita às dores sofridas pelo D. P.. - 410,.º 2, al. b) do CPP.
Art.º 91 - facto dado como provado sem qualquer suporte probatório - vício de erro notório na apreciação da prova - 410.º, n.º2, al. c) do CPP
Art.º 12.º, 13, 173 (factos provados); e 2, 54, 55 e 56 (não provados) - contradição entre os pontos de facto da matéria de facto dada como provada e a própria fundamentação - 410.º 2, al. b) do CPP
Art.º 174.º e art.º 12, 63 e 76 (factos provados) contradição entre os pontos de facto da matéria de facto dada como provada - 410,.º 2, al. b) do CPP
Art.º 174.º e art.º 16, 23, 31 61 a 68 e 87 (factos provados) - contradição entre os pontos de facto da matéria de facto dada como provada - 410.º 2, al. b) do CPP
Art.º 62, 67.º, 68.º e 9.º, 112.º, 132.º, 171 e 172, 126, 127 e 130, 104, 140 e 175 68 (factos provados) - contradição entre factos provados e erro notório na apreciação da prova al. b) e c) do n.º 2 do art. 410º do CPPenal.
Art.º 26.º, 31º e 131.º (factos provados) - existe contradição quanto às tomas de tramadol, susceptível de ser enquadrado no art.º 410.º 2, al. b) do CPP.
Art.º 182 (factos provados) e 12 (fatos não provados) - contradição quanto à medicação com valium diazepam - susceptível de ser enquadrado no art.º 410.º 2, al. b) do CPP.
Art.º 12.º, 24º, 77º, 87º, 96º, 99.º e 55, 108, 109, 174, 86 e 124, 163 a 169, 171 e 172, facto não provado 7 e motivação da sentença - fls. 69, 75/76); 23 e 170; 52 (não provados), 169; 10.º; 18.º, 56.º, 57, 35 e 188; 96; 56 e 57; 161 e 162; 146; 108 e 109; - quando se referem à existência de peritonite, à observação feita pelo recorrente; a ausência de defesa à dor abdominal pelo D. P. aquando da realização do exame pelo recorrente e a adopção de posições antálgicas, conduzem ao erro de insuficiência da matéria de facto dada como provada e erro notório de apreciação da prova - art.º 410.º. n.º 2, al. a) e c) do CPP.
Art.º 84, 95, 99 - no que se refere à possibilidade de o recorrente operar o D. P., os referidos pontos da matéria de facto encontram-se em contradição com a demais matéria da como provada, designadamente 165 a 174; 144; 159; 195 e/ou existe erro notório na sua apreciação, art.º 410.º. n.º 2, al. b) e c) do CPP
5. O recorrente entende que os seguintes pontos da matéria de facto se encontram incorrectamente julgados (de I) a XV))
I)
Ponto 2.º D. P. voltou para casa, e embora tivesse alta medicado, não chegou a tomar a medicação que lhe foi prescrita, uma vez que o seu estado de saúde se agravou, pelo que, foi transportado para a Unidade Hospitalar de X.”
Concretas provas que impõem decisão diversa:
Depoimento de L. R., prestado no dia 25/06/2018, identificado na acta com início a 14.22.55 e termo a 15.23.19.
Depoimento do assistente J. R., prestado no dia 21/05/2018, identificado na acta, com início pelas 16.04 e seu termo pelas 17.50m e no dia 12/06/2018, com inicio às 10.21.41 e termo pelas 12.13.54.
Declarações prestadas em inquérito hospitalar por L. R., lidas em audiência de julgamento, a fls. 238.
Declarações prestadas em sede de inquérito pelo assistente J. R., perante OPC, a fls. 75, lidas em audiência de julgamento.
Sentido proposto para a alteração da matéria de facto
“D. P. voltou para casa, com alta medicado e tomou medicação que lhe foi prescrita em Espanha e Brufen, (…)”
II)
Ponto 12. Do resultado das análises realizadas, nomeadamente do hemograma, pode observar-se uma leucocitose (13200/rnrn3), com neutrofilia (83%) e trombocitose (585.000 plaquetas/rnrn3), PCR normal, Ionograma com discreta hiponatremia (134) e marcada hipoclorémia (89 - vómitos), o que indiciava um processo inflamatório em actividade.
Ponto 13. Todavia, as análises foram interpretadas pelo arguido J. M. como não tendo alterações significativas, uma vez que ao efectuar o registo no sistema ALERT, o arguido escreveu: " Análises (em Anexo) não mostraram alterações significativas, excepto ligeira leucocitose.", sendo certo que, os valores de referência se situam abaixo dos 13200/mm3 (leucócitose).
Ponto 61. O D. P. foi medicado com forte analgesia, como é o caso do tramadol, apesar de valores analíticos suspeitos (…)
Ponto 68. Neste contexto, com o abdómen" doloroso generalizadamente à palpação profunda" embora mole e depressível, os arguidos deveriam ter valorizado os resultados do hemograma, que revelava leucocitose, ainda que ligeira (13.200/mm3), neutrofilia (83%) e trombocitose (585.000plaquetas/mm3), o que indiciava já um processo inflamatório em atividade.
Ponto 76. O arguido J. M. deveria ter valorizado os resultados do hemograma realizado, que revelava leucocitose ainda que ligeira (13.200/mm3), neutrofilia (83%) e trombocitose (585.000plaquetas/mm3), o que indiciava já um processo inflamatório em atividade, o que não veio a acontecer.
Ponto 54. Em rigor, não pode sequer qualificar-se de leucocitose ligeira, pois o valor de 13.200 mm3 de leucócitos revelado pelas análises encontrava-se dentro dos valores de referência para o laboratório do hospital. (não provados)
Ponto 55. Só acima do valor de 13.500mm3 se poderia falar de leucocitose. (não provados)
Ponto 56. Não existia leucocitose. (não provados)
Concretas provas que impõem decisão diversa
Estudos mencionados em sede de contestação penal apresentada pelo recorrente, nos artigos 135 e seguintes referentes à baixa sensibilidade diagnóstica do leucograma.
Estudos atinentes à importância diagnóstica da PCR invocados em 124.º e 125.º da contestação apresentada pelo recorrente.
Depoimento de Dr. J. G., médico pediatra no Hospital de ..., ouvido na sessão da audiência de julgamento do dia 06/07/2018, com início às 10.35 e temo às 13 horas.
Depoimento de Dr. E. J., director do serviço de pediatria do Hospital de ..., ouvido na sessão da audiência de julgamento do dia 12/07/2018, com início às 10.52.28 e termo até às 12.28.33; e das 14.02.39 (inicio) até às 16.41.51 (termo).
Depoimento de Dr. M. G., chefe de serviço, cirurgiã pediatra, no Hospital de ..., em Lisboa, ouvido na sessão da audiência de julgamento do dia 03/09/2018, com início às 10.45 e termo às 12.15.
Depoimento de Dr. J. S., cirurgião geral, no Hospital dos ..., em Lisboa, ouvido na sessão da audiência de julgamento do dia 03/09/2018, com início às 14.54 e termo às 16.45m
Depoimento/esclarecimentos do perito Dr. E. N., cirurgião geral, ex-Presidente do … de Cirurgia Geral, ouvido na sessão da audiência de julgamento do dia 27/09/2018, com início às 10.14.15 e termo às 11.33.52m.
Depoimento de Dr. L. P., cirurgião geral, no Hospital Distrital de ..., ouvido na sessão da audiência de julgamento do dia 27/09/2018, com início às 14.54.36 e termo às 15.47.29m.
Depoimento de Dr. J. C., médico-cirurgião no Hospital de X, ouvido na sessão da audiência de julgamento de dia 21/06/2018, com início às 10.16 termo pelas 12.37m.
Depoimento da Dr.ª M. R. médica cirurgiã no Hospital de ..., ouvido na sessão da audiência de julgamento de dia 27/09/2018, com início às 15.48.29 e termo pelas 17.19.21.
Declarações do arguido Dr. R. M., ouvido na sessão da audiência de julgamento de dia 07/05/2018, com início às 10.24h e termo às 12.55; início às 14.30 e termo pelas 17.10m.
Declarações do arguido Dr. J. M., ouvido na sessão da audiência de julgamento de dia 14/05/2018, com início pelas 10.03.18 e termo às 17.13.59; dia 21/05/2018, com início pelas 14.53m e termo às 14.58m.
Depoimento de Dr.ª L. V., ouvida na sessão da audiência de julgamento de 04/09/2018, com inicio às 10.06m e termo às 11.08m.
Depoimento de Enf. M. A., ouvida na sessão da audiência de julgamento de 22/06/2018, com inicio às 13.45m e termo às 15.24m.
Sentido proposto para a alteração da matéria de facto
12. Deve ser eliminada a oração “o que indiciava um processo inflamatório em actividade.”
13. Deve ser eliminada a oração “os valores de referência se situam abaixo dos 13200/mm3 (leucócitose)”, passando a constar os valores de referência se situam abaixo dos 13500/mm3 (leucócitose).
61. Deve ser eliminada a oração “apesar de valores analíticos suspeitos” (…)
68. Deve ser eliminada a oração “o que indiciava um processo inflamatório em actividade.”
76. Deve ser eliminada a oração “que revelava leucocitose ainda que ligeira (13.200/mm3)” e “o que indiciava já um processo inflamatório em atividade, o que não veio a acontecer.”
E os seguintes factos não provados devem ser dados como provados:
54. Em rigor, não pode sequer qualificar-se de leucocitose ligeira, pois o valor de 13.200 mm3 de leucócitos revelado pelas análises encontrava-se dentro dos valores de referência para o laboratório do hospital.
57.Só acima do valor de 13.500mm3 se poderia falar de leucocitose.
58.Não existia leucocitose
III)
25. Não existiu qualquer interacção e diálogo entre o cirurgião, o doente e a mãe, não foi fornecida, quer pelo arguido J. M., quer pelo arguido R. M., nenhum esclarecimento ou informação terapêutica, acerca do estado do D. P..
Concretos meios de prova que impõem decisão diversa:
Depoimento da assistente A. P., prestada na sessão da audiência de julgamento ocorrida em 12/06/2018, com inicio às 14.10.11 e término às 17.42., concretamente Minuto 2.37.22
Declarações prestadas pela Assistente perante OPC, de fls. 84 – lidas em audiência e em inquérito hospitalar de fls. 220.
Sentido proposto para a alteração da matéria de facto
“Após a observação efectuada pelo cirurgião ao D. P., a assistente foi informada de que não se tratava de caso cirúrgico, porque o menor tinha a barriga mole e não tinha temperatura, devendo ser mantido em observação e com chá.”
IV)
27. Durante a noite o menor apresentou-se muito queixoso, com dores abdominais.
28. Durante a madrugada do dia 22 de Agosto de 2010, Domingo, a criança sentiu dores abdominais intensas, queixando-se reiteradamente à mãe, que com ele passou a noite, e às enfermeiras que se encontravam de serviço.
9. Pelas 04h00m da madrugada de domingo, o menor teve outra crise (….). (factos não provados).
Concretos meios de prova que impõem decisão diversa:
Depoimento da assistente A. P., prestada na sessão da audiência de julgamento ocorrida em 12/06/2018, com início às 14.10.11 e término às 17.42. (vide fundamentação a fls. 76).
Declarações prestadas no inquérito hospitalar pela assistente de fls. 220 verso;
Declarações prestadas no inquérito pela assistente a fls. 84
Sentido proposto para a alteração da matéria de facto
“Durante a madrugada do dia 22 de Agosto de 2010, Domingo, a criança sentiu dores abdominais intensas, queixando-se reiteradamente à mãe, que com ele passou a noite, e às enfermeiras que se encontravam de serviço, tendo outra crise de dor pelas 4horas da madrugada”
V)
46. Foi diagnosticada uma peritonite, tendo o arguido J. M., após conversa informal com o anestesista de serviço, F. M., que lhe transmitiu que o menor não podia ser operado no Hospital de X por não ter cuidados intensivos, decidido pela transferência para outro hospital.
47. O arguido J. M., não colheu, nem registou qualquer parecer formal, quer da equipa de cirurgia, quer da equipa de anestesia, nem recorreu ao chefe de equipa, tendo decidido pela transferência de D. P..
74. Estando duas especialidades envolvidas, pediatria e cirurgia, não existiu a intervenção da especialidade de cirurgia no diagnóstico, estudo e internamento inicial, nem posteriormente na decisão que foi tomada de transferência do menor.
84. Também, e dada a situação de urgência, não foi ponderado pelos arguidos levar o D. P. ao bloco operatório para uma laparatomia exploradora e controle de sepsies, antes de ser transferido para outro hospital, necessário para afastar o perigo e evitar o resultado.
Concretos meios de prova que sustentam decisão diversa
Declarações do assistente J. R., supra id.;
Declarações prestadas pelo assistente em inquérito a fls. 76
Depoimento do Dr. J. C., supra identificado
Declarações do arguido Dr. R. M.;
Sentido proposto para a alteração da matéria de facto
Assim, os referidos pontos da matéria de facto devem ser dados como não provados e dar-se como demonstrado que “O pediatra decidiu a transferência do D. P. após ter obtido parecer do anestesista de serviço - Dr. F. M. - de que o menor não poderia ser operado no Hospital de X, por não ter cuidados intensivos, parecer este que não foi contestado pelo cirurgião que se encontrava ao serviço – Dr. J. C..”.
VI)
61. Foi medicado com forte analgesia, como é o caso do tramadol, apesar de valores analíticos suspeitos, e durante todo o período subsequente, até ao agravamento da situação, não foi feito qualquer estudo para esclarecer a etiologia.
62. Perante a não melhoria do quadro clinico, não foi realizada a reavaliação clinica do menor e solicitado estudo complementar de diagnóstico, por nenhum dos médicos arguidos que assistiram o menor, como lhes competia.
63. Também não foi realizado um novo estudo analítico para avaliar a evolução dos marcadores de inflamação, e estabelecer se a causa da persistência e agravamento da dor abdominal estava relacionada com o quadro inflamatório/ infeccioso.
64. Não foi realizado um exame de imagem que neste contexto clinico daria algumas informações complementares e necessárias, seja através de radiografia abdominal de pé, que daria a informação acerca da presença de ar livre, suspeita de perfuração de víscera oca, detecção de níveis hidra aéreos, íleos ou oclusão intestinal.
65. Seja através de Ecografia que permitiria detetar a presença de líquido livre de novo, ou a eventual alteração/ espessamento de órgãos,
66. Seja através da TAC abdominal, que daria mais informação globalmente em relação aos órgãos abdominais, e seria mais adequado para a exclusão de perfuração de víscera oca e de líquido livre abdominal.
67. Os arguidos, R. M. e J. M., perante a persistência e agravamento do quadro clínico da criança deveriam ter revisto a situação e realizado um novo estudo complementar diagnóstico, analítico e imagiológico, todavia, isto não foi feito.
69. Assim, perante os diagnósticos diferenciais registados no sistema Alert de "dor abdominal generalizada" não existiu qualquer investigação adicional, nem foram pedidas e realizadas, mais análises desde as primeiras solicitadas, ainda o menor se encontrava no S.U, isto é, dia 20 de Agosto, até quando foram solicitadas pelo médico J. C. quando foi observar o menor, no dia 22 de Agosto, pelas 13h, a fim de investigar as alterações dos resultados que já indiciavam um foco infeccioso.
73. Assim, os arguidos J. M. e R. M. não procederam ao estudo etiológico e ao diagnóstico que permitisse o tratamento adequado.
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68.º Uma úlcera duodenal não perfurada apenas poderia ser diagnosticada através da realização de endoscopia digestiva alta. (factos não provados)
Concretos meios de prova que impõem decisão diversa:
Declarações do Dr. R. M., supra id.
Declarações do arguido J. M., supra id.
Depoimento de Dr. J. G., supra id.
Depoimento de Dra. M. G., supra id.
Depoimento de Dr. E. J., supra id.
Depoimento de Dr. J. S., supra id.
Depoimento de Dr. E. N., supra id.
Sentido proposto para a alteração da matéria de facto
Os citados pontos da matéria de facto (61 a 69 e 73) devem ser dados como não provados, uma vez que os referidos exames e procedimentos médicos só fazem o diagnóstico após a perfuração da úlcera duodenal, sendo certo que não foi apurado quando é que a úlcera perfurou.
Por outro lado, deve ser dado como provado o ponto não provado no número 68.º que refere “Uma úlcera duodenal não perfurada apenas poderia ser diagnosticada através da realização de endoscopia digestiva alta.”
VII)
71. Na noite de 21 para 22 de Agosto, dado haver um quadro de abdómen doloroso à palpação profunda generalizadamente, foi pedida a observação do arguido J. M., como cirurgião de serviço, que entendeu não haver situação cirúrgica perante a situação tranquila do caso, que não entendeu serem, necessários exames complementares e não tendo, tão pouco, efectuado qualquer registo, que aparentemente ficou a cargo do arguido R. M..
87. O arguido J. M., quando observou D. P. não valorizou devidamente os sinais clínicos observados e registados, que eram sugestivos do diagnóstico que se veio a verificar, sem fazer um estudo adequado, mandando fazer exames, não colocando a hipótese sequer de existir um caso cirúrgico, interpretando de forma superficial as queixas, e mandando dar chá ao menor.
88. Ao não registar as suas observações clinicas no ALERT impediu que se conhecesse os motivos por que considerava nada haver de cirúrgico, apesar do quadro clinico supra descrito, desvalorizando-o.
89. O arguido J. M. face ao quadro clinico apresentado, deveria ter realizado recolha da história clinica completa junto do menor e / ou dos seus pais, realizado exame objetivo detalhado, observação dos resultados analíticos, reavaliação clinica e se se mantivesse persistência dos sintomas deveria ter sido solicitado um estudo imagiológico, pelo menos solicitado uma ecografia abdominal, o que não fez, sabendo este, atenta a sua formação e funções desempenhadas, que era este o protocolo a seguir enquanto cirurgião.
90. Assim sendo, o arguido J. M. não usou em tempo útil de todos os meios que lhe eram facultados para diagnóstico e tratamento do doente.
92. Por todo o exposto, o quadro clinico D. P. não foi adequadamente valorizado, pelos arguidos, designadamente os exames analíticos iniciais, e a potencial gravidade dos diagnósticos diferenciais evocados nos registos Alert "dor abdominal generalizada" a vigilância, motivo do internamento, prestada foi deficitária, sendo os registos no Alert muito deficitários e sem avaliação médica durante longos períodos, existindo superficialidade na avaliação clinica da situação, não tendo sido prestados todos os cuidados diagnósticos e terapêuticos exigidos.
93. Pelo que a morte de D. P. teria sido evitada, caso tivesse sido feito um diagnóstico atempado, e por uma intervenção cirúrgica em tempo útil no próprio Hospital de X, que tinha condições técnicas cirúrgicas necessárias, ou na transferência atempada, e mais precoce para centro diferenciado.
94. Antes pelo contrário, desde a observação na urgência, até ser transferida, a criança esteve a agravar o seu estado, quando podia através de uma acto cirúrgico, ter-se evitado a sua morte.
95. Os arguidos tinham conhecimento das circunstâncias referidas, todavia interpretaram-nas desvalorizando os sintomas, errando no diagnóstico, impedindo que interviesse uma solução cirúrgica que teria salvado D. P..
96. Mais sabiam os arguidos, e tinham obrigação de saber, atenta a sua formação académica, que aquelas dores podiam ser um caso de peritonite generalizada, mas não colocaram em causa tal hipótese, desvalorizando as queixas do menor e toda a sintomatologia associada, violando um dever objetivo de cuidado que sobre eles impendia e que conduziu à produção do resultado, morte do menor.
97. Os arguidos não chegaram a representar o resultado morte, mas o mesmo seria previsível e evitável, atentos todos os conhecimentos técnicos de que dispunham e as circunstâncias em que se desenrolou o acompanhamento de D. P..
98. Sabiam os arguidos que as leges artis lhe impunham em face daquela sintomatologia e das queixas do menor, que fosse realizado um estudo complementar de diagnóstico, analítico e imagiológico, e que fossem utilizados os meios complementares de diagnóstico à disposição, e que o menor não estivesse tanto tempo sem observação médica.
99. Os arguidos apesar de, serem disso, sabedores, pela sua formação académica, conhecimentos e capacidades pessoais, deveriam ter interpretado o quadro descrito, que conheciam, como indiciador da existência de uma infecção generalizada, e decidir-se pela cirurgia, sendo esta a única forma de travar a infeção, interpretação que eram capazes de fazer mas que não fizeram.
100. As decisões descritas, levadas a cabo pelos arguidos, tomadas nas circunstâncias referidas, colocaram D. P. na situação de perigo para a sua vida.
101. A morte de D. P. foi consequência direta e necessária das omissões por parte dos arguidos das precauções e cautelas mais elementares, de que resultou a morte de D. P., e que só ocorreu por via dessas omissões.
102. Agiram sempre os arguidos livres e conscientemente, sabendo que a sua atuação é proibida e punida por lei penal.
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52. (Factos não provados) Aquando do exame ao doente o ventre se mostrasse sem qualquer defesa ou dor abdominal.
60. Aquando da observação clínica efectuada pelo contestante não era previsível o agravamento do estado de saúde do doente. (Factos não provados)
61. Atendendo ao seu historial clínico, o juízo de prognose era manifestamente favorável. (Factos não provados)
62. Isto porque quando é examinado pelo arguido J. M. encontrava-se ainda "a meio" da duração habitual e expectável do seu quadro recorrente de dores abdominais. (Factos não provados)
63. Na altura em que o arguido J. M. examinou o doente não existia qualquer evidência clínica de abdómen agudo ou peritonite (Factos não provados)
66. O quadro clínico do doente até ser visto pelo contestante não era condizente com a existência de úlcera duodenal perfurada. (Factos não provados)
Concretos meios de prova que impõem decisão diversa:
Estudos constantes da contestação, enunciados em 93.º a 100.º daquele articulado;
Parecer elaborado pelo Dr. J. S. – documento 6 junto com a contestação;
Declarações do arguido Dr. R. M., supra id.
Declarações do arguido Dr. J. M., supra id.
Depoimento do Dr. J. C., supra id.
Depoimento do Dr. E. N., supra id.
Depoimento do Dr. E. J., supra id.
Depoimento do Dr. L. P., supra id.;
Depoimento da Dr.ª M. R., supra id.
Depoimento da Dr.º L. V.;
Depoimento da Dr.ª M. G., supra id
Depoimento do Dr. J. G., supra id.
Depoimento da Enf. M. A.
Depoimento do Dr. J. S., supra id.
Sentido proposto para a alteração da matéria de facto
Os factos supra deverão ser dados como não provados, com excepção do facto 51.º, 60 a 63.º e 66.º (factos não provados), que deverão ser dado como provado.
De facto, da análise da prova feita em sede de audiência de julgamento, resultou que quando o recorrente procedeu à avaliação objectiva do D. P., foi previamente informado do historial clinico, da ecografia e dos resultados obtidos em Espanha pelo pediatra- cfr. fls. 69 da fundamentação.
Após, procedeu ao exame físico do D. P., nos termos dos factos provados 164.º a 174.º.
Diga-se, ainda, que naquela altura não tinham sido registadas no ALERT quaisquer sinais sugestivos de peritonite, tanto mais que os mesmos só foram registados posteriormente pelo pediatra, no circunstancialismo já relatado supra, tal como emana da fundamentação da sentença a fls.75 e 76.
Mais a mais, tal como é dito na fundamentação a fls. 75 e 76, tais sinais peritoniais não se verificavam aquando da realização do exame pelo recorrente.
Ora, não estando evidenciados ao exame físico os sinais peritoniais, não se impunha a realização de quaisquer exames para aferir da existência de um quadro cirúrgico, nem obviamente a realização de qualquer cirurgia.
Mais se dirá que, não é pelo facto de o recorrente não ter registado a sua observação no ALERT que essa omissão foi causa do resultado fatídico, tanto mais que a sua observação foi registada pelo co-arguido, aí se fazendo constar o quadro não é cirúrgico.
Acresce que, da prova realizada, apurou-se que a perfuração da úlcera duodenal e instalação de quadro cirúrgico surgiu com grande probabilidade na manhã de domingo, altura em que o recorrente já não se encontrava no hospital.
Também se demonstrou que o recorrente se manteve no hospital até às 8 horas da manhã de domingo, sem que a sua presença tivesse sido requisitada para reavaliar o D. P..
Assim, é insofismável que o juízo de censura que é feito ao recorrente, por não ter procedido à reavaliação do D. P.; por não ter ordenado a realização de exames e procedimentos médicos e por não ter realizado qualquer cirurgia, é inócuo, uma vez que a alteração do quadro do D. P. só ocorre pela manhã de domingo e não teve qualquer interferência no posterior desenvolvimento dos factos, designadamente, na decisão de transferir o D. P. (facto provado 144.º).
Daí que, as omissões imputadas ao arguido não constituem causa que importou a verificação da morte do D. P., pelo que não se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime em apreço.
VIII)
24. Mais, no registo no sistema Alert, de 22 de Agosto pelas 00h40m para além do abdómen generalizadamente doloroso à palpação profunda, apesar de não distendido, já se descrevia outros sinais sugestivos de peritonite, designadamente noção de possível defesa e dor à descompressão e diminuição dos ruídos hidroaéreos à auscultação, tendo o arguido J. M. desvalorizado a diminuição de ruídos hidro-aéreos à auscultação.
81. Até porque o arguido J. M. ao ter registado no sistema Alert, no dia 22 de Agosto pelas 00h40m: "abdómen generalizadamente doloroso à palpação profunda, apesar de não distendido", já descrevia outros sinais sugestivos de peritonite, designadamente noção de possível defesa e dor à descompressão e diminuição dos ruídos hidra-aéreos à auscultação.”
Concretos meios de prova em que o recorrente funda a sua discordância:
Registos clínicos de fls. 17 e 17 verso
Declarações do arguido Dr. R. M.
Declarações do arguido Dr. J. M.
Sentido proposto para a alteração da matéria de facto
No dia 22 de Agosto, pelas 00.40m, após a observação efectuada pelo arguido J. M. ao D. P., o arguido R. M. inseriu no registo no sistema Alert, o seguinte: “ abdómen generalizadamente doloroso à palpação profunda, apesar de não distendido. Defesa? Dor à descompressão? Ausculto poucos ruídos hidroaéreos. Plano: Peço observação por cirurgia geral. Nota: Foi observado pelo Dr. J. M. que achou nada haver de cirúrgico no contexto clinico da criança.”
O registo no sistema alert foi efectuado nos termos supra para justificar a chamada do arguido Dr. J. M..
Aquando do exame feito ao D. P. pelo recorrente, os sinais descritos no alert não estavam presentes, tendo o arguido J. M. desvalorizado a diminuição de ruídos hidro-aéreos à auscultação.
IX)
108. O D. P. sofria de úlcera péptica, situação relativamente rara nos adolescentes. (não provado)
109. A perfuração de úlcera péptica é uma situação rara nesta faixa etária. (não provado)
Concretos meios de prova que impõem decisão diversa:
Depoimento da Dr.ª M. R., supra id.
Depoimento da Dr.ª M. G., supra id.
Depoimento do Dr. L. P., supra id.
Depoimento do Dr. E. J., supra id.
Depoimento do Dr. E. N., supra id.
Estudos mencionados na contestação penal que atestam a raridade da doença – cfr. artigos 207 a 214;
Parecer de Cirurgia Geral (fls. 204):
Parecer pediátrico quando refere a fls. 256: “sintomatologia vaga e incaracterística”
Relatório de fls. 217:
Sentido proposto para a alteração da matéria de facto
O recorrente entende que os mencionados factos se encontram incorrectamente julgados, devendo passar a considerar-se que a doença de que o D. P. padecia era extremamente rara, sendo a perfuração da úlcera uma situação ainda mais rara, incaracterística e de difícil diagnóstico na sua fase aguda.
X)
31. Durante o sábado 21 ocorreu melhoria clara, com episódios de ausência total de dor. (não provado)
32. A evolução durante todo o dia de sábado foi no sentido de clara melhoria do estado de saúde do D. P. (não provado)
35. Que o D. P. estivesse um período de 16 horas sem analgesia. (não provado)
44. O dia de Sábado (dia 21/08) tinha sido passado relativamente calmo, com períodos de ausência completa de dor. (não provado)
45. Que o menor se tenha alimentado ao jantar do dia 21 de Agosto (sábado) por o dia se sábado ter sido passado relativamente calmo, com períodos de ausência completa de dor. (não provado)
53. Até à noite do dia 21/8 existia evolução positiva do quadro clínico do doente, pois de outra forma teria reiniciado alimentação. (não provado)
59. E que, até esse momento, o D. P. viesse registando evolução positiva no seu estado de saúde. (não provado)
Concretos meios de prova que impõem decisão diversa:
Registos clínicos de fls. 18
Declarações do assistente supra id.
Depoimento da enf. M. G., supra id.
Depoimento da Enf. S. S., que decorreu na sessão da audiência de julgamento realizada em 25/06/2018, com início a 10.23.24 até 11.32.37
Depoimento da Enf. C. J. que decorreu na sessão da audiência de julgamento realizada em 25/06/2018, com início a 11.33.39 até12.40.53
Depoimento da Dr.ª M. G. supra id.
Depoimento do Dr. E. J. supra id.;
Depoimento de Dr. E. N. supra id.
Sentido proposto para a alteração da matéria de facto
O recorrente entende que os mencionados factos se encontram incorrectamente julgados, devendo passar a considerar-se que no dia de sábado, o quadro clinico do D. P. conheceu melhorias, com episódios de ausência total de dor, o que lhe permitiu alimentar-se ao jantar.
XI)
43. "O arguido J. M. nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 22 e 23 dos factos provados se tenha inteirado do historial e quadro clínico do doente. (não provado)
Concretos meios de prova que impõem decisão diversa:
declarações do arguido R. M. – proferidas na sessão da audiência de julgamento ocorrida no dia 07/05/2018, com início às 10.24h e termo às 12.55; início às 14.30 e termo pelas 17.10m., ao minuto 37.29
Declarações do arguido J. M. ouvido na sessão da audiência de julgamento de dia 14/05/2018, com início pelas 10.03.18 e termo às 17.13.59; dia 21/05/2018, com início pelas 14.53m e termo às 14.58m.
Sentido proposto para a alteração da matéria de facto
O mencionado facto deve ser dado como provado.
XII)
46. Tais episódios tinham intervalos de 3-4 meses e costumavam durar, pelo menos, 8 dias. (não provado)
Concretos meios de prova que impõem decisão diversa: Registos clínicos de fls. 14;
Depoimento do assistente J. R., supra id.
Documento de fls. 597;
Documento de fls. 652
Petição inicial, contestação e réplica apresentadas no TAF de Mirandela
Sentido proposto para a alteração da matéria de facto
O mencionado facto deve ser dado como provado.
XIV
48. Que a sépsis de que o doente foi vítima tenha sido fulminante. (não provado)
Concretos meios de prova que impõem decisão diversa:
Análises efectuadas no dia 20/08/2010 e 22/08/2010, de fls. 41, 42, 43;
Depoimento de E. J., supra id.;
Parecer do Dr. E. N., de fls.203
Depoimento do DR. E. N.;
Parecer do Dr. J. S. - Documento 6 junto com a contestação
Depoimento da Dr:º M. R.
Sentido proposto para a alteração da matéria de facto
O mencionado facto deve ser dado como provado.
XV)
50. Que nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em ... não fosse necessária qualquer ajuda para que o doente pudesse ser avaliado. (facto não provado)
Concretos meios de prova que impõem decisão diversa:
Depoimento da Enf. A. G., id
Sentido proposto para a alteração da matéria de facto
O mencionado facto deve ser dado como provado.
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6. Da análise da fundamentação exarada na sentença em crise, constata-se que o Tribunal recorrido fundou a sua convicção nos pareceres juntos aos autos em sede de inquérito.
7. Sucede que, tais pareceres encontram-se eivados de contradições e insuficiências, tendo partido da premissa - errada - de que o quadro de peritonite já estava instalado aquando da admissão do D. P. no Hospital, não tendo problematizado se a perfuração podia ter ocorrido em momento posterior ao da avaliação do recorrente.
8. Acresce que, o Tribunal optou nitidamente por credibilizar o depoimento dos assistentes e seus familiares em detrimento dos depoimentos das enfermeiras, sendo que, no fundo, estas apenas corroboram os registos clínicos escritos feitos há quase 9 anos atrás, numa altura em que não se previa o lamentável desfecho que veio a ocorrer.
9. Ora, as declarações dos assistentes deveriam ter sido encaradas com reservas, desde logo, porque têm um interesse directo na causa; apesar de não terem deduzido PIC nestes autos, fizeram-no em separado junto do TAF de Mirandela, aí pedindo uma compensação de mais de €220.000,00; por outro lado, o sofrimento de um filho ou de um familiar é sempre sentido com maior acuidade e por isso é mais subjectivo do que quando comparado com os depoimentos de profissionais hospitalares que todos os dias lidam com dor e sofrimento.
10. Por outro lado, tais depoimentos encontram-se eivados de inúmeras e flagrantes contradições, que inclusivamente conduziram à leitura das suas declarações prestadas em sede de inquérito e em inquérito hospitalar; bem como, estão em contradição com o que alegaram ou aceitaram no âmbito da acção judicial que corre termos no TAF de Mirandela.
11. Pese embora o Tribunal julgue segundo o princípio estabelecido no art.º 127.º do CPP, a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios de experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
12. Atendendo, portanto, às contradições ostensivas nas declarações prestadas pelos assistentes e, bem assim, às contradições e imprecisões flagrantes dos pareceres que foram juntos aos autos em sede de inquérito, entende o recorrente que o Tribunal a quo violou o disposto no art.º 127.º do CPP.
13. No que respeita à matéria de direito, o recorrente insurge-se pelo facto de não lhe ter sido dada a possibilidade de formular quesitos aos peritos que elaboraram os pareceres juntos aos autos em inquérito e de os mesmos não terem sido chamados para prestarem os seus esclarecimentos em sede de audiência de julgamento, o que configura a violação do princípio do contraditório, previsto no art.º 32.º, n.º 5 da CRP, bem como a garantia de acesso a um processo justo e equitativo - art.º 20º, nº 4 da CRP e artigo 6º, par. 1º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o artigo 14º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.
14. Por outro lado, não compete ao arguido provar a sua inocência, nem requerer diligências probatórias que sirvam a tese da acusação, como decorrência do direito à não auto-incriminação - Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art.º 6.º) e do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 14.º).
15. Sem prescindir, entende o recorrente que mesmo que se entenda que não ocorrem as nulidades e os vícios exarados supra e que, por hipótese, não vingue a alteração da matéria de facto, a sua absolvição impõe-se atentos os factos dados como provados na sentença.
16. Veja-se que ao arguido é imputada a prática de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo art.º 137.º do CPP.
17. Dos factos dados como provados, resulta que o D. P. faleceu devido a peritonite, decorrente de perfuração de úlcera duodenal.
18. Mais se provou que a úlcera duodenal é rara em crianças e a sua perfuração mais rara ainda.
19. Tal como vem sendo amplamente aceite pela doutrina e jurisprudência um dos conceitos fulcrais da negligência é o de previsibilidade, pois o dever de cuidado apenas é concebível quando reportado a riscos considerados previsíveis.
20. Diferentemente, os riscos atípicos serão aqueles outros que raramente ocorrem naquele contexto, sendo claro que o médico, no seu actuar, não é obrigado a agir e decidir com base nos referidos riscos atípicos, sob pena de tornar a medicina impraticável dada a profusa quantidade de riscos pensáveis para qualquer singela acção, de modo que a sua ocorrência não resulta necessariamente de uma conduta negligente.
21. Assim, consequências imprevisíveis, anómalas ou de verificação rara serão, pois, juridicamente irrelevantes, não podendo dar lugar à imputação do resultado ao agente
22. Atento o que se vem de expor e considerando a enorme imprevisibilidade que revestiu em concreto este caso clínico, não tendo sido possível invocar aquele diagnóstico na presença dos sintomas que o menor apresentou durante o internamento (sendo certo que só no dia de domingo, pelas 12.30m – cfr- artigo 33.º dos factos provados -, é que se começou a suspeitar da ocorrência de uma peritonite – artigo 36.º dos factos provados), não se poderá atribuir ao arguido qualquer conduta negligente susceptível de ter criado, aumentado ou potenciado o perigo que se veio a verificar em concreto, inexistindo, por esta razão, qualquer nexo de causalidade entre a sua actuação e o resultado dramático que ditou o desfecho do presente caso, pelo que importa a sua absolvição.
23. Por outro lado, o tribunal concluiu que o arguido violou as “legis artis”; mas não resultou provado que as eventuais omissões do recorrente fossem a causa do resultado fatídico, tanto mais que não se apurou se o D. P. tinha a doença cirúrgica quando foi examinado pelo recorrente, sendo que, da prova produzida, tudo aponta para que a mesma se tenha instalado na manhã de domingo, sem que o recorrente tivesse sido chamado para proceder à reavaliação do menor, tendo-se ausentado do serviço pelas 8 horas da manhã.
24. Dir-se-á, ainda, que não se pode concluir pela existência de causalidade entre a omissão do recorrente e o resultado fatal, uma vez:
- que após o exame feito pelo recorrente ao D. P., este só foi reavaliado, no serviço de pediatria, pelas 12,30H de 22/8, apesar de se ter constatado um agravamento do quadro clínico, pelo menos, desde as 7.59m da manhã do dia 22/08/2010 (Cfr. Ponto 30.º a 36.º; 38.º a 46.º e192); e
- a não realização de intervenção cirúrgica de emergência quando, pelas 12,40H do dia 22/8, tanto o pediatra como o cirurgião J. C., confirmaram a grave situação em que o D. P. se encontrava, com a existência de sinais de peritonite e de uma infecção generalizada (Cfr. Pontos 35, 38, 117, 118 e 188), sendo certo que o Hospital dispunha de condições para realizar a cirurgia (cfr. 194 e 195).
25. Mesmo que assim não se entenda, o que só em tese se aceita, nunca a conduta do recorrente poderia ser enquadrada na figura da negligência grosseira, atenta a doença extremamente rara e sem a sintomatologia típica.
Normas jurídicas violadas: art.º 127.º do CPP; 32.º, n.º 5 da CRP, art.º 20º, nº 4 da CRP; art. 6º, par. 1º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; art. 14º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos; 137.º, n.º 1 e 2 do CP; 10.º; 15.º CP.»
Os recursos foram admitidos.
Os arguidos responderam ao recurso do Ministério Público, pugnando pela respectiva improcedência, remetendo para as considerações tecidas na motivação dos recursos que interpuseram e com que sustentaram a sua absolvição. E os assistentes J. R. e A. P., também responderam aos recursos dos arguidos, dizendo que a sentença recorrida, não merece qualquer censura, por se tratar de uma decisão justa, equilibrada, ponderada e muito bem fundamentada de facto, devendo manter-se nos seus precisos termos, uma vez que o Tribunal a quo decidiu correctamente, em conformidade e no mais rigoroso cumprimento das prescrições da lei.
Por sua vez, o Ministério Público, em 1ª instância, também respondeu aos recursos dos arguidos, defendendo a sua total improcedência, por entender que todos os elementos de prova que serviram para formar a convicção do tribunal foram congruentes e credíveis, sustentando cabalmente todos os factos que ficaram a constar da decisão recorrida, que se mostra devidamente fundamentada, não tendo havido violação de qualquer preceito legal, e, por isso, não merece qualquer censura.
E, neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, sustentando:
- Foi amplamente exercido pelos arguidos o seu direito de contraditório, relativamente aos “pareceres” juntos aos autos, formulando pedidos de esclarecimento e propondo novos quesitos, pedindo inclusive a realização de novas perícias, assim como requereram a comparência em audiência de julgamento dos autores dos ditos pareceres não tendo sido minimamente beliscado os seus direitos.
- A sentença recorrida encontra-se devidamente fundamentada, nos termos do n.º 2 do art. 374º, do CPP, com indicação do exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, sendo apreensível o processo lógico-racional subjacente à decisão proferida sobre a matéria de facto, não se detectando pelo seu texto que o Tribunal tenha analisado a prova de forma ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum ou que tenha dúvidas insanáveis e que dentro dessa dúvida tenha decidido contra os arguidos, assim como não sofrer de qualquer vício, nomeadamente o de erro notório na apreciação da prova, insuficiência da matéria de facto e de contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, pois, a decisão recorrida, no seu todo, é susceptível de esclarecer suficientemente qualquer aparente contradição resultante dos seus termos.
- A impugnação da matéria de facto por erro de julgamento, feita por ambos os arguidos, deverá improceder na sua totalidade, uma vez que os recorrentes apenas colocam em causa a livre convicção do Tribunal, visando impor o seu ponto de vista, a sua leitura subjectiva no sentido da não comprovação dos factos delituosos que lhe eram imputados, almejando um novo julgamento, para alcançar uma nova convicção fazendo tábua rasa do julgamento de 1ª instância.
- As penas fixadas pelo tribunal a quo obedecem aos critérios legais, mostrando-se justas e adequadas, não merecendo qualquer censura, embora a sua suspensão deva ficar sujeita à subordinação de entrega de uma quantia monetária por parte dos arguidos a uma instituição de protecção de crianças e jovens na zona onde os factos ocorreram.
Foi cumprido o art. 417º, n.º 2, do CPP e efectuado exame preliminar e, colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, nos termos do art. 419º, n.º 3, al. c), do CPP.
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II – Fundamentação
Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (art. 412º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo de questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, no recurso suscitam-se as seguintes questões (organizadas pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência):
1. A violação do princípio do contraditório;
2. A nulidade da decisão por falta de fundamentação (e exame crítico da prova) e por omissão de pronúncia;
3. A impugnação da matéria de facto, com fundamento nos vícios p. no art. 410º do CPP e em erro de julgamento;
4. O enquadramento jurídico dos factos;
5. A medida das penas e sua substituição.
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Importa apreciar e decidir tais questões, para o que deve considerar-se como pertinentes os factos considerados provados e não provados na decisão recorrida (sic).
Factos provados:
1. No dia 20 de Agosto de 2010, pelas 11h00m da manhã, D. P., à data, com 13 anos de idade, foi assistido, na Clínica Cooperativa ... - ...., em ..., Espanha, pelo facto de, no fim da tarde do dia anterior e da noite, o menor se ter queixado de fortes dores de barriga e vómitos frequentes, após ingerir qualquer alimento ou bebida.
2. D. P. voltou para casa, e embora tivesse alta medicado, não chegou a tomar a medicação que lhe foi prescrita, uma vez que o seu estado de saúde se agravou, pelo que, foi transportado para a Unidade Hospitalar de X.
3. Nesse mesmo dia 20, o menor, D. P., recorreu ao serviço de urgência do Centro Hospitalar de ... - Unidade de X, a fim de ser assistido clinicamente, por se apresentar com dores abdominais e vómitos.
4. Tendo sido admitido, cerca das 18h28m, no serviço de urgência daquela unidade hospitalar, registado com o Episódio de urgência n.º ..., onde consta que o menor queixava-se de “dor abdominal e vómitos desde há cerca de 3 dias”, tendo-lhe sido atribuído, segundo a Triagem de Manchester, o grau de prioridade Amarelo – Urgente.
5. Após, ter sido sujeito a uma observação prévia, no serviço de urgência, D. P. apresentava-se “Muito queixoso, contorcendo-se com dores abdominais. Rosado e sem sinais evidentes de desidratação (mucosas algo secas?). Abdómen mole, depressível, doloroso generalizadamente à palpação profunda, mas sem defesa ou massas. Restante observação normal.”
6. D. P. foi atendido pelo médico pediatra que estava, à data, em serviço de urgência naquela unidade hospitalar, o arguido R. M., que após o ter examinado, designadamente, através de apalpação em toda a zona do abdómen, receitou e ministrou-lhe Paracetamol 1gr rectal (supositório).
7. Enquanto o arguido J. M. o examinava, procedendo à apalpação em certos pontos do abdómen, D. P. queixava-se, de forma que se contorcia todo, tentava levantar-se, estendia-se e encolhia-se sucessivamente.
8. Passada cerca de 1h30m, depois de lhe ter sido ministrado o Paracetamol, D. P. voltou a queixar-se de dores abdominais, tendo, nessa altura, o arguido J. M., o medicado com Tramadol (50mg EV) e Soro 210 EV, tendo-se procedido também a uma colheita de sangue para análise.
9. Após ter tomado o Tramadol, D. P. melhorou bastante, teve um vómito aquoso em pequena quantidade, cerca de 30 minutos após a toma, todavia, manteve-se queixoso.
10. Enquanto se encontrava no serviço de urgência, deitado numa maca, a criança colocou as pernas nos ombros do seu pai, pelo facto de, naquela posição elevada, se sentir mais aliviado relativamente às dores que sentia.
11. D. P., após lhe ser ministrada medicação para as dores, voltava a queixar-se de fortes dores, e mesmo durante o hiato de tempo que estava sobre o efeito da medicação, nunca deixou de ter dores, embora menos intensas.
12. Do resultado das análises realizadas, nomeadamente do hemograma, pode observar-se uma leucocitose (13200/mm3), com neutrofilia (83%) e trombocitose (585.000 plaquetas/mm3), PCR normal, Ionograma com discreta hiponatremia (134) e marcada hipoclorémia (89 – vómitos), o que indiciava um processo inflamatório em actividade.
13. Todavia, as análises foram interpretadas pelo arguido J. M. como não tendo alterações significativas, uma vez que ao efectuar o registo no sistema ALERT, o arguido escreveu: “Análises (em Anexo) não mostraram alterações significativas, excepto ligeira leucocitose”, sendo certo que, os valores de referência se situam abaixo dos 13200/mm3 (leucócitose).
14. O arguido J. M. decidiu pelo internamento da criança, para vigilância, naquela unidade hospitalar, tendo a mesma sido admitida pelas 23h35m do dia 20 de Agosto de 2010, registado com o Episódio de internamento n.º …, com o diagnóstico de “dor abdominal, generalizada, em investigação”, ficando com fluidoterapia endovenosa, paracetamol e tramadol, em caso de dores.
15. É registado, no sistema Alert, nos diagnósticos diferenciados, dor abdominal generalizada.
16. Assim, apesar do resultado das análises, e do D. P. se mostrar muito queixoso, o arguido J. M., para além da decisão de internamento e da ministração de analgesia forte, não procedeu a uma investigação etiológica adicional, não tendo sido solicitados outros meios de diagnóstico.
17. Ficou apenas em vigilância, com ministração de Soro 210 EV (soro a 0,3% com glicose) com KCL a 7,5% (2ml/Kg/dia), Tramadol e Paracetamol em SOS.
18. Durante a madrugada do dia 20 para 21 de Agosto de 2010, a primeira noite em que D. P. esteve internado, manteve-se muito tempo, com as pernas elevadas, colocadas sobre os ombros da sua mãe, uma vez que era nesta posição que se sentia mais aliviado, face às dores que sentia, facto que o arguido J. M., presenciou.
19. No dia seguinte ao internamento, dia 21 de Agosto de 2010, Sábado, D. P. manteve episódios de dores abdominais, fez paracetamol à tarde, sendo que, após o jantar voltaram as queixas de dores abdominais intensas, com sudorese.
20. No dia 21 de Agosto de 2010, cerca das 23h, e como D. P. se apresentava com os músculos completamente rígidos, e com muitas dores, foi contactado pela equipa de enfermagem, via telefone, o arguido J. M. que deu indicação oral para reduzir o débito de soro para 70ml/h, e fez analgésico.
21. Assim, só cerca da 00h00m do dia 22 de Agosto D. P. foi avaliado na enfermaria pelo arguido J. M. que registou na sua observação: “abdómen não distendido, mas doloroso à palpação profunda generalizadamente. Defesa? Dor à descompressão? Ausculto poucos ruidos hidro-aéreos.”
22. Após o ter examinado, o arguido J. M., decidiu contactar o serviço de cirurgia, designadamente o colega médico-cirurgião que se encontrava em serviço de urgência nesse dia, o arguido J. M..
23. O arguido J. M. foi chamado e examinou o menor, pela primeira vez, tendo sido de parecer que nada havia de cirúrgico e para lhe darem chá, não tendo feito qualquer registo desta observação, que foi registada no Alert pelo colega, o arguido J. M., nem se socorrendo de outros meios de diagnóstico.
24. Mais, no registo no sistema Alert, de 22 de Agosto pelas 00h40m para além do abdómen generalizadamente doloroso à palpação profunda, apesar de não distendido, já se descrevia outros sinais sugestivos de peritonite, designadamente noção de possível defesa e dor à descompressão e diminuição dos ruídos hidro-aéreos à auscultação, tendo o arguido J. M. desvalorizado a diminuição de ruídos hidro-aéreos à auscultação.
25. Não existiu qualquer interação e diálogo entre o cirurgião, o doente e a mãe, não foi fornecida, quer pelo arguido J. M., quer pelo arguido J. M., nenhum esclarecimento ou informação terapêutica, acerca do estado do D. P..
26. Após, ter sido examinado, D. P. continuou a ser medicado só com Tramadol EV, um opiáceo para controle da sintomatologia dolorosa.
27. Durante a noite o menor apresentou-se muito queixoso, com dores abdominais.
28. Durante a madrugada do dia 22 de Agosto de 2010, Domingo, a criança sentiu dores abdominais intensas, queixando-se reiteradamente à mãe, que com ele passou a noite, e às enfermeiras que se encontravam de serviço.
29. Também foi prescrito pelo arguido J. M., o Diazepam (benzodiazepina), utilizado para aliviar a ansiedade, e os espasmos musculares.
30. Só lhe ministraram, novamente, a medicação para as dores, às 7h59m da manhã do dia 22, Domingo, e deram-lhe chá, que vomitou, após ter bebido cerca de 4 colheradas, sendo o vómito acastanhado.
31. Apesar do quadro supra descrito, D. P. manteve-se, com a medicação acima prescrita, analgesia forte, todavia, sem investigação etiológica, estando sem avaliação médica desde as 23h37m do dia 20 de Agosto de 2010, quando foi admitido no internamento, até às 00h40m da madrugada de 22 de Agosto, isto é, 24 horas no dia 21 de Agosto, situação que se repetiu até, pelo menos, às 12h32m do 22 de Agosto de 2010, ficando novamente sem qualquer observação médica durante cerca de 12h.
32. Assim, na manhã do dia 22 de Agosto, cerca das 11h30m, o menor ficou com má perfusão, frio, cianosado (Sat 02 875 sem O2 – subindo para 935 com O2), com queixas de dores abdominais intensas.
33. Pelas 12h32m, do dia 22 de Agosto de 2010, Domingo, após a agravação do estado do D. P., e da pressão dos seus progenitores, o arguido J. M. foi chamado para reavaliação, pelo facto de a criança ter piorado o seu quadro clinico, apresentando-se com o abdómen muito inchado, os lábios roxos, suores no maxilar inferior, e a testa muito gelada.
34. Então, nessa altura, o arguido J. M. examinou o menor, que se mostrava muito queixoso e algo prostrado, apresentando extremidades frias, algo cianosadas, suado, temperatura auricular 37,6cº mas com temperatura rectal de 38,8cº, após ter feito paracetamol.
35. Apresentava um tempo de reperfusão menor 2s. TA _ 100/50 Sat O2 variável captação mas atingindo os 985com O2 suplementar, FC 180-200/minuto.Taquipneia30/m sem tiragem, AP-MV mantido e simétrico, sem ruídos adventícios, abdómen doloroso à palpação generalizada, com evidente dor à descompressão em todos os quadrantes.
36. Nessa altura, em face dos sinais de choque séptico consecutivo e a muito provável peritonite, eram claros, designadamente pelos sintomas de dor abdominal intensa, cianosado, extremidades frias, dessaturação de 02.
37. O arguido J. M., perante este quadro clinico, contactou o médico-cirurgião, que à data se encontrava de serviço naquela unidade hospitalar, J. C..
38. J. C., quando chegou ao local para observar o menor, encontrou-o deitado, numa atitude de prostração, constatando que este apresentava um quadro séptico de infeção generalizada.
39. Assim, procedeu à observação da criança, através de apalpação abdominal, encontrando-se mole e depressível, mas doloroso em todos os quadrantes, e consequentemente, pediu a realização de novas análises, e de uma TAC abdominal, sendo o pedido da TAC realizado pelas 12h55m.
40. Tendo nessa altura iniciado antibiótico por via endovenosa Meropenem EV. (500mg EV de 8/8h), tendo-lhe sido ministrado quando eram 13h00m, e fez Aceltisalisilato de lisina EV.
41. Pelas 13h01m foram pedidas a realização de novas análises, tendo sido colhido sangue para Hemograma, Bioquimica/PCR, Gasimetria (venosa) e Hemocultura.
42. Foi colocado soro fisiológico em perfusão de 200ml/h e foi colocado O2 por máscara de alto débito para manter SatO2 maior que 95%.
43. Das análises realizadas resultaram alterações muito significativas, designadamente diminuição dos valores de HB; Leucopnia (mas com Neut de cerca de 1000/mm3), plaquetas 414000/mm3, PCR de 3,12mg/dl, Acidose metabólica marcada (7.07ph BE–(21), Função renal e hepática normal, Ionograma com potássio de 2,2mEq/I.Sódio N.
44. Por sua vez, a TAC Pelvico-Abdominal mostrou alterações muito marcadas, designadamente: “Observa-se líquido abdomino-pélvico em grande quantidade, com pneumoperitoneu, de aparentes características inflamatórias. Associadamente parece existir uma colecção sugestiva de abcesso na fossa ilíaca direita e espessamento das paredes do cego e cólon ascendente proximal. Apesar do apêndice registar um calibre dentro dos limites normais (6mm), as alterações anteriormente descritas tornam suspeita a hipótese de apendicite aguda perfurada com abcesso adjacente e peritonite. Fígado globoso, mostrando sinais de edema periportal, mas sem lesões focaius ou dilatação das vias biliares. Restante estudo abdomino-pélvico sem alterações relevantes. Pequeno derrame pleural bilateral.”
45. Durante o período a que o D. P. foi sujeito aos exames suprarreferidos, este já não tinha praticamente nenhuma reação, devido ao estado de debilidade em que se encontrava, isto é, estava a ficar com manchas roxas nas pernas, ao mesmo tempo que as ia deixando descair, sem reação.
46. Foi diagnosticada uma peritonite, tendo o arguido J. M., após conversa informal com o anestesista de serviço, F. M., que lhe transmitiu que o menor não podia ser operado no Hospital de X por não ter cuidados intensivos, decidido pela transferência para outro hospital.
47. O arguido J. M., não colheu, nem registou qualquer parecer formal, quer da equipa de cirurgia, quer da equipa de anestesia, nem recorreu ao chefe de equipa, tendo decidido pela transferência de D. P..
48. Pelo exposto, e após contacto, com o Hospital de ... no Porto, serviço de Cirurgia Pediátrica, Dr. M., foi tomada a decisão pelo arguido J. M., que a criança seria transferida para o serviço de cirurgia pediátrica daquela unidade hospitalar, por abcesso apendicular com peritonite generalizada.
49. Assim, o arguido J. M. disse aos progenitores do menor que atento o estado grave do menor, este seria transportado de ambulância para o Hospital de ..., no Porto.
50. O progenitor questionou ainda o médico, se não seria melhor o transporte ser feito por helicóptero, ao que este respondeu que demoraria mais tempo, pelo que iria ser transportado de ambulância.
51. Para tal, e só pelas 16h00m do dia 22 de Agosto de 2010, D. P. foi transportado na ambulância, acompanhado por uma enfermeira com monitorização de Sat O2 e pulso, e pelo arguido, médico pediatra R. M..
52. Durante o percurso, ao chegar próximo do acesso para a A7, a ambulância onde seguia o menor, ligou os quatro piscas, tendo seguido a assinalar marcha de urgência, em direção ao Centro Hospitalar de ....
53. Assim, no dia 22 de Agosto, pelas 16h46m D. P. foi admitido no serviço de urgência do Hospital de ..., na sala de emergência em PCR – assistolia, tendo sido realizadas manobras, não se assistiu a recuperação de pulso.
54. O óbito foi verificado às 16h40m do dia 22 de Agosto de 2010.
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55. Tendo o relatório da autópsia concluído que: “(…) a morte do menor D. P. foi devida a lesões de perfuração de víscera oca (duodeno), com sinais de peritonite (…)”, tendo o estudo histológico revelado: ”Alterações morfológicas compatíveis com úlcera duodenal, com sinais de actividade e de peritonite e parênquima pulmonar colapsado”.
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56. Ora, durante o internamento D. P. sentia-se com menos dores ao colocar as pernas nos ombros dos seus pais, isto é, adotava uma posição antálgica de flexão das coxas sobre o abdómen, facto que não está referido nos registos clínicos.
57. Existia assim um alívio com posição antálgica, o que se compagina com a hipótese de diagnóstico de úlcera duodenal da criança – sintomas mais frequentes a partir dos 6 anos - dor abdominal recorrente e vómitos.
58. D. P. foi internado em 20.08.2010 no serviço de pediatria, pelo arguido Dr. R. M., após um período de observação no serviço de urgência, com dor abdominal generalizada em investigação, existindo uma situação de dor abdominal com várias horas de evolução, apresentando-se muito queixoso, contorcendo-se com dores, vindo até a necessitar de analgesia forte.
61. Foi medicado com forte analgesia, como é o caso do tramadol, apesar de valores analíticos suspeitos, e durante todo o período subsequente, até ao agravamento da situação, não foi feito qualquer estudo para esclarecer a etiologia.
62. Perante a não melhoria do quadro clinico, não foi realizada a reavaliação clinica do menor e solicitado estudo complementar de diagnóstico, por nenhum dos médicos arguidos que assistiram o menor, como lhes competia.
63. Também não foi realizado um novo estudo analítico para avaliar a evolução dos marcadores de inflamação, e estabelecer se a causa da persistência e agravamento da dor abdominal estava relacionada com o quadro inflamatório/ infeccioso.
64. Não foi realizado um exame de imagem que neste contexto clinico daria algumas informações complementares e necessárias, seja através de radiografia abdominal de pé, que daria a informação acerca da presença de ar livre, suspeita de perfuração de víscera oca, detecção de níveis hidro aéreos, íleos ou oclusão intestinal.
65. Seja através de Ecografia que permitiria detetar a presença de líquido livre de novo, ou a eventual alteração/espessamento de órgãos,
66. Seja através da TAC abdominal, que daria mais informação globalmente em relação aos órgãos abdominais, e seria mais adequado para a exclusão de perfuração de víscera oca e de líquido livre abdominal.
67. Os arguidos, R. M. e J. M., perante a persistência e agravamento do quadro clínico da criança deveriam ter revisto a situação e realizado um novo estudo complementar diagnóstico, analítico e imagiológico, todavia, isto não foi feito.
68. Neste contexto, com o abdómen “doloroso generalizadamente à palpação profunda” embora mole e depressível, os arguidos deveriam ter valorizado os resultados do hemograma, que revelava leucocitose, ainda que ligeira (13.200/mm3), neutrofilia (83%) e trombocitose (585.000plaquetas/mm3), o que indiciava já um processo inflamatório em atividade.
69. Assim, perante os diagnósticos diferenciais registados no sistema Alert de “dor abdominal generalizada” não existiu qualquer investigação adicional, nem foram pedidas e realizadas, mais análises desde as primeiras solicitadas, ainda o menor se encontrava no S.U, isto é, dia 20 de Agosto, até quando foram solicitadas pelo médico J. C. quando foi observar o menor, no dia 22 de Agosto, pelas 13h, a fim de investigar as alterações dos resultados que já indiciavam um foco infeccioso.
70. Não existiu, pelo menos registada, qualquer observação clinica durante todo o dia 21 de Agosto de 2010, e depois desde as 00h40m da madrugada de 22, até às 12h32m do dia 22, quando foi examinado, perante o agravamento continuado do menor e da insistência dos progenitores, isto é, 24 horas, e depois mais 12h sem avaliação.
71. Na noite de 21 para 22 de Agosto, dado haver um quadro de abdómen doloroso à palpação profunda generalizadamente, foi pedida a observação do arguido J. M., como cirurgião de serviço, que entendeu não haver situação cirúrgica perante a situação tranquila do caso, que não entendeu serem, necessários exames complementares e não tendo, tão pouco, efetuado qualquer registo, que aparentemente ficou a cargo do arguido R. M..
72. Essa noite não foi tranquila para o menor, pelas razões referidas.
73. Assim, os arguidos J. M. e R. M. não procederam ao estudo etiológico e ao diagnóstico que permitisse o tratamento adequado.
74. Estando duas especialidades envolvidas, pediatria e cirurgia, não existiu a intervenção da especialidade de cirurgia no diagnóstico, estudo e internamento inicial, nem posteriormente na decisão que foi tomada de transferência do menor.
75. Pelo exposto, o arguido J. M. violou as leges artis por via de não ter utilizado em tempo útil todos os conhecimentos científicos de aplicação possível, e todos os meios que lhe eram facultados para diagnóstico e tratamento do menor que estava confiado a este centro hospitalar.
76. O arguido J. M. deveria ter valorizado os resultados do hemograma realizado, que revelava leucocitose ainda que ligeira (13.200/mm3), neutrofilia (83%) e trombocitose (585.000plaquetas/mm3), o que indiciava já um processo inflamatório em atividade, o que não veio a acontecer.
77. Assim sendo, a possibilidade de existir uma peritonite deveria ter sido seriamente considerada e aprofundada, no mínimo através de uma ecografia abdominal, o que não fez.
78. O arguido J. M. apesar das queixas de D. P. não mandou fazer exames complementares, deixando-o apenas receitado com paracetamol e Tramadol, analgésicos, que apenas servem para colmatar/minorar as dores, não tendo qualquer efeito curativo.
79. O arguido, em face de um doente tão queixoso e com o quadro abdominal descrito, não o deveria ter deixado sem avaliação médica durante períodos perlongados, designadamente mais de 24h no dia 21 de Agosto.
80. Mais, o arguido J. M., como responsável pelo doente, confiou na indicação verbal do colega o arguido J. M., deixando-se assumir uma atitude contemplativa.
81. Até porque o arguido J. M. ao ter registado no sistema Alert, no dia 22 de Agosto pelas 00h40m: “abdómen generalizadamente doloroso à palpação profunda, apesar de não distendido”, já descrevia outros sinais sugestivos de peritonite, designadamente noção de possível defesa e dor à descompressão e diminuição dos ruídos hidro-aéreos à auscultação.
82. Por esse facto, o arguido J. M., não se deveria ter remetido a uma atitude passiva e resignada perante as indicações verbais do seu colega cirurgião o arguido J. M., tendo ao invés deixado o menor ainda mais 12horas sem observação médica.
83. O arguido J. M. ao decidir, conforme o atrás referido, não procedeu ao registo clínico, onde estivesse descrita e fundamentada a opção pela transferência do menor para outro hospital, não existindo registos clínicos da observação e da decisão no sistema ALERT, após o resultado da TAC.
84. Também, e dada a situação de urgência, não foi ponderado pelos arguidos levar o D. P. ao bloco operatório para uma laparatomia exploradora e controle de sepsies, antes de ser transferido para outro hospital, necessário para afastar o perigo e evitar o resultado.
85. Pelo exposto, a atuação do arguido J. M. pautou-se por não ter avaliado, pelo menos em dois momentos, uma situação clínica grave, não lhe tendo dado a orientação atempada de que necessitava e que lhe competiria na qualidade de médico pediatra a quem lhe foi confiado o menor.
86. Por seu turno, o arguido J. M. violou as leges artis, uma vez que, aquando da observação clínica efetuada ao menor, no dia 22, pelas 00h30m, no serviço de internamento de pediatria do hospital, por via de não ter utilizado, em tempo útil todos os conhecimentos científicos, de aplicação possível, e todos os meios que lhe eram facultados para diagnóstico e tratamento deste menor confiado ao hospital.
87. O arguido J. M., quando observou D. P. não valorizou devidamente os sinais clínicos observados e registados, que eram sugestivos do diagnóstico que se veio a verificar, sem fazer um estudo adequado, mandando fazer exames, não colocando a hipótese sequer de existir um caso cirúrgico, interpretando de forma superficial as queixas, e mandando dar chá ao menor.
88. Ao não registar as suas observações clínicas no ALERT impediu que se conhecesse os motivos por que considerava nada haver de cirúrgico, apesar do quadro clinico supra descrito, desvalorizando-o.
89. O arguido J. M. face ao quadro clínico apresentado, deveria ter realizado recolha da história clínica completa junto do menor e / ou dos seus pais, realizado exame objetivo detalhado, observação dos resultados analíticos, reavaliação clínica e se se mantivesse persistência dos sintomas deveria ter sido solicitado um estudo imagiológico, pelo menos solicitado uma ecografia abdominal, o que não fez, sabendo este, atenta a sua formação e funções desempenhadas, que era este o protocolo a seguir enquanto cirurgião.
90. Assim sendo, o arguido J. M. não usou em tempo útil de todos os meios que lhe eram facultados para diagnóstico e tratamento do doente.
91. Por último, o arguido J. M. também não teve em consideração o Protocolo da Urgência Pediátrica Integrada do Porto, publicado no portal da ARS Norte, onde se faz constar que uma dor abdominal severa com mais de 6 horas é sugestiva de patologia cirúrgica.
92. Por todo o exposto, o quadro clínico D. P. não foi adequadamente valorizado, pelos arguidos, designadamente os exames analíticos iniciais, e a potencial gravidade dos diagnósticos diferenciais evocados nos registos Alert “dor abdominal generalizada” a vigilância, motivo do internamento, prestada foi deficitária, sendo os registos no Alert muito deficitários e sem avaliação médica durante longos períodos, existindo superficialidade na avaliação clínica da situação, não tendo sido prestados todos os cuidados diagnósticos e terapêuticos exigidos.
93. Pelo que a morte de D. P. teria sido evitada, caso tivesse sido feito um diagnóstico atempado, e por uma intervenção cirúrgica em tempo útil no próprio Hospital de X, que tinha condições técnicas cirúrgicas necessárias, ou na transferência atempada, e mais precoce para centro diferenciado.
94. Antes pelo contrário, desde a observação na urgência, até ser transferida, a criança esteve a agravar o seu estado, quando podia através de uma acto cirúrgico, ter-se evitado a sua morte.
95. Os arguidos tinham conhecimento das circunstâncias referidas, todavia interpretaram-nas desvalorizando os sintomas, errando no diagnóstico, impedindo que interviesse uma solução cirúrgica que teria salvado D. P..
96. Mais sabiam os arguidos, e tinham obrigação de saber, atenta a sua formação académica, que aquelas dores podiam ser um caso de peritonite generalizada, mas não colocaram em causa tal hipótese, desvalorizando as queixas do menor e toda a sintomatologia associada, violando um dever objetivo de cuidado que sobre eles impendia e que conduziu à produção do resultado, morte do menor.
97. Os arguidos não chegaram a representar o resultado morte, mas o mesmo seria previsível e evitável, atentos todos os conhecimentos técnicos de que dispunham e as circunstâncias em que se desenrolou o acompanhamento de D. P..
98. Sabiam os arguidos que as leges artis lhe impunham em face daquela sintomatologia e das queixas do menor, que fosse realizado um estudo complementar de diagnóstico, analítico e imagiológico, e que fossem utilizados os meios complementares de diagnóstico à disposição, e que o menor não estivesse tanto tempo sem observação médica.
99. Os arguidos apesar de, serem disso sabedores, pela sua formação académica, conhecimentos e capacidades pessoais, deveriam ter interpretado o quadro descrito, que conheciam, como indiciador da existência de uma infeção generalizada, e decidir-se pela cirurgia, sendo esta a única forma de travar a infeção, interpretação que eram capazes de fazer mas que não fizeram.
100. As decisões descritas, levadas a cabo pelos arguidos, tomadas nas circunstâncias referidas, colocaram D. P. na situação de perigo para a sua vida.
101. A morte de D. P. foi consequência direta e necessária das omissões por parte dos arguidos das precauções e cautelas mais elementares, de que resultou a morte de D. P., e que só ocorreu por via dessas omissões.
102. Agiram sempre os arguidos livres e conscientemente, sabendo que a sua atuação é proibida e punida por lei penal.
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(Da contestação do arguido R. M.)
103. O arguido R. M. tem mais de 28 anos de exercício de médico, sempre na especialidade de pediatria.
104. Quando se apresentou no Hospital de X, vinha de ser atendido numa clínica em ... onde tinha sido tratado pelo menos três vezes nos últimos 3 ou 4 anos, exibindo os mesmos sintomas: dores abdominais descritas como generalizadas, tipo cólica, sem febre, em geral acompanhadas de vómitos, sendo que a situação de mal estar e dor, assim como os vómitos, passavam depois de uns dias.
105. Nunca foi sugerido aos pais a hipótese de úlcera péptica.
106. No dia 20 de Agosto de 2010, em ..., foi receitado ao D. P. um espasmolítico (medicamento para os “espasmos do intestino), um procinético (facilitador do trânsito intestinal) e um tranquilizante.
107. Nem o arguido R. M. nem muito menos os pais suspeitavam da doença péptica de base, nem muito menos da sua complicação, perfuração.
108. O D. P. sofria de úlcera péptica, situação relativamente rara nos adolescentes.
109. A perfuração de úlcera péptica é uma situação rara nesta faixa etária.
110. A hipótese diagnóstica de peritonite aguda generalizada só foi registada depois da morte do D. P. e não foi um diagnóstico tido em conta até muito próximo do desfecho final.
111. Foram administradas ao D. P. duas doses de Tramadol, com 27 horas de intervalo.
112. Durante o dia de sábado, o D. P. movimentou-se, foi à casa de banho com ajuda.
113. … Tolerou umas colheres de sopa.
114. Quando o arguido R. M. observou o D. P. no sábado à noite não havia distensão abdominal.
115. O arguido contactou telefonicamente o serviço de pediatria na manhã de domingo.
116. Só mais tarde o arguido foi chamado para reobservar o adolescente que teria ficado pior.
117. Só no domingo quando o foi observar o arguido R. M. se apercebeu gravidade da situação.
118. Verificou, na altura, um quadro séptico, o abdómen mole, depressível e doloroso, com evidente dor à descompressão em todos os quadrantes.
119. Nessa altura, a decisão do arguido R. M. foi a de tentar a transferência para outro hospital, o que não foi conseguido, já que o paciente faleceu durante a viagem.
120. Em Novembro de 2013, o arguido diagnosticou uma perfuração de víscera oca num recém nascido com três dias de vida.
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(Da contestação do arguido J. M.)
121. O arguido J. M. é médico cirurgião-geral e na madrugada do dia 22 de Agosto encontrava-se de serviço no Hospital de X.
122. Cerca das 00.20h do dia 22 de Agosto de 2010, o arguido R. M. solicitou a colaboração do arguido J. M., no sentido de emitir parecer acerca da existência, ou não, de quadro clínico cirúrgico num doente de 13 anos que se encontrava internado desde as 23.35h do dia 20 de Agosto de 2010 no serviço de pediatria do Hospital.
123. Pelas 23.37h, do referido dia 20, havia sido registado no diário médico ALERT: “Diagnósticos: Dor abdominal, generalizada (Em investigação)”.
124. O arguido J. M., foi observá-lo ao serviço de pediatria onde se encontrava internado, o que aconteceu cerca das 00.30h.
125. Primeiramente, às 23.34h, do dia 21, registou-se no sistema ALERT que: “Menino (…) refere dor intensa a nível abdominal (8) (…) Fez analgésico”
126. No entanto, às 00.49h, do dia 22, aproximadamente na altura em que é visto pelo arguido J. M., o nível de dor que se fez consignar é de “2 (0-10) (Dor)”.
127. Às 00.49h, do dia 22, registou-se que: “Terminou analgésico, agora está adormecido.”
128. Por outro lado, às 00.40h, do dia 22, consignou o pediatra que: “Tem mantido episódios de dores abdominais mas já não vomita desde manhã. Sem febre. Ao jantar “comeu qualquer coisa”. Agora está um pouco mais queixoso pelo que está a terminar perfusão de Tramadol.”
129. O doente havia iniciado analgésico (Tramadol), cerca das 23.00h do dia 21, por indicação do pediatra.
130. Fez injeção por via intravenosa de Paracetamol às 07.59h, do dia 22; - às 05.24h, do dia 21.
131. Fez injecção por via intravenosa de Tramadol (2 tomas; máx. era de 8/8h) - às 23.00h, do dia 21; (de acordo com a última toma registada); às 20.10h, do dia 20;
132. Ao jantar do dia 21 de Agosto alimentou-se, tolerou 4 colheres de sopa.
134. Assim, no que toca à alimentação registou-se, entre o mais, o seguinte: - “Diagnóstico associado: Independente para alimentar-se 1ª execução (Concluído) Notas: Comeu 4 colheres de sopa. Tolerou (…)” i.e., ao jantar do dia 21. - 2ª execução “Notas: 11h ingeriu chá que não tolerou” i.e., manhã do dia 22.
135. À entrada do internamento lhe tinha sido fixada pelo pediatra “dieta zero”.
136. No dia 20 de agosto, antes de recorrer ao Hospital de X, o doente havia realizado ecografia abdominal numa Clínica Médica Espanhola que tinha sido considerada normal.
137. As análises clínicas (resultado obtido às 20.45h do dia 20 de Agosto), revelava ligeira leucocitose (o valor dos leucócitos se cifrava dentro do valor de referência) e neutrofilia; tinha PCR normal.
138. Quer o resultado da ecografia, quer o resultado das análises sanguíneas são obtidas já com, pelo menos, 2 dias de evolução.
139. No dia 22 de Agosto foi registado o seguinte:- (8.30h) “Menino no cadeirão adormecido (…)”;- (16.12h);- (21.39h) “Fica aparentemente bem. Mantém-se queixoso, refere dor intensa por períodos.”
140. Esta sintomatologia de dores abdominais e vómitos era recorrente e durava há cerca de 3-4 anos.
141. O arguido J. M. sugeriu que o doente fosse mantido em observação, acordando com o Dr. R. M., o início de dieta com chá.
142. O pediatra veio a resumir a observação clínica do arguido J. M., como “não apresenta quadro cirúrgico”.
143. O doente continuaria internado para observação, e, obviamente, investigação da doença.
144. O Dr. J. M. manteve-se ao serviço no Hospital até às 08.00h da manhã do dia 22 de Agosto, sem que tenha sido novamente chamado ou solicitada a sua presença e sem que tenha tido qualquer tipo de interferência posterior no desenvolver dos factos.
145. Do relatório da autópsia consta a informação de que: “(…) O exame toxicológico ao sangue periférico, para pesquisa de substâncias medicamentosas, revelou 3 nanogramas de diazepam, substância terapêutica utilizada em doses terapêuticas (…)”
146. Após perfuração da referida úlcera, cria-se um quadro de peritonite e subsequente sépsis.
147. Neste caso, a peritonite é primeiro química e depois bacteriana.
148. O doente foi vítima de uma sépsis.
149. No diário médico, consta registado pelo pediatra às 12.32h, do dia 22, que: “Fui chamado agora para reavaliação, pelo facto de a criança ter piorado. Segundo informação da mãe e das enfermeiras passou a noite muito queixoso, com dores abdominais e nauseado, tendo vomitado pequenas quantidades de um líquido acastanhado que, parecendo sangue digerido, mas que, segundo as quantidades de um líquido acastanhado que, parecendo sangue digerido, mas que, segundo as enfermeiras, não reagia com a água oxigenada (…)”
150. Às 07.01h, do dia 22, registou-se que: “Dormiu por curtos períodos, acordou várias vezes referindo dor abdominal 4, prestado apoio emocional”
151. Às 07.59h, do dia 22, registou-se que: “Dor abdominal 8, administrado analgésico” (Paracetamol)
152. Às 07.43h, do dia 22, registou-se que: “Refere estar nauseado.”
153. Às 10.12h, do dia 22, registou-se, reportando-se às 9.00h, que: “9h Menino acordado acompanhado pelos pais, refere dor abdominal = 4, mantém analgésico em curso. Refere dor mais intensa quando urina.”
154. Às 11.14h, do dia 22, consignou-se que: “Menino mais calmo após perfusão do paracetamol.”
155. Às 15.09h, do dia 22, registou-se, reportando-se às 12.15h, que: “12.15h Menino com sudorese intensa e com sinais de má perfusão periférica, foram monitorizado sinais vitais e monitorizado com saturimetro de pulso, por apresentar Sato2 de 68% foi colocado oxigénio humidificado a 9/m foi contactado o Dr. R. M. que veio observar o menino (…)”
156. Na nota de alta de enfermagem, acrescentou-se, ainda que:“(…) hoje de manhã teve 3 vómitos acastanhados (…) Iniciou febre hoje de manhã de 38.6º (…)” i.e., dia 22, de manhã.
157. E o pediatra às 13.16h, fez constar, entre o mais que: “(…) Abd – Ligeiramente distendido? Doloroso à palpação generalizada. Sem defesa clara mas com evidente dor à descompressão em todos os quadrantes. (…)”
158. Na informação clínica/relatório TAC constante de fls. 34, consigna-se, entre o mais, pelo Dr. J. C. (cirurgião), o seguinte: “(…) Abdómen mole e depressível, doloroso em todos os quadrantes, mais intenso a nível da FIE. Apendicite? Perfuração de víscera oca?”
159. Às 18.51h, do dia 22, consignou-se que: “Registo feito à posteriori (…) Após realização de TAC abdominal e de acordo com opinião da anestesia (Dr F. M.), a criança não teria condições de ser operada neste hospital e deveria ser transferida para um Hospital Central.”
160. O paciente D. P. faleceu no dia 22 de agosto devido a lesões de perfuração de víscera oca (duodeno), com sinais de peritonite, tendo o estudo histológico revelado alterações morfológicas compatíveis com úlcera duodenal, com sinais de atividade.
161. Só foi possível detectar a úlcera duodenal através de exame necroscópico.
162. A criança tinha uma úlcera no duodeno que veio a perfurar.
163. Não obstante o pedido de parecer referido em 22 dos factos provados, logo o arguido R. M., pediatra referiu ao arguido J. M. não encontrar qualquer evidência de quadro cirúrgico/abdómen agudo.
164. A observação referida em 23 dos factos provados, foi feita na presença do pediatra, da enfermeira de serviço e da Mãe do menor.
165. A criança encontrava-se deitada, sem dificuldade respiratória, calma e consciente.
166. Não se encontrava a chorar, não berrava e assim permaneceu durante o exame.
167. Por aquela altura foi registada pela enfermagem a dor ligeira 2/10.
168. Quando o doente foi observado pelo arguido J. M. já não se encontrava com o quadro de dor que motivou a administração de tramadol.
169. Foi efetuado exame ao doente e à palpação o ventre mostrava-se mole e depressível, com ligeiro timpanismo e sem massas.
170. Dado que o doente se encontrava internado no serviço de pediatria e como o pediatra iria registar a sua observação clínica, logo este se disponibilizou para registar também a do arguido J. M., a que este aquiesceu.
171. Até ter sido observado pelo arguido J. M., o doente encontrava-se sem febre durante todo o internamento, sem diarreia e já não tinha vómitos ou náuseas desde a manhã do dia 21 de Agosto.
172. Não havia sinais ou indícios de qualquer hemorragia (nem enquanto teve vómitos).
173. Para o laboratório do Hospital, o valor de referência para os leucócitos situava-se entre os 4.500 e os 13.500 mm3.
174. Os restantes valores revelados pelas análises, neste contexto, encontram-se normais (com exceção de ligeira neutrofilia) e não são reveladores de peritonite.
175. Durante 3- 4 anos de sintomatologia de dores abdominais e vómitos, não foi feito qualquer diagnóstico para a doença da criança e sempre a mesma recuperava o seu estado normal de saúde.
176. Após a realização da sua observação, o arguido J. M. ausentou-se, plenamente convencido de que o doente tinha tido mais uma crise de dor, mas que não se tratava de caso cirúrgico.
177. A sua perceção e avaliação de que o quadro não é cirúrgico é semelhante àquela que até então havia sido feita pelos seus Colegas que haviam observado o doente, quer pelo pediatra, quer pelo Colega Espanhol.
178. Foram três médicos a observar o doente, sem que lhe detetassem qualquer evidência cirúrgica.
179. Na altura em que o arguido J. M. examinou o quadro clínico não se deveria encontrar mascarado.
180. O arguido J. M. foi alheio à decisão de administração de analgesias ao doente.
181. A medicação administrada durante todo o internamento no Hospital de X foi a seguinte:
- soro 210 (500ml) com 12.5 Eq de KCL
- Tramadol 50mg EV em SOS
- Paracetamol 1 gr em SOS
- Soro fisiológico 500 ml com 20 mEq
- Aspegic 900mg EV
182. O Diazepam não foi administrado no Hospital de X.
183. Em Espanha foi administrado Valium ao D. P., ½ ampola de 10 mg.
184. O arguido J. M. nunca foi informado da medicação que o D. P. fez em Espanha.
185. Do relatório de autópsia é possível concluir que o Diazepam ainda se encontrava presente no sangue periférico do D. P..
186. Também em Espanha foi administrada Buscapina IV.
187. A criança veio medicada de Espanha com Spasmocyl (brometo de Otilónio), Cidine (Cinataprida) e Tranxilium (Cloreto Dipotássico).
188. Só no final da manhã do dia 22/8, quando medicamente reavaliado, existe evidente dor à descompressão e ainda aí continua a apresentar um ventre mole e depressível.
189. No domingo de manhã, o menino tinha a barriga dura.
190. O doente veio a falecer volvidas que estavam mais de 16 horas após a sua observação clínica.
191. No ínterim interpuseram-se novos episódios de dor.
192. Só voltou a existir reavaliação médica cerca de 12 horas depois de examinado pelo arguido J. M., quando o quadro clinico do doente se tinha agravado.
193. No diário médico consta registado pelo pediatra às 12:32 do dia 22 que “Fui chamado agora para reavaliação, pelo facto de a criança ter piorado. Segundo informação da mãe e das enfermeiras passou a noite muito queixoso, com dores abdominais e nauseado, tendo vomitado pequenas quantidades de um líquido acastanhado que, parecendo sangue digerido, mas que, segundo as enfermeiras, não reagia com a água oxigenada.”
194. Indiciada que estava a peritonite por perfuração de víscera oca, encontrava-se indiciada a intervenção cirúrgica de emergência.
195. Numa situação de emergência médica como a presente, com risco de vida eminente para o doente, o mesmo poderia ser operado no Hospital de X e transferido, logo após, para Hospital que dispusesse de cuidados intensivos.
196. Na informação clínica /relatório TAC consigna-se pelo Dr. J. C. o seguinte: “Abdómen mole, depressível, doloroso em todos os quadrantes, mais intenso a nível da FIE. Apendicite? Perfuração de víscera oca?”.
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Sobre a sua personalidade provou-se:
197. O arguido licenciou-se em medicina e cirurgia pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, em ../../1975, com a média final de 13 valores.
198. Em 3 de Julho de 1985 obteve a especialidade de cirurgia geral, com a classificação de 18 valores.
199. Foi docente de 1981 até 1992 da disciplina de enfermagem-cirúrgica, na Escola Superior de Enfermagem de ...-X.
200. Em Agosto de 1991 foi nomeado formador do internato de cirurgia geral; foi ainda diretor de serviço de urgência, diretor do bloco operatório, adjunto da direção e integrou vários júris de exame de cirurgia.
201. Durante a sua carreira médica hospitalar, exerceu medicina nos Hospitais de ..., …, …, ..., …; …, …, …, X, … e … (predominantemente exerceu nos Hospitais de ... e X).
202. Foi médico da PSP e GNR em ....
203. À data dos factos em julgamento mantinha a atividade de cirurgião geral há mais de 25 anos, em atividade hospitalar ininterrupta imaculada e muito intensa.
204. Fruto do exercício da medicina em regime de exclusividade hospitalar e, bem assim, da realização de inúmeras horas de urgência, conseguiu granjear uma experiência cirúrgica assinalável.
205. É reputado no meio hospitalar como muito competente e experiente e tem sido alvo ao longo dos anos de inúmeras demonstrações de gratidão e apreço pela qualidade do seu trabalho.
206. Ao longo da sua carreira hospitalar deparou-se com centenas de abdómens agudos.
207. À data dos factos e a título meramente exemplificativo tinha realizado as seguintes cirurgias que refletem quadros de abdómen agudo:
- Apendicite aguda – 491;
- Perfuração de úlcera gastro-duodenal (no adulto) – 22;
- Colecistetomia (de urgência) 72;
- Fígado (traumatismo hepático) 16;
- Pancreatite aguda – 7;
- Traumatismo do baço – 41;
- Intestino delgado (perfuração) – 25;
- Cólon (perfuração) – 7;
- Cirurgia ginecológica -18.
208. Devido à sua experiência, qualidade técnica e competência, após findar a sua carreira hospitalar foi convidado para trabalhar para um Hospital privado ligado a um grande grupo privado de saúde.
209. O arguido nasceu em … e é oriundo de uma família muito conservadora no que toca aos valores educacionais.
210. Filho de professores primários, desde cedo lhe incutiram um forte sentido de educação, esforço e respeito para com os outros.
211. Possui sete irmãos e todos são licenciados (quatro em medicina, 2 em engenharia, um em biologia e outro em direito).
212. Atendendo ao facto de se tratar de uma família muito numerosa, sempre existiu um forte sentido de despojo de bens materiais, entreajuda e muito sacrifício.
213. Logo durante a sua infância foi sensibilizado para os estudos e para a aprendizagem de música e canto pelos seus pais.
214. Foi bom aluno.
215. Aprendeu a tocar, por si próprio, guitarra, piano e acordeão.
216. Fruto da sua carreira académica em Coimbra, desenvolveu um especial gosto pelo fado e toada daquela cidade.
217. É uma pessoa extremamente bem educada, respeitadora, cordata, humilde e acessível no trato.
218. Não olha a classes sociais e não julga s outros pelos seus estudos ou possibilidades económicas.
219. Tem amizades em todos os quadrantes sócio-económicos da sociedade.
220. Profissionalmente foi sempre considerado muito competente, assíduo e dedicado.
221. Por ser uma pessoa muito querida e considerada pelos outros, aquando da sua festa de reforma e despedida do Hospital de X, em 2011, estiveram presentes centenas de pessoas fazendo questão de lhe render homenagem.
222. Inclusivamente houve grupos de pessoas que se organizaram, chegando a alugar autocarros para se deslocarem.
223. Fizeram publicitar num jornal local, em jeito de homenagem.
224. Foi ainda homenageado pela Câmara Municipal de … pelo trabalho desenvolvido em prol da comunidade.
225. Ao longo dos anos teve e contínua a ter inúmeras e variadas demonstrações de gratidão e de carinho por parte de muitos dos seus doentes, familiares e amigos.
226. Encontra-se aposentado e já não exerce medicina há cerca de 3 anos e não voltará a exercer.
227. Dedica grande parte do seu tempo à agricultura e à pintura.
228. Encontra-se divorciado, é pai de 2 filhos e tem dois netos.
229. Reparte a sua vila entre as cidades de X, ... e Vila do Conde.
230. Nunca foi anteriormente acusado ou julgado por qualquer ilícito criminal.
231. É uma pessoa multifacetada, perfeitamente integrada socialmente e avessa à prática criminal.
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Factos não provados:
1. Que nas circunstâncias de facto referidas em 3º dos factos provados, o D. P. tenha chegado às urgências às 16:25 horas.
2. Que nas circunstâncias de facto referidas em 13º dos factos provados, que o arguido R. M. se tenha dirigido à mãe do menor, referindo-lhe que as análises que este tinha realizado não indicavam nada ou que os valores de referência se situem abaixo dos 13200/mm3.
3. Que nas circunstâncias de facto referidas em 15º dos factos provados, tivesse sido registado, no sistema Alert, nos diagnósticos diferenciados, para além de dor abdominal generalizada, peritonite (aguda) em investigação.
4. No dia seguinte ao internamento, dia 21 de Agosto de 2010, D. P. deixou de vomitar.
5. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 23 dos factos provados, o arguido J. M. tenha dito que provavelmente se tratariam de gases.
6. Durante a noite de sábado para domingo o D. P. tenha estado nauseado, tendo vomitado pequenas quantidades de um líquido acastanhado.
7. Que nas circunstâncias de facto relatadas em 24 dos factos provados, o arguido J. M. tenha desvalorizado o inserto no sistema Alert de abdómen doloroso generalizadamente à palpação profunda, noção de possível defesa à dor e à descompressão.
8. Durante a madrugada do dia 22 de Agosto de 2010, Domingo, a criança dormiu por curtos períodos de tempo.
9. Pelas 04h00m da madrugada de domingo, o menor teve outra crise, sendo que as enfermeiras ocorreram ao local, fazendo massagens ao menor, e dizendo para este se acalmar, questionando-o, se estaria a fazer de propósito, ao que ele disse que não, que tinha muitas dores.
10. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 34 dos factos provados o D. P. tenha feito paracetamol 2 horas antes.
11. O arguido R. M. seguisse na sua viatura.
12. D. P. foi medicado com Diazepan.
13. D. P. foi medicado analgésicos, que sempre que possível devem ser evitados, antes de ser realizado o diagnóstico e saber o seu resultado, o que fez com que o seu quadro clínico fosse mascarado.
14. Nas circunstâncias de facto referidas em 87 dos factos provados, o arguido J. M., quando observou D. P. interpretou as queixas como gases.
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(Da contestação do arguido R. M.)
15. O D. P. desse entrada no Hospital de X acompanhado pela mãe.
16. A situação de mal-estar e dor, assim como os vómitos chegassem a durar até cerca de uma semana.
17. Em ... tudo tinha sido considerado “normal”.
18. Não havia nada que pudesse sugerir a hipótese de úlcera péptica.
19. A medicação receitada em … sugeria um diagnóstico de reação histriónica a queixas de dor abdominal de causa não especificada.
20. A observação clínica à entrada e durante todo o internamento (até duas ou três horas antes do fatídico momento) não sugeria a hipótese de patologia grave.
21. Os pais do D. P. nada referiram que direta ou indiretamente pudesse sugerir o diagnóstico de úlcera péptica.
22. Feita uma primeira análise ao D. P. não havia sinais peritoneais.
23. Os parcos antecedentes conhecidos sugeriam um quadro de dores abdominais parecendo potenciadas pelo pânico emergente da repetição e da previsão, pelo D. P., de novo episódio doloroso que o ia fazer sofrer durante dias.
25. Durante a observação do arguido R. M. não havia sinais peritoneais.
26. Não havia nada que indicasse o pedido de Rx simples do abdómen e muito menos TAC abdominal.
27. Os pais informaram que a ecografia realizada em Espanha tinha sido considerada “normal”.
28. Todos os dados estavam em consonância.
29. Nada fazia prever um desenvolvimento de peritonite.
30. Durante as primeiras 24 horas de internamento houve um período de cerca de 16 horas em que não foi sequer necessária a administração de qualquer analgésico.
31. Durante o sábado 21 ocorreu melhoria clara, com episódios de ausência total de dor.
32. A evolução durante todo o dia de sábado foi no sentido de clara melhoria do estado de saúde do D. P..
33. O D. P. melhorasse apenas ao fim de uma semana.
34. Que as queixas dolorosas apresentadas pelo D. P. fossem muito exuberantes em relação ao exame objetivo.
35. Que o D. P. estivesse um período de 16 horas sem analgesia.
36. O infeliz desfecho do D. P. não era previsível.
37. Que no sábado à noite a observação do abdómen não evidenciava sinais peritoneais ou sinais sugestivos de gravidade.
40. Que quando o arguido R. M. telefonou para o serviço de pediatria no domingo de manhã tenha sido informado que o paciente estaria “melhor”.
41. Que o anestesista de serviço, com o assentimento do cirurgião que o avaliou na altura, se tenham recusado a operar o D. P. de imediato, alegando ausência de condições no hospital.
42. O arguido não infringiu as leges artis.
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(Da contestação do arguido J. M.)
43. O arguido J. M. nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 22 e 23 dos factos provados se tenha inteirado do historial e quadro clínico do doente,
44. O dia de Sábado (dia 21/08) tinha sido passado relativamente calmo, com períodos de ausência completa de dor.
45. Que o menor se tenha alimentado ao jantar do dia 21 de Agosto (sábado) por o dia de sábado ter sido passado relativamente calmo, com períodos de ausência completa de dor.
46. Tais episódios tinham intervalos de 3-4 meses e costumavam durar, pelo menos, 8 dias.
47. Após a observação do arguido J. M. a investigação da doença ficaria exclusivamente a cargo do serviço de pediatria.
48. Que a sépsis de que o doente foi vítima tenha sido fulminante.
49. Que nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em … o D. P. não gemesse.
50. Que nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em … não fosse necessária qualquer ajuda para que o doente pudesse ser avaliado.
51. Pouco após a sua observação clínica, o doente ficou adormecido.
52. Aquando do exame ao doente o ventre se mostrasse sem qualquer defesa ou dor abdominal.
53. Até à noite do dia 21/8 existia evolução positiva do quadro clínico do doente, pois de outra forma teria reiniciado alimentação.
54. Em rigor, não pode sequer qualificar-se de leucocitose ligeira, pois o valor de 13.200 mm3 de leucócitos revelado pelas análises encontrava-se dentro dos valores de referência para o laboratório do hospital.
55. Só acima do valor de 13.500mm3 se poderia falar de leucocitose.
56. Não existia leucocitose.
57. Quando o episódio de dor que assolou o D. P. às 23 horas de sábado já não era percetível quando foi examinado pelo arguido J. M..
58. Que a terceira toma de paracetamol tenha sido às 21:39h de dia 21 de Agosto.
59. E que, até esse momento, o D. P. viesse registando evolução positiva no seu estado de saúde.
60. Aquando da observação clínica efetuada pelo contestante não era previsível o agravamento do estado de saúde do doente.
61. Atendendo ao seu historial clínico, o juízo de prognose era manifestamente favorável.
62. Isto porque quando é examinado pelo arguido J. M. encontrava-se ainda “a meio” da duração habitual e expectável do seu quadro recorrente de dores abdominais.
63. Na altura em que o arguido J. M. examinou o doente não existia qualquer evidência clínica de abdómen agudo ou peritonite
64. Nunca o arguido J. M. foi informado de que o D. P. elevava as pernas sobre os ombros do pai e da mãe.
65. A criança pesava 30 kg.
66. O quadro clínico do doente até ser visto pelo contestante não era condizente com a existência de úlcera duodenal perfurada.
67. A dor não era contínua antes episódica.
68. Uma úlcera duodenal não perfurada apenas poderia ser diagnosticada através da realização de endoscopia digestiva alta.
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69. O arguido J. M. está a ter aulas de piano para aprender música por pauta.
70. De quando em vez, canta o fado de Coimbra com um grupo de fados que gentilmente o convida.
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Motivação dos factos provados e não provados
A convicção do Tribunal fundou-se no conjunto da prova documental junta aos autos, na prova testemunhal e nas declarações dos assistentes e dos arguidos, produzida em audiência de julgamento, analisada e conjugada criticamente à luz das regras da experiência comum, valorada segundo o critério da livre apreciação da prova consagrado no art. 127º do Código de Processo Penal, conjugada ainda com o teor das perícias médicas realizadas.
Face à extensão da matéria que se impõe analisar, começaremos a análise da motivação da matéria de facto pela análise da dinâmica dos factos, procurando escalpelizar e analisar separadamente cada um dos momentos.
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1. Dinâmica dos Factos
1.1. Chegada ao hospital e internamento
Assim, no que concerne à dinâmica dos factos, quanto ao período em que o D. P. esteve no serviço de urgência e decisão de internamento, o Tribunal teve em atenção quer o teor dos registos clínicos, juntos aos autos a fls. 652 a 670, quer o teor dos depoimentos testemunhais prestados.
Um apontamento desde já para realçar que ao longo do processo se mostram juntos mais do que uma cópia dos registos clínicos no Hospital de X, concretamente mostra-se junto a fls. 14 a 34 uma versão dos registos clínicos, com a menção “relatório de internamento editado” e a fls. 652 a 670 “relatório resumo de episódio de urgência (completo)”.
O Tribunal referir-se-á ao de fls. 652 e seguintes por ser o mais completo, já que contém os relatórios médico (de urgência e internamento) e de enfermagem completos.
Assim, como dizíamos, quanto à dinâmica dos factos e concretamente quanto ao período até à decisão de internamento hospitalar do D. P., o Tribunal teve em atenção quer os registos clínicos, quer os depoimentos testemunhais produzidos em audiência de julgamento.
Em concreto, quanto à dinâmica dos factos, que o D. P., no dia 20 de Agosto de 2010, pelas 11h00m da manhã, à data com 13 anos de idade, foi assistido, na Clínica Cooperativa ... - ...., em ..., Espanha, pelo facto de, no fim da tarde do dia anterior e da noite, se ter queixado de fortes dores de barriga e vómitos frequentes, após ingerir qualquer alimento ou bebida, Facto provado nº 1, resultou quer do depoimento do assistente J. R., jardineiro, pai do D. P., quer do teor dos documento juntos aos autos a fls. 599 a 600 e que se consubstanciam nos registos clínicos feitos em Espanha.
Assim, em concreto, valorou-se o teor do depoimento do assistente J. R., que explicou que durante a noite o D. P. vomitou e de manhã estava com muitas dores, razão pela qual decidiu levá-lo ao médico a ..., onde já costumava ser assistido.
Explicou que enquanto foi assistido no médico em ..., o D. P. “sentiu-se mal”, com dores de barriga muito fortes.
Nessa altura fizeram-lhe uma ecografia, que a médica lhe relatou como não sendo nítida.
Defendeu que, logo nesse momento, sentiu que o menino não estava bem, já que as dores que apresentava “não eram normais”.
Relatou ainda que a médica lhe prescreveu uns medicamentos, mas disse-lhe logo que podia ser grave e que se não passassem as dores que o levassem à urgência do hospital.
Ainda em ..., acrescentou, a médica deu-lhe uma injeção para as dores, “para acalmar os músculos das mãos”, já que o menino ficou com as mãos tensas, em garra, com as dores.
No final da consulta, trouxe o menino para casa da irmã L. R. e ele foi trabalhar.
Passadas algumas, horas, a irmã L. R. telefonou-lhe a dizer que o menino estava com dores outra vez, então, disse à irmã que o levasse ao hospital e ele próprio foi lá ter eles.
No hospital, foi assistido pelo arguido R. M..
Asseverou que o médico lhe disse imediatamente que aquilo era “uma simples dor de barriga”, tendo o assistente insistido dizendo que “ele nunca tinha tido dores de barriga como aquelas” e que se não o pudessem tratar que “o mandassem para outro lado”, ao que o arguido R. M. retorquiu que “em 22 anos de serviço, nunca foi preciso ninguém dizer-lhe o que ele tinha de fazer.”
Asseverou que durante o período em que foi assistido, o D. P. estava com muitas dores, ora contorcendo-se com dores, ora pondo as pernas em cima dos ombros dele, procurando alívio para as dores, factos a que o arguido R. M. assistiu.
Depois foi medicado com um supositório e ficou mais aliviado, entretanto mandou fazer análises, tendo-lhe dito que as mesmas “não eram de preocupação”.
Asseverou, no entanto, que insistiu muito com o arguido J. M. que nunca viu o menino ficar tenso dos músculos da forma como ficou, nem por as pernas em cima dos ombros dele ou sequer queixar-se tanto das dores.
Entretanto, ao fim do dia, veio a sua esposa e ele foi para casa, ficando a esposa a acompanhar o menino.
No mais, valorou o Tribunal o teor dos registos clínicos, juntos aos autos a fls. 652 e seguintes.
Assim, que o menor foi admitido cerca das 18:28m, registado com o Episódio de urgência n.º ..., onde consta que o menor queixava-se de “dor abdominal e vómitos desde há cerca de 3 dias”, tendo-lhe sido atribuído, segundo a Triagem de Manchester, o grau de prioridade Amarelo – Urgente, resulta do teor do registo clínico concretamente a fls. 652 do ponto “Triagem de Manchester”.
Neste ponto, note-se que não obstante os assistentes tenham sido unânimes em asseverar que o D. P. não apresentava as dores que o levaram ao hospital há cerca de 3 dias, se julga como provado o teor do ponto 4. do despacho de pronúncia (Facto provado nº 4) porque efetivamente é isso que resulta do teor do relatório de triagem, a fls. 652, “Dor Abdominal e vómitos desde há cerca de 3 dias”.
Isto é, do ponto “Triagem de Manchester”, a fls. 652, mostra-se aposto “Dor Abdominal e vómitos desde há cerca de 3 dias”, o que se julga provado.
Ademais, que o D. P. se apresentava “Muito queixoso, contorcendo-se com dores abdominais. Rosado e sem sinais evidentes de desidratação (mucosas algo secas?). Abdómen mole, depressível, doloroso generalizadamente à palpação profunda, mas sem defesa ou massas. Restante observação normal.” Facto Provado nº 5., resulta da nota de transferência do D. P., junta aos autos a fls. 14.
Neste ponto, cumpre salientar que este relato do estado de saúde do D. P. resulta apenas da nota de transferência do D. P., junta a fls. 14.
Com efeito, do episódio de urgência, a fls. 652, quanto ao exame físico, mostra-se registado “Bom estado geral. Muito queixoso, Contorcendo-se com dores. Rosado. Hidratado. Abd – Mole depressível, doloroso intensamente à palpação (sem palpação) no epigastro. Sem massas. RHA mantidos (não exagerados).” e que relatório de internamento, mostra-se apenas registado “À chegada ao SU Muito queixoso contorcendo-se com dores abdominais. Rosado e sem sinais evidentes de desidratação (mucosas algo secas?). Restante observação normal.”, conforme resulta de fls. 655 e 16.
O relato de que o menor se encontrava com “Abdómen mole, depressível, doloroso generalizadamente à palpação profunda, mas sem defesa ou massas. Restante observação normal.” resulta, portanto, de um relato acerca do estado de saúde do menor à entrada do serviço de urgência, mas que o arguido R. M. faz aquando da sua transferência que, como mais à frente veremos, acontece apenas no Domingo, portanto, um relato à posteriori.
Não obstante, quer do depoimento do arguido R. M., quer do depoimento do assistente J. R., dúvida não há de que efetivamente à entrada no Serviço de Urgência o D. P. estava muito queixoso e se contorcia com dores abdominais.
Ademais, quanto à medicação a que foi sujeito e queixas que apresentava naquele momento, a convicção do Tribunal assentou no teor relatório de internamento, junto a fls. 655, de onde resulta que “Fez paracetamol 1 g retal parecendo melhorar ligeiramente mas voltando as queixas de dores abdominais intensas cerca de 1 h e 30 m depois.
Nessa altura foi medicado com Tramadol (50mgEV) e Soro 210EV. Colheu sangue para análises.
Melhorou bastante após tramadol EV (teve um vómito aquoso em pequena quantidade cerca de 30 min após a toma) mas mantem-se algo queixoso.”
De resto, julga-se provado que “após lhe ser ministrada medicação para as dores, voltava a queixar-se de fortes dores, e mesmo durante o hiato de tempo que estava sobre o efeito da medicação, nunca deixou de ter dores, embora menos intensas.”, Facto provado nº 9, com base no teor do depoimento do assistente J. R., a que já nos referimos, quer ainda com base no teor dos relatório clínicos, já que do teor do relatório de internamento resulta a fls. 655, que mesmo após a medicação o D. P. se mantinha “algo queixoso”.
Quanto ao teor do resultado das análises, Facto Provado nº 12, valorou-se o teor do relatório de internamento, de onde consta o teor do resultado das análises a fls. 655.
Ademais, dúvida não há de que o arguido R. M. decidiu pelo internamento do menor para vigilância com ministração de soro e tramadol e paracetamol em SOS, sendo, de resto, o que resulta do mesmo relatório de internamento, a fls. 655.
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Relativamente à dinâmica dos factos atinentes ao dia de sexta-feira, cumpre fazer três esclarecimentos quanto à convicção do Tribunal sobre alguns pontos relevantes da matéria de facto.
Em primeiro lugar, realçar que o Tribunal se convenceu que efetivamente o menor, embora tivesse alta medicado, não chegou a tomar a medicação que lhe foi prescrita em ..., facto provado nº 2.
Com efeito, neste ponto valorou o Tribunal o depoimento do assistente J. R., que defendeu que nem “chegou a comprar a medicação” que lhe foi prescrita em Espanha.
Concretizou ainda que a sua irmã L. R., com quem deixou o menino depois de vir de ..., também não lhe deu a medicação, porque ele não a comprou e a irmã não tinha como a comprar.
Sobre este ponto, mais valorou o Tribunal o depoimento de A. R., empresária, irmã do assistente J. R., que explicou que estava de férias em X e que a irmã L. R. ia para casa do irmão J. cuidar do D. P. e, como esta não conduzia, a levou lá a casa.
Quando chegaram a casa, o menino estava deitado no sofá, com as pernas ao alto e agarrado à barriga, sem se mexer.
Nessa altura tentaram dar-lhe de comer, asseverando que o menino comeu duas colheres de iogurte e duas colheres de sopa, mas que rejeitava a comida.
Depois começou a ficar com os músculos das mãos “presos, não mexia os dedos” e levaram-no para casa da irmã L. R., não o tendo levado logo para o Hospital porque não tinham carro, já que o carro onde foram para casa do J. era uma carrinha de caixa aberta.
Asseverou ainda que da casa da L. R., esta falou com o J. que os mandou ir para o Hospital, o que elas fizeram, tendo levado o menino para o Hospital.
Esclareceu, assim, que esteve sempre a acompanhar a irmã L. R. e o D. P. e que a irmã L. R. não foi à farmácia, não aviou qualquer receita, portanto, não ministrou a medicação ao D. P..
Aliás, como explicou de forma concretizada, segundo a irmã L. R. lhe disse, as indicações do J. eram para que “se o menino não melhorasse, que o levassem para o Hospital”.
Acrescentou ainda que chegaram a falar com o D. P., se ele não queria tomar nada, tendo este respondido que não queria nada porque já tinha tomado Brufen.
Quanto a este ponto, valorou-se ainda o depoimento de L. R., doméstica, irmão do assistente J. R..
Asseverou igualmente que o irmão J. nem sequer lhe mostrou receita nenhuma, asseverando quanto à medicação que não sabia se o menino já tinha tomado um “brufen” ou se ela lhe deu um “brufen”, mas garantidamente não aviou qualquer receita, aliás, concretizou que nem viu receita nenhuma.
Confrontada com o teor do documento de fls. 238, de onde resulta que no inquérito hospitalar a testemunha em causa terá dito “a depoente lhe deu (ao D. P.) o remédio que lhe tinha recitado em ....”, a testemunha negou perentoriamente que tenha dado o remédio.
Finalmente, quanto a este ponto, valorou ainda o Tribunal o teor do depoimento de L. V., médica de medicina geral, que acompanhou o D. P. em ..., que esclareceu quanto a este ponto, ter explicado ao pai do D. P., J. R., que a prescrição médica que lhe passou era apenas para ser usada caso o D. P. melhorasse.
Acrescentou, de forma perentória e assertiva, que a indicação que deu a J. R. era para que caso o D. P. não melhorasse nas horas seguintes, o levasse imediatamente às urgências do Hospital.
Note-se ainda que o próprio arguido R. M. no seu depoimento concretizou que os pais lhe transmitiram que a medicação que foi prescrita não foi tomada, não foi ministrada.
No confronto entre os meios de prova, dúvida não há para o Tribunal em desvalorizar em absoluto o teor da declaração de L. R. a fls. 238, dando-se prevalência aos depoimentos testemunhais de J. R., A. R. e da própria L. R. Pereira em audiência de julgamento, no sentido unânime de que não chegou a ser ministrada qualquer da medicação prescrita em Espanha ao D. P..
De resto, isto mesmo é compatível com a determinação que foi feita pela médica L. V. que, como a própria explicou, a medicação era apenas para ser usada se o menino melhorasse.
Ora, como decorre dos meios de prova já aludidos, o D. P. não chegou a melhorar, pois que passado algumas horas de vir de Espanha foi imediatamente conduzido ao Hospital de X.
Julga-se, por isso, como provado que, embora o D. P. tivesse alta medicado da clínica em Espanha, não chegou a tomar a medicação que lhe foi prescrita, ponto 2 da matéria de facto provada.
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Em segundo lugar, cumpre esclarecer a posição do Tribunal quanto às divergências verificadas em audiência de julgamento quanto aos antecedentes clínicos do D. P., concretamente quanto aos pontos “história da doença atual” constantes do relatório resumo de episódio de urgência (relatório de urgência abreviadamente) a fls. 652 e do ponto “história atual” do relatório de internamento a fls. 655, por um lado, e as declarações dos assistentes, por outro lado.
Assim, do ponto “história da doença atual” do relatório de urgência, a fls. 652 consta “Criança com 13 anos de idade. Referência, desde há 3-4 A a episódios de dores abdominais tipo cólica. Os episódios costumam ocorrer com periodicidade de 3-4 M. Nos dois últimos episódios recorreram ao H de ... porque, nos anteriores, “vieram ao SU do H de X e aqui não lhe resolveram nada e melhorou com e medicação que lhe foi feita em ...” Desde há 2 dias novamente com queixas de dores abdominais e vómitos (mais intensos que o habitual). Como habitual, sem febre ou diarreia.”
Por sua vez, no ponto “história atual” do relatório de internamento a fls. 655, além das mesmas menções já relatadas, mostra-se ainda exarado (sublinhado pelo Tribunal):
“Os episódios costumam ocorrer com periodicidade de 3-4 M. Costumam durar cerca de 8 dias (SIC mãe) ” Nos dois últimos episódios recorreram ao H de ... porque, nos anteriores, “vieram ao SU do H de X e aqui não lhe resolveram nada e melhorou com e medicação que lhe foi feita em ...” (SIC pai). Nesta clínica terá já feito Eco Abdominal, que foi considerada normal.”
No entanto, confrontados os assistentes com estas menções, negaram que houvesse uma periodicidade certa para as dores que o D. P. de tempos a tempos apresentava, ou que os episódios durassem “cerca de 8 dias”, conforme consta dos relatórios mencionados.
Em concreto, o assistente J. R. negou que o D. P. se mantivesse com aquelas dores durante 8 dias, nunca tinha acontecido, mesmo 4 dias, julga que não.
De resto, sustentou igualmente que o D. P. naquele episódio não estava com aquelas dores há 3 dias, mas que tinham começado no dia anterior.
Já a assistente A. P., empregada doméstica, mãe do D. P., explicou de forma concretizada, quanto aos antecedentes, que os episódios começaram quando o D. P. teria cerca de 9/10 anos e aconteciam quando o D. P. abusava em certo tipo de comidas, como chocolates e refrigerantes.
Defendeu, no entanto, que os episódios não eram regulares ou constantes, aconteciam “de tempos a tempos”, mas que não eram dores incapacitantes, já que continuava a ir à escola normalmente.
Acrescentou que quando os episódios de dor eram mais fortes, aí ele próprio pedia para ir ao médico e levavam-no, e que os episódios de dor acalmavam logo que tomava a medicação.
Concretizou, portanto, que os episódios de dor não demoravam uma semana, 3 dias admite que demorassem, com um primeiro dia pior e, depois com a medicação, melhorava.
Quanto a este episódio, admitiu que as dores tivessem começado um ou 2 dias antes, mas nada de forte, asseverando que o D. P. lhe transmitiu que “mãe, estou a começar a ter dores de barriga”, mas não com a intensidade que o levou às urgências do Hospital de X, essas dores intensas apenas surgiram na sexta-feira.
Ademais, negou perentoriamente ter transmitido ao arguido R. M. que os episódios costumavam durar cerca de 8 dias.
Por outro lado, valorou o Tribunal o teor dos documentos juntos a fls. 595 a 600 e que consistem nos elementos clínicos da Clínica ..., onde o D. P. havia sido assistido.
Dos elementos documentais em causa resulta que o D. P. foi assistido devido a dores abdominais nos dias 25/5/2006, este revisto novamente a 29/5/2006, 28/11/2008, 23/10/2009, 26/3/2010 e 20/8/2010, portanto um total de cinco episódios de dor que motivaram a ida ao médico (o primeiro com reavaliação ao fim de 4 dias) ao longo de 4 anos.
Valorou-se ainda o teor do relatório de internamento a fls. 29 e 29 verso, de onde consta o histórico de idas à urgência do Hospital de X por parte do D. P. e de onde resulta que o D. P., por doenças do aparelho digestivo se deslocou à urgência do Hospital de X a 24/5/2006, 27/11/2008, 21/10/2009 e 20/8/2010.
Finalmente quanto a este ponto, valorou ainda o Tribunal o depoimento de L. V., médica de clínica Geral na Cooperativa ..., que disse ter conhecido o D. P. em 2006, sendo que surgiu na sua consulta devido a dores abdominais, tipo gastrite, mas que fazia a medicação e ficava bem.
Esclareceu não poder asseverar quantos dias duravam os episódios, mas mostrou-se convencida de que melhorariam ao cabo de 2 dias, já que os pais não voltavam lá com o menino.
Asseverou que se os episódios de dor durassem 8 dias, então o normal é que os pais lá voltassem com o D. P. e isso nunca aconteceu.
Relativamente ao episódio de 20 Agosto de 2010, asseverou que viu o menino a manifestar uma dor que definiu como “espetacular”, muito nervoso, com os dedos em garra, as pernas encolhidas.
Ora, quanto aos antecedentes clínicos, nomeadamente quanto a saber se efetivamente havia reiteração dos episódios a cada 3 / 4 meses, se os episódios duravam “cerca de 8 dias” e se as dores se vinham manifestando há 2 dias, conjugados os meios de prova a que se aludiu, salvo o devido respeito, não se compreendendo de onde o arguido R. M. retirou que episódios os antecedentes costumassem ter uma reiteração de 3/ 4 meses ou que durassem “cerca de 8 dias”.
Como vimos, a assistente A. P., de forma que o Tribunal reputou de segura, concretizada e consistente negou tê-lo transmitido.
De resto, dos demais meios de prova coligidos não resulta sequer que isso assim fosse.
Com efeito, dos elementos documentais recolhidos quer do Hospital de X, na clínica em Espanha onde o menor costumava ser atendido, não resulta que houvesse uma reiteração de periódica dos episódios dolorosos.
Confrontando os dois registos (fls. 29 e 29 verso e 595 a 600) resulta que o D. P.:
- foi à urgência do Hospital de X a 24/5/2006, e à clínica a ... a 25/5/2006 (nesta revisto a 29/5/2006);
- foi à urgência do Hospital de X a 27/11/2008, e à clínica a ... a 28/11/2008;
- foi à urgência do Hospital de X a 21/10/2009, e à clínica a ... a 23/10/2009;
- Foi à clínica a ... a 26/3/2010.
Ou seja, nas situações críticas, o menor deslocava-se efetivamente ao Hospital de X, mas no dia seguinte os pais levavam-no a ... para ser visto, sendo que e o episódio em que se refere a uma dor mais prolongada é o de 23/10/2009, onde se refere que o menor apresentava uma dor abdominal com 4 dias de evolução.
Assim, no confronto entre os meios de prova, concretamente entre o depoimento do arguido R. M. e dos registos clínicos, por um lado, e o depoimento dos assistentes, por outro, salvo o devido respeito, não tem dúvida em atribuir maior credibilidade ao depoimento da assistente A. P. em detrimento do exarado nos registos, certo que, como se verá considera o Tribunal que os registos clínicos elaborados pelo arguido R. M. são genéricos e imprecisos.
Aceita-se que efetivamente o episódio de dor tenha começado cerca de 2 dias antes, como o esclareceu a assistente A. P., embora com a gravidade que fez o D. P. ir às urgências apenas na noite de sexta-feira, como asseverou o assistente J. R..
De resto, resulta claro para o Tribunal que o D. P. não estaria com as dores que o motivaram a ida à urgência há 3 dias. Com efeito, note-se que a testemunha L. V. definiu a dor sentida pelo D. P. como “espetacular” e mesmo o arguido R. M. sustentou que o D. P. na urgência manifestava uma “dor exuberante”, o que, de resto, sai reforçado pela medicação a que foi sujeito, 1 mg de paracetamol e cerca de 1 hora e meia depois Tramadol.
Assim sendo, é manifesto para o Tribunal que aquelas dores terão efetivamente começado no fim de tarde/ noite anterior, como o sustentou J. R., caso contrário os assistentes teriam tido já necessidade de levar o D. P. à urgência, não sendo minimamente plausível que estivessem com a criança naquele estado 3 dias.
Ora, esta precisão quanto ao início da dor mais intensa não se mostra exarado nos registos, tendo-se exarado apenas e genericamente que a dor se iniciou há dois dias.
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Finalmente, impõe-se esclarecer a posição do Tribunal quanto à Ecografia realizada em Espanha.
Assim, do relatório de internamento a fls. 655, e não do relatório de urgência, resulta no ponto “História Actual”, a fls. 655 que “Nos dois últimos episódios recorreram ao H de ... porque, nos anteriores, “vieram ao SU do H de X e aqui não lhe resolveram nada e melhorou com e medicação que lhe foi feita em ...” (Sic pai). Nesta clínica terá já feito Eco Abdominal, que foi considerada normal.”
Quanto a este ponto, J. R. defendeu perentoriamente que nunca disse ao arguido R. M. que ecografia que o D. P. fez em Espanha foi considerada normal, pelo contrário.
Com efeito, defendeu o assistente que a médica quando fez a ecografia ao D. P. lhe disse logo que a ecografia não era nítida, não era clara, portanto, defendeu que nunca poderia ter que a ecografia era normal.
Já o arguido R. M., no seu depoimento, defendeu, no essencial, o teor do que consta do relatório de internamento, asseverando que lhe foi transmitido pelos pais que a ecografia foi considerada normal.
Por outro lado, valorou o Tribunal o depoimento de L. V., médica que realizou a ecografia, a que já se aludiu supra, e que defendeu que disse ao pai, J. R., que “não gostava da ecografia porque não via tudo”, tendo reiterado que “não viu bem”, porque havia muitos gases.
Asseverou, assim, que efetivamente a ecografia não era totalmente nítida devido à existência de muitos gases, mas não observou nenhuma alteração, pelo que considera a ecografia “normal”.
No confronto entre os depoimentos, entende o Tribunal que o arguido R. M. poderá ter interpretado as declarações do assistente J. R., classificando a ecografia como normal.
Isto é, não se dúvida que efetivamente J. R. não tenha dito que a ecografia era “normal”, como o mesmo defendeu.
Com efeito, não só o seu depoimento foi absolutamente perentório nesse sentido, como tendo-se em consideração que a própria médica lhe transmitiu que a ecografia “não era nítida”, que se as dores não passassem que o levasse de imediato às urgências do Hospital, não se vê, face às regras da expediência comuns normalidade, que o assistente J. R. chegasse ao hospital e fosse relatar que a ecografia era “normal”.
No entanto, inexistindo qualquer alteração na mesma que tenha sido reportada, o natural é que o arguido R. M. tenha interpretado as declarações de J. R. e classificado a ecografia como normal.
De resto, isto mesmo sai reforçado pelo depoimento da testemunha L. V. que defendeu quanto à ecografia, que disse ao pai que “não gostava da ecografia porque não via tudo”, tendo reiterado que “não viu bem”, porque havia muitos gases.
No entanto, não tendo visto nada de anormal, a própria também classifica a ecografia como normal.
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É, portanto, com base nos meios de prova descritos que se julga provada a matéria dos artigos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 14º, 15º e 16º salientando-se que a resposta aos quesitos 12º, parte final, 13º e 16º merecerão uma resposta ainda mais pormenorizada e detalhada mais à frente na análise crítica da conduta dos arguidos.
Julga-se não provado que o menor tenha recorrido ao serviço de urgência pelas 16:25, por falta de mobilização probatória concretizada quanto à hora a que chegou ao serviço de urgência, da mesma forma, julga-se não provado que que o arguido se tenha dirigido à mãe do menor, e lhe tenha dito que as análises que este tinha realizado não indicavam nada, já que como resultou dos depoimentos conjugados de A. P. e J. R., o arguido dirigiu-se sim ao pai do D. P., J. R. e disse-lhe que as análises não eram de preocupar.
Ademais, julga-se ainda não provado que os valores de referência da leucocitose se situem abaixo dos 13200/mm3, porquanto do teor das análises a fls. 32 resulta que o valor dos leucócitos era de 13.2, quando o valor de referência para o laboratório do hospital se situa entre 4.5 e 13.5, portanto o valor apresentado pelo D. P. situava-se ainda dentro do valor de referência do laboratório do Hospital.
Com mais relevo, julga-se não provado que tenha sido registado no sistema Alert, nos diagnósticos diferenciados além de dor abdominal generalizada, “peritonite (aguda) em investigação”, facto não provado nº 3.
Com efeito e como igualmente desenvolveremos mais à frente com mais detalhe, da prova documental e dos depoimentos do arguido R. M. e da testemunha J. C., resulta com clareza que o diagnóstico de peritonite só é feito já no domingo depois do meio-dia, quando o D. P. estava em situação crítica.
De resto, isto mesmo resulta claro do teor do relatório de internamento, resultando claro a fls. 655 verso que o diagnóstico diferencial de peritonite aguda em investigação apenas foi inserido no sistema Alert às 18:40 de 22/8/2010, ou seja, quando o D. P. já havia falecido.
O mesmo resulta ainda de fls. 656, do registo inserto às 18:51h.
Finalmente, julga-se como não provado que em ... tudo tenha sido “considerado normal”, facto alegado na contestação pelo arguido R. M., já que salvo o devido respeito, do que expôs supra, em ... na consulta nada foi considerado normal e tanto não foi que a médica determinou que caso as dores continuassem que levassem o menino à urgência, o que evidencia que considerou que ela própria já não tinha condições para o avaliar e tratar, o que manifestamente não pode ser enquadrado como “normal”.
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1.2.Primeira noite de internamento
Prosseguindo quanto à dinâmica dos factos, no que concerne à primeira noite de internamento, valorou o Tribunal o depoimento de A. P., mãe do D. P. e que acompanhou o menino durante o internamento.
Asseverou que naquela noite o D. P. praticamente não dormiu devido às dores que sentia e que se queixava muito, dizendo-lhe “mãe, a dor não sai”.
Mais asseverou que o menino esteve sempre inquieto durante a noite, não tinha posição para estar por causa da dor, só queria estar dobrado para lhe aliviar as dores, ora com as pernas sobre os seus ombros, ora com os joelhos encostados à barriga, ora no sentado no fundo do cadeirão com as pernas para cima.
Asseverou que o arguido R. M. no sábado de manhã “passou por lá” para ver como estavam as coisas, tendo-lhe nessa altura a assistente relatado as queixas do menor.
Defendeu que o arguido R. M. não examinou o menor e que perante as queixas que lhe transmitiu lhe disse apenas que ele estava medicado e que tinham de aguardar.
Sobre este aspeto, valorou-se ainda o teor do “diário de enfermagem”, de onde resulta que um registo às 07:29 horas “menino dormiu por curtos períodos durante a noite. Fica adormecido na companhia da mãe.”
Mais se valorou o teor do diário de enfermagem quanto ao registo de dor, resultando do teor de fls. 668 verso que à 00.18h o D. P. se apresentava com “dor atual”, da mesma forma que a fls. 667 verso resulta que à mesma hora foi prestado apoio emocional à progenitora, A. P., por se manifestar “preocupada”.
Por outro lado, já de fls. 657 e 659 resulta que às 5:25horas, foi feito um registo de dor 4, numa escala de 0 a 10, e foi administrado paracetamol ao D. P..
Ademais, valorou ainda o Tribunal o depoimento de M. A., enfermeira, que acompanhou o D. P. na primeira noite, tendo trabalhado até às 8 horas da manhã de sábado.
Explicou que o menino chegou ao internamento muito queixoso, gemia e dobrava-se sobre ele próprio, quase em posição fetal.
Mais explicou ter ideia de que durante a noite ele acalmou um bocadinho, que não esteve tão queixoso, mas recordava-se de que, mesmo na cama, o menino adotava uma posição fetal.
Esclareceu ainda que a fls. 667 exarou que o menino estava “independente no andar”, o que significa que considerou, na avaliação que fez, que ele tinha capacidade para andar sozinho e não que o tenha feito, asseverando que o viu sempre na cama.
Ademais, atendeu-se ainda ao depoimento do arguido R. M., que defendeu que pela manhã passou na enfermaria para ver os doentes, como é habitual fazer, afirmando não se recordar se observou ou não o D. P..
Admitiu ter presenciado o menino com as pernas nos ombros da mãe, em busca de alívio para a dor.
Conjugados estes meios de prova, resulta que efetivamente a noite de sexta para sábado não foi tranquila, tendo o menino passado a noite com dores.
Julga-se, por isso, como provado que durante a madrugada do dia 20 para 21 de Agosto de 2010, a primeira noite em que D. P. esteve internado, manteve-se muito tempo, com as pernas elevadas, colocadas sobre os ombros da sua mãe, uma vez que era nesta posição que se sentia mais aliviado, face às dores que sentia, facto que o arguido J. M., presenciou, facto provado nº 18.
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1.3. Dia de Sábado
No que concerne ao dia de sábado, teve-se em consideração o teor dos depoimentos dos assistentes A. P. e J. R. e das testemunhas V. D., A. J., A. N., A. R., por um lado, e o dos depoimentos de S. S. e C. J., enfermeiras, conjugado com o teor dos registos de enfermagem.
Em concreto, a assistente A. P., relatou que o D. P. passou a o dia igualmente inquieto e queixoso devido às dores, dizendo repetidamente “isto não passa”.
Defendeu perentoriamente que o menino nunca esteve “sem dor” e afirmou ainda não se recordar sequer que durante o dia de sábado tivesse havido qualquer momento de descontração, pelo contrário, retratou, ao longo do seu depoimento, o dia de sábado como um dia penoso, em que o D. P. se manteve sempre com dores.
No mesmo sentido, foi o depoimento do assistente J. R., que asseverou que no sábado de manhã não foi lá, só tendo ido no final do almoço, por volta das 14/15 horas e que o que primeiro notou foi o D. P. com uma cor pálida que “não era a cor normal dele.”
De resto, asseverou que durante todo o tempo que lá esteve nunca o viu sem dor, viu-o sim mais pálido, só falava se lhe perguntassem alguma coisa, sempre contorcido no cadeirão.
Mais valorou o Tribunal o depoimento de V. D., engenheiro informático, irmão da assistente A. P., que esteve com o D. P. no Hospital nessa tarde.
Asseverou esta testemunha que esteve no hospital com o D. P. no sábado depois da hora de almoço, cerca das 14/15 horas e que quando chegou ao quarto se recordava de ver o menino num cadeirão, numa postura fetal, cheio de dores, em verdadeira agonia.
Mais asseverou que esteve cerca de 2 ou 3 horas com a irmã e o D. P. e que viu sempre o menino com dores, “sem posição para estar”, todo encolhido, sem falar, só falava se lhe perguntassem alguma coisa.
Acrescentou ainda que face ao estado em que viu a irmã, de preocupação e sem dormir, chegou a interpelar uma enfermeira sobre se tinham feito os exames ao D. P., ao que a enfermeira terá retorquido que “tinham sido feitos os exames necessários”.
Valorou ainda o Tribunal o depoimento de A. J., comerciante, primo do assistente J. R. e amigo do arguido R. M. há muitos anos.
Relatou a testemunha em causa que logo na sexta-feira soube que o D. P. estava no Hospital e foi tentar saber o que se passava, mas nessa altura não conseguiu vê-lo, então voltou no sábado à hora de almoço e referiu tê-lo visto “combalido”, com uma “cor esquisita”, mas não pôde ficar lá muito tempo nesse dia.
Valorou-se ainda o depoimento de A. N., assistente operacional, irmã do assistente J. R..
Asseverou esta testemunha que tinha também o filho internado no hospital de X e que no sábado foi levar o almoço à assistente A. P., cerca da 1:30 horas, e que, nessa altura viu o D. P. “todo encardadinho, com as mãos sem as poder mexer”, isto é, todo enrolado, dobrado sobre si próprio.
Ao fim do dia, pelas 17.30/18:30 horas, voltou lá, afirmando que nessa altura o D. P. “se queixava mais”.
Mais se tomou em consideração o depoimento de A. R., irmão do assistente J., que acompanhou a testemunha L. R. ao hospital com o D. P. na sexta-feira, como já se fez referência, e que explicou que esteve no hospital no sábado cerca das 15:30/16 horas e que o viu “igual para pior, mais pálido”.
Asseverou que enquanto esteve na visita o próprio D. P. tocou à campainha a pedir medicação e que a enfermeira disse que não podiam estar sempre a dar medicação.
Por outro lado, valorou o Tribunal o teor dos depoimentos das enfermeiras que assistiram o D. P., em concreto, o depoimento de S. S., enfermeira no serviço de pediatria do Hospital de X, que explicou que fez o turno das 8 às 14 horas de sábado, e que afirmou recordar-se do D. P. estar no cadeirão mais “deitado”.
Asseverou que nessa manhã o Dr. R. M. “passou lá”, já que o viu na enfermaria com a criança e a mãe, mas não ficou registado no sistema essa ida.
Defendeu ainda que nessa manhã o D. P. iniciou o chá, acrescentando saber que o D. P. estava em dieta zero e que “por autorrecriação (delas- enfermeiras) não dão”, pelo que assume que terá sido o arguido R. M. que na passagem pelo internamento pediátrico tenha dado a indicação de “que ele podia comer, caso contrário não teria dado.”
Afirmou ainda não saber quanto chá o menino bebeu, mas afirmou julgar que não demorou muito (depois que o bebeu) a vomitar o chá.
Explicou, quanto a este ponto, que inseriu nos “diagnósticos de enfermagem”, a fls. 667 a menção “risco de vómito (interrompido)” “Vómito actual (activo)” às 12:59h precisamente por o D. P. ter vomitado o chá que lhe foi ministrado e, portanto o risco de vómito ter passado do estado de “interrompido” para “atual”.
Negou que o D. P. se apresentasse queixoso e com dor, afirmando que, se assim estivesse, ter-lhe-ia administrado analgésico.
Confrontada, no entanto, com a menção que ela própria escreveu a fls. 667 verso, às 9:28h “mãe preocupada por o menino manter dor abdominal…”, defendeu que essa menção (de o menino manter dor abdominal) era genérica, por o menino apresentar um quadro de dor e não porque mantivesse, de facto, dores, reiterando que se o menino se apresentasse com dor e queixoso ter-lhe ia dado medicação e não deu.
Por outro lado, confrontada com os sinais vitais do D. P., a fls. 657, que registava às 9:26horas pulso de 94 batimentos por minuto, pressão arterial 129/53 e temperatura de 37,1, e confrontada com a questão de saber se tais sinais vitais são normais numa criança de 13 anos, respondeu “não digo que é perfeitamente normal”, mas “é normal porque ele estava ansioso”, portanto, enquadrou-os como normais num quadro de ansiedade devido às dores.
Por outro lado, defendeu que não fez registo da dor a fls. 657, porque era só para ser utilizado em caso de SOS e se nada lá estivesse registado é porque o menino não tinha dor, não obstante lá constar que o registo da dor é um dos parâmetros a avaliar.
Valorou-se ainda o depoimento de C. J., enfermeira no Hospital de X, que explicou ter feito o turno da tarde de sábado, tendo trabalhado até às 22 horas.
Defendeu não se recordar que o menino tivesse dor de forma a que “tivesse de atuar na hora”, acrescentado que o D. P. não verbalizava muito as queixas.
Asseverou recordar-se de o ir ver pelas 16:30 horas e de ele estar na cama encolhido e com “faxis” de dor, gemendo com dores de barriga, tendo-lhe administrado analgésico nessa altura, pelas 16:30 horas, como se mostra exarado a fls. 659.
Acrescentou que acalmou com analgésico e manteve-se mais calmo, referindo ter dor já no fim do turno, quando já estavam as colegas da noite.
Afirmou ainda que havia indicação para o menino comer dada pelo médico e que ao jantar ainda tentou dar-lhe de comer, tendo-lhe dado 2 a 4 colheres, que classificou como “uma coisa insignificante”, realçando que o menino durante o turno dela não vomitou.
Relativamente aos elementos documentais, confirmou ter registado às 16:12 horas, “Menino bem disposto, acompanhado pela mãe. Sem dor escala numérica” a fls. 656 verso e a fls. 667, à mesma hora 16:12, “Mãe ansiosa e preocupada…”, defendendo não ter dado especial relevância às preocupações da assistente A. P., uma vez que “todos (os pais) estão ansiosos” devido à situação dos filhos.
Por outro lado, não explicou o porquê de não ter registado o nível de dor, no quadro de fls. 657, já que e um dos parâmetros a aferir pelas enfermeiras e sobretudo porque teve necessidade de dar medicação para as dores ao D. P..
Finalmente, quanto ao registo às 21:39horas, de “Executadas intervenções planeadas. Fica aparentemente bem. Mantém-se queixoso, refere dor intensa por períodos.”, defende que se trata de “um resumo” da forma como passou durante o turno, acrescentando que uma dor intensa é uma dor de 7/8 numa escala de 0 a 10.
No confronto entre os elementos de prova sumariamente retratados é manifesto que o retrato do estado do D. P. dado pelos assistentes A. P. e J. R., e pelas testemunhas V. D., A. J., A. N. e A. R., por um lado, e pelas enfermeiras S. S. e C. J., por outro, é distinto.
Com efeito, dos depoimentos dos assistentes e das testemunhas V. D., A. J., A. N. e A. R. resulta que o D. P. passou o dia em sofrimento, com dores e desconforto permanentes, sempre em procura de posições que lhe conferissem maior alívio.
Já dos depoimentos das enfermeiras S. S. e C. J., em particular do de S. S., resulta que o menino esteve tranquilo, embora durante o turno de C. J. com episódios de dor pontuais embora intensas.
No confronto entre os depoimentos em causa, não tem qualquer dúvida o Tribunal em confiar nos depoimentos dos assistentes e das testemunhas V. D., A. J., A. N. e A. R., em detrimento dos depoimentos das enfermeiras S. S. e C. J..
Vejamos porquê.
Em primeiro lugar, quanto ao depoimento de S. S., entendemos que no que concerne a saber se do D. P. esteve ou não com dores durante a manhã e início da tarde de sábado, a testemunha em causa apresentou um depoimento eivado de hesitações e contradições.
Assim, a testemunha defendeu de forma perentória que o menino não esteve queixoso, nem apresentou episódios de dores.
Confrontada, no entanto, com a menção que ela própria escreveu a fls. 667 verso, às 9:28h “mãe preocupada por o menino manter dor abdominal…” (sublinhado nosso), não conseguiu dar explicação que o Tribunal considerasse cabal e razoável para esse facto, defendendo que o “menino manter dor abdominal” é, no fundo, uma generalização quanto ao seu estado, isto é, por se manter num quadro de dor, embora não tivesse com dores naquela altura concreta.
Ora, salvo o devido respeito, ou o menino mantinha dor abdominal, ou não, não se compreendendo que a testemunha em causa em audiência de julgamento relate que nunca o viu queixoso, mas nos registos de enfermagem escreva literalmente “mãe preocupada por o menino manter dor abdominal…” (sublinhado nosso).
De resto, o seu depoimento é contraditório com o do próprio arguido R. M. que defendeu que quando visitou o D. P. naquela manha o viu com as pernas dobradas sobre os ombros da mãe, portanto, numa posição em busca de alívio da dor, o que demonstra que sentia dores.
Por outro lado, note-se que confrontada com os sinais vitais do D. P., a fls. 657 que registava às 9:26 horas pulso de 94 batimentos por minuto, pressão arterial 129/53 e temperatura de 37,1, respondeu “não dizer que é normal” sinais vitais naquela ordem, mas “é normal porque ele estava ansioso”, portanto, são sinais vitais normais num quadro de ansiedade.
Ora, salvo o devido respeito, se o D. P. não estava queixoso, se estivesse tranquilo e sem dor, não se vê motivo para que mantivesse um quadro de ansiedade.
Aliás, mais, se a análise que faz dos sinais vitais do D. P. redunda em atribuir esses sinais vitais a um quadro de ansiedade devido à sua situação, não se compreende por que razão não fez o registo da dor que o menino apresentava a fls. 657, quando o registo da dor é precisamente um dos parâmetros a vigiar.
Por outro lado, no que concerne ao depoimento da testemunha C. J. consideramo-lo igualmente contraditório.
Com efeito, note-se que ao mesmo tempo que a testemunha em causa exara no registo de enfermagem, a fls. 656 verso, “menino bem disposto, acompanhado pela mãe. Sem dor (escala numérica).” escreve também, a fls. 667 verso “Mãe ansiosa e preocupada, dado apoio emocional.”
Ora, salvo o devido respeito, não nos parece defensável a explicação dada pela testemunha em causa para a discrepância.
Com efeito, sobre este ponto a testemunha defendeu não ter dado especial relevância às preocupações da assistente A. P., uma vez que “todos (os pais) estão ansiosos” devido à situação dos filhos.
No entanto, das regras da experiência comuns e normalidade decorre que o normal é que, tendo um filho hospitalizado, os pais estejam preocupados, naturalmente, mas que essa preocupação seja proporcional e de acordo com a situação das crianças.
Isto é, se o D. P. estivesse de facto bem-disposto na companhia da mãe, portanto, sem dores, e tendo em conta as dores que tinha tido antes, o normal é que a assistente A. P., que o acompanhava, estivesse aliviada por ver o filho melhor.
Ora, não é isso que se regista, pelo contrário, o que se regista é que a mãe se mantém ansiosa e preocupada.
Por outro lado, note-se, como já vimos, que a testemunha em causa registou às 16.12horas “menino bem disposto” “Sem dor (escala numérica)”, mas logo de seguida às 16:30 horas, portanto 18 minutos depois, lhe administrou paracetamol para alívio das dores, sem que, contudo, tenha registado o nível de dor que motivou a ministração do paracetamol ou sequer tenha registado no diário de enfermagem o estado do menino.
Mais relevante ainda, às 21:39horas, portanto, perto do final do turno, a testemunha em causa exara “Executadas intervenções planeadas. Fica aparentemente bem. Mantém-se queixoso, refere dor intensa por períodos.”
Ora, o registo feito às 21:39 horas é absolutamente lacónico e até contraditório: “Fica aparentemente bem. Mantém-se queixoso, refere dor intensa por períodos.”
Que períodos o menino teve dor intensa? Não pode ter sido só às 16:30 horas quando lhe foi administrado o paracetamol, porque é só um período e não “períodos”, salientando-se que a testemunha em causa esclareceu que dor intensa é uma dor 7/8.
E fica “aparentemente bem” mas “mantém-se queixoso”, então está bem ou está queixoso?
Por estes factos, considera o Tribunal nestes pontos os registos de enfermagem lacónicos, incompletos e imprecisos, não se conseguindo deles ter uma visão completa do estado do D. P..
Note-se, não só as contradições supra apontadas ao relato exarado por C. J., mas mesmo quanto ao relatório de S. D., note-se que a enfermeira não exarou em lado algum que o arguido R. M. “passou por lá” ou, com mais relevância, não exarou que o arguido R. M. tivesse ordenado que o D. P. iniciasse alimentação, garantindo, porém, que por não foi por sua autorrecriação que a iniciou, mas por indicação médica.
Daqui que não haja dúvida para o Tribunal em depositar a sua confiança nos depoimentos dos assistentes e das testemunhas V. D., A. J., A. N. e A. R., a que já nos referimos.
Com efeito, quer os assistentes, quer as testemunhas em causa prestaram depoimentos assertivos, claros e espontâneos de forma que lograram amplamente merecer a confiança do Tribunal.
Saliente-se que o Tribunal tem em consideração que a perceção da dor é subjetiva e distinta de pessoa para pessoa, no entanto, os assistentes e as testemunhas V. D., A. J., A. N. e A. R. privaram de perto com o D. P. naquele espaço de tempo e conheciam bem o D. P., pelo que sabiam qual o seu estado normal antes da doença e o seu estado durante aquele período de forma que, com maior acuidade e precisão, podem relatar se o menino estava bem e normal ou se, pelo contrário, estava com dores.
De resto, a realidade dolorosa por todos retratada é compatível com a situação patológica do menino.
Assim sendo, dúvida não há para o Tribunal de que durante o dia de sábado o D. P. manteve os episódios de dores abdominais, o que se julga provado, facto provado nº 19.
Julga-se não provado que o D. P. tenha deixado de vomitar, uma vez que resultou claro do depoimento de S. D. que o D. P. vomitou o chá que lhe foi ministrado por volta das 11 horas.
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Ademais, do que decorre supra, conclui-se que o Tribunal se convenceu amplamente de que não houve qualquer melhoria do D. P. no dia de sábado, facto que se julga não provado.
Aliás, mesmo que o Tribunal se ativesse estritamente ao teor dos registos de enfermagem, entendemos que dos mesmos não se conclui que haja uma situação de melhoria clínica.
Veja-se, os registos de enfermagem da tarde de sábado são:
“-14:16h Fica na enfermaria na companhia da mãe.
Planeamento: dependente total nos cuidados de higiene independente por prestador nos cuidados nas restantes AVDs. Cuidados segundo planeamento. Mantém combur para executar uma vez que se mantém alterado.
- 16:12h Menino bem disposto na companhia da mãe.
Sem dor (escala numérica).
Mantém soro em curso, local de inserção do catéter sem alterações.
- 21:39h- Executadas intervenções planeadas.
Fica aparentemente bem.
Mantém-se queixoso, refere dor intensa por períodos.”
Por outro lado, dos registos de aplicação de medicação resulta, a fls. 695 que Paracetamol 1 mg: “Administrado às 16:30 horas por referir dor.
Enf. C. J. /21:40h 21-Ago-2010.”
Ora, da análise dos registos de enfermagem sumariamente elencados, temos que:
- às 14 horas o teste combur se mantinha alterado;
- às 16:12h há efetivamente um registo de “menino sem dor”, mas que dura 18 minutos, até às 16:30horas, altura em que lhe é administrada 1mg de paracetamol “por referir dor”.
Finalmente, às 21:39horas, o registo é: “Fica aparentemente bem.
Mantém-se queixoso, refere dor intensa por períodos.”
Ora, salvo o devido respeito, nem atendo-se o Tribunal estritamente ao teor dos registos de enfermagem se conclui que tenha havido qualquer melhoria clínica.
Com efeito, do teor dos registos resulta que o período “sem dor” durou 18 minutos, pois que às 16:30 teve de lhe ser administrado paracetamol, “por referir dor.”
De resto, o resumo do turno da tarde às 21:39horas é “Fica aparentemente bem.
Mantém-se queixoso, refere dor intensa por períodos.”, de onde, salvo o devido respeito, não resulta igualmente qualquer situação de melhoria.
Finalmente, resultou claro que o facto de ter passado de dieta zero a alimentar-se com líquidos não resultou igualmente de qualquer melhoria detetada, mas da indicação verbal dada nessa manhã pelo arguido R. M..
Assim sendo, salvo o devido respeito, entendemos não ter havido qualquer situação de melhoria clínica ao longo do dia de sábado.
De resto, não podemos deixar de realçar que as incoerências, insuficiências manifestas e até perplexidades constatadas pelo Tribunal da análise dos registos de enfermagem, tinham a obrigação de ser constatadas igualmente pelos arguidos, que são médicos especialistas, e que por esse motivo maior rigor devem exigir dos mesmos.
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1.4. Sábado depois do jantar
Passando agora ao período de sábado à noite, valorou o Tribunal conjugadamente os depoimentos da assistente, A. P., das testemunhas J. J., M. M., A. G., M. S. e os depoimentos dos arguidos.
Assim, que no sábado à noite, voltaram as queixas de dores abdominais intensas, resultou quer do depoimento da assistente A. P., quer dos depoimentos das enfermeiras que assistiram o D. P., quer ainda do teor dos registos clínicos.
Em concreto, a assistente A. P. pormenorizou que ao jantar lhe deram 2 ou 3 colheres de sopa e chá e que depois o menino começou a queixar-se de mais dores, ao ponto de pedir ajudar, dizendo “mãe ajuda-me”.
Asseverou que interpelou as enfermeiras e insistiu para que chamassem o médico, mas que elas lhe diziam que “tinha de ter calma”, que “se o menino a visse assim era pior”.
Chegado o médico, asseverou que o arguido R. M. lhe disse que “o D. P. se queixava muito” e foi chamar outro médico para observar o D. P..
Asseverou que foi nessa altura que interveio o Dr. J. M., acrescentando que o mesmo entrou “contrariado”, não falou com ela, nem com o menino e que apalpou a barriga do D. P. até ao fundo.
Asseverou de forma contundente que enquanto o apalpou, o D. P. se queixou de dores, mas que o arguido J. M. foi perentório e disse “não é caso de cirurgia”, tendo a assistente sido categórica em sustentar que a única pessoa que lhe dirigiu a palavra durante o período em que lá estiveram foi o arguido J. M., que lhe disse “vê mãe, não é preciso cirurgia.”
Sobre a noite de sábado para domingo, valorou ainda o Tribunal o depoimento de J. J., técnico de manutenção de aerogeradores, que tinha um filho internado no mesmo quarto que o D. P..
Explicou que acompanhou o filho na noite de sábado no Hospital de X e que o D. P. estava na cama ao lado do filho.
Asseverou que durante o período em que lá esteve e que foi durante a noite, nunca viu o D. P. sossegado, que era notório o menino estar com dores já que gemia e punha-se na cama todo “enroladinho”.
Afirmou igualmente que viu o menino a ser avaliado pelo arguido J. M. e que durante a palpação ouviu o menino a gemer.
Caracterizou a noite como tendo sido de grande “alvoroço”, pois que as enfermeiras e o arguido J. M. foram ao quarto várias vezes quer por causa do D. P. quer por causa do seu filho, que estava em estado de choque.
Asseverou perentoriamente que nunca viu o D. P. calmo, mas “sempre muito inquieto” e a gemer.
Sobre a noite de sábado, valorou-se igualmente o depoimento de M. M., assistente operacional numa escola, que tinha uma filha internada no quarto ao lado do D. P. naquela noite.
Asseverou que durante a noite ouviu do quarto do D. P. um menino a gritar e um menino a gemer, concretizando, de forma sincera, que não conseguia dizer se os gemidos ocorreram durante toda a noite, porque adormeceu em alguns períodos.
Conjugado o seu depoimento com o da assistente A. P. e o da testemunha J. J., decorre com clareza que o D. P. era o menino que gemia e o filho de J. J. o menino que gritava.
Ademais, valorou o Tribunal o depoimento de A. G., enfermeira no Hospital de X, que fez o turno da noite das 22 horas de sábado às 8:30 horas de domingo.
Asseverou que quando entrou ao serviço, a enfermeira C. J. lhe falou que o menino apresentava uma espasticidade nas mãos pouco vulgar, e quando o observou verificou que o menino apresentava uma espasticidade nas mãos bem marcada e pernas dobradas.
Afirmou que considerou a dor que o menino apresentava muito exuberante e, por isso contactou o Dr. R. M. telefonicamente, que ele lhe perguntou se já lhe tinham dado Tramal (tramadol), tendo-lhe transmitido que a Colega da tarde lhe tinha dado paracetamol, e ele deu-lhe indicação para lhe dar Tramadol.
Esclareceu que mesmo com o tramadol o menino manteve a espasticidade das mãos e as pernas encolhidas, “não relaxou completamente” nas suas palavras, embora depois o visse mais calmo.
Mais esclareceu que não acompanhou a observação na íntegra do arguido J. M., só o tendo visto fazer a palpação do quadrante direito do abdómen.
Perguntada de forma concreta sobre a reação do D. P. à observação do arguido J. M., esclareceu que “na altura não lhe pareceu” que o D. P. gemesse ou se encolhesse, mas “não sabe ao certo”, afirmou no entanto, que apesar de estar com o Tramadol em curso, aquando da observação do arguido J. M. o D. P. mantinha a espasticidade das mãos e das pernas, não se conseguindo recordar, no entanto, se o D. P. teve ajuda para esticar as pernas para ser observado.
Valorou-se ainda o Tribunal o depoimento de M. S., enfermeira no serviço de pediatria do hospital de X que explicou que fez igualmente o turno da noite juntamente com a enfermeira A. G., mas que o menino não lhe estava adstrito, mas à enfermeira A. G..
Explicou que foi à enfermaria do D. P. no início do turno e que viu o D. P. muito queixoso, com dor, e “espástico”, isto é, “ contraído”.
Concretizada a posição em que viu o D. P., defendeu que o D. P. estava em posição dorsal, com as pernas esticadas.
Asseverou que nunca viu nada assim e que foi a primeira vez que viu uma criança naquela situação.
Defendeu ainda que viu o D. P. deitado com a mãe a fazer-lhe massagens no abdómen e que lhe perguntaram onde era a dor, sendo que o menino apontava para a zona umbilical, embora acrescentasse ter a convicção de que era uma dor flutuante, já que o menino se queixava que lhe doía em todo o lado, não sendo constante no mesmo sítio.
Acrescentou que viu o Dr. J. M. sair da enfermaria, mas que não o acompanhou, nem voltou à enfermaria do D. P. pois que nessa noite tinham muitas crianças.
Sobre a noite de sábado, valorou-se ainda o depoimento do arguido R. M. que asseverou que no sábado foi contactado por volta das 23 horas, pelo telefone, quando já estava a caminho do hospital, e que, por telefone, ordenou que lhe dessem tramadol para minorar as dores.
Asseverou que quando chegou ao hospital encontrou o D. P. com um ar muito queixoso, deitado com as pernas nos ombros da mãe, mas, novamente, não valorizou a posição em que o menino estava.
Acrescentou que o menino tinha passado o dia sem analgesia, não tinha vomitado e que ingeriu 4 colheres de sopa, tendo sido nessa sequência que teve mais dores, pelo que viu nesse quadro uma clara melhoria da evolução do D. P..
De resto, da observação que fez, não encontrou que lhe merecesse maior atenção, defendendo que a apalpação não tinha nada de sugestivo e que os poucos ruídos hidroaéreos que auscultou também não eram um sinal a valorizar.
Sem prejuízo, entendeu chamar a cirurgia, o arguido J. M., a quem relatou a situação do D. P., incluindo as posições antálgicas que assumia, tendo o arguido J. M. observado menino por volta da meia-noite.
Defendeu que o arguido J. M. lhe “mostrou na palpação” que não havia sinais de abdómen cirúrgico, já que palpou o abdómen até à coluna e não havia defesa ou rigidez, nem sinal de dor à descompressão.
A observação do arguido J. M. foi de acordo com a observação que também fez, pelo que ficou tranquilo.
Cerca da 1 da manhã, asseverou que estava tudo tranquilo, que o D. P. estava a dormir e saiu do hospital.
Mais se valorou o depoimento do arguido J. M. que asseverou que na noite de 21 para 22 de Agosto foi chamado para observar o menino, tendo sido abordado pelo arguido J. M. que lhe disse “penso que não é nada contigo, mas gostava de ouvir a tua opinião.”
Acrescentou que não consultou os registos clínicos porque o arguido J. M. lhe relatou o contexto do menino, concretamente que apresentou à chegada umas análises que considerou normais, estava apirético, tinha feito uma ecografia considerada normal, tinha sido tratado com umas injeções que não sabia quais com uma medicação que não tinha tomado, concretamente ansiolítico e espasmódico para os intestinos, mais que estava em pausa alimentar e com tratamento para a dor.
Concretizou depois que o arguido R. M. informou-o da leucocitose e neutrofilia, não negando que tais dados revelavam um processo inflamatório em curso.
Por outro lado, com relevo, defendeu que a menção aposta pelo arguido R. M. no sistema Alert de “de doloroso generalizadamente à palpação profunda” não era verdade, foi só escrito para justificar o chamamento do cirurgião, admitindo, no entanto, que havia poucos ruídos hidroaéreos.
Defendeu não conseguir recordar-se já se o arguido R. M. o informou das posições antálgicas que o D. P. assumia, mas “se transmitiu não atribuiu valor”.
Admitiu que quando foi ver o menino não houve diálogo com ele ou com a mãe, porque já sabia o contexto e, portanto, entendeu ser desnecessário.
De resto, quanto ao exame físico, defendeu que não encontrou nada que pudesse indiciar um quadro cirúrgico, já que o menino apresentava um ventre mole, depressível, sem defesa e sem dor, acrescentando que o D. P. estava calmo e sem alterações respiratórias.
Portanto, o seu entendimento era o de que não havia quadro cirúrgico, o que transmitiu ao arguido R. M..
No mais, admitiu que não procedeu ao registo no Alert da sua observação, por ter falado com o arguido J. M. e este se ter comprometido a fazer esse registo.
Quanto à questão da investigação etiológica, admitiu que efetivamente não participou na investigação etiológica, não procurou nem discutiu com o arguido R. M. a causa para as dores, admitindo, porém, que “queixas e dores que eram estranhas eram”.
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No confronto entre a prova produzida, mais uma vez, as versões apresentadas pela assistente A. P. quer quanto à postura do D. P. durante o exame feito pelo arguido J. M., quer quanto ao seu estado geral subsequentemente ao exame são díspares, das versões apresentadas pelos arguidos e pelas enfermeiras de serviço, além de se terem verificado diversas incongruências entre os depoimentos das enfermeiras A. G. e M. S. e entre o depoimento do arguido R. M. e o que consta dos registos de enfermagem.
Mas vejamos por partes.
Começando pelas incongruências, é de realçar que testemunha A. G., a enfermeira a quem o menino estava adstrito, defendeu que o D. P., além da espasticidade das mãos, apresentava também as pernas fletidas, incluindo aquando da observação pelo arguido J. M..
Já a testemunha M. S. realçou igualmente a espasticidade das mãos, mas defendeu que viu o D. P. em posição dorsal, com as pernas esticadas, embora contraído.
No confronto entre os depoimentos, não temos dúvida em fundar a nossa convicção quanto a este ponto no depoimento da testemunha A. G., já que era a ela que o D. P. estava adstrito.
Por outro lado, que o D. P. se mantinha de pernas fletidas, ora deitado na cama, ora com as pernas sobre os ombros da mãe resultou quer do depoimento da assistente A. P., quer do depoimento do arguido R. M., salientando-se que a testemunha M. S. foi a única testemunha que relatou ter visto o D. P. em posição dorsal, com as pernas esticadas.
Não temos, assim, dúvida que o D. P. estava com as pernas fletidas e não em posição dorsal, esticado.
Por outro lado, a descrição que o arguido R. M. faz do quadro em que encontrou o D. P. no sábado à noite é incoerente com os demais meios de prova.
Concretamente defendeu que o arguido que o D. P. tinha apresentado um quadro de melhoria durante o dia de sábado, concretizando que teve durante o dia de sábado sem analgesia, asseverando que foi das 5h da manhã às 6h da tarde sem analgesia, portanto, mais de 12 horas, também não vomitou e que foi na sequência de ter ingerido quatro colheres de sopa que teve mais dores.
Porém, salvo o devido respeito, como decorre dos registos de enfermagem e como se deixou já exposto, tal não se mostra rigoroso ou correto.
Com efeito, o D. P. tomou analgesia 5:24 da madrugada e depois novamente às 16:30 horas da tarde, portanto não passou o dia sem analgesia, passou neste, período 11 horas sem analgesia, seguido de um período de 7 horas sem analgesia, até lhe ser administrado o Tramadol às 23 horas.
Julga-se, por isso, não provado que o D. P. tivesse passado 16 horas sem analgesia ou que a analgesia do dia de sábado lhe tenha sido administrada às 21:39h, foi-o às 16:30 horas.
Por outro lado, referiu-se já que o D. P. vomitou de manhã na sequência do chá que lhe deram, portanto, não é igualmente correto afirmar que não vomitou durante o dia de sábado, facto que se julga igualmente não provado.
O D. P. não vomitou, de facto, as 4 colheres de sopa que ingeriu, “tolerou-as, no entanto, é na sequência da ingestão destas 4 colheres de sopa que “teve mais dores”.
Prosseguindo, quanto à postura do D. P. durante o exame feito pelo arguido J. M., sumariamente opuseram-se as versões da assistente A. P., que asseverou que durante o exame o D. P. manifestou sinais de dor, já que gemia à medida que ia sendo palpado.
Por outro lado, asseverou que a enfermeira de serviço teve de ajudar o D. P. a esticar a pernas para ser examinado, de tão contraído que estava.
E a versão do arguido J. M. defendeu que o D. P. não tinha dor, nem defesa aquando da realização do exame físico, o que foi corroborado pelo arguido R. M..
No confronto entre a prova produzida, não tem o Tribunal qualquer dúvida em assentar a sua convicção no depoimento da assistente A. P..
Com efeito, quanto a saber se durante o exame o D. P. tinha dores à palpação, note-se que isso mesmo resulta não só do depoimento absolutamente assertivo da assistente A. P., como ainda dos próprios registos de enfermagem, pois que resulta de fls. 657 que, pelas 00:49h, portanto, depois da intervenção do arguido J. M., o nível de dor é de 2.
Isto é, apesar de o nível de dor ser inferior ao que motivou a chamada dos médicos, o que se julga provado, que foi de 8, o nível de dor 2 revela, ainda assim, que apesar de estar com perfusão de tramadol desde as 23 horas, o D. P. se mantinha com dores.
Por outro lado, neste ponto, considera-se relevante o depoimento de J. J. que estava imediatamente ali ao lado e que defendeu que viu o D. P. gemer durante o exame pelo arguido J. M..
Ora, atenta a isenção e distanciamento da testemunha em causa, o seu depoimento é relevante e estruturante na convicção o Tribunal, já que, de forma clara, reitera a posição defendida por A. P..
Por outro lado, salvo o devido respeito, entendemos julgar como não provado que aquando do exame o D. P. não apresentava defesa à dor.
Com efeito, neste ponto, resultou do depoimento do próprio arguido R. M. que quando naquela noite chega ao quanto do D. P. o mesmo estava com as pernas fletidas em cima dos ombros da mãe, portanto, numa posição antálgica, de defesa face à dor.
De resto, ressaltou do depoimento de A. P., de forma concretizada e assertiva que foi necessária a intervenção da enfermeira para ajudar o D. P. a esticar as pernas para ser observado, de tão contraturado que estava.
Mais, resultou do próprio depoimento da testemunha A. G. que apesar de estar com o Tramadol em curso, aquando da observação do arguido J. M. o D. P. mantinha a espasticidade das mãos e das pernas, não se conseguindo recordar, no entanto, se teve ajuda para esticar as pernas para ser observado.
Existia, portanto, uma posição clara de defesa face à dor, não sendo exato afirmar-se que o menor não apresentava defesa.
Ademais, julga-se ainda não provado que o arguido J. M. nunca tenha sido informado de que o menor apresentava posições antálgicas.
Com efeito, quanto a este ponto, o arguido no início do seu depoimento começou por dizer que já não se recordava se o arguido J. M. lhe transmitiu isso mas que se transmitiu, não lhe deu importância.
Ao longo do depoimento, porém, defendeu já que não lhe foi transmitido que o menor assumisse posições antálgicas.
Assim, salvo o devido respeito, o seu depoimento não foi sequer consistente e assertivo o suficiente para que se julgue como provado que não lhe foi transmitido que o menor assumia posições antálgicas.
De resto, como se expôs, convenceu-se o Tribunal que quando foi observar o D. P., este ainda mantinha uma posição antálgica de flexão das pernas, portanto, o normal é que isso tenha sido falado.
Julga-se por isso não provado que o arguido J. M. não tenha sido informado que o D. P. assumisse posições antálgicas.
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Concluindo quanto a este período, é com base na análise crítica exposta que se julga como provado que no dia 21 de Agosto, após o jantar voltaram as queixas de dores abdominais intensas, com sudorese, salientando-se que a sudorese se mostra exarada no registo médico “nota de transferência” a fls. 14 verso, concretamente “Arós o jantar, voltaram as queixas de dores abdominais intensas, com sudorese pelo que foi reavaliado (…)”.
Ademais, do que se expôs decorre ainda que cerca das 23:34 horas, e porque o D. P. se apresentava com os músculos completamente rígidos e com muitas dores, o arguido R. M. foi contactado pela equipa de enfermagem, via telefone, e deu indicação para reduzir o débito de soro e fazer analgésico, facto provado nº 20.
Assim, só cerca 00.40h, o D. P. foi avaliado na enfermaria pelo arguido J. M. que, após o ter observado, contactou o colega médico-cirurgião arguido J. M..
Nessa sequência, o arguido J. M. examinou o menor, pela primeira vez, tendo sido de parecer que nada havia de cirúrgico e para lhe darem chá.
O arguido J. M. não fez qualquer registo desta observação, que foi registada no Alert pelo colega, o arguido J. M., nem se socorreu de outros meios de diagnóstico.
Por outro lado, resultou quer do depoimento da assistente A. P., quer do depoimento dos dois arguidos que não existiu qualquer interação e diálogo entre o cirurgião, o doente e a mãe, não foi fornecida, quer pelo arguido J. M., quer pelo arguido J. M., nenhum esclarecimento ou informação terapêutica, acerca do estado do D. P..
Aliás, neste ponto a assistente foi categórica em asseverar que a única pessoa que lhe dirigiu a palavra foi o arguido J. M., dizendo-lhe “vê mãe, não é preciso cirurgia.”
Por outro lado, que após ter sido examinado, o D. P. continuou a ser medicado só com Tramadol, resulta dos registos clínicos que indicam isso mesmo.
Neste ponto, julga-se não provado que o arguido J. M. tenha dito que se tratavam de gases por falta de mobilização probatória bastante, já que nenhum dos presentes o confirmou, facto não provado nº 3.
Importa ainda esclarecer que o Tribunal o à frente aprofundará com maior precisão a fundamentação para julgar como provado que os sinais descritos no Alert à 00:40 de abdómen generalizadamente doloroso à palpação profunda, apesar de não distendido, noção de possível defesa e dor à descompressão e diminuição dos ruídos hidro-aéreos à auscultação, eram já sinais sugestivos de peritonite, impondo-se esclarecer agora que se julga como provado apenas que o arguido J. M. desvalorizou a diminuição de ruídos hidro-aéreos à auscultação, já que os demais sinais aí exarados defendeu que não se verificavam no D. P. e que o que aí estava relatado não era verdade.
Ou seja, por falta de mobilização probatória bastante julga-se não provado que nas circunstâncias de facto relatadas em 24., o arguido J. M. tenha desvalorizado o inserto no sistema Alert de abdómen doloroso generalizadamente à palpação profunda, noção de possível defesa à dor e à descompressão, já que o arguido J. M. defendeu que o arguido R. M. não lhe transmitiu a existência de tais sinais, asseverando aliás, que o arguido R. M. só escreveu tais sinais para justificar a sua presença.
Assim, o arguido não podia desvalorizar algo que não conhecia, julgando apenas como provado que desvalorizou a existência de poucos ruídos hidro-aéreos, o que o próprio admitiu.
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1.5. Restante noite de sábado
No que restante noite de sábado diz respeito, mais uma vez, valorou o Tribunal o depoimento da assistente A. P., que sustentou que o menino passou a noite “com muitas dores”, tendo sido perentória a firmar que o menino não dormiu toda a noite.
Em sentido contrário, foi o depoimento de A. G., a que supra nos referimos, que defendeu “achar” que o menino foi dormindo por alguns períodos, concretizando que por volta das 2 horas da madrugada desligaram as luzes da enfermaria e o menino “dormitou”, já que o viu com os olhos fechados e mais calmo.
Ademais, apesar de inicialmente ter dito que durante a noite o D. P. relaxou e esticou as pernas (as duas pernas), acabou por concretizar recordar-se do menino ter esticado uma perna, mantendo sempre uma perna fletida, portanto manteve sempre “alguma defesa” nas palavras da testemunha, e reiterou entender que o menino dormiu, porque tinha os olhos fechados, apesar de ter esclarecido que quando acordava se queixava que mantinha dor, embora mais moderada.
No confronto entre os depoimentos aludidos sobre a forma como o D. P. passou a noite, mais uma vez e como se referiu supra, não teve dúvida o Tribunal em depositar a sua confiança no depoimento da assistente A. P., que nos mereceu total credibilidade e que efetivamente acompanhou a o D. P. de perto.
Julga-se, por isso, como provado que o menor se apresentou muito queixoso, com dores abdominais durante a noite e não provado que tenha dormido, ainda que por curtos períodos.
Julga-se ainda não provado que o menino tenha estado nauseado ou que tenha vomitado pequenas quantidades de um líquido acastanhado por falta de mobilização probatória, uma vez que, como se verá mais à frente, as náuseas e os vómitos surgiram já pela manhã de domingo.
Por outro lado, julga-se não provado o alegado episódio de dor pelas 4 da manhã, já que a assistente A. P., que acompanhou o menino durante toda a noite, sustentou perentoriamente não ter voltado a haver um episódio concreto de dor tal como o do início da noite, mas ter sido uma noite dolorosa em geral.
De resto, tal episódio também não se mostra minimamente retratado nos registos de enfermagem.
Assim, por falta de mobilização probatória, julga-se não provado o facto descrito no artigo 29º da pronúncia, facto não provado nº 9.
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Finalmente quanto à noite de sábado, impõe-se fazer um apontamento para esclarecer a posição do Tribunal quanto à questão de saber se no período de internamento a assistente A. P. fez massagens na barriga do D. P..
Concretamente, a testemunha A. G., referiu no seu depoimento que ao longo da noite foi à enfermaria falar com ele e mãe e que a mãe lhe ia fazendo massagem na barriga do D. P., perguntada, no entanto, se o D. P. suportava que a mãe lhe tocasse na barriga, afirmou “ligeiramente”, acrescentando “já não ter a certeza” e já não se recordar afinal se viu a mãe fazer-lhe massagens.
Mais questionada se enquanto esteve na presença do D. P. alguma enfermeira lhe fez massagem na barriga, fosse ela, fosse a enfermeira M. S., afirmou já não se recordar se alguma lhe fez massagens na barriga.
Por seu turno, a testemunha M. S. defendeu que viu a assistente fazer massagens na barriga do D. P. e que essas massagens lhe provocavam alívio, salientando-se igualmente que o arguido R. M. asseverou igualmente ter a sensação que a palpação que fez ao D. P. no sábado à noite quando o foi lhe provocava alívio.
Absolutamente contrário, foi o depoimento de A. P. que sustentou que o D. P. não tolerava que lhe mexessem na barriga, dadas as dores com que estava.
Admitiu ter-lhe feito massagens mas nas mãos, para ajudar a combater a espasticidade, não na barriga.
Salvo o devido respeito, no confronto entre os depoimentos mais uma vez não temos dúvida em assentar a nossa convicção no depoimento da assistente A. P., que foi absolutamente perentório em sustentar que não fez quaisquer massagens na barriga do D. P..
Já quanto aos depoimentos das enfermeiras, salvo o devido respeito, não nos merecem credibilidade pois não é plausível que, em particular M. S. seja perentória em afirmar passados 8 anos do episódio em causa que viu a mãe fazer massagens na barriga do menino, mas não o tenha registado nada no diário de enfermagem.
O mesmo quanto ao arguido R. M., se o D. P. tolerasse massagens abdominais e até ficasse aliviado com as mesmas, o normal é que isso fosse registado por ser um elemento relevante.
Assim sendo, salvo o devido respeito, não ficou o Tribunal convencido que durante a noite de sábado alguém, fossem as enfermeiras, fosse a assistente A. P., tivesse feito massagens abdominais ao D. P..
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1.6 Domingo de manhã até à chegada do arguido R. M.
No que concerne à manhã de domingo, mais uma vez, valorou o Tribunal o depoimento da assistente A. P., que defendeu que pela manhã viu o D. P. “muito calado”, “calmo de mais”, e decidiu ir dar-lhe banho, concretizando que já teve de o levar agarrado a ela.
Mais defendeu que durante a manhã viu o D. P. com o abdómen inchado e duto, sendo que durante o banho lhe viu umas manchas rosadas na pele.
Asseverou que chamou as enfermeiras, que lhe disseram que “podia ser da medicação” mas que iam chamar o médico, e ligou ao marido.
Entretanto o marido chegou e “insistiu muito para chamarem o médico”, tendo depois chegado o primo A. J., que “insistiu muito para assinarem um termo de responsabilidade e tirarem o menino dali”.
À medida que o tempo ia passando, eles iam insistindo com as enfermeiras para que chamassem o médico, ao que as enfermeiras retorquiam que já tinham chamado.
Asseverou, no entanto, que só pela hora de almoço é que o arguido R. M. compareceu junto do menino. Asseverou que nessa altura ele entrou, esteve com o menino e saiu, não lhes dizendo nada, e passado uns minutos entrou com outro médico, o Dr. J. C., que depois de observar o D. P. decidiu fazer uma TAC.
Mais se valorou ainda o depoimento do assistente J. R. que, no essencial, foi coincidente com o da assistente A. P..
Explicou a esposa lhe disse pelo telefone que o menino “estava muito mal” e que “viesse para baixo”, tendo chegado ao hospital por volta das 8 horas.
Asseverou que viu o menino muito mal, muito gelado, a suar, muito amarelo, sempre na cama com as pernas na mãe.
Afirmou que insistiu muito com as enfermeiras para que chamassem o médico, mas “não havia maneiras de chegar” e que as enfermeiras se justificavam dizendo que “o médico ia passar, ele já tinha dito que ia passar” e que o seu primo A. J. lhe disse para ele assinar um termo de responsabilidade e o levar dali.
Defendeu que só quando as enfermeiras viram as manchas escuras pelas pernas acima do D. P. é que “se assustaram”.
Do relato dos assistentes decorre que a noite de sábado e a manhã de domingo foram de verdadeira agonia para o D. P..
Mais valorou o Tribunal o depoimento de A. J., comerciante, primo do assistente J. e amigo do arguido R. M., a que já nos referimos.
Asseverou que no domingo de manhã foi de imediato ao hospital saber do D. P., tendo chegado por volta das 8:30/ 9 horas e que viu o menino “muito mal”, com uma cor arroxeada, de joelhos dobrados.
Defendeu que o estado do D. P. era tal, que de imediato disse ao seu primo J. que levassem o menino dali para fora que “não te estão a tratar do miúdo”.
Asseverou ter telefonado ao Dr. R. M., já que era amigo dele, e que ele lhe disse logo que já lhe tinham ligado, que sabia do que se passava e que já ia, tendo acrescentado que o Dr. R. M. chegou ao hospital por volta das 10/10:30 horas.
Explicou que esteve dois anos sem conseguiu falar com o seu primo, o assistente J. R., por se culpabilizar por não o ter obrigado, forçado mesmo, a, mal chegou ao hospital no domingo de manhã, assinar um termo de responsabilidade e tirar o D. P. dali.
Relativamente ao estado do D. P. no domingo de manhã, mais se valorou ainda o depoimento de M. M., assistente operacional numa escola, que tinha uma filha internada no quarto ao lado do D. P., a que já nos referimos, que explicou que viu o D. P. no domingo de manhã, porque os pais o levaram à sala do pequeno-almoço e que, nessa altura viu logo que o menino “já estava muito mal”, já que não andava, ia completamente apoiado nos pais e pediu logo para o levarem de volta.
Por outro lado, valorou o Tribunal o depoimento de A. G., a que já nos referimos, que fez o turno da noite das 22 horas de sábado às 8:30 horas de domingo.
Asseverou esta testemunha que no domingo pela manhã, por volta das 7:45 horas, o menino se apresentou “ligeiramente nauseado” e que à hora da passagem de turno apresentou dor mais intensa.
Concretizou que viu o D. P. mais contraído, com dor abdominal, asseverou, no entanto, que o menino tinha a cor da pele normal, não tinha manchas, mas apresentava cara de dor e as mãos contraídas e medicou-o com paracetamol.
Defendeu ainda que nesse período o D. P. apresentava “olhar atento” e que se apercebeu do que estava a fazer.
Asseverou que o menino não tomou banho durante o seu turno, mas só depois da passagem do turno da noite.
Ao longo do seu depoimento defendeu afinal que de manhã tinha espasticidade das mãos, “que não estava tão contraturado” mas manteve que o menino ainda estava reativo, já que lhe disse que sim “com a cabeça”.
Sobre a manhã de domingo, valorou o Tribunal o depoimento de M. E., enfermeira na pediatria do Hospital de X, que entrou ao serviço às 8 horas.
Asseverou que quando entrou estava sozinha, já que a colega a quem o D. P. a estava adstrito só entrava às 9 horas.
Explicou que a colega lhe transmitiu que o D. P. esteve queixoso por volta da meia-noite, mas que os arguidos haviam transmitido que não havia quadro cirúrgico; que a dor atenuou e que dormiu por períodos durante a noite, que já de manhã teve novamente uma dor 8 e deu-lhe paracetamol.
Asseverou que pelas 8:30horas foi ver as crianças e que nesse momento o paracetamol estava em curso, afirmando que o D. P. lhe transmitiu que tinha dores.
Defendeu que o menino lhe pareceu mais calmo e que não tinha sinal físico de dor profunda.
Relatou ainda que entre as 8:30 e as 9 horas, o arguido R. M. telefonou a saber como a criança tinha passado a noite e ela transmitiu-lhe que depois do paracetamol dormiu por períodos e que de manhã estava novamente com uma dor 8, tendo colega tido necessidade de fazer paracetamol novamente; que ela entretanto já o tinha ido ver e que mantinha dor, apesar “ligeiramente melhorada” ao que o arguido terá retorquido que “passava já aí para ver o menino”.
Entretanto veio a colega a quem o D. P. ia estar adstrito, a enfermeira I. M., e ela transmitiu-lhe o mesmo, não tendo regressado à enfermaria, acrescentando que só viu novamente o D. P. quando a colega, a enfermeira I. M., lhe pediu ajuda, por volta do meio-dia.
Nessa altura o estado do menino era pior, com má perfusão e cianosado, pôs-lhe oxigénio e a colega foi chamar o arguido R. M..
Valorou-se ainda o depoimento de I. M., enfermeira no serviço de pediatria do hospital de X, que explicou que no domingo entrou ao serviço às 9 horas da manhã e que a enfermeira M. E. lhe explicou que se tratava de um menino com períodos com dor e sem dor e lhe transmitiu que o arguido R. M. tinha ligado e dito que vinha ao serviço para o ver.
Asseverou que quando chegou viu o menino na cama com o pai, com o paracetamol ainda em curso.
Defendeu que o D. P. “lhe disse que estava melhor” e que se levantou e foi à casa de banho, tendo-lhe transmitido que lhe doía a barriga e lhe doía mais quando fazia chichi.
Asseverou que durante esse período viu o D. P. “melhor” e asseverou que bebeu um chá, mas que vomitou.
Depois, entretanto, por volta do meio-dia, o menino piorou, ficou com a pele marmoreada, com cianose e saturação de oxigénio.
Asseverou que não viu qualquer espasticidade nas mãos do D. P., em sabia da espasticidade, já que ninguém lhe falou em espasticidade e que até ao meio dia o menino estava “normal”, sem estar espástico, sem estar apático, em resumo, não houve até ao meio dia nada que lhe chamasse a atenção na situação do D. P..
Explicou, então, que por volta do meio, quando a situação do menino piorou, chamou o Dr. R. M. e ele veio logo e que até esse período os pais do D. P. não pediram para chamarem o médico.
Asseverou que foi tudo “de um momento para o outro” e que antes do meio-dia não apresentava nenhum dos sinais que apresentou ao meio dia.
Do confronto dos depoimentos em causa, mais uma vez, resulta clara uma oposição entre o relato que é feito pelos assistentes e pelas testemunhas A. J. e M. M. e o pessoal de enfermagem, as testemunhas A. G., M. E. e I. M..
Com efeito, em resumo, do depoimento dos assistentes e das testemunhas A. J. e M. M. resulta que a manhã de domingo foi de verdadeira agonia para o D. P., sendo já visível e nítido para todos os familiares que ali estavam que o menino estava num estado crítico.
Porém dos depoimentos das testemunhas A. G., M. E. e I. M., enfermeiras, decorre que a manhã de sábado até ao meio dia se passou de forma tranquila, apenas com um episódio de dor que não foi sequer relevante para ser chamado o médico, aguardando-se que o mesmo chegasse, sem qualquer pressa ou urgência.
Particularmente contraditório com o depoimento dos assistentes e das testemunhas A. J. e M. M. é o depoimento da testemunha I. M. ao sustentar que até ao meio estava tudo tranquilo, que o D. P. não apresentava qualquer sinal de alarme, e que, subitamente, ao meio dia tudo se alterou.
No confronto entre os depoimentos, salvo o devido respeito, não temos dúvida nenhuma em atribuir maior credibilidade aos depoimentos dos assistentes e das testemunhas A. J. e M. M. em detrimento dos depoimentos das testemunhas A. G., M. E. e I. M..
Em primeiro lugar, os assistentes prestaram depoimentos que o Tribunal considerou absolutamente verdadeiros, transparentes, claros e sinceros.
Salienta-se sobretudo o depoimento da assistente A. P. que se pautou por ser absolutamente seguro e firme, merecedor de absoluta confiança por parte do Tribunal.
Já as testemunhas A. G., M. E. e I. M. prestaram depoimentos que o Tribunal considerou renitentes, evasivos e pouco coerentes.
Relativamente ao depoimento da testemunha I. M., note-se que a testemunha referiu que até ao meio dia tudo esteve calmo e tranquilo mas às 10:17horas, a fls. 667 verso, faz um registo de que “pais muito preocupados com o estado clínico do filho…”.
De resto, manifestamente não convence o Tribunal o relato de que até ao meio dia não havia qualquer situação de alarme e que tudo se transformou de um momento para o outro.
E a fls. 668, relativamente à situação do D. P., no item “supervisionar o doente no andar” escreveu “Deambulou por curtos períodos, mantém-se queixoso.”
Já a fls. 668 verso, pelas 10:18 registou “ingeriu ½ do copo de chá e teve um vómito.”
De salientar ainda que a fls. 670, no item “Nota de alta de enfermagem” a mesma testemunha I. M., exarou “D. P. com 13 anos de idade, deu entrada o serviço de Pediatria proveniente do SU por apresentar dor abdominal persistente e vómitos.
Durante o internamento esteve muito queixoso com dor abdominal intensa e vómitos, hoje de manhã teve 3 vómitos acastanhados.
Durante a manhã apresentou cianose labial e sinais de má perfusão a nível dos membros inferiores, foi monitorizado com Saturimetro de pulso e apresentava Sato2 de 68%pelo que foi colocado a oxigénio por máscara de alto débito a 8l/m e após as Sato2 estiveram entre 92% e 97%.”
Como melhor se explanará mais à frente é absolutamente manifesto que a situação do D. P. não se alterou de forma a que antes do meio dia estivesse “normal” e a partir do meio dia estivesse no estado absolutamente crítico em que foi visto, desde logo, pelo arguido R. M., como o retratou a testemunha I. M..
Com efeito, e como iremos analisar mais pormenorizadamente à frente aquando da análise crítica da dinâmica dos factos, é manifesto para o Tribunal que a situação do D. P. seguiu um percurso evolutivo e gradativo em sentido negativo.
Sem prejuízo, dos elementos de prova assinalados, resulta que só lhe foi ministrada novamente a medicação para as dores às 7:59 horas da manhã e que igualmente durante a manhã lhe deram chá, que vomitou, sendo o vómito acastanhado, facto provado nº 30.
Por outro lado, julga-se que arguido contactou telefonicamente o serviço de pediatria na manhã de domingo (facto provado nº 115), mas não provado que tenha sido informado que o paciente estaria “melhor” (facto não provado nº 40º).
Com efeito, o que a testemunha M. E. relata, de forma assertiva é que entre as 8:30 e as 9 horas, o arguido R. M. telefonou a saber como a criança tinha passado a noite e ela transmitiu-lhe que depois do paracetamol dormiu por períodos e que de manhã estava novamente com uma dor 8, tendo colega tido necessidade de fazer paracetamol novamente; que ela entretanto já o tinha ido ver e que mantinha dor, apesar “ligeiramente melhorada” ao que o arguido terá retorquido que “passava já aí para ver o menino”.
Ou seja, a situação do menino não tinha melhorado, tinha tido novamente uma dor 8, dor essa que mantinha, apesar de “ligeiramente melhorada” e apesar de ter feito paracetamol.
Portanto, julga-se como não provado o arguido R. M. tenha sido informado que o paciente estaria “melhor”.
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1.7. Domingo desde hora de almoço até à transferência do menor
Prosseguindo na dinâmica dos factos, quanto aos factos atinentes ao domingo à hora de almoço, depois da chegado do arguido R. M. junto do D. P., teve-se em consideração o depoimento de A. P., de onde resultou que só pela hora de almoço é que o arguido R. M. compareceu junto do menino.
Asseverou a assistente que nessa altura ele entrou, esteve com o menino e saiu, não lhes dizendo nada, e passado uns minutos entrou com outro médico, o Dr. J. C., que observou o menino e o mandou fazer uma TAC.
Acrescentou que nessa altura o D. P. já “deixava fazer tudo”, estava absolutamente prostrado, sem reação.
Explicou que ela não o acompanhou na TAC, ficou no quarto, e que passado uns instantes foram o marido, o assistente J. R., e o primo A. J. quem lhe foram dizer que o menino ia ser transferido para o Porto porque estava muito mal.
Acrescentou que o arguido R. M. lhe disse em frente ao menino que ele estava muito mal e que o marido ainda o questionou se devia dizer aquilo em frente ao menino, mas o arguido afirmou que “ele tinha de saber”.
Asseverou nesse período foi tudo muito confuso, quer entre as enfermeiras, quer por problemas com a botija de oxigénio, e que demorou cerca de 3 a 4 horas a saírem na ambulância, sendo que o menino foi com uma enfermeira e o arguido na ambulância e ela seguiu com o marido e um primo noutro carro.
Depois não mais viu o seu filho com vida.
No mesmo sentido foi o depoimento de J. R., que explicou que primeiro veio o arguido R. M. e depois o Dr. J. C., que mandou fazer uma TAC.
Asseverou que nessa altura o menino num estado em que “já não dizia nadinha, já estava sossegadinho”.
Quando vieram da TAC, ao saírem do elevador, viu o arguido J. M. a sair das escadas, tendo-se cruzado com o arguido R. M., e tendo ambos tido uma discussão, embora não conseguisse precisar o teor da discussão.
Seguiu-se uma grande confusão, asseverou que quem lhe disse que o menino ia ser transferido para o Porto foi o Dr. J. C., e que a transferência era porque ali não havia cuidados intensivos.
Depois foi lá o arguido J. M. e interpelou-o sobre a situação do D. P., tendo-lhe ele retorquido que devia levar o menino onde o tinham levado antes”.
Entretanto chamaram a ambulância, que passado pouco tempo estava ali, mas seguiu-se uma discussão entre as enfermeiras já que nenhuma queria ir com o menino porque era hora de sair.
Depois o arguido R. M. desapareceu, já se sabia que o menino ia para o Porto, mas ninguém sabia onde estava o arguido R. M..
Asseverou não conseguir precisar o tempo que demorou a transferência a concretizar-se, porque perdeu a noção das horas, mas asseverou que foi bastante tempo em que “ninguém tomava uma decisão”.
Ainda perguntou ao arguido R. M. se não era melhor ir de helicóptero, por ser mais rápido, mas ele disse-lhe que não era.
Sobre este período temporal, valorou-se ainda o depoimento de A. J., a que já nos referimos, que defendeu que ao longo da manhã se começou a complicar ainda mais a situação do D. P., já que começou a apresentar uma febre altíssima e chegou o Dr. J. C. e foram fazer uma TAC.
Asseverou que quando vieram para cima, à saída do elevador, foi ter com o arguido R. M., que apresentava uma casa de desespero, e ele lhe disse imediatamente “já não o safamos, já não o safamos”.
Depois apareceu o arguido J. M. e este e o arguido R. M. tiveram uma discussão.
Mais se valorou o teor do depoimento de V. D., guarda-florestal, irmão do assistente J. R., que defendeu que esteve no hospital no domingo depois do almoço.
Asseverou que quando lá chegou viu uma confusão muito grande “tudo a correr de um lado para o outro”, concretizando que as enfermeiras estavam “numa confusão para conseguir pôr-lhe um cateter” e que a situação de desespero era tal que ele próprio ainda teve de ajudar a por o D. P. na maca para ser transportado.
Quanto ao estado do D. P. asseverou que viu o menino sem reação, já não conseguia falar, muito pálido, com uma cor escura, roxo e azulado.
Asseverou que assistiu igualmente à discussão entre as enfermeiras já que “não se entendiam sobre quem ia com ele”.
Por outro lado, asseverou que ele próprio foi à procura do arguido R. M., porque estava a demorar muito.
Sobre este período temporal, valorou-se ainda o depoimento do arguido R. M., que defendeu que foi chamado para ver o D. P. ao meio dia e que quando chegou bastou olhar para o menino para ver que “era muito grave”, apresentando sinais claros de uma septicemia.
Imediatamente chamou o cirurgião de turno, Dr. J. C., que ordenou que fosse feito um TAC, o que realizou cerca das 12:55, antes da TAC fez imediatamente uma antibiótico.
Naquela altura era claro, “óbvio”, nas suas palavras, a necessidade de cirurgia, mas defendeu que o Dr. F. M., anestesista, lhe transmitiu que não era possível o menino ser ali operado por não haver unidade de cuidados intensivos.
Então, contactou o Hospital de ... e tratou dos procedimentos para transferir o D. P..
No mais, admitiu que a saída para o Hospital ... foi efetivamente demorada, o que atribuiu à discussão sobre a necessidade de ser operado, a necessidade de colocar cateter, a um problema com o oxigénio na ambulância.
Quanto ao arguido J. M., defendeu que não o viu mais.
Por outro lado, valorou o Tribunal o depoimento da testemunha J. C., médico-cirurgião no Hospital de X, que explicou que naquele domingo estava de urgência e, por volta da 1 hora da tarde ligaram-lhe a pedir que fosse à pediatria urgentemente.
Quando lá chegou, viu o arguido R. M. bastante ansioso, que lhe transmitiu que tinha um menino com dores abdominais e vómitos e que o arguido J. M. já o tinha visto e tinha dito que não era nada de cirúrgico.
Quando viu o D. P. ficou “espantado”, descrevendo que o menino estava roxo, com a respiração alterada, nas suas palavras “parecia um peixe fora de água” a respirar, e “já não respondia a nada”, tendo percebido imediatamente que o menino tinha uma infeção generalizada.
Fez-lhe a palpação do abdómen e estava doloroso, acrescentando que o D. P. já nem falava, só gemia.
Pôs o menino a antibiótico de largo espectro, que ainda não estava a fazer, e ordenou que se fizesse um TAC, uma vez que “nem raio X abdominal tinha”.
Asseverou que esperaram quase uma hora pela realização da TAC, porque como o menino não respirava, precisavam de oxigénio.
Sustentou que o anestesista, a testemunha F. M., lhe disse logo na sala de TAC que “se fosse para operar, não tinha condições para ser operado ali”.
Depois saiu com o arguido R. M. da TAC e foi falar com o pai do menino.
Entretanto às 14 horas, comunicou ao arguido R. M. que ia falar com o arguido J. M.. Já na urgência, foi ter com o arguido J. M., já que ele já que o tinha visto, e disse-lhe “vai ver o menino”, tendo ficado convencido que o arguido J. M. o foi ver.
Asseverou que não participou na decisão de transferência do menino para o Hospital de ... e que quem lhe disse que ele ia ser transferido foi o arguido J. M..
Sustentou que tem 30 anos de experiência cirúrgica e que nunca viu uma pessoa no estado do D. P., sustentando que, na sua opinião, aquele estado surgia de uma evolução de, pelo menos, 2 dias.
Ademais, valorou ainda o Tribunal o depoimento de F. M., médico anestesista no Hospital de X, conhecido do arguido R. M. e amigo do arguido J. M., que explicou que no dia em causa foi chamado para acompanhar o TAC, tendo acompanhado o arguido J. M. e o Dr. J. C..
Afirmou que quando viu o D. P. ele estava cianosado e com visíveis dificuldades em respirar, o que o preocupou.
Dirigiu-se, de imediato ao pediatra, ao arguido R. M., dizendo-lhe que ele não estava a respirar bem, tendo-lhe o arguido R. M. retorquido de forma ríspida, “ele tem uma máscara de oxigénio”.
Prosseguiu que como não tinha muito à vontade com o arguido R. M. e atenta a forma ríspida como o arguido R. M. lhe respondeu, nem teve qualquer outro diálogo com ele, dirigiu-se depois à testemunha J. C. dizendo-lhe “a criancinha não está bem, despachem-no o mais rápido possível para uma unidade de cuidados intensivos”.
De resto, descreveu de forma segura, que a TAC correu sem incidentes e no fim da TAC foi à salinha da urgência onde estava o arguido J. M. tendo-lhe transmitido que efetivamente se o menino precisasse de ser operado tinham de ter cuidados intensivos.
Defendeu, portanto, que com o arguido R. M. não discutiu propriamente sequer a possibilidade de o menino ser operado ali, aliás, afirmou, de forma segura e perentória, que nem soube sequer do resultado da TAC, da decisão de transferência, nem lhe foi pedida a opinião sobre a possibilidade de cirurgia no Hospital de X.
Descreveu o D. P. como tendo um aspeto “assustador”, devido ao aspeto cianosado e aos problemas respiratórios que apresentava, defendendo que o D. P. estava na iminência de precisar de ser entubado com ventilador.
Sobre este período temporal, mais valorou ainda o Tribunal o teor dos registos clínicos, juntos a fls. 655 e seguintes.
Finalmente, valoramos ainda o depoimento da testemunha I. M. que defendeu que os procedimentos foram todos normais e, admitindo que possa ter havido algum “passo mais acelerado”, negou que tenha qualquer havido confusão e que a transferência do D. P. não demorou muito tempo, tendo sido “o normal”.
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É, assim, da conjugação dos elementos de prova aludidos, com o já expendido sobre a dinâmica dos factos quanto ao período de domingo antes da chegada do arguido R. M., a matéria dos artigos 32º a 54º.
Impõe-se alguns esclarecimentos.
Assim, note-se que não obstante nos registos clínicos a fls. 655 verso pelo arguido R. M. às 12:32 se mostre registado “Nunca foi registada febre”, a fls. 656 mostra-se registado às 13:16h “T auricular 37,6ºC mas T Rectal de 38,8 (!!e fez paracetamol há cerca de 2 h).
No entanto, que não há dúvida que às 12:30 o D. P. já tinha febre, isso decorre da circunstância de lhe terem administrado Acetilsalicilato de lisina, vulgarmente conhecido por Aspegic, às 12:32h, como decorre do registo de enfermagem a fls. 670 verso.
Julga-se como não provado que nas circunstâncias de facto descritas em 34 dos factos provados o D. P. tenha feito paracetamol 2 horas antes ( o que consta dos registos clínicos feitos por R. M.), já que dos registos de enfermagem resulta que fez paracetalmol às 7:59, portanto, 4 horas antes.
Ademais, julga-se igualmente não provado que o arguido R. M. seguisse na sua viatura, já que, como se viu, seguiu com o D. P. na ambulância.
Com maior relevo, julga-se provado quanto à decisão de transferência que o arguido J. M., após conversa informal com o anestesista de serviço, F. M., que lhe transmitiu que o menor não podia ser operado no Hospital de X por não ter cuidados intensivos, decidido pela transferência para outro hospital.
Com efeito, não obstante neste ponto a prova testemunhal tenha sido algo contraditória, entendemos ser de valorar positivamente o depoimento da testemunha J. C..
Com efeito, a testemunha J. C. asseverou que o anestesista, a testemunha F. M., lhe disse logo na sala de TAC e na presença do arguido R. M. que “se fosse para operar, não tinha condições para ser operado ali”.
Por sua vez, a testemunha F. M. defendeu que na sala de TAC não se falou a operação, tendo apenas dito à testemunha J. C. que “o menino estava mal e o despachassem o mais rapidamente possível para uma Unidade de cuidados intensivos”.
No confronto entre as duas posições, entendemos ser de valorar positivamente o depoimento de J. C., salientando-se, de resto, que foi isso mesmo que o arguido R. M. exarou a fls. 656.
Julga-se, no entanto, não provado que tenha havido uma recusa em operar por parte do anestesista com o assentimento do cirurgião, facto alegado pelo arguido J. M..
Com efeito, a recusa em operar pressupõe que tivesse havido uma proposta concreta de operação a realizar, isto é, que esse efetiva possibilidade tivesse sido suscitada, debatida e analisada e isso não aconteceu.
O que houve, como se deixou exarado o anestesista, vendo a situação crítica da criança, “se fosse para operar, não tinha condições para ser operado ali”, não tendo sido debatida a possibilidade de se fazer só a laparatomia de controlo de sepsis e depois imediatamente transferido para noutra unidade, já com cuidados intensivos, ser operado.
Ademais, é manifesto que na sequência da TAC se seguiu um período de grande confusão, até desnorte.
Veja-se, a testemunha A. J., foi absolutamente assertivo ao asseverar que o arguido R. M. apresentava uma casa de desespero e ele lhe disse imediatamente “já não o safamos, já não o safamos”.
Por outro lado, contrariamente ao defendido pelo arguido R. M. que defendeu que não viu o arguido J. M. naquela manhã, resultou de forma ampla que ambos se cruzaram já depois da realização da TAC e tiveram uma discussão que foi presenciada por várias testemunhas.
Mais, não resultou provado que o arguido R. M. tenha promovido ou solicitado a qualquer parecer sobre possibilidade de cirurgia de imediato, pelo contrário, bastou-se com a indicação genérica de se fosse para ser operado precisava de uma unidade de cuidados intensivos e diligenciou de imediato pela transferência, sem ter recorrido ao chefe de equipa ou sequer ter debatido concretizadamente essa hipótese, de o D. P. ser operado de imediato.
Finalmente é notório que a transferência foi demorada, os depoimentos testemunhais de J. R., mas sobretudo de V. D. é absolutamente claro.
De resto, resulta de fls. 225 que a ambulância saiu do quartel às 14:20 horas, portanto resultando dos registos de fls. 655 e seguintes que a ambulância saiu do Hospital de X cerca das 4 da tarde, é manifesto que demorou muito tempo a sair do Hospital.
Quanto ao depoimento da testemunha I. M., além do que já expendemos, julgamos que não são sequer necessários grandes considerandos, para realçar que não merece qualquer credibilidade para o Tribunal o seu depoimento quando pretende convencer o tribunal de que foi tudo normal, isto é de que numa situação como a dos autos, de absoluta urgência e emergência, em que cada minuto, cada segundo, são determinantes para se decidir da vida ou morte de uma criança, que esperar quase 2 horas pela transferência é normal.
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Quanto ao relatório de autópsia valorou-se o teor do mesmo, junto aos autos a fls. 165 a 172, julgando-se, por isso, provado o facto nº 55.
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Antes de entrarmos na motivação da matéria de facto quanto à conduta de cada um dos arguidos, impõe-se ainda alguns esclarecimentos quanto à matéria de facto que se julga provada.
- Intervenção das enfermeiras e depoimentos prestados em audiência de julgamento
Conforme decorre do acabado de expor, não teve dúvida o Tribunal em fundamentar a sua convicção quanto à dinâmica dos factos essencialmente nos depoimentos dos assistentes, tendo-se conferido particular relevo ao depoimento da assistente A. P. por se ter tratado de um depoimento que o Tribunal reputou de assertivo, preciso, rigoroso e, sobretudo, sincero e espontâneo, não tendo encontrado nele qualquer vontade de incriminar quem quer que fosse, mas tão-somente em esclarecer os factos tal como os vivenciou.
Por oposição, saliente-se, consideraram-se os depoimentos das testemunhas S. S., C. J., A. G., M. S., M. E. e I. M., depoimentos pouco assertivos, muitas vezes nitidamente reticentes em prestar esclarecimentos sobre, por exemplo, quais os procedimentos médicos habituais em situações idênticas.
Com efeito, as testemunhas em causa apresentaram-se com uma postura que o Tribunal reputou de comprometimento e que, por isso, não lograram convencer o Tribunal.
Não podemos deixar de nos referir concretamente ao depoimento da testemunha I. M. que depôs apresentando uma postura de descontração, evidenciada na postura sorridente que teve ao relatar uma situação que podemos apenas classificar como trágica, e que se considerou pouco consentânea com a matéria em julgamento.
Além disto, não podemos deixar de salientar, como fomos expondo já, que da análise dos registos de enfermagem se conclui que nitidamente não foram exaustivas nos registos que faziam, pelo contrário, faziam registos genéricos e alguns até contraditórios.
Por outro lado, resultou manifesto para o Tribunal que as enfermeiras que tiveram o D. P. a cargo depois da enfermeira S. D. não consultavam sistema o Alert, isto é, quando iniciavam o turno não analisavam o que aí fora exarado pela colega anterior, bastando-se com o que lhes era sumariamente transmitido pela colega anterior sobre a criança na mudança de turno, salientando-se que a passagem de turno tinha a duração de meia hora para cerca de 12 crianças por enfermaria.
Prova disso é a circunstância de não terem repetido o testem “combur” ao D. P. que, feito pela enfermeira S. D. tinha registado alterações, e que por isso deveria ser repetido.
Exemplo gritante é ainda o facto de a enfermeira I. M. ter defendido em audiência de julgamento que não sabia que o menino tinha apresentado espasticidade marcada das mãos, quando isso mesmo foi assinalado pelas 23 horas de sábado e era um aspeto relevante e a ter em consideração no quadro do D. P..
Ainda de sobremaneira relevante é a circunstância de não se ter chegado a perceber quem fez o teste ao vómito a que o arguido R. M. alude no registo de fls. 655 verso às 12:32H.
Com efeito, a enfermeira I. M. negou em audiência de julgamento ter feito o teste ao vómito e era ela a responsável pelo D. P., salientando-se que não resulta igualmente dos registos de enfermagem que esse teste tenha sido feito.
Fica, assim, sem se perceber se foi feito efetivamente e a enfermeira não o registou e já não se recorda, se foi transmitido ao arguido R. M. que foi feito mas não foi feito…
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- Fundamentação quanto às questões médicas
Quanto aos pontos da matéria de facto que versam sobre questões estritamente médicas, o Tribunal não tendo naturalmente conhecimentos técnicos na área, fundamentou a sua convicção estritamente no teor das perícias médicas realizadas.
Concretamente no que concerne ao ponto 12º, 68º, 76º, quanto a julgar-se como provado que o resultado das análises evidenciavam um processo inflamatório em curso; o ponto 16º, 27º, 32º, 61º, quanto ao Tramadol ser uma medicação forte e um opiáceo; o ponto 25º e 81º quanto a saber se à questão de os sinais aí referidos – abdómen generalizadamente doloroso à palpação profunda, noção de possível defesa e dor à descompressão e diminuição de ruídos hidro-aéreos- serem sinais sugestivos de peritonite; 37º quanto a saber que se os sinais aí relatados serem sinais de choque séptico e peritonite; 58º quanto a saber se o alívio com posição antálgica, dor abdominal recorrente e vómitos se compaginarem com a hipótese diagnóstica de úlcera duodenal da criança; 78º quanto a saber se a medicação aí elencada não tem qualquer efeito curativo a fundamentação assentou estritamente no teor das perícias médico-legais realizadas.
Assim, valorou o Tribunal o teor das perícias realizadas por J. D., Pediatra e Gastroenterologista Pediátrico, a fls. 210 e 211, e J. L., Médico, Presidente do ... de Pediatria da Ordem dos Médicos, a fls. 256 e 279; P. C., Presidente do ... da Especialidade de Cirurgia Geral da Ordem dos Médicos à conduta do arguido, a fls. 484 e esclarecimentos a fls. 609; E. N., Presidente da Direção do ... de Cirurgia da ordem dos Médicos, a fls. 203 e seguintes.
As perícias em causa, atento mérito, a isenção e imparcialidade dos Senhores Médicos que a realizaram merecem-nos total e absoluta credibilidade, pelo que não tem qualquer dúvida o Tribunal a, com base nelas, fundar a sua convicção.
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- Diazepam
Em primeiro lugar, julga-se provado que o arguido R. M. prescreveu Diazepam ao D. P., o que resultou quer do depoimento do próprio arguido, quer ainda do teor dos registos clínicos, a fls. 657 verso, de onde consta que o Diazepam foi prescrito à 00:43 de 22 de Agosto de 2010.
Todavia julga-se não provado, por falta de mobilização probatória bastante, que tal medicação tenha sido efetivamente ministrada no Hospital de X.
Com efeito, dos registos clínicos resulta apenas que o diazepam foi prescrito ao D. P. e não que lhe tenha chegado a ser ministrado.
Por outro lado, tendo em consideração que dos registos médicos em Espanha, a fls. 599, resulta que na manhã do dia 20 de Agosto foi ministrado ao D. P. diazepam, a circunstância de no relatório de autópsia vir descrito tal medicamento, poderá resultar dessa ministração, não havendo prova suficiente de que tenha sido ministrado no hospital de X.
Julga-se, por isso, como provado que pelo arguido R. M. foi prescrito Diazepam a D. P. (facto provado nº 29º) mas como não provado que tal medicação lhe tenha sido efetivamente ministrada (facto não provado nº 12).
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- Períodos sem observação médica
Por outro lado, julga-se como provado que D. P. se manteve sem avalização médica desde as 23h37m do dia 20 de Agosto de 2010, quando foi admitido no internamento, até às 00h40m da madrugada de 22 de Agosto, isto é, 24 horas no dia 21 de Agosto, situação que se repetiu até, pelo menos, às 12h32m do 22 de Agosto de 2010, ficando novamente sem qualquer observação médica durante cerca de 12h, facto provado nº 31.
Esclarece-se, quando à motivação do Tribunal, que não se considera a visita feita pelo arguido R. M. ao D. P. no sábado de manhã como suscetível de ser enquadrada como avaliação médica.
Com efeito, note-se que sobre este aspeto o arguido R. M. confirmou que no sábado de manhã passou no internamento a ver todos os seus doentes, facto que foi igualmente confirmado pela assistente A. P. e pela enfermeira de serviço S. D., a que já se fez referência, sem que todavia ficasse registado no sistema Alert tal “visita”.
Sobre essa visita, o arguido R. M. defendeu já não se recordar se efetivamente observou ou não o D. P., da mesma forma a testemunha S. D., sustentou ter visto o arguido na enfermaria junto da criança e da mãe e, não o tendo visto, no entanto, a observar a criança, assumiu que é usual que se proceda a essa observação.
Mais pormenorizado foi, no entanto, o depoimento de A. P., que defendeu que na primeira noite de internamento, o D. P. praticamente não dormiu devido às dores que sentia e que se queixava muito, dizendo-lhe “mãe, a dor não sai”, mais, esteve sempre, não tinha posição para estar por causa da dor, só queria estar dobrado para lhe aliviar as dores, ora com as pernas sobre os seus ombros, ora com os joelhos encostados à barriga, ora no sentado no fundo do cadeirão com as pernas para cima.
Admitiu, como já se referiu, que o arguido R. M. no sábado de manhã “passou por lá” para ver como estavam as coisas, tendo-lhe nessa altura a assistente relatado as queixas do menor.
Defendeu que o arguido R. M. não examinou o menor e que perante as queixas que lhe transmitiu lhe disse apenas que ele estava medicado e que tinham de aguardar.
Ora, salvo o devido respeito, em face do depoimento assertivo e pormenorizado da assistente A. P., resulta para o Tribunal claro que efetivamente o arguido R. M. não observou o D. P., tendo-se limitado a uma pequena troca de palavras com a assistente A. P..
Assim, convencendo-se o Tribunal, como se convenceu, que o arguido não observou o menor, isto é, não fez um exame físico ao menor, ou sequer deu qualquer encaminhamento médico às queixas que A. P. lhe fez chegar, limitando-se a dizer que “ele estava medicado e que tinham de aguardar”, salvo o devido respeito, não podemos considerar a “visita” como uma observação médica propriamente dita.
Assim, julga-se como provado que o D. P. esteve sem observação médica efetiva desde que foi admitido ao internamento, dia 20 de Agosto às 23:37 até à 00:40 da madrugada de 22 de Agosto e depois novamente até às 12:32 do dia 22 de Agosto.
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- Alívio com posições antálgicas
Ademais, da motivação que já se expôs, concretamente dos depoimentos dos assistentes A. P. e J. R., decorre com clareza que durante o internamento D. P. sentia-se com menos dores ao colocar as pernas nos ombros dos seus pais, isto é, adotava uma posição antálgica de flexão das coxas sobre o abdómen.
Por outro lado, que esse facto que não está referido nos registos clínicos decorre do próprio teor dos registos clínicos, a fls. 655 e seguintes, facto que se julga provado, facto provado nº 56.
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- Do mascaramento da situação clínica
Sobre a questão de saber se a situação clínica do D. P. foi ou não mascarada pela ministração de Diazepam e Tramadol, salvo o devido respeito, entendemos que não resultou provado que esse mascaramento tenha, de facto, acontecido.
Com efeito, a questão do mascaramento surge referida no relatório pericial elaborado pelo Dr. E. N., Presidente da Direção do ... de Cirurgia da ordem dos Médicos, a fls. 203 e seguintes.
E o que aí se diz é que “o quadro clínico inicial pode ter sido um pouco mascarado, pelo facto de a criança ter sido medicada com Biasepan e, posteriormente, analgésicos, que devem sempre que possível, ser evitados.”
Todavia, o que aí se coloca é uma possibilidade, “pode ter sido mascarado”.
No entanto, dos relatos quer dos assistentes quer dos arguidos, não há qualquer indicação que o D. P. estivesse sedado ou menos reativo devido à medicação.
Caso assim efetivamente estivesse, seguramente os pais, os assistentes ter-se-iam apercebido e relatado essa circunstância, o que não aconteceu.
Assim, por falta de mobilização probatória, julga-se não provado o artigo 59º da pronúncia.
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2. Conduta dos arguidos
Passando agora à análise da motivação da convicção do Tribunal quanto à conduta dos arguidos, desde já se dirá que se acompanha, na íntegra e no essencial a posição plasmada no despacho de pronúncia, considerando-se que os arguidos violaram as leges artis e dos deveres objetivos de cuidado que sobre si impendiam ao não terem procedido ao longo do internamento à avaliação etiológica da doença que acometia o D. P., ressaltando à saciedade que a assistência médica prestada ao D. P. foi absolutamente deficitária.
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Arguido R. M.
Quanto à atuação do arguido R. M., a convicção do Tribunal funda-se, desde logo, no teor das duas perícias médico-pediátricas realizadas pela Ordem dos Médicos à conduta do arguido, tendo-se valorizado as perícias realizadas por J. D., Pediatra e Gastroenterologista Pediátrico, a fls. 210 e 211, e J. L., Médico, Presidente do ... de Pediatria da Ordem dos Médicos, a fls. 256 e 279.
Ressaltam de ambas as perícias os seguintes aspetos a realçar quanto à conduta do arguido R. M.: em primeiro lugar, a análise física feita ao D. P. logo na urgência do Hospital de X é vaga.
Com efeito, no relatório de urgência (fls. 652) escreve-se apenas “Bom estado geral. Muito queixoso, contorcendo-se com dores abdominais (…) Abd – Mole, depressível, doloroso intensamente à palpação (sem palpação) no epigastro. Sem massas. RHA mantidos (não exagerados)”.
Já no relatório de internamento (fls. 655) descreve-se apenas “ À chegada ao SU: Muito queixoso, contorcendo-se com dores abdominais. Rosado e sem sinais evidentes de desidratação (mucosas algo secas?) Restante observação normal.”.
Não há descrição da dor, do tipo de dor que afetava o D. P. e, sobretudo, do estado dos demais órgãos palpados, resumindo-se com “restante observação normal”.
Neste ponto, acompanha-se o descrito a fls. 210 onde se afirma “num doente muito queixoso, com história arrastadas espera-se que o exame físico seja mais detalhado com vista a identificar possíveis causas e diagnósticos.”
O segundo ponto a reter é que os registos clínicos feitos ao longo do internamento são igualmente genéricos e vagos, não havendo sequer alusão (e muito menos estudo e valoração), por exemplo, às posições antálgicas assumidas pelo menor e que são absolutamente relevantes, assim como não há sequer alusão à espasticidade das mãos que o menor apresentou.
Por outro lado, outra conclusão fundamental é a de que o quadro clínico à entrada do serviço de urgência era já preocupante, acompanhando-se o descrito a fls. 258 onde se afirma “quando o doente recorreu ao Hospital de X a tarde de 20 de Agosto, o quadro descrito era preocupante, já que havia uma situação de dor abdominal com várias horas de evolução e o paciente apresentava-se “muito queixoso, contorcendo-se com dores” e veio até a necessitar de analgesia forte, tendo, inclusivamente, sido internado para vigilância”.
Da mesma forma, a fls. 210 sustenta-se igualmente que “o quadro clínico do D. P. desde a admissão revelava dor abdominal com agravamento progressivo e alguns sinais de gravidade.”
Na mesma senda, os exames analíticos iniciais não foram devidamente valorados pelo arguido R. M., sobretudo tendo em consideração a situação de dor que o D. P. manifestava.
Com efeito, salvo o devido respeito por opinião contrária, acompanhamos na íntegra as perícias médicas referidas quando defendem que os resultados analíticos iniciais indiciavam já um processo inflamatório em atividade.
Neste ponto, mais uma vez as perícias são claras, resultando de fls. 210 “apesar de leucocitose (13.200), neutrofilia (83%), trombocitose (585.000) num doente “muito queixoso” procedeu-se a internamento e analgesia forte (tramadol e paracetamol) sem investigação etiológica adicional.” E a fls. 211 “Não foi feita avaliação etiológica apesar de indícios de provável processo infeccioso ou inflamatório agudo.”
Da mesma forma, a fls. 258, o Senhor Perito Médico é claro ao expender que “Neste contexto, com o abdómen “doloroso generalizadamente à palpação profunda”, embora mole e depressível, deveriam ter sido mais valorizados os resultados do hemograma, que revelava leucocitose, ainda que ligeira (13.200/mm3), neutrofilia (83%) e trombocitose (585.000 plaquetas/mm3) o que indiciava já um processo inflamatório em atividade.”
E se existia, como existia, um processo inflamatório em curso era dever de o arguido o investigar.
Extremamente relevante, é ainda a omissão quanto à investigação etiológica, isto é, o facto de nunca ter havido, ao longo do internamento, qualquer investigação etiológica à patologia do doente, isto é, investigação com vista ao diagnóstico da causa das dores que assombravam o D. P..
Com efeito, durante todo o período de internamento nunca foi feito qualquer estudo para esclarecer a etiologia da patologia que assolava o D. P., nem foram sequer colocadas hipóteses diagnósticas que fossem minimamente analisadas e estudadas.
Concomitantemente, não só não existiu qualquer reavaliação clínica do estado do D. P., como se deixou o doente longos períodos sem qualquer observação médica.
Note-se neste ponto e como decorre já do exposto, que se considera ser fundamental que tivesse havido reavaliação clínica do D. P., pelo menos quando do episódio de dor no sábado à noite, com repetição de exames analíticos e realização de exames complementares de diagnóstico.
Quanto aos exames complementares de diagnóstico a realizar, o Tribunal valorou o teor da perícia médica feita pelo Presidente do ... de Cirurgia Geral da Ordem dos Médicos, Dr. P. C., junta a fls. 484, 485 e 609 e 610, resultando de fls. 609 e 610, concretamente que “(…) perante as alterações analíticas verificadas na admissão no Hospital de X e perante a não melhoria do quadro clínico deveria ter sido realizada a reavaliação clínica do doente, e solicitado novo estudo complementar de diagnóstico:
- novo estudo analítico para avaliar a evolução dos marcadores de inflamação e estabelecer se a causa da persistência e agravamento da dor abdominal estava relacionada com quadro inflamatório /infeccioso;
- nova imagem, que neste contexto clínico daria algumas informações complementares
- Ex. radiografia abdominal de pé, daria informação acerca da presença de ar livre (suspeita de perfuração de víscera oca) detecção de níveis hidroaéreos (íleos ou oclusão intestinal); ecografia – detecção de presença de líquido livre de novo (dado que a realizada em Espanha não tinha anomalias), ou eventual alteração/espessamento de órgãos; TAC abdominal – daria mais informação globalmente em relação aos órgãos abdominais e seria mais adequado para exclusão de perfuração de víscera oca e de líquido livre abdominal.”
Ademais, quanto à sua intervenção no episódio de sábado à noite, é manifesto que o arguido R. M. se remeteu a uma atitude passiva, mais uma vez subavaliando a situação em que o D. P. se encontrava.
Com efeito, não só subavaliou o percurso do D. P. até esse momento, como se deixou expresso, como subavaliou os sinais que o próprio descreveu, concretamente o abdómen generalizadamente doloroso à palpação profunda, a diminuição de ruídos hidro-aéreos à auscultação e a noção de possível dor à descompressão, remetendo-se a uma atitude que a perícia de fls. 258 descreve como “passiva e resignada” e a de fls. 211 como “contemplativa”.
De resto, que os sinais descritos são sugestivos de peritonite, funda-se o Tribunal no teor da perícia médica de fls. 258 de onde isso mesmo resulta de forma clara.
Finalmente, quanto à decisão de transferência, salvo o devido respeito, considera-se que mal andou o arguido R. M. que, sendo o responsável em primeira linha pelo D. P., não ponderou concretizadamente a possibilidade de cirúrgia de imediato no Hospital de X, nem contactou o chefe de equipa a fim de lhe expor a possibilidade de cirurgia no hospital de X.
Assim sendo, é manifesto que a conduta do arguido R. M. violou as leges artis, de resto como se afirma na perícia de fls. 259: “houve superficialidade na avaliação clínica da situação, não tendo sido prestados todos os cuidados diagnósticos e terapêuticos exigidos”.
Ora, salvo o devido respeito por opinião contrária, acompanhamos na íntegra o teor das perícias realizadas quando à conduta do arguido J. M..
E acompanhamo-las, em primeiro lugar porque, tendo as perícias em causa sido realizadas por médicos absolutamente isentos e imparciais, nomeados pela própria Ordem dos Médicos, as mesmas merecem-nos total e absoluta fiabilidade, não só quanto ao mérito e à excelência com que foram elaboradas, mas ainda quanto à sua absoluta isenção e imparcialidade e, portanto, fidedignidade.
Não tem o Tribunal, por isso, qualquer dúvida em, com base nelas, fundar o seu convencimento.
Ademais, sempre se dirá que o teor das perícias, quando se pronunciam no sentido de que a situação do D. P. não foi devidamente avaliada pelo arguido, correspondem àquela que foi a convicção do Tribunal, assente nas regras da experiência comuns e normalidade, como melhor se explanará de seguida.
A esta constatação opõe o arguido o facto de a patologia que assolou o D. P. ser extremamente rara; a circunstância de ter feito uma ecografia em Espanha que foi considerada “normal”, conjugada com a circunstância de que a medicação que trazia de ... nada sugerir de grave; defende ainda que nunca nada na observação clínica sugeriu qualquer sinal de patologia grave e, em consequência, não se justificava a realização de exames auxiliares de diagnóstico ou a reavaliação do doente através de novos exames analíticos.
Defende, em suma, que nada fazia prever a existência de peritonite e que a situação que assolou o D. P. era imprevisível.
No mesmo sentido do depoimento do arguido, foram os depoimentos testemunhais dos médicos J. G., pediatra no Hospital ... e amigo do arguido R. M., E. J., médico pediatra, Diretor de Serviço de Pediatria do Hospital de ..., amigo pessoal do arguido R. M. e seu superior hierárquico, e M. G., médica-cirurgiã pediátrica no Hospital de ..., conhecida do arguido R. M., que defenderam, em suma, não ter havido qualquer violação das leges artis por parte do arguido R. M..
Salvo o devido respeito, adiantamos desde já, que esta versão não nos mereceu credibilidade.
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Mas atentemos, ainda que resumidamente, no depoimento do arguido e nos argumentos que apresentou e ainda na prova testemunhal produzida a fim de melhor esclarecermos a convicção do Tribunal.
Assim, centrando-nos de forma mais concretizada na defesa que o arguido apresentou no seu depoimento em audiência de julgamento e na sua contestação, argumenta o arguido que a patologia que assolou o D. P. era rara e, portanto de difícil diagnóstico.
Depois, defende o arguido que, quer da medicação que vinha prescrita de ..., quer da ecografia aí realizada, nada fazia sugerir um quadro gravoso, pelo contrário, defende o arguido que tudo sugeria um diagnóstico de reação histriónica a queixas de dor abdominal de causa não especificada.
Alega ainda o arguido na sua contestação que só era possível suspeitar de patologia grave na situação do D. P. se o médico o conhecesse bem e tivesse assistido a episódios anteriores que o levassem a intuir que desta vez as queixas eram mais intensas e ainda que a observação clínica à entrada e durante todo o internamento, (até duas ou três horas antes do fatídico momento) não o sugeria.
Em consonância, no seu depoimento defendeu que nunca na observação clínica verificou qualquer sinal de peritonite, ou quer de patologia grave.
Feito um breve arrazoado naquilo que de mais essencial e premente assentou a defesa do arguido, cumpre fazer uma primeira constatação: a convicção firmada pelo Tribunal no sentido de que, por um lado, a avaliação clínica feita pelo arguido R. M. foi superficial e não foram prestados todos os cuidados diagnósticos e terapêuticos exigidos, não saiu abalada pelos argumentos apresentados pelo arguido ou pelos depoimentos testemunhais prestados.
Com efeito, como se expôs já, a convicção do Tribunal resulta da análise da dinâmica dos factos, conjugada com o teor das perícias realizadas, que nos merecem absoluta credibilidade.
Ora, do que se relatou supra quanto aos depoimentos testemunhais ouvidos, resulta que a prova testemunhal, mormente os depoimentos das testemunhas J. G. e E. J., defenderam que de nada há a apontar na conduta médica do arguido.
No entanto, em primeiro lugar, a absoluta normalidade com que as testemunhas em causa encaram a circunstância de não ter sido feito ao longo do internamento qualquer estudo etiológico à patologia que assolava o doente, de a situação do doente não ter sido reavaliada na sequência do episódio de sábado à noite, de o menor ser deixado, primeiro, mais de 24 horas sem avaliação médica e depois, novamente, cerca de 12 horas sem avaliação médica, causa-nos, salvo o devido respeito, perplexidade, já que a constatação que fazemos da mesma realidade, é manifestamente outra, como deixamos já expresso.
Por outro lado, entendemos que só o estreito relacionamento de amizade e profissional entre as testemunhas e o arguido justifica a perseverança dos depoimentos das testemunhas citadas, mormente da testemunha E. J. ao pretender convencer o Tribunal de que não vêm nada de errado na conduta do arguido, tendo a mesma obedecido às leges artis da profissão.
Tais depoimentos, em confronto com a demais prova produzida e em confronto com o teor das perícias que já se analisou, salvo o devido respeito, não convenceram o Tribunal.
Assim, quanto à raridade da patologia que assolou o D. P., tal facto corresponde efetivamente à verdade, a patologia de úlcera duodenal e subsequente perfuração em criança é uma patologia rara, aliás, a perícia médico-pediátrica de fls. 256 e seguintes, salienta-o a fls. 257, “a perfuração de úlcera duodenal é uma situação muito rara na população pediátrica.”
Todavia, como decorre forma absolutamente clara da mesma perícia e como já se expôs, essa circunstância não põe em causa a sucessão já expressa de omissões cometidas pelo arguido.
De resto, mesmo tendo em consideração a raridade da patologia que assolou o D. P., a mesma perícia conclui a fls. 259 “houve superficialidade na avaliação clínica, não tendo sido prestados todos os cuidados diagnósticos e terapêuticos exigidos.”
Ademais, não podemos deixar de registar neste ponto as declarações da testemunha M. G., que na sua vida profissional relatou ter tido três situações de complicações de úlcera gástrica em criança e apenas uma de perfuração, no entanto, perguntada se a criança que tratou sobreviveu, esclareceu, “sim, fez-se uma ecografia e sobreviveu”.
Assim sendo, salvo o devido respeito, é manifesto ter de se julgar como não provado que “nada havia que pudesse sugerir a hipótese de úlcera péptica”, facto não provado 18º.
Salvo o devido respeito, como decorre da perícia elaborada pelo Dr. E. N., Presidente da Direção do ... de Cirurgia da ordem dos Médicos, a fls. 203 e seguintes, que havia efetivamente dados que sugeriam a hipótese de úlcera e esses dados eram os sintomas apresentados pelo D. P.: dor abdominal recorrente com vómitos e alívio com posição antálgica.
Depois, defende o arguido que quer da medicação que vinha prescrita de ..., quer da ecografia aí realizada, nada fazia sugerir um quadro gravoso, pelo contrário, defende o arguido que tudo sugeria um diagnóstico de reação histriónica a queixas de dor abdominal de causa não especificada.
Da mesma forma, alega ainda o arguido na sua contestação que só era possível suspeitar de patologia grave na situação do D. P. se o médico o conhecesse bem e tivesse assistido a episódios anteriores que o levassem a intuir que desta vez as queixas eram mais intensas e ainda que a observação clínica à entrada e durante todo o internamento, (até duas ou três horas antes do fatídico momento) não o sugeria.
Salvo o devido respeito, a convicção firmada pelo Tribunal é manifestamente outra, como já se deixou expresso, os pais fizeram ver ao arguido que o D. P. nunca tinha estado numa situação daquelas.
De resto, a situação do D. P. só por si, merecia atenção, análise e investigação, daí que tal conjetura não convença o Tribunal, salientando-se não se exarar tal facto na matéria de facto não provada por corresponder a uma mera conjetura.
Quanto à ecografia, salientamos, mais uma vez, o teor da perícia de cirurgia geral, a fls. 610, quando esclarece “Portanto, a informação de ter uma ecografia abdominal onde “No se observo ninguna anomalia” tem apenas validade para a situação clínica observada no momento em que foi realizada. Perante a persistência e agravamento do quadro clínico, a situação deveria ter sido revista e realizado novo estudo complementar diagnóstico, analítico e imagiológico.”
De resto, afirmar-se que a observação clínica à entrada e durante todo o internamento, (até duas ou três horas antes do fatídico momento) não sugeria a existência de qualquer patologia grave é, salvo o devido respeito, ignorar a situação real vivida pelo D. P. e os sinais que o próprio arguido descreveu, assim, à entrada: “abdómen doloroso generalizadamente à palpação profunda”, ligeira leucocitose, com neutrofilia e trombocitose, e na avaliação de sábado à noite “Abdómen não distendido mas doloroso à palpação profunda generalizadamente. Defesa? Dor à descompressão? Ausculto poucos ruídos hidro-aéreos.”.
Complementarmente esclareceu ter entendido na altura e defendeu-o em audiência de julgamento, não haver razão e fundamento para que se procedesse a essa investigação etiológica, já que enquadrou a situação do menor como uma “dor funcional”, não especificada, tal como as demais que o menor já tinha tido.
No entanto, salvo o devido respeito, mais uma vez salientamos ser entendimento do Tribunal que o arguido desvalorizou em absoluto a situação do menor.
Desvalorizou, em primeiro lugar, as análises que o menino fez ainda no serviço de urgência, defendendo que a “ligeira leucocitose”, neutrofilia e trombocitose que assinalou e que indicavam um processo inflamatório em curso, não tinham relevo.
De resto, defender em audiência de julgamento e na sua contestação que os valores que ele próprio classificou como “ligeira leucocitose” nos registos clínicos, não eram afinal leucocitose, salvo o devido respeito, por ser absolutamente contraditório não merece qualquer crédito da parte do Tribunal.
Desvalorizou, em segundo lugar, a circunstância de o menino adotar posições antálgicas, defendendo que nunca tinha visto um paciente adotar posições antálgicas daquela natureza, mas que não tinham “relevo especial”.
Desvalorizou ainda reiteradamente as queixas do menor e dos progenitores que o acompanharam, que insistentemente, como se deixou já expresso na motivação quando à dinâmica dos factos, lhe fizeram sentir que nunca, nunca, tinham visto o menino naquela situação de dor.
No fundo, o arguido desvalorizou toda a situação real do menor, tendo resultado do seu depoimento que assentou o seu raciocínio de que aquele era “mais um episódio” de dor, como outros que o D. P. já tinha tido e, portanto, a ligeira leucocitose, a neutrofia e trombocitose que apresentava, as dores que exprimia e que levavam a que ficasse completamente contraturado, com as mãos “em garra”, as posições antálgicas que assumia, não mereciam relevo especial.
Salvo o devido respeito, porém, não se compreende os fundamentos nos quais o arguido assenta para sustentar que a situação era semelhante às anteriores, quando, em primeiro lugar, resultou claro que os pais lhe fizeram sentir que aquela situação que o menor vivenciava nada tinha que ver em termos de gravidade com as situações anteriores.
Depois, as situações anteriores sempre se tinham resolvido em Espanha e nesta houve necessidade de o menor acorrer à urgência do Hospital.
De resto, é notório que os pais do D. P. não tinham o diagnóstico de que o D. P. padecia de úlcera duodenal, nem os pais suspeitavam desse diagnóstico, certo que o pai do D. P. é jardineiro e a mãe empregada doméstico, é manifesto que nenhum tinha a capacidade técnica de diagnosticar uma úlcera duodenal ao D. P..
Todavia, como se deixou já expresso, é manifesto, não só que expuseram ao arguido a sintomatologia que o D. P. apresentava, como o próprio arguido teve oportunidade de observar o D. P., havendo assim as condições objetivas para que fosse diagnosticada a doença de que padecia, ou, no mínimo, que fosse investigada a doença.
De resto, como se deixou expresso é manifesto que havia sinais peritoneais, o arguido é que os desvalorizou.
Em suma, o arguido violou as leges artis e o dever objetivo de cuidado que sobre si recaía já que, subavaliou a situação do D. P. à entrada do serviço de urgência, e subavaliou os resultados dos exames analíticos iniciais, factos provados nº 68º e 76º.
Por outro lado, não fez ao longo do internamento qualquer investigação etiológica à patologia do D. P. e consequentemente não avançou hipóteses diagnósticas que avaliasse, factos provados 16º, 61º, 73º.
Ademais, existindo, como existia, evidência de um quadro infecioso em curso, não só não fez reavaliação clínica do menor, como, ao invés, o deixou longos períodos sem qualquer avaliação médica, factos provados nº 62, 63, 67, 69, 70º, 79º, violando assim as leges artis que impõe que acorrendo uma criança a um hospital com uma patologia que o assola de forma grave e incapacitante, essa patologia seja investigada.
Consequentemente, não fez exames complementares de diagnóstico, assim como não considerou a hipótese de haver peritonite, quando os sinais apontavam para isso mesmo, factos provados nº 64º a 66º e 77º, 78º.
Mais, deixou-se assumir uma postura contemplativa, violando o dever objetivo de cuidado que sobre si impendia e a relação de confiança e até, atenta a vulnerabilidade da criança, de dependência entre o paciente e o médico, factos provados nº 80º e 81º, 82º
Finalmente, decidiu-se pela transferência do menor, sem debater as opções terapêuticas, sem apelar à chefia, nomeadamente ao chefe equipa, decidindo-se pela transferência sem antes explorar devidamente a hipótese de ser realizada a laparatomia exploradora, factos provados 83º, 84º.
Ademais, é manifesto para o Tribunal que as condutas omissivas que teve foram causa adequada ao evento trágico que veio a acontecer.
Com efeito, as condutas omitidas pelo arguido teriam certamente evitado o resultado, isto é, se o arguido tivesse tido a postura contrária, se em cada um dos momentos omissivos tivesse tido uma postura contrária à que teve, certamente o D. P. estaria ainda vivo.
De resto, é manifesto que tinha capacidade para assumir uma postura contrária, salientando-se que é um médico especialista.
Do que vem dito, decorre ainda com clareza que o arguido nunca chegou a prever o resultado que veio a acontecer, já que sempre ao longo da sua intervenção desvalorizou a sintomatologia que a criança apresentava e as preocupações que os pais lhe transmitiam.
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2. Conduta do arguido J. M.
No que concerne à conduta do arguido J. M., a convicção do Tribunal funda-se no teor da perícia médico-cirúrgica realizada pelo Presidente do ... da Especialidade de Cirurgia Geral da Ordem dos Médicos, Dr. P. C., a fls. 484 e esclarecimentos a fls. 609.
Quanto ao arguido J. M., realizaram-se igualmente duas perícias médico-legais, uma realizada pelo Presidente do ... da Especialidade de Cirurgia Geral da Ordem dos Médicos, Dr. P. C., a fls. 484 e esclarecimentos a fls. 609, e outra realizada igualmente pelo Presidente do ... da Especialidade de Cirurgia Geral da Ordem dos Médicos, Dr. E. N., a fls. 203 a 205.
Ambas são discordantes nas suas conclusões quanto à conduta do arguido.
Assim, a realizada pelo Dr. P. C. defende a existência de violação das leges artis na medida em que sustenta que “no quadro clínico apresentado pelo doente o protocolo a seguir pelo cirurgião seria- Recolha da história clínica completa junto da criança ou dos seus acompanhantes; realização de exame objetivo detalhado; observação dos resultados analíticos reavaliação clínica e se mantivesse persistência dos sintomas deveria ter sido solicitado um estudo imagiológico (pelo menos uma ecografia abdominal). (…).”
Já a elaborada pelo Dr. E. N., após analisar os factos, os antecedentes clínicos e o internamento no Hospital de X, conclui “Estamos na presença de uma situação clínica rara, de difícil diagnóstico na fase aguda que ao complicar-se de perfuração cria um grave quadro de peritonite (1º química, depois bacteriana) que pode levar rapidamente ao dramático desfecho desta lamentável complicação.
O quadro clínico inicial pode ter sido um pouco mascarado, pelo facto de a criança ter sido medicada com Biasepan e, posteriormente analgésicos, que devem sempre que possível, ser evitados.
Pela documentação presente, sou de parecer de que, houve da parte de todos os intervenientes a preocupação de encontrar a causa da doença e, consequentemente a terapêutica adequada; Assim, considero, que não há qualquer acto de negligência médica, apesar da dramática irreversibilidade da evolução da doença em presença.”
No confronto entre as perícias em causa, salvo o devido respeito, entendemos ser valorar positivamente a perícia realizada pelo Dr. P. C., em detrimento da elaborada pelo Dr. E. N..
Isto, em primeiro lugar porque a elaborada pelo Dr. E. N. parte de um pressuposto de facto que não se mostra correto.
Com efeito, no Ponto “I – Factos”, alínea D) descreve-se “A 22/08/2010, pelas 12 h é observado clinicamente e descrito o seguinte quadro clínico “Abdómen não distendido, mas doloroso à palpação profunda generalizadamente. Defesa (?) dor à descompressão (?) auscultação pucos ruídos hidroaéreos” (sic) (…).”
Ora, como decorre da motivação quando à dinâmica dos factos, mostra-se claro que essa descrição dos factos que o Senhor Perito reporta a 22/08/2010, pelas 12 h, portanto, domingo às 12 horas, foi, na realidade feita no domingo mas à 00.30h, ou seja na sequência da crise de sábado à noite, precisamente aquando da intervenção do arguido J. M..
Portanto, o parecer foi feito com base num pressuposto de facto que não se verificou.
Por outro lado, salvo o devido respeito, considera o Tribunal absolutamente infundada a asserção de que “houve da parte de todos os intervenientes a preocupação de encontrar a causa da doença e, consequentemente a terapêutica adequada”, asserção na qual o Senhor Perito fundamenta a inexistência de negligência.
Com efeito, quanto ao arguido R. M., salvo o devido respeito, já se expôs supra, o arguido nunca teve a preocupação de encontrar a causa da doença, tendo sempre enquadrado os sintomas como uma “dor não especificada”.
E quanto ao arguido J. M. decorreu até do seu depoimento, de forma clara, que não fez qualquer investigação etiológica à situação do menor (às dores que o menor apresentava), restringindo a sua à atuação à questão de saber se, naquele momento, a situação do menor era ou não cirúrgica.
De resto, não se compreende em que factos o Senhor Perito assenta para afirmar que houve a preocupação de todos os intervenientes em encontrar a causa da doença e, consequentemente, a terapêutica adequada, certo que o Tribunal concluiu precisamente o oposto.
Mais contraditório se considera, salvo o devido respeito, o seu depoimento em audiência de julgamento, ao defender, contrariamente ao que exarou na perícia, que a perfuração da úlcera só se terá dado no domingo de manhã, quando a fls. 204 defende que “provavelmente a 21/8/2010, à noite verificou-se a perfuração da úlcera, com subsequente cascata de complicações.”
Pelo contrário, a perícia realizada pelo Dr. P. C. assenta em pressupostos de facto que se mostram corretos e as conclusões a que chega quanto à conduta do arguido J. M., salvo o devido respeito, são consentâneas quer com a realidade verificada, quer ainda com regras da experiência comuns e normalidade.
Com efeito, salvo o devido respeito, o que defende quanto ao protocolo a seguir pelo cirurgião e consequentemente quanto às omissões verificadas pelo arguido, são correspondentes à realidade que se conhece da conduta médica.
Assim, defende-se que no quadro clínico apresentado pelo doente o protocolo a seguir pelo cirurgião seria:
- “Recolha da história clínica completa junto da criança ou dos seus acompanhantes”, no caso concreto, isso não foi feito, já que o arguido J. M. se bastou com as indicações que lhe foram transmitidas oralmente pelo arguido J. M., não tendo analisado os dados insertos no sistema Alert, não tendo dirigido a palavra à criança ou à mãe que o acompanhava;
“- realização de exame objetivo detalhado”- neste ponto, já se deixou expresso que o arguido não registou no sistema Alert o resultado da sua observação, tendo apenas transmitido que “nada havia de cirúrgico”.
Ademais, expressamos já na dinâmica dos factos, ter assente a nossa convicção de que o menor manteve sempre doloroso à palpação e manteve sempre defesa, traduzida na posição antálgica da qual, de resto, tinha até dificuldade física em sair.
- “observação dos resultados analíticos” – o arguido desvalorizou os resultados analíticos, apesar de reconhecer que eles traduziam um processo inflamatório em curso, nem os mandou repetir, apesar de terem sido feitos mais de 24 horas antes da sua observação.
- “reavaliação clínica e se mantivesse persistência dos sintomas deveria ter sido solicitado um estudo imagiológico (pelo menos uma ecografia abdominal).”, o arguido desvalorizou de tal forma a situação do D. P. que não reavaliou o doente, nem deixou essa indicação ao colega que o sucedeu na urgência.
Assim sendo, salvo o devido respeito, não temos dúvida em assentar a nossa convicção na perícia médica realizada pelo Dr. P. C., concluindo-se pela violação das leges artis.
Entendemos, salvo o devido respeito, que as leges artis impõem que o médico se inteire da situação clínica do paciente, em primeiro lugar.
Depois, e estando perante uma patologia que ainda não está diagnosticada, mas que pode ser grave e é preocupante, que vem provocando dores com várias horas de evolução, em determinados momentos até dores severas, as leges artis impõem que seja investigada, seja despistada.
De resto, não convence ainda o argumento de que só foi avaliar se o menor apresentava quadro cirúrgico e, não apresentando, nada mais tem a ver com o paciente.
De facto, o D. P. apresentava um quadro de dor abdominal intensa, prolongada há mais de 24 horas (por referência ao momento em que o arguido o foi observar), com momento de acalmia da dor, mas com momentos de dor severa.
Ora, o arguido tendo sido chamado a observar o doente impunha-se que propusesse uma investigação etiológica e até terapêutica, tanto que o mesmo considerou as dores “estranhas”.
É o que decorre, salvo o devido respeito, quer das perícias médico-pediátricas, veja-se fls. 211, ponto 4. das conclusões, e de fls. 485.
Julga-se, por isso não provado que a investigação etiológica estivesse a cargo exclusivamente do serviço de pediatria.
Se o arguido foi chamado a avaliar o doente, ficou vinculado ao doente.
Por outro lado, cumpre esclarecer que efetivamente depois da intervenção na noite de sábado, o arguido J. M. não teve qualquer outra intervenção ativa.
No entanto, não se pode desconsiderar que no domingo o arguido J. M. encontrou-se com o arguido R. M. no piso onde o D. P. estava internado, tanto que tiveram uma discussão ali mesmo, e foi inclusivamente ver o D. P. ao quarto dele.
De resto, quer o anestesista F. M., quer o cirurgião J. C. foram falar com ele sobre a situação do D. P..
Portanto, o arguido J. M., que entrou ao serviço às 14 horas, também não ponderou fazer a laparatomia exploradora e controlo de sepsis.
Quanto a este ponto, salvo o devido respeito, não nos convence a argumentação de que quando o arguido chegou a decisão de transferência já estava tomada.
É que a decisão de transferência não tinha de ser uma decisão absoluta, isto é se o arguido tivesse ponderado fazer a cirurgia, por considerar que era a única viabilidade de ainda salvar o D. P. a sua obrigação como médico era a de interpelar o arguido R. M., interpelar o chefe de equipa, enfim, expor a sua posição e isso não aconteceu, tendo-se remetido a uma posição passiva, como se nada daquilo lhe dissesse respeito.
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A esta visão, opôs o arguido o seu depoimento defendendo que nada havia na sua observação que sugerisse a hipótese de peritonite, salientando que o D. P. tinha à entrada PCR negativa e defendendo que o leucograma é um exame com baixa sensibilidade diagnóstica, sendo por isso que não lhe atribuiu relevo.
A corroborar o seu depoimento depuseram as testemunhas J. S., médico-cirurgião, que elaborou o documento de fls. 1669 e L. P., médico-cirurgião, amigo do arguido.
Salvo o devido respeito, porém, os depoimentos em causa abalaram a convicção do Tribunal fundada na dinâmica dos factos e no teor das perícias médicas realizadas.
Desde logo e como expusemos já, é manifesto que havia sinais sugestivos de peritonite, simplesmente foram desvalorizados.
Ademais, querendo valorizar-se a PCR, saliente-se que à entrada no Hospital efetivamente o D. P. apresentava PCR negativa, mas essa análise havia sido feita mais de 24 horas antes da observação do arguido, portanto, para um parecer atual e fundamentado, impunha-se que se repetissem os exames analíticos a fim de se verificar se a PCR ainda estava negativa.
Por outro lado, evidenciando o leucograma um processo inflamatório em curso, impunha-se igualmente que o arguido diligenciasse, além do mais, para que fosse investigado esse processo inflamatório, apurando-se não só a sua evolução como a sua causa.
Quanto à relevância da realização dos exames complementares de diagnóstico, que o arguido igualmente contesta, as considerações que supra expusemos quanto à necessidade, pertinência e utilidade dos mesmos na análise da conduta do arguido R. M. são aqui igualmente aplicáveis.
Salienta-se que foi igualmente relevante e estruturante na convicção do Tribunal o depoimento da testemunha J. C. que, não obstante ser amigo do arguido J. M., defendeu claramente que o estado do D. P. era um estado que tinha uma evolução de dias.
Ora, este depoimento é estruturante na medida em que a testemunha em causa viu o paciente, viu o D. P., inteirou-se do seu estado e é igualmente um cirurgião com anos de experiência.
Assim sendo, não temos dúvida em julgar provada a factualidade referente à responsabilidade do arguido.
Saliente-se quanto ao nexo de causalidade, salvo o devido respeito, não temos dúvida de que as omissões cometidas pelo arguido podiam, com toda a certeza, ter evitado o resultado.
Isto é, se o arguido se tivesse inteirado da situação do D. P. e consequentemente tivesse valorado quer os sinais que o menino já apresentava, mandando fazer exames complementares de diagnóstico, quer reavaliando a situação do menot, seguramente não teria ocorrido o desfecho trágico que veio a ocorrer.
Concluímos, assim, que a conduta do arguido não só foi apta à produção do resultado que se veio a verificar, como conjugada com a do arguido J. M., determinou esse resultado.
Com efeito, o arguido, enquanto cirurgião em exercício naquele hospital, tendo sido chamado a analisar o doente e dar o seu parecer sobre a sua situação, era, portanto, quem tinha o domínio do facto sobre o doente, no sentido de ter a capacidade para analisar diagnósticos e propor terapêuticas adequadas.
De resto, salvo o devido respeito, quando aduz eventuais desvios ao processo causal levanta apenas hipóteses conjeturais (razão pela qual o Tribunal não as verte nos factos provados ou não provados), posteriores à sua intervenção, quando a ação que omitiu conduziria à não realização do resultado.
De outra forma, se tivesse assumido a ação imposta pelas leges artis e pelos deveres objetivos de cuidado que sobre si se impunham, nomeadamente avaliando o menor de forma cuidada (obtendo dele e dos seus pais informação pormenorizada sobre o seu estado e a sua evolução), valorizando a sintomatologia que apresentava, mandando repetir os exames analíticos e determinando a realização de exames complementares de diagnóstico, como a situação impunham, no fundo se tivesse feito a investigação etiológica à causa das dores que o menor manifestava, os quadros hipotéticos que avança não teriam razão de ser, pois que o estado do D. P. não teria chegado onde chegou e, consequentemente, o resultado não se teria produzido.
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Em suma, o arguido violou as leges artis e o dever objetivo de cuidado que sobre si recaía já que, em primeiro lugar, não se inteirou da situação do menor junto deste e dos seus acompanhantes, facto provado nº 89.
Depois e mais relevante, não procedeu ao estudo etiológico e ao diagnóstico que permitisse o tratamento adequado, factos provados 87º, 73º, 74º.
Ademais, subavaliou a situação do D. P., não mandando fazer um estudo adequado ou exames ou sequer reavaliando a criança, factos provados 62º, 67º e 71º.
Em suma, o arguido J. M. violou as legis artis, uma vez que, aquando da observação clinica efetuada ao menor, no dia 22, pelas 00h30m, no serviço de internamento de pediatria do hospital, por via de não ter utilizado, em tempo útil todos os conhecimentos científicos, de aplicação possível, e todos os meios que lhe eram facultados para diagnóstico e tratamento deste menor confiado ao hospital.
Finalmente, é manifesto para o Tribunal que as condutas omissivas que teve foram causa adequada ao evento trágico que veio a acontecer, como já se expôs.
Com efeito, as condutas omitidas pelo arguido teriam certamente evitado o resultado, isto é, se o arguido tivesse tido a postura contrária, se em cada um dos momentos omissivos tivesse tido uma postura contrária à que teve, certamente o D. P. estaria ainda vivo.
De resto, o arguido, enquanto cirurgião experiente, tinha a capacidade e a obrigação de se ter inteirado da situação do menor e de ter valorado devidamente a situação do D. P., o que não fez, desvalorizando a situação.
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Finalmente, no que concerne ao curriculum profissional e à personalidade do arguido J. M. o Tribunal valorou os depoimentos das testemunhas José, antigo funcionário do Hospital de X, aposentado, A. F., funcionário do Ministério das Finanças aposentado, N. N., inspetor da Polícia Judiciária aposentado, todos amigos do arguido J. M. e, com especial relevância, o depoimento da testemunha J. E., engenheiro civil, irmão do arguido J. M., que confirmaram a matéria que se julga provada, tendo-se valorado ainda o seu curriculum profissional, junto com a contestação.
Valorou-se ainda o teor dos certificados de registo criminal.
Um apontamento final para se salientar que, contrariamente ao defendido pela Digna Magistrada do Ministério Público nas suas alegações, não consideramos que a postura dos arguidos ao longo da audiência de julgamento tenha sido leviana ou que tenha traduzido menor respeito ou deferência pela situação trágica que se julgou.
Pelo contrário, consideramos que a situação trágica que se viveu a todos angustiou.
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III- O Direito.
1. A violação do princípio do contraditório.
Insurge-se o recorrente J. M. contra a decisão recorrida pelo facto de não lhe ter sido dada a possibilidade de formular quesitos aos peritos que elaboraram os pareceres juntos aos autos em inquérito e de os mesmos não terem sido chamados para prestarem os seus esclarecimentos em sede de audiência de julgamento, o que, segundo aduz, configura a violação do princípio do contraditório, previsto no artigo 32º, n.º 5 da CRP, bem como a garantia de acesso a um processo justo e equitativo – artigo 20º, n.º 4 da CRP e artigo 6º, par. 1º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o artigo 14º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.
O Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto apartou-se dessa posição, defendendo que o arguido exerceu cabalmente os seus direitos, formulando pedidos de esclarecimentos, não lhe tendo sido vedada a possibilidade de formular novos quesitos e de requerer a realização de novas perícias e inclusive de solicitar a comparência em audiência de julgamento dos autores desses pareceres, com efectivamente veio a suceder com um deles.
Vejamos.
No caso vertente, e no que ao arguido diz respeito, está em causa um crime de homicídio negligente, decorrente da inobservância das leges artis da profissão do arguido – médico-cirurgião – quando foi solicitada a sua comparência por outro colega, médico pediatra, da unidade hospitalar onde prestava serviços para observar o menor D. P. e a sua posterior actuação daí decorrente, segundo a imputação feita no despacho de pronúncia.
É por isso que a prova pericial, neste âmbito da negligência médica, assume uma particular e determinante importância para aferir da concretização da violação do dever de cuidado. Os pareceres disponibilizados pelos Colégios da Especialidade de Pediatria e da Especialidade de Cirurgia Geral são essenciais na determinação da causa do resultado e na violação dos deveres de cuidado.
A prova pericial é um dos meios de prova previstos no C. P. Penal, encontrando-se regulada nos artigos 151º a 163º, dispondo o primeiro normativo que a prova pericial tem lugar quando a percepção ou apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.
Já Manuel de Andrade (1) afirmava que a perícia «[t]raduz-se na percepção, por meio de pessoas idóneas para tal efeito designadas, de quaisquer factos presentes, quando não possa ser directa e exclusivamente realizada pelo juiz, por necessitar de conhecimentos científicos ou técnicos especiais, ou por motivos de decoro ou de respeito pela sensibilidade (legítima susceptibilidade) das pessoas em quem se verificam tais factos; ou na apreciação de quaisquer factos (na determinação das ilações que deles se possam tirar acerca doutros factos), caso dependa de conhecimentos daquela ordem, isto é, de regras de experiência que não fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se no juiz, como na generalidade das pessoas instruídas e experimentadas.».
Identicamente, Germano Marques da Silva (2) define a perícia como a actividade de avaliação dos factos relevantes realizada por quem possui especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.
A perícia é ordenada por despacho da autoridade judiciária competente, oficiosamente ou a requerimento de qualquer sujeito processual (art. 154º, n.º 1, do CPP), competindo a sua determinação ao Ministério Público na fase do inquérito, com ressalva do caso previsto no n.º 3 do art. 154º (cuja competência é deferida ao juiz de instrução), e ao juiz de instrução ou do julgamento, em cada uma das fases respectivas.
Mas a perícia, ao contrário de qualquer outro meio de prova, designadamente do simples exame directo, é um meio de prova que só deve ser produzido quando o processo e a futura decisão se defrontam com conhecimentos especializados que estão para além das possibilidades de constatação e/ou percepção, efectivas ou presumidas, do tribunal, nos campos técnicos, científicos e artísticos.
Ou seja, apenas quando o tribunal se depara com questões que exigem o referido “plus” de tais conhecimentos é que é suposto que seja coadjuvado por quem reúna os conhecimentos e credibilidade necessários para apreender, com conhecimento e neutralidade, em linguagem comum, a referida complexidade e emitir um juízo especializado.
Embora, o recorrente, não coloque em causa a validade das respectivas perícias, defende que lhe deveria ter sido dada a oportunidade de pronúncia sobre o respectivo objecto, em obediência ao princípio do contraditório, embora reconheça que acabou por formular alguns pedidos de esclarecimento ao teor da perícia de cirurgia geral.
Tratar-se-ia de assegurar o princípio do contraditório e da audição prévia, segundo o qual assiste ao arguido o direito de contestar e impugnar não só os factos iniciais já conhecidos mas quaisquer outros que surjam e que o tribunal pretenda levar em consideração, de modo a que não seja proferida qualquer decisão surpresa contra o mesmo, por factos dos quais não teve oportunidade de se defender.
Tais princípios têm acolhimento constitucional, como decorre da segunda parte do invocado n.º 5 do art. 32º da Constituição da República, que assegura o direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo.
E, particularmente no que respeita ao arguido, estão em causa as «garantias de defesa» a que alude o n.º 1 do mesmo art. 32º. Perante os direitos fundamentais, o processo penal mostra-se orientado, neste domínio, para a defesa, não indiferente ou neutral. O contraditório funciona, assim, como instrumento de garantia desses direitos e corrige assimetrias processuais susceptíveis de pôr em causa o estatuto jurídico do arguido moldado pelo sistema garantístico constitucionalmente exigido, como sistematicamente vem afirmando o Tribunal Constitucional.
Acresce que o principio do contraditório na produção e valoração da prova também goza do referido assento constitucional no que respeita à audiência de julgamento, ou seja, a acusação e a defesa são chamadas a deduzir as suas razões de facto e de direito, a oferecer as suas provas, a controlar as provas contra si oferecidas e a discretear sobre o valor e o resultado de umas e outras.
Não há a menor dúvida que uma decisão de mandar realizar uma perícia pode afectar pessoalmente o arguido em causa, tornando obrigatória a sua prévia audição, de modo a poder exercer o contraditório, assim como se lhe for negada a possibilidade de em audiência de julgamento apresentar os seus meios de prova e debater os que são apresentados pelo Ministério Público e demais intervenientes processuais.
Todavia, no caso concreto, as perícias a que alude o recorrente foram mandadas realizar pelo Ministério Público no âmbito do inquérito na fase de recolha de indícios da prática de crime e num momento prévio à sua constituição como arguido, enquadradas na excepção a que alude o n.º 5 do art. 154º do CPP, razão pela qual não há que falar na violação do princípio do contraditório.
Ademais, como muito bem sublinha o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto, o recorrente em causa, exerceu amplamente os seus direitos, quer na formulação de pedidos de esclarecimentos, como veio a suceder com uma das perícias, quer na realização de novas perícias, podendo ainda, caso assim o entendesse, ter solicitado a presença dos peritos em audiência de julgamento.
Em processo penal, o que se visa com o princípio do contraditório é assegurar decisões fundamentadas na discussão de argumentos, devendo todas as decisões que pessoalmente possam afectar os arguidos serem dialecticamente debatidas, circunstancialismo que se verificou no caso concreto.
Efectivamente, o recorrente, para além de ter solicitado esclarecimentos a um dos pareceres, teve a oportunidade de requerer a realização de novas perícias, de levar a julgamento vários especialistas que de algum modo procuraram contrariar o teor dos ditos pareceres, assim como não lhe foi vedada a possibilidade de ter requerido a presença dos subscritores dos ditos pareceres em audiência de julgamento.
Assim, contrariamente ao que defende o recorrente, a efectividade do direito de requerer e discretear as provas oferecidas e juntas aos autos, que faz parte das suas garantias de defesa e satisfaz as exigências do processo equitativo, previstas nos artigos 32.º, n.º 5 da CRP, 20º, n.º 4 da CRP e artigo 6º, par. 1º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o artigo 14º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, não foram colocadas em causa, improcedendo nesta parte a sua pretensão.
2. A nulidade da sentença por falta de fundamentação (e exame crítico da prova) e por omissão de pronúncia.
Sustenta o recorrente J. M. que a sentença é nula por padecer de falta de fundamentação e de um insuficiente exame crítico das provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal a quo uma vez que nela não se especificam as razões de facto e de direito que a motivaram e omitiu a pronúncia sobre pontos da sua contestação essenciais para a apreciação da sua conduta. Assim, invoca a violação do disposto nas alíneas a), b) e c) do art. 379 º do CPP, alegando:
«O Tribunal a quo deu como não provado o facto elencado em 68.º, sem que tivesse especificado os fundamentos dessa decisão; Igualmente, o Tribunal recorrido deu como provado o facto descrito em 91.º, sem que tivesse fundamentado o sentido dessa decisão, não tendo sido indicados os meios probatórios em que assentou a sua convicção. Por outra banda, existe também falta de fundamentação quanto aos pontos dados como provados no 35.º, 36.º e 57.º, não tendo o Tribunal a quo o cuidado de especificar os concretos meios de prova em se fundou para os dar como demonstrados. A sentença em crise não emitiu juízo probatório, afirmativo ou negativo, sobre a matéria de facto alegada nos números […]. Concluindo que o tribunal «a quo» não conheceu das questões factuais e jurídicas supra enunciadas, suscitadas no articulado da defesa.Ora, a falta de pronúncia probatória por parte do Tribunal de julgamento sobre factos alegados na contestação, que não são, à partida, irrelevantes para a decisão da causa, bem como o não conhecimento de questões jurídicas suscitada pela defesa do arguido em conexão com essa alegação factual é de molde a integrar a nulidade da sentença prevista na al. c) do nº 1 do art.º379º do CPP, na vertente da omissão de pronúncia. Caso assim não se entenda, forçoso será entender que a sentença encontra-se afectada de vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no artigo 410.º, nº 2, alínea a) do Código do Processo Penal, porquanto o Tribunal não se pronunciou sobre factos concretos com relevo para a decisão da causa que constituíam o objecto do processo e lhe cabia apurar.».
Vejamos, então.
A fundamentação da sentença, princípio com assento constitucional em que se inscreve a legitimidade do exercício do poder judicial (art. 205º da CRP), traduz-se na obrigatoriedade de o tribunal especificar os motivos de facto e de direito da decisão, cominando a lei a sua omissão ou grave deficiência com a nulidade (3). Por isso, todas as decisões proferidas no processo – que não sejam de mero expediente, isto é, que decidam qualquer questão que se suscite ou seja controvertida – devem ser sempre fundamentadas (4) e o seu alcance deve ser perceptível para os respectivos destinatários e demais cidadãos (5). A garantia de fundamentação é, assim, indispensável para que se assegure o real respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial, o dever de o juiz respeitar e aplicar correctamente a lei seria afectado se fosse deixado à consciência individual e insindicável do próprio juiz.
A fundamentação adequada da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos – para reapreciar uma decisão o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo.
E é compreensível que a lei determine, taxativamente, os requisitos gerais a que, especialmente, a sentença se encontra sujeita, por ser o acto decisório por excelência, o que conhece, a final, do objecto do processo e, por isso, se reveste de crucial importância porque é através dele que, particularmente, o arguido mas também os demais sujeitos processuais ficam a saber se foi proferida uma decisão absolutória ou condenatória e, neste caso, qual a medida concreta da pena.
Assim é que o art. 374º, sobre a epígrafe “Requisitos da sentença”, estabelece a estrutura a que deve obedecer a sentença – relatório, fundamentação e dispositivo – e o seu n.º 2, quanto à respectiva fundamentação, especifica o seu concreto conteúdo, impondo que dele conste «uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».
Esta norma corporiza a exigência consagrada no art. 205º, n.º1, da Constituição da República Portuguesa – dever de fundamentação das decisões dos Tribunais que não sejam de mero expediente.
O exame crítico das provas consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (6).
É ponto assente que na fundamentação da matéria de facto se hão-de indicar as razões porque se atribui credibilidade a certos meios de prova, incluindo naturalmente os depoimentos prestados, e a explicação das razões porque se não confere essa credibilidade a outras provas que hajam sido produzidas e que apontem em sinal contrário. O que implica, claro está, que todos os meios de prova sejam escrutinados quanto ao seu interesse e ao seu valor. Sabendo-se que as provas são, em princípio, apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art. 127º CPP), é necessário que o processo de formação dessa convicção, porque assente, necessariamente, numa racionalidade prática, seja explicado com suporte em concretos argumentos e elementos de prova objectivos, esclarecendo-se, nomeadamente, porque se entende que ele se encontra em conformidade com as regras da experiência. Isto significa que não basta afirmar que certo depoimento, onde se abordaram determinados pontos, é credível porque foi prestado com uma “postura calma” ou com “um raciocínio coerente” e “está de acordo com as regras da experiência”; é preciso, dar o passo seguinte que consiste exactamente em esclarecer de forma raciocinada a compatibilidade do seu teor com as tais regras da experiência. Tanto mais detalhadamente quanto a decisão esteja em aparente desconformidade com essas regras (7).
«A fundamentação da sentença em matéria de facto consiste na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, que constitui a enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção. A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e do seu exame crítico, destina-se a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência. A integração das noções de “exame crítico” e de “fundamentação” facto envolve a implicação, ponderação e aplicação de critérios de natureza prudencial que permitam avaliar e decidir se as razões de uma decisão sobre os factos e o processo cognitivo de que se socorreu são compatíveis com as regras da experiência da vida e das coisas, e com a razoabilidade das congruências dos factos e dos comportamentos.» (8).
«A operação de fundamentação decisória é complexa, já que, nos termos do n.º 2 do art. 374.º do CPP, não prescinde da enumeração dos factos provados e não provados, constando, ainda, de uma exposição tanto possível completa, mas concisa dos motivos de facto e de direito que legitimam a decisão, com a indicação e o exame crítico das provas. É imperativo, em exame crítico das provas, que o tribunal explicite os motivos determinantes da credibilidade dos depoimentos, do valor dos documentos e exames, por que as privilegiou em detrimento de outras, em ordem a que os destinatários e um homem médio fique ciente de que as razões de convicção procedem da lógica de raciocínio, da transparência e do bem senso. Se não é necessário explicitar facto a facto as razões que levaram ao rumo decisório, o que se tornaria uma tarefa quase ciclópica, sem utilidade e mais propiciadora de reparos, não se dispensa que da fundamentação figure, de forma simples, clara e suficiente, o processo encadeado que, em resultado da lógica e da razão nela impressas, levou a tomar-se o sentido decisório expresso, enquanto sua consequência inelutável, à margem da dúvida.» (9).
Também se anota no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 573/98 (10) que a decisão sobre a matéria de facto tem de «estar substancialmente fundamentada ou motivada – não através de uma mera indicação ou arrolamento dos meios probatórios, mas de uma verdadeira reconstituição e análise crítica do iter que conduziu a considerar cada facto como provado ou não provado».
Temos assim como certo que a não enumeração na sentença de algumas das provas produzidas e a consequente falta de exame crítico de todas ou de cada uma delas, explicitando as razões que levaram o Tribunal a dar crédito a umas e a descredibilizar outras, gera a nulidade da sentença, por insuficiente fundamentação da mesma (11).
E o vício de omissão de pronúncia prende-se com o incumprimento do dever de resolver todas as «questões» submetidas à apreciação do tribunal, exceptuando aquelas cuja apreciação esteja prejudicada pela solução dada a outra, verificando-se, pois, quando tenha ocorrido ausência de decisão (12).
Dito de outro modo, a omissão de pronúncia constitui um vício da decisão que se consubstancia na violação por parte do julgador dos seus poderes/deveres de cognição, ocorrendo quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que a lei impõe que conheça e questões cuja apreciação é solicitada pelos sujeitos processuais e sobre as quais o tribunal não está impedido de se pronunciar.
Na situação em apreço, no que concerne ao primeiro dos vícios ventilados, em boa verdade, o recorrente não aponta à decisão recorrida a falta de fundamentação no sentido em que a mesma deve ser entendida, ou seja, como absoluta e constatável pela simples leitura do próprio texto da decisão posta em crise. O que o recorrente, realmente, faz é procurar descortinar qualquer falha de referência pontual, esquecendo que a fundamentação tem de ser examinada no seu conjunto, não se exigindo que seja feita facto a facto, escamoteando toda a extensa, exaustiva e bem elaborada análise crítica da matéria de facto, feita globalmente em relação a cada período do internamento do menor, enunciando todos os meios de prova produzidos, particularmente quanto aos aspectos médicos, com base no teor das perícias médicas realizadas e juntas aos autos, resultando da mesma um fio condutor que permite apreender as razões pelas quais a julgadora formou a sua convicção e, para tal, optou por determinados meios de prova em detrimento de outros.
Do que acaba de ser dito, é paradigmática a alegação feita pelo recorrente de que não se encontra fundamentada a decisão sobre o facto tido como não provado no ponto 68 e sobre os provados nos pontos 35, 36 e 57 e 91:
Quanto ao primeiro, onde se consignou que “[u]ma úlcera duodenal não perfurada apenas poderia ser diagnosticada através da realização de endoscopia digestiva alta”, a respectiva fundamentação emerge abundantemente da explanação que foi feita sobre os factos que em sentido contrário resultaram provados, mormente pelo resultado do teor das perícias juntas aos autos, nomeadamente das realizadas por J. D., Pediatra e Gastroenterologista Pediátrico, a fls. 210 e 211, e J. L., Médico, Presidente do ... de Pediatria da Ordem dos Médicos, a fls. 256 e 279, P. C., Presidente do ... da Especialidade de Cirurgia Geral da Ordem dos Médicos à conduta do arguido, a fls. 484 e esclarecimentos a fls. 609, E. N., Presidente da Direcção do ... de Cirurgia da ordem dos Médicos, a fls. 203 e seguintes, para as quais remetemos.
Quanto aos factos considerados provados nos pontos 35, 36 e 57, as razões pelas quais se consideram os mesmos como provados constam de fls. 92 da motivação, em que se escreveu: «É, assim, da conjugação dos elementos de prova aludidos, com o já expendido sobre a dinâmica dos factos quanto ao período de domingo antes da chegada do arguido R. M., a matéria dos artigos 32º a 54º». Especificamente quanto ao ponto 57, o Tribunal a quo baseou-se nos depoimentos dos assistentes A. P. e J. R., conjugados com o teor dos relatórios médicos supra aludidos, dos quais decorreu que durante o internamento o menor foi adoptando uma posição antálgica de flexão das coxas sobre o abdómen e que se sentia com menos dores ao colocar as pernas nos ombros dos pais, facto que nunca foi referido nos registos clínicos.
Por último, quanto ao ponto 91, resulta expresso que foi tido em consideração pelo Tribunal o teor do parecer do Conselho Directivo do ... de Especialidade de Cirurgia Geral, elaborado pelo Dr. P. C. – para que remeteu, como, aliás, para todos os documentos juntos aos autos –, onde se afirma que, de acordo com o protocolo de Urgência Pediátrica Integrada (publicado no portal da ARS do Norte), uma dor abdominal severa com mais de 6 horas é sugestiva de patologia cirúrgica.
O Tribunal a quo, nos referenciados pontos em que o recorrente pretende encontrar omissão, esclareceu de modo claro e convincente o percurso trilhado para os considerar como provados.
Efectivamente, o teor da decisão criticada permite inferir, à luz do acima exposto, que a Senhora Juíza ficou convencida da realidade dos factos que arrolou como assentes e indicou o percurso ou o raciocínio lógico que a conduziu a essa convicção, assim como os que deu como não provados, de modo bastante a este Tribunal de recurso poder aferir da sua adequação (substancial), possibilidade que se estende, inevitavelmente, a qualquer destinatário directo e aos demais cidadãos.
Tudo isto para concluir que estamos perante uma “motivação” apta ao fim a que se destina, porquanto a expressão nela contida do exame crítico das provas indicadas permite alcançar o processo formativo da convicção do Tribunal, relacionando-se a discordância do recorrente com razões de diferente índole, conexas com a impugnação ampla da matéria de facto por erro de julgamento deduzida pelo mesmo.
Relativamente à conjecturada omissão de pronúncia, é por demais evidente que nenhuma questão (no sentido já enunciado) suscitada pelo recorrente na sua contestação deixou de ser apreciada, sendo esse suposto vício da decisão invocado fora das condições normais, uma vez que dos próprios termos do recurso logo resulta que aquele apenas se insurge contra a não inclusão no elenco da factualidade de toda a matéria factual por ele alegada.
Efectivamente, como se sabe, o objecto do processo é o objecto da acusação, no sentido de que é esta que fixa os limites da actividade cognitiva e decisória do tribunal, ou, seja, o thema probandum e o thema decidendum. Isto é, pelos concretos factos que formam um acontecimento da vida, delimitado no espaço e no tempo, que se imputam a um determinado agente. É esse pedaço de vida que há-de subsumir-se à descrição abstracta de uma proposição penal, de um tipo legal, ou seja, o concreto comportamento atribuído a determinado agente há-de corresponder, ou não, ao comportamento abstractamente previsto na lei penal.
Mas se o objecto do processo penal é constituído pelos factos alegados na acusação e a pretensão nela também formulada, não é menos certo que o campo delimitador dentro do qual se tem de mover a investigação do tribunal, a sua actividade cognitiva e decisória, também se estende aos factos alegados nas contestações e pedidos de indemnização civil quando hajam sido apresentadas e deduzidos no processo, desde que se restrinjam aquele concreto pedaço de vida a menos que sejam irrelevantes para a decisão a proferir e narrando factos despidos de considerações e conclusões jurídicas.
Ora, encontrando-se apenas em causa matéria factual, a existir qualquer falha essencial na sua não inclusão na facticidade provada e não provada, o vício de que a decisão poderá padecer é o da insuficiência da matéria de facto, a que alude a alínea a) do art. 410 do CPP, como acaba o próprio recorrente por reconhecer na sua motivação de recurso, pelo que esta questão será apreciada nessa sede.
Assim, improcede, neste segmento, o recurso interposto pelo arguido.
3. A matéria de facto.
Como vem sendo entendido, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: pelo âmbito, mais restrito, dos vícios formais previstos no art. 410º, n.º 2, do CPP; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que o art. 412º, n.ºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma se refere.
3.1. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável desta e erro notório na apreciação da prova.
Os arguidos R. M. e J. M. imputam à decisão recorrida tais vícios formais, mas o primeiro não só não os concretiza, sendo as suas conclusões de recurso – com que delimita o âmbito de conhecimento deste Tribunal – completamente omissas quanto aos mesmos, como na respectiva motivação logo denuncia que o seu real inconformismo, com o apelo que faz às suas declarações, bem como às do arguido J. M. e aos depoimentos das demais testemunhas e pareceres médicos, visa o modo como o Tribunal de 1ª instância apreciou e valorou os meios de prova produzidos em audiência de julgamento.
Realmente, quanto a esses vícios, a que alude o art. 410º, n.º 2, do CPP, seria suposto que a impugnação deduzida incidisse no eventual erro na construção do silogismo judiciário, não no chamado erro de julgamento, a injustiça ou a desadequação da decisão proferida ou a sua não conformidade com o direito substantivo aplicável (13). Tratar-se-ia, nessa vertente, de saber se na decisão recorrida se reconhece qualquer desses vícios, necessariamente resultantes do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
O que significa que só assumem tal natureza os erros constatáveis pela simples leitura do teor da própria decisão da matéria de facto, não sendo admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para os fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (14). Apenas será de admitir a conveniência ou a cautela de, ainda assim, sindicar a fundamentação que haja sido feita sobre os factos provados e não provados, para se fazer uma avaliação correcta e poder concluir se, afinal, para um facto em aparente contradição com a lógica mais elementar e as regras da experiência comum, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, não foi fornecida naquela fundamentação um qualquer esclarecimento que torne compreensível o julgamento efectuado: por exemplo, se um facto dado como provado (ou não provado) contraria o senso comum, ou seja, a normal e corrente compreensão e interpretação das situações da vida, só a clara explicitação do percurso trilhado para a formação da respectiva convicção e a razoabilidade desta poderão legitimar a sua aquisição processual.
Assim, o vício atinente à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada só ocorrerá quando da factualidade vertida na decisão se colher faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição. Trata-se da formulação incorrecta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada (15).
No fundo, este vício consiste numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito, sobre a mesma.
Porém, este vício também não deve ser confundido com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, enquanto questão do âmbito da livre apreciação da prova (art. 127º do CPP) (16).
Também o vício da contradição insanável de fundamentação, segundo tem esclarecido o Supremo Tribunal «só se verifica quando, de acordo com um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação, não só não justifica como impõe uma decisão contrária ou, quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se concluir que a decisão não resulta suficientemente esclarecida, dada a colisão entre os fundamentos invocados» (17).
Ou, como se asseverou, ainda, no acórdão do mesmo Tribunal de 20/04/2006 (18), «O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão ocorre quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta ou não justifica a decisão».
Este vício, como resulta da letra da alínea b) do art. 410º, só se deve e pode ter por verificado quando ocorre uma contradição insanável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, ou seja, um conflito inultrapassável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, o que significa que nem toda a contradição é susceptível de o integrar, mas apenas a que incida sobre elementos relevantes do caso e se mostre insanável ou irredutível, isto é, que não possa ser ultrapassada ou esclarecida de forma suficiente com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência.
Identicamente, a jurisprudência tem considerado o vício contemplado na alínea c) de tal preceito apenas como os erros que, ponderados os factos provados e não provados, advêm de o tribunal ter retirado uma conclusão ilógica ou arbitrária, à margem duma análise racional ou em violação das regras de experiência comum, e que, por isso, não escapa à análise do homem médio (19). Assim, apenas existe o vício do erro notório na apreciação da prova quando, de acordo com o texto da sentença, o tribunal a valorou contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente(20). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, traduzido, basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (21) ou dar-se como não provado o que não pode ter deixado de ter acontecido.
Inviabilizado que se mostra o conhecimento da alegação do recorrente R. M. desta parte da sua impugnação pelas razões supra aludidas, atentemos na impugnação feita pelo recorrente J. M..
Sustenta este arguido que a sentença em crise padece do vício da insuficiência da matéria de facto por ter omitido matéria da contestação penal, com relevo para a decisão da causa, que constituía o objecto do processo e lhe cabia apurar, sendo que tal articulado constitui o instrumento mais importante através do qual o arguido exerce os seus direitos de defesa, na fase de julgamento, em face da acusação que lhe tenha sido movida, pois é nela que o arguido tem ensejo de tomar posição sobre os factos contra si articulados no libelo acusatório, impugnando-os ou alegando quaisquer outros que possam ter como efeito afastar ou minorar a sua responsabilidade criminal e indicar os meios de prova com interesse para a sua defesa.
Nesse contexto, alega que a sentença proferida não emitiu juízo probatório, afirmativo ou negativo, sobre a matéria de facto alegada nos pontos: 29.º a 33.º, 118.º a 125.º, 34.º a 35.º, 126.º a 127.º, 132.º a 139 e 142, 64.º e 65.º, 85.º a 100.º, 107.º, 147.º, 162.º a 175.º, 229.º a 243.º, 246.º a 247 a 249 e 250.º, 252.º a 257º, 259.º a 268, 270 a 279, 281.º a 282.º, 189.º, 191.º, 202.º e 203.º, 218.º, 295.º, 297.º, 304.º, 313.º a 316.º, 318.º, 322.º a 325; 327.º, 340.º, 375.º a 379.º, 384.º, 404.º a 405. 420.º, 439.º; 440.º e 447.º, 451.º a 454.º.
Sendo inquestionável que a contestação é o instrumento através do qual o arguido, na fase de julgamento, exerce os seus direitos de defesa, devendo nela tomar posição sobre os factos que lhe são imputados e invocar todos os meios de defesa, seria suposto que os pontos sobre que incide a impugnação contivessem factos com relevância para aferir da responsabilidade, que lhe era imputada no despacho de pronúncia, dentro do quadro geral nela fixado.
Ao invés, salvo o devido respeito, a extensa articulação a que o recorrente agora alude apenas encerra vagas e hipotéticas formulações sobre possibilidades de diagnóstico e conclusões sobre princípios de cirurgia e características de produtos químicos, que, numa larga medida, são insusceptíveis de transposição para a factualidade e, por outro lado, na medida restante, não se coadunam com o produto de outros estudos técnico-científicos e experiências profissionais a que o Tribunal aderiu, motivadamente, por ter ponderado ser o que, para a averiguação da violação do dever de diligência que sobre o recorrente impendia, melhor se harmoniza com o circunstancialismo que contextualiza os factos no caso enfrentados. Por isso, bem andou a Sra. Juíza ao desconsiderar tais propostas e conclusões, em sede da selecção da matéria de facto, o que não significa que a repercussão/relevância da ciência sobre a sua formulação seja completamente despicienda na apreciação jurídica da conduta do recorrente.
Nesta vertente, também não colhe a pretensão do recorrente ao visar que se desconsidere (dê como não escrita) a generalidade dos factos dados como provados e numerados nos pontos 56 a 102, alegando conter meras repetições de factos anteriormente dados como provados, matéria de direito, conjecturas, conclusões e ilações, sem o devido suporte na matéria de facto fixada.
Com efeito, independentemente do maior ou menor rigor técnico-jurídico da formulação oferecida em todo esse vasto rol descritivo, que aqui não está em causa, o que interessará para a aplicação do direito são os pertinentes factos nele inseridos.
No item 2º da matéria de facto foi tido como provado que o «D. P. voltou para casa, e embora tivesse alta medicado, não chegou a tomar a medicação que lhe foi prescrita, uma vez que o seu estado de saúde se agravou, pelo que, foi transportado para a Unidade Hospitalar de X».
Relativamente a este ponto, alega o recorrente que, em sede da fundamentação, é referido (3.º parágrafo de fls. 43) que o D. P. terá tomado “Brufen”, sendo que tal facto não foi dado como provado ou não provado, quando, tal como resulta da bula do citado medicamento (junta em audiência de julgamento ocorrida em 25/06/2018), o mesmo está contra-indicado, desde logo, para os casos de úlcera péptica – doença de que o menor padecia – e pode mascarar sinais de infecção, sendo que a sua toma não é inócua, antes pode relevar para aferição da verificação dos elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime em apreço.
Como facilmente se depreende da leitura do texto da decisão, o que realmente estava em causa era apenas apurar, não se o menor ingerira ou não o medicamento “Brufen”, mas se havia tomado a medicação que lhe havia sido prescrita pela médica que o observou em Espanha. Daí que a referência ao dito medicamento (“Brufen”) tenha emergido apenas instrumentalmente na explicitação que o Tribunal fez da razão pela qual concluiu pela negativa. Aliás, do texto da fundamentação o que consta é que o menor terá dito à sua tia que não queria tomar nada nada porque já tinha tomado “Brufen”, desconhecendo-se se efectivamente o tomou ou não.
O recorrente aponta à decisão recorrida uma contradição nos pontos 1.º, 4.º e 138. º dos factos provados, quanto ao número de dias de evolução da doença, aquando da entrada do menor no serviço de urgência e respectiva fundamentação, mas sem qualquer razão:
Efectivamente, deu-se como provado, no ponto 1º: «No dia 20 de Agosto de 2010, pelas 11h00m da manhã, D. P., à data, com 13 anos de idade, foi assistido, na Clínica Cooperativa ... - ...., em ..., Espanha, pelo facto de, no fim da tarde do dia anterior e da noite, o menor se ter queixado de fortes dores de barriga e vómitos frequentes, após ingerir qualquer alimento ou bebida.»
No ponto 4º: «Tendo sido admitido, cerca das 18h28m, no serviço de urgência daquela unidade hospitalar, registado com o Episódio de urgência n.º ..., onde consta que o menor queixava-se de “dor abdominal e vómitos desde há cerca de 3 dias”, tendo-lhe sido atribuído, segundo a Triagem de Manchester, o grau de prioridade Amarelo – Urgente.»
E no ponto 138º: «Quer o resultado da ecografia, quer o resultado das análises sanguíneas são obtidas já com, pelo menos, 2 dias de evolução».
Por seu turno, consignou-se na fundamentação: «Aceita-se que o episódio de dor tenha começado cerca de 2 dias antes, como esclareceu A. P., embora com a gravidade que fez o D. P. ir às urgências apenas na noite de 6ª feira, como asseverou o assistente J. R.».
Do confronto dos pontos em questão e da fundamentação que sobre os mesmos incidiu não se descortina a existência de qualquer contradição, na medida em que no ponto 4º apenas se consignou o que constava do episódio de urgência, não se afirmando uma realidade contrária à que constava dos restantes dois pontos e do teor da fundamentação.
O recorrente entende que a redacção conferida aos pontos 21º e 31º da matéria de facto sofre de uma contradição, uma vez que se deu como provado:
No 21º: «só cerca da 00h00m do dia 22 de Agosto D. P. foi avaliado na enfermaria pelo arguido J. M. (…)»;
E no 31º: «Apesar do quadro supra descrito, D. P. manteve-se, com a medicação acima prescrita, analgesia forte, todavia, sem investigação etiológica, estando sem avaliação médica desde as 23h37m do dia 20 de Agosto de 2010, quando foi admitido no internamento, até às 00h40m».
Não se lobriga qualquer substancial contradição na medida em que o ponto 21, sequenciando a descrição vinda desde o item 18 sobre o estado por que passou o D. P. desde a madrugada do dia 21/8, serve para afirmar que “só cerca” das 0 horas do dia 22 o mesmo foi avaliado na enfermaria pelo arguido J. M., enquanto no ponto 31 se concretiza que tal avaliação médica ocorreu, mais precisamente, às 00h40m desse mesmo dia. Como é evidente, a precisão assim introduzida, mesmo que redundasse numa discrepância – o que não sucede –, não conferiria qualquer ilogicidade à decisão nem assumiria, no contexto dos factos, a relevância pretendida pelo recorrente.
O recorrente assaca uma nova contradição entre o que consta no ponto 49º dos factos provados [«Assim, o arguido J. M. disse aos progenitores do menor que atento o estado grave do menor, este seria transportado de ambulância para o Hospital de ..., no Porto»] com o que ficou consignado na fundamentação: «Quem lhe disse que o menino ia ser transferido para o Porto foi o Dr. J. C.».
Ora, este segmento da fundamentação, como dela linearmente se retira, exprime o mero enunciado do depoimento prestado pelo pai do menor, o qual, se posto a par do facto afirmado naquele item 49º, não pode, obviamente, ser erigido num dos esteios duma putativa incongruência lógica.
Identicamente, a discordância expressa pelo recorrente quanto à avaliação feita pelo Tribunal a quo dos meios de prova produzida não basta para configurar um qualquer paradoxo no que foi consignado nos pontos 89, 90 e 92 a 102 e 164 a 178 e no que consta da fundamentação da decisão. A matéria contida nos aludidos pontos, para além de não conter qualquer antinomia lógica sobre a actuação do recorrente, também se mostra perfeitamente harmonizável com o que consta da respectiva fundamentação, em que, mais uma vez, a Sra. Juíza se limitou a descrever o que o recorrente declarou em sede de audiência de julgamento.
Realmente, nos pontos 89 a 92 expôs-se o comportamento que seria exigível ao arguido em relação ao quadro clínico apresentado pelo menor, perante o que se considerou serem as boas práticas impostas pelas leges artis, e os restantes pontos, simplesmente, reflectem a actuação efectivamente tida pelo mesmo no exame feito ao menor, emergindo a descrição desta como contextualizando e complementando aquele precedente enunciado e que, por isso, também deve ser ponderado na apreciação jurídico-penal da conduta em apreço.
Análoga observação tem que ser feita quanto à suposta contradição entre a matéria provada inserta nos pontos 9, 11, 16 e 19 (128 e 191) e não provada nos pontos 31/44 e 67 quanto às dores sofridas pelo menor, pretextando a eliminação do ponto 11 quando se deu como assente que o «D. P...., mesmo durante o hiato de tempo que estava sobre o efeito da medicação, nunca deixou de ter dores, embora menos intensas». Realmente, da conjugação de todos os factos e respectiva fundamentação sobressai com meridiana clareza que o menor, mesmo nos períodos em que tomava a medicação, continuava a sofrer de dores, embora menos intensas, e disso é exemplo o facto de colocar as pernas elevadas sobre os ombros da sua mãe, por ser a posição em que se sentia mais aliviado.
Sustenta ainda o recorrente existir uma contradição entre os pontos 12, 13 e 173 dos factos provados e os pontos 2, 54, 55 e 56 dos não provados e a própria fundamentação.
Ora, no primeiro dos pontos referidos apenas se fez consignar o resultado das análises que foram efectuadas ao menor e que as mesmas indiciavam um processo inflamatório em actividade, em conformidade com a interpretação que o arguido J. M. colheu desse resultado, tendo o mesmo consignado: «Análises (em Anexo) não mostraram alterações significativas, excepto ligeira leucocitose», ainda que o valor máximo de referência desta (leucocitose), para a unidade hospitalar em causa, se situe acima dos 13200/mm3. E no ponto 173 deu-se como provado o valor quanto aos leucócitos tido como referência para o laboratório do Hospital.
Por sua vez, nos aludidos pontos 2, 54, 55 e 56 deu-se como não provada matéria que contrariava o consignado nos pontos anteriormente referidos e dados como provados em que se procurava sustentar que o valor das análises era perfeitamente normal e não indiciava em curso um processo infeccioso.
É o que também reflecte a fundamentação que incidiu sobre os mesmos pontos em que o Tribunal consignou: «Quanto aos pontos da matéria de facto que versam sobre questões estritamente médicas, o Tribunal não tendo naturalmente conhecimentos técnicos na área, fundamentou a sua convicção estritamente no teor das perícias médicas realizadas. Concretamente no que concerne ao ponto 12º, 68º 76º, quanto a julgar-se como provado que o resultado das análises evidenciavam um processo inflamatório em curso… (...) valorou o Tribunal o teor das perícias realizadas por J. D., Pediatra e Gastroenterologista Pediátrico, a fls. 210 e 211, e J. L., Médico, Presidente do ... de Pediatria da Ordem dos Médicos, a fls. 256 e 279; P. C., Presidente do ... da Especialidade de Cirurgia Geral da Ordem dos Médicos à conduta do arguido, a fls. 484 e esclarecimentos a fls. 609; E. N., Presidente da Direção do ... de Cirurgia da ordem dos Médicos, a fls. 203 e seguintes. As perícias em causa, atento mérito, a isenção e imparcialidade dos Senhores Médicos que a realizaram merecem-nos total e absoluta credibilidade, pelo que não tem qualquer dúvida o Tribunal a, com base nelas, fundar a sua convicção.»
Também não existe a alegada contradição entre os pontos 174, 12, 63 e 76 e 174.º 16, 23, 31, 61 a 68 e 87 dos factos provados, em conformidade com a linha de raciocínio que se deixou agora expressa e em face do texto da decisão recorrida. Efectivamente, ficou a constar dos pontos provados, em conformidade com o que resulta da fundamentação da decisão, que os valores revelados pelas análises clínicas não suscitariam especial atenção, à excepção das alusivas aos leucócitos, as quais não foram devidamente ponderados e reavaliados como se imporia.
A congruência acabada de evidenciar também se estende aos pontos 62, 67, 68, 9, 112, 132, 171, 172, 126, 127. 130, 104, 140, 175 e 68 da matéria de facto provada, pois, também aqui, a Sra. Juíza, ao dar como provados factos articulados pelo recorrente apenas contextualizou a actuação deste, para além de que a matéria tida como provada dos pontos 112 e 126 em nada contende com o quadro referente à (falta de) saúde da criança.
Aduz o recorrente que os factos provados nos pontos 26, 31 e 131 estariam em oposição quanto ao tramadol ministrado, mas, contrariamente ao alegado, não se descortina a existência da falada contradição nem da sua relevância, caso a mesma eventual se constatasse: no ponto 26 apenas se consignou que o menor, após ter sido examinado, continuou a ser medicado só com Tramadol EV, um opiáceo para controlo da sintomatologia dolorosa, assim se salientando que nada de novo lhe foi prescrito, aliás, de acordo com o que consta dos registos juntos aos autos, donde se extrai a seguinte nota: «Foi observado pelo Dr. J. M. que achou nada haver de cirúrgico no contexto clínico da criança. Fica mais calmo após tramadol». E nos pontos 31 e 131 apenas se fez consignar a descrição que consta da pág. 9 do relatório de internamento junto de fls. 652 e ss dos autos.
Não se detecta a contradição que o recorrente aponta aos itens 182 dos factos provados e 12 dos factos não provados, relativa à medicação com Diazepam, como resulta abundantemente do segmento da fundamentação da decisão com esse título, pois os mesmos apenas reflectem que tal medicamento foi efectivamente ministrado, mas não no hospital de X.
Na sequência do que temos vindo a afirmar, ao invés do sustentado pelo recorrente, também não vislumbramos qualquer incoerência na matéria aludente à existência de peritonite, à observação feita pelo mesmo, à ausência de defesa pelo menor à dor abdominal, aquando da realização do exame pelo recorrente, e adopção de posições antálgicas, que ficou a constar dos factos provados e não provados e da fundamentação que incidiu sobre a mesma [pontos 12, 24, 77, 87, 96, 99, 55, 108, 109, 174, 86 e 124, 163 a 169, 171 e 172, facto não provado 7 e motivação da sentença (fls. 69, 75/76, 23 e 170, 52 (não provado), 169, 10, 18, 56, 57, 35 e 188, 96, 56 e 57, 161 e 162, 146, 108 e 109].
Por fim, não se verifica a contradição a que o recorrente alude entre os pontos 84, 95, 99 165 a 174, 144, 159, 195, no que se refere à possibilidade de operar o menor. Também aqui o primeiro segmento da factualidade não é incompatível (logicamente) com a que, a seguir, contempla a matéria vertida na contestação do recorrente.
Salvo o devido respeito, o que, verdadeiramente, ilustra toda a impugnação do recorrente nesta vertente é apenas o seu inconformismo por ter sido também responsabilizado pelo infeliz decesso do D. P., desencadeado a partir de um quadro infeccioso que estava instado, indiciado no resultado das análises clínicas efectuadas e nos demais sintomas até então revelados, que foram efectivamente descurados/desconsiderados, sobretudo, pelo médico pediatra, mas também pelo próprio recorrente, que, agora, invoca o resultado colhido da palpação que efectuou e a raridade da doença de que a criança padecia e a ainda mais rara perfuração que veio a ocorrer.
Ora, depois de relembrar que, nesta sede, apenas relevaria o próprio texto da decisão recorrida, diremos, em suma, que os factos devem ser vistos na sua globalidade e, nesta perspectiva, a imagem que dos mesmos se retém é que o recorrente avaliou com superficialidade o quadro clínico apresentado pela criança, desvalorizando as queixas desta e toda a sintomatologia associada e que a morte da mesma poderia ter sido evitada, caso tivesse sido feita uma avaliação adequada e uma intervenção cirúrgica em tempo útil no próprio Hospital de X.
Como linearmente se extrai, no caso em apreço, não se constata pela simples leitura do teor da decisão recorrida os vícios (formais) que o recorrente lhe assaca, pois, para além de os factos considerados provados sustentarem cabalmente a sua condenação, também não são contraditórios em si mesmos ou com aqueles que foram dados como não provados ou com a fundamentação que sobre eles incidiu, assim como também não se vislumbra que a apreciação dos meios de prova tivesse afrontado qualquer principio jurídico ou as regras da experiência comum.
Nesses e nos demais aspectos versados no recurso, o que está verdadeira e unicamente em causa é que o recorrente não se conforma com a circunstância de o Tribunal de 1ª instância ter acolhido uma versão dos factos que lhe era desfavorável sobre a matéria de facto, aí fazendo radicar os aludidos vícios que apontam à decisão recorrida e que expressamente apoda, concomitantemente, de contradição, de erro notório na apreciação da prova e de insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito.
Destarte, é forçoso concluir, face à concreta argumentação (aliás parcialmente abandonada nas conclusões do recurso), que o recorrente invoca a existência destes vícios fora das analisadas condições legais, pois que se limita a extrair as ilações que tem por pertinentes da prova produzida, que contrapõe à do julgador, sem que logre demonstrar, através da análise estribada apenas na leitura do próprio texto do acórdão recorrido, a existência de qualquer ilogismo de percurso ou conclusão contrária à lógica das coisas, ao alcance, pela sua evidência, do homem comum.
Por conseguinte, improcede a deduzida invocação de vícios formais.
3.2. O erro de julgamento.
Como se disse, a verdadeira pretensão dos recorrentes R. M. e J. M. dirige-se à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, sustentando terem sido incorrectamente condenados por não terem sido devidamente valoradas todos os meios de prova produzidos em audiência de julgamento, nomeadamente as suas próprias declarações, os depoimentos das testemunhas que identificam, aduzindo ainda o recorrente J. M. que foram totalmente desconsiderados os dois pareceres que juntou, tendo-se sobrevalorado os pareceres que se encontravam juntos aos autos, bem como os depoimentos dos assistentes que têm um manifesto interesse no desfecho do processo.
Nesta decorrência, impugna o recorrente R. M. a facticidade provada e constante dos pontos 2, 12, 13, 24, 25, 27, 28, 46, 47, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69,70,73, 74, 76, 81, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100,101,102. E o recorrente J. M. a matéria factual provada inserta nos pontos 2, 12, 13, 24, 25, 27, 28, 31, 32, 35, 44, 45, 46, 47, 53, 54, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 71, 73, 74, 76, 81, 84, 87, 88, 89, 90, 92, 93, 94,95, 96,97, 98, 99, 100, 101, 102, 108, 109, bem como a matéria factual não provada dos pontos 9, 43, 46, 48, 50, 52, 55, 56, 68.
Vejamos, então.
Para correctamente se impugnar a decisão com fundamento em erro de julgamento, é preciso que se indiquem elementos de prova que não tenham sido tomados em conta pelo tribunal quando deveriam tê-lo sido; ou assinalar que não deveriam ter sido considerados certos meios de prova por haver alguma proibição a esse respeito; ou ainda que se ponha em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, mas assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência – pela qualidade, sobretudo – dos elementos considerados para as conclusões tiradas.
O que se visa é, pois, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto que o recorrente especifique como tendo sido incorrectamente julgados, na sua perspectiva, a fim de poder obviar a eventuais erros ou incorrecções na forma como foi apreciada a prova.
Daí que a delimitação desses pontos de facto seja determinante na definição do objecto do recurso, cabendo ao tribunal da relação confrontar o juízo que sobre eles foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção, determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova apontados pelo recorrente e que este considere imporem decisão diversa.
Sendo certo que neste tipo de recurso sobre a matéria de facto (impugnação ampla), o tribunal da relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.
Precisamente por isso, o recorrente que pretenda impugnar amplamente a decisão sobre a matéria de facto deve cumprir o ónus de especificação previsto nas alíneas do n.º 3 do citado art. 412º. A referida especificação dos concretos pontos factuais traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam na sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados. E a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico dos meios de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual impõem decisão diversa da recorrida. Exige-se, pois, que o recorrente refira o que é que nesses meios de prova não sustenta o facto dado por provado ou como não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.
Note-se que o cumprimento ou incumprimento da impugnação especificada pelo recorrente afecta os direitos do recorrido. Este, para defesa dos seus direitos, tem de saber quais os pontos da matéria de facto de que o recorrente discorda, que provas exigem a pretendida modificação e onde elas estão documentadas, pois só assim pode, eficazmente, indicar que outras provas foram produzidas quanto a esses pontos controvertidos e onde estão, por sua vez, documentadas. É que aos princípios da investigação oficiosa e da descoberta da verdade material contrapõem-se os do exercício do contraditório e da igualdade de armas, para que o processo se desenrole de acordo com o due process of law.
Daí a necessidade e importância da impugnação especificada, por permitir a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, devendo tais especificações constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas (art. 417º, n.º 3). Face ao nosso regime processual quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pelo recorrido e pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que, actualmente, se alcança com a indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação, como consta do n.º 4 do citado art. 412º.
É também por isso que se reconhece não existir fundamento bastante para rejeitar a impugnação da decisão numa situação em que, nas conclusões delimitadoras do objecto do recurso, tenha sido devidamente cumprido o ónus primário ou fundamental, identificando os concretos pontos de facto impugnados e as propostas de decisão alternativa sobre os mesmos, bem como os concretos meios de prova que imponham tal alternativa, já podendo – e até devendo – o cumprimento do ónus secundário ser satisfeito na motivação (corpo das alegações), para aí sendo relegadas a valoração dos concretos meios de prova indicados nas conclusões e a determinação da sua relevância para a distinta decisão proposta, bem como a indicação concreta das passagens da gravação (22).
E, nessa senda, a análise da impugnação tem que ser feita por referência à matéria de facto efectivamente provada ou não provada e não àqueloutra que o recorrente, colocado numa perspectiva subjectiva, não equidistante, tem para si como sendo a boa solução de facto e entende que devia ser provada.
Como em geral sucede, esta tarefa é norteada pela ideia de que a apreciação da prova, segundo o grau de confirmação que os enunciados de facto obtêm a partir dos elementos disponíveis, está vinculada a um conceito ou a um critério de probabilidade lógica preponderante e, especificamente, face a uma eventual divergência inconciliável de depoimentos, produzidos por pessoas dotadas de uma razão de ciência sensivelmente homótropa, prevalecerão os contributos colhidos por essa via, que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum.
Como é evidente, tais princípios não comportam apreciação arbitrária nem meras impressões subjectivas incontroláveis, antes têm, sempre, de nos remeter, objectiva e fundadamente, ao exame em audiência, com critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica, das provas aí validamente produzidas, visando a descoberta da verdade prático-jurídica e não a verdade transcendente, inalcançável, fruto de especulação projectada para fora do domínio da racionalidade prática, sem suporte em concretos argumentos e elementos de prova objectivos.
Além disso, a prova não pressupõe uma certeza absoluta, nem, por outro lado, a mera probabilidade de verificação de um facto. Assenta no alto grau de probabilidade do facto suficiente para as necessidades práticas da vida (23). Trata-se de uma liberdade de decidir segundo o bom senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação, ou no dizer de Castanheira Neves da «liberdade para a objectividade» (24).
É segundo esta perspectiva que hão-de ser apreciados os factos provados e não provados e a fundamentação que o tribunal recorrido levou a efeito para sustentar a sua convicção acerca deles; o processo avaliativo que o tribunal levou a cabo de modo a que se possa dizer com segurança se houve ou não uma apreciação arbitrária, caprichosa ou discricionária da prova produzida.
Analisemos, então, o sentido dos elementos de prova invocados na decisão impugnada e nas conclusões dos recursos sobre os pontos factuais da impugnação deduzida.
À luz do que acima expendemos, os recorrentes cumpriram (25)o apontado ónus de especificação, identificando os concretos pontos da matéria de facto que entendem encontrarem-se incorrectamente fixados e ofereceram proposta alternativa sobre os mesmos, bem como indicaram a sua divergência sobre a avaliação probatória, fazendo-o por reporte aos suportes onde se encontra gravada a prova, remetendo para os concretos locais da gravação que amparam a sua tese e transcrevendo pequenos excertos desses depoimentos.
Contudo, a convicção formada pelo tribunal a quo foi sustentada no exame crítico, à luz das regras da experiência, de toda a prova produzida, não podendo ainda olvidar-se que, sendo esta, em regra, sujeita a livre apreciação, no caso, naquele exame teve um peso absolutamente determinante o produto das perícias médicas, ou seja, um elemento probatório vinculadamente avaliável.
Realmente, a decisão factual da primeira instância foi assente numa convicção adquirida, em grande medida, através da livre apreciação das provas. O que significa que essa convicção, objectivada numa fundamentação perfeitamente compreensível, uma vez que foi obtida com os benefícios da imediação e da oralidade e exprime a opção por uma das soluções consentidas pela razão e pelas regras de experiência comum, apenas poderia ser afastada se ficasse demonstrada a inadmissibilidade da sua formação, à luz das mesmas regras.
Por outro, na medida restante, na fonte de tal convicção, esteve o resultado do exame (vinculado) de pareceres periciais, elaborados de acordo como o determinado no art. 163º, n.º 1 do CPP, que estipula que «o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador», com a ressalva advinda do seu n.º 2 de que, «sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência» (26).
Como resulta expressamente da motivação da criticada decisão, quanto aos pontos da matéria de facto que versam sobre questões estritamente médicas, «o Tribunal não tendo naturalmente conhecimentos técnicos na área, fundamentou a sua convicção estritamente no teor das perícias médicas realizadas. Concretamente no que concerne ao ponto 12º, 68º, 76º, quanto a julgar-se como provado que o resultado das análises evidenciavam um processo inflamatório em curso; o ponto 16º, 27º, 32º, 61º, quanto ao Tramadol ser uma medicação forte e um opiáceo; o ponto 25º e 81º quanto a saber se à questão de os sinais aí referidos – abdómen generalizadamente doloroso à palpação profunda, noção de possível defesa e dor à descompressão e diminuição de ruídos hidro-aéreos- serem sinais sugestivos de peritonite; 37º quanto a saber que se os sinais aí relatados serem sinais de choque séptico e peritonite; 58º quanto a saber se o alívio com posição antálgica, dor abdominal recorrente e vómitos se compaginarem com a hipótese diagnóstica de úlcera duodenal da criança; 78º quanto a saber se a medicação aí elencada não tem qualquer efeito curativo a fundamentação assentou estritamente no teor das perícias médico-legais realizadas».
E aí se aditou:
«Assim, valorou o Tribunal o teor das perícias realizadas por J. D., Pediatra e Gastroenterologista Pediátrico, a fls. 210 e 211, e J. L., Médico, Presidente do ... de Pediatria da Ordem dos Médicos, a fls. 256 e 279; P. C., Presidente do ... da Especialidade de Cirurgia Geral da Ordem dos Médicos à conduta do arguido, a fls. 484 e esclarecimentos a fls. 609; E. N., Presidente da Direção do ... de Cirurgia da ordem dos Médicos, a fls. 203 e seguintes.
As perícias em causa, atento mérito, a isenção e imparcialidade dos Senhores Médicos que a realizaram merecem-nos total e absoluta credibilidade, pelo que não tem qualquer dúvida o Tribunal a, com base nelas, fundar a sua convicção.».
Acresce que, como flui da mesma motivação, a Sra. Juíza, no confronto entre as declarações dos arguidos ou os depoimentos das senhoras enfermeiras e os depoimentos dos assistentes, atribuiu maior credibilidade a estes últimos, pelas razões que deixou bem expressas ao longo da motivação, o que sucedeu nomeadamente quanto aos períodos de observação médica, ao alívio com posições antálgicas e às supostas massagens dadas pela assistente no menor.
Com efeito, a Sra. Juíza atribuiu credibilidade aos dados por essa via obtidos, pela explicação que deles fluiu e por lhes terem parecido lógicos e conformes com a realidade e as regras da experiência comum.
Do exame crítico das provas expresso na decisão censurada emerge o percurso trilhado para a formação da convicção sobre a aquisição da factualidade, em que, decisivamente, sobressai, a par da alusão aos depoimentos dos assistentes, a justificação para a valorização dos respectivos depoimentos.
Nesta conjuntura, a censura endereçada a uma tal convicção não pode ter sucesso se alicerçada apenas na diferente convicção dos recorrentes sobre a prova produzida e avaliada de modo parcial e/ou descontextualizado. Ora, não podemos deixar de assinalar que os recorrentes, apenas colocando em causa a convicção formada pelo Tribunal de 1ª instância, visam a realização de um novo julgamento da matéria de facto. Na verdade, a discordância dos recorrentes prende-se apenas com as razões dessa convicção, sendo certo que, em sede de avaliação da credibilidade dos depoimentos, a Julgadora teve a seu favor a relação de imediação, traduzida no contacto pessoal e directo com os diversos meios de prova.
Nos recursos pretender-se-ia demonstrar com os depoimentos testemunhais indicados, para além da inexistência de leucocitose, que uma úlcera duodenal não perfurada apenas poderia ser diagnosticada através da realização de endoscopia digestiva alta e que a perfuração apenas ocorreu na manhã do dia do decesso e, assim, colocar em causa (descredibilizar) a prova pericial mandada elaborar na fase de inquérito, por estar a mesma eivada de contradições e insuficiências e partir da premissa – insubsistente – de que o quadro de peritonite já estava instalado aquando da admissão do menor no Hospital e não ter problematizado a hipótese de a perfuração poder ter ocorrido em momento posterior ao da avaliação do recorrente J. M..
Os recorrentes, para concluírem que os factos, na sua maioria, não poderiam ter sido considerados provados, esteiam a sua argumentação na leitura que eles próprios fazem das suas declarações e dos depoimentos produzidos em audiência, desconsiderando os depoimentos prestados pelos assistentes e seus familiares e, principalmente, adversando o apoio tido nos exames periciais juntos aos autos e a que o Tribunal recorreu.
Aos recorrentes assistia, evidentemente, o direito de apresentar a versão que lhes aprouvesse e que tivessem por mais adequada à sua defesa. Porém, os mesmos limitaram-se a alegar a falta de credibilidade das declarações dos assistentes e o seu interesse directo no desfecho do processo, omitindo o seu próprio interesse na respectiva absolvição, sem apontar razões ou provas impositivas de uma decisão diversa da que foi tomada pelo tribunal nos segmentos aludidos. A argumentação desenvolvida nos recursos não permite concluir que tenha ocorrido uma incorrecta apreciação das provas pelo Tribunal, designadamente da pericial, de cuja decisão sobressai o respectivo convencimento quanto à demonstração dos factos naqueles questionados.
Ora, não é suficiente pretender o reexame da convicção alcançada pelo tribunal de 1ª instância apenas por via de argumentos que apontem para a possibilidade de uma outra convicção, antes seria necessário demonstrar que as provas indicadas impõem uma diversa convicção, ou, dito de outro modo, é indispensável a demonstração de que a convicção obtida pelo Tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, por violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais e de pareceres técnicos.
O que, obviamente, não lograram fazer.
Como tem vindo a referir o Tribunal Constitucional (27), «a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão».
Estando nós perante uma convicção cuja formação assentou na imediação e na oralidade, não podemos deixar de observar que às razões pelas quais se confere credibilidade a determinados elementos de prova – sejam declarações do arguido sejam depoimentos de testemunhas – subjazem componentes de racionalidade e da experiência comum, mas nelas também se intrometem factores de que o tribunal de recurso não dispõe.
Donde, resulta do teor da decisão impugnada que nela se procedeu a uma correcta e devida ponderação de todos os meios de prova produzidos: sendo lícito aos juízes, na formação da sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, utilizar a experiência da vida, inferindo de um facto conhecido outro ou outros factos desconhecidos, convencem sobejamente as explicações vertidas na decisão recorrida, norteada pela ideia de que a apreciação da prova, segundo o grau de confirmação que os enunciados de facto obtêm a partir dos elementos disponíveis, está vinculada a um conceito ou a um critério de probabilidade lógica preponderante e ao prevalecimento dos contributos corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum.
Na verdade, ressalta da decisão recorrida uma imagem lógica do que realmente aconteceu, sem que subsistam dúvidas de que os recorrentes, ainda que com assinaláveis nuances entre ambos, não observaram os deveres objectivos de cuidado que sobre si impendiam ao não terem procedido ao longo do internamento à avaliação etiológica da doença que acometia a criança, ressaltando à saciedade que a assistência médica que lhe foi prestada foi absolutamente deficitária, por aqueles terem desvalorizado os sinais, que o estado clínico da mesma fornecia, de um processo inflamatório com uma evolução de dias, como insofismavelmente é asseverado nos pareceres periciais invocados naquela decisão, pelo que a conjugação das condutas dos arguidos foi apta à produção do resultado que se veio a verificar e o dever de previsibilidade deste por parte dos arguidos, de acordo com as leis científico-naturais, está suficientemente objectivado no concreto circunstancialismo que contextualizou as respectivas condutas.
Assim, a Senhora Juíza fez um exame, uma observação atenciosa e cuidada, efectuando de modo crítico um juízo sobre a prova produzida, que permite compreender a opção pelos meios probatórios e os motivos pelos quais os elegeram em detrimento de outros.
E, não restando dúvidas da prática pelos arguidos dos factos assentes, consequentemente, também não merece tal censura a avaliação feita em 1ª instância da prova produzida em audiência. Na verdade, todos os aduzidos dados, conjugados entre si, analisados criticamente, segundo o indicado critério de probabilidade lógica prevalecente, facultam as ilações extraídas na decisão quanto à matéria em apreço, adquirida na sua globalidade e, portanto, também nos elementos trazidos aos autos através da prova incidente sobre os factos alegados pelos arguidos, como complemento e contextualização dos demais, sendo essa globalidade incompatível com o acolhimento do sentido por que pugnam os recorrentes quanto aos pontos referidos no recurso, como advém do muito já expendido anteriormente, ainda que na vertente dum exame a que se procedeu sob uma diversa vertente.
Assim, não se detecta qualquer patente irrazoabilidade na convicção probatória expressa pelos julgadores com imediação (28) e improcede, pois, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
4. O enquadramento jurídico dos factos.
Começamos por recopilar os elementos factuais colhidos nos autos, acompanhados de uma síntese conclusiva (sendo os realces da nossa responsabilidade):
No dia 20-08-2010 (6ª-feira), o D. P., então com 13 anos de idade, depois de ter sido assistido numa clínica da Galiza, foi admitido, pelas 18h28m desse dia, no serviço de urgência do hospital de X, ficando aí registado que o menor se queixava de «dor abdominal e vómitos desde há cerca de 3 dias» e apresentava-se «[m]uito queixoso, contorcendo-se com dores abdominais … [a]bdómen mole, depressível, doloroso generalizadamente à palpação profunda», quando aífoi atendido pelo arguido R. M., médico pediatra, que procedeu ao seu exame através de apalpação em toda a zona do abdómen, durante a qual o menor se queixava, contorcendo-se todo.
Por indicação do arguido, foi ministrado ao D. P. um supositório de “Paracetamol” de 1gr., mas, passada cerca de 1h30m, ele voltou a queixar-se de dores abdominais e, nessa altura, o mesmo arguido medicou-o com o opiáceo “Tramadol” (50mg EV), um potente analgésico, e soro 210 Ev e determinou que se procedesse também a uma colheita de sangue para análise.
Apesar de ter melhorado bastante com a toma do opiáceo, o D. P. manteve-se queixoso e cerca de 30 minutos após teve um vómito e nunca deixou de ter dores, embora menos intensas enquanto durava o efeito da medicação, após o qual voltava a queixar-se de fortes dores.
Apesar de o resultado das análises realizadas, nomeadamente o referente a uma leucocitose (13200/mm3), indiciar um processo inflamatório em actividade, o mesmo foi interpretado pelo arguido R. M. com o seguinte registo: «Análises (em Anexo) não mostraram alterações significativas, excepto ligeira leucocitose».
O mesmo arguido decidiu-se pelo internamento da criança naquela unidade hospitalar, concretizado pelas 23h35m desse dia 20, com o diagnóstico de «dor abdominal, generalizada, em investigação», tendo prescrito fluidoterapia endovenosa, paracetamol e tramadol, em caso de dores, mas não solicitou outros meios de diagnóstico nem procedeu a qualquer investigação etiológica adicional, apesar de ter registado ser essa uma finalidade do internamento. Também prescreveu “Diazepam” (benzodiazepina), produto que alivia a ansiedade e os espasmos musculares.
Durante essa noite, o D. P. manteve-se muito tempo com as pernas elevadas sobre os ombros da sua mãe, posição em que se sentia mais aliviado das dores que sentia, o que o arguido R. M. presenciou.
No dia seguinte (21-Sábado), o D. P., que manteve episódios de dores abdominais, tomou paracetamol à tarde e, após o jantar, voltaram as dores abdominais intensas, com sudorese, apresentando, pelas 23h, os músculos completamente rígidos e com muitas dores, altura em que o arguido R. M., contactado telefonicamente pela equipa de enfermagem, oralmente, deu indicação para ser feito analgésico, tendo-lhe sido então ministrado o referido opiáceo, após o que, pelas 23h34, se registou no sistema «dor intensa a nível abdominal (8) (…) Fez analgésico».
Apenas pelas 0h do dia 22 o arguido fez a observação do D. P. na enfermaria, da qual registou: «abdómen não distendido, mas doloroso à palpação profunda generalizadamente. Defesa? Dor à descompressão? Ausculto poucos ruídos hidro-aéreos».
Após o exame, o arguido R. M. contactou o arguido J. M., médico-cirurgião, que, tendo comparecido pelas 0h30m, após exame mediante palpação do menor, sem recolher a história clínica completa deste e sem se socorrer de outros estudos ou meios de diagnóstico, foi de parecer que nada havia de cirúrgico e que lhe dessem chá, não tendo tido, nesse circunstancialismo, diálogo com o doente e a mãe e nem ele nem o co-arguido forneceram qualquer esclarecimento ou informação terapêutica acerca do estado do D. P.. O registo dessa observação foi feito pelas 0h40m pelo arguido R. M., que para tanto se disponibilizou, não pelo arguido J. M., e dele ficou a constar, para além do abdómen generalizadamente doloroso à palpação profunda, noção de possível defesa e dor à descompressão e diminuição dos ruídos hidro-aéreos à auscultação, sinais sugestivos de peritonite que o arguido J. M. também não valorizou.
Durante o referido exame, a criança não se encontrava com o quadro de dor que motivara a administração do opiáceo, encontrava-se deitada, sem dificuldade respiratória, calma e consciente, não chorava, nem berrava e, pelas 0h49, consignou-se que o nível de dor do D. P. era apenas de 2 (0-10), que o mesmo terminara analgésico e estava então adormecido.
Após esse exame, o D. P. foi medicado só com o referido opiáceo para controlo da sintomatologia dolorosa, mas durante a noite e a madrugada desse dia 22, sentiu dores abdominais intensas, queixando-se reiteradamente. Apenas pelas 7h59m da manhã, altura em que o D. P. registava dor abdominal de grau 8, foi-lhe ministrada, novamente, a medicação para as dores (“Paracetamol”), e foi-lhe dado chá mas, após ter ingerido 4 colheradas, teve um vómito acastanhado.
Pelas 11h30m, o D. P. ficou com má perfusão, frio, cianosado, com queixas de dores abdominais intensas, e pelas 12h15 com sudorese intensa e com sinais de má perfusão periférica, tendo-se monitorizado sinais vitais. Pelas 12h32m, após a agravação do quadro clínico, o arguido R. M. foi chamado para reavaliação do D. P., sob pressão dos progenitores deste, que, nessa altura, já se apresentava prostrado e com sinais claros de choque séptico de infecção generalizada, de muito provável peritonite, designadamente, o abdómen muito inchado, os lábios roxos, suores no maxilar inferior e a testa muito gelada, evidente dor abdominal intensa à descompressão em todos os quadrantes, extremidades frias e cianosadas, suor (dessaturação de 02), ausência de ruídos adventícios, com temperatura rectal de 38,8cº (após ter feito paracetamol).
Só então o arguido R. M. teve consciência da real gravidade da situação. Na sequência, contactou o médico-cirurgião de serviço naquela unidade hospitalar, J. C., que procedeu à observação da criança (apalpação abdominal) e, consequentemente, pediu a realização de novas análises e de uma TAC abdominal, que foi realizada pelas 12h55m, tendo sido também feitas novas análises. Foi diagnosticada uma peritonite e, durante o período a que foi sujeito a tais exames, o D. P. estava a ficar com manchas roxas nas pernas e já não tinha praticamente qualquer reação, devido ao seu estado de debilidade.
O arguido R. M., após conversa informal com o anestesista de serviço, que lhe transmitiu que, por não haver cuidados intensivos, o menor não podia ser operado naquele hospital, decidiu transferi-lo para serviço de Cirurgia Pediátrica o Hospital de ... no Porto, por abcesso apendicular com peritonite generalizada, sem colher qualquer parecer formal das equipas de cirurgia e de anestesia, nem recorrer ao chefe de equipa. Às 18.51h desse dia 22 consignou-se o seguinte registo feito à posteriori: «Após realização de TAC abdominal e de acordo com opinião da anestesia (Dr F. M.), a criança não teria condições de ser operada neste hospital e deveria ser transferida para um Hospital Central».”
Apenas pelas 16h desse dia 22 se iniciou o transporte de ambulância do D. P., acompanhado por uma enfermeira e pelo arguido R. M., mas, durante o percurso, a ambulância seguiu, a assinalar marcha de urgência, em direção ao Centro Hospitalar de ..., em cujo serviço de urgência o D. P. foi admitido pelas 16h46m, depois de pelas 16h40m se ter verificado já o seu óbito.
Assim, sem desconsiderar que, desde há cerca de 3/4 anos, o D. P., recorrentemente, apresentava sintomatologia de dores abdominais e vómitos e que o mesmo sofria de úlcera péptica, relativamente rara nos adolescentes, e que a perfuração de úlcera péptica é uma situação rara nesta faixa etária, o certo é que, apesar do supra descrito, o arguido R. M. manteve o D. P. sem qualquer avaliação médica entre as 23h37m do dia 20 e as 0h40m da madrugada de 22 (mais de 24h), bem como nas 12h seguintes (até às 12h32m), e não solicitou outros meios de diagnóstico (nomeadamente imagiológicos) nem procedeu a qualquer outra espécie de investigação etiológica sobre os sinais do processo inflamatório em actividade, fornecidos designadamente pela persistência do quadro doloroso com uma evolução de vários dias e pelos valores analíticos suspeitos. Apenas se limitou, não obstante tais sinais, a prescrever ao D. P. a aludida medicação, inócua para erradicar as causas do processo inflamatório, mas que, sendo fortemente analgésica, minorava as dores, assim mascarando ou atenuando os sintomas que poderiam ter sustentado um correcto diagnóstico da doença.
Por sua vez, também o arguido J. M. se quedou pelo mencionado exame perfunctório – a palpação do abdómen –, num circunstancialismo em que as reacções do D. P. à manipulação a que o mesmo procedia estavam, por certo, fortemente limitadas, por estar submetido ao intenso efeito analgésico do opiáceo tomado cerca de uma hora antes (entre as 23h e as 23h34). Uma vez que nem sequer encetou qualquer diálogo com o doente e a mãe, o arguido, segundo tudo indica, satisfez-se com a informação – inquinada, como se viu – fornecida pelo pediatra e seu co-arguido, designadamente com a referência de que não encontrava qualquer evidência de quadro cirúrgico/abdómen agudo.
Por isso, este arguido não teve o elementar cuidado de se inteirar, complementarmente, sobre a medicação que fora ministrada ao D. P. e sobre os indicadores do processo inflamatório em actividade, assinalados, não apenas pelo resultado das análises, mas também pelas intensas e prolongadas (com vários dias) dores que afectavam a criança, sobretudo nos períodos em que se mitigava a eficácia dos analgésicos ministrados. É patente que a superficialidade da abordagem feita por este arguido, cujo resultado nem sequer averbou nos registos clínicos, se deveu a ter o mesmo desconsiderado – erradamente, como é manifesto – o real estado clínico do D. P., designadamente não tendo averiguado que este estava sujeita a uma dor abdominal severa com muito mais de 6 horas e, por isso, sugestiva de patologia cirúrgica e daí que, não obstante, em particular, o sinal também sugestivo de peritonite fornecido pela diminuição dos ruídos hidro-aéreos à auscultação, se tenha limitado, displicentemente, a aconselhar a ingestão de chá, mas não qualquer outra avaliação médica ou investigação etiológica e tenha ficado convencido, após a realização da sua observação, de que o doente tinha tido apenas mais uma crise de dor e que não se tratava de caso cirúrgico.
Afinal, no caso, sendo de esperar do envolvimento das duas respectivas especialidades (pediatria e cirurgia) que fossem exponenciadas as virtualidades do contributo de ambos os arguidos, médicos especialistas experientes, empregando, em equipa e conjugadamente, as suas ciências para a obtenção de um diagnóstico correcto e a cura do doente, esse factor apenas potenciou a diluição da atenção dos mesmos aos sinais clínicos e a alienação de todas as possibilidades, de que os mesmos dispunham, oferecidas pelo conhecimento científico actual e exibidas nos pareceres periciais juntos aos autos, donde se conclui que o desrespeito pelas leges artis e a falta de diligência de ambos os arguidos confluiu no resultado calamitoso alcançado.
Ora, segundo entendemos, a decisão impugnada analisou a factualidade relevante sobre esta matéria de um modo que, no essencial, é pertinente e, nessa medida, aderimos à respectiva fundamentação para evitar reprodução inútil.
Não obstante e prendendo-nos, apenas, ao que se nos afigura ser o núcleo central da questão da punibilidade da ofensa cometida por negligência à vida do D. P. e da responsabilidade dos arguidos pela morte dessa pessoa, salientaremos na nossa pronúncia umas breves ponderações complementares.
Dispõe o art. 137º (homicídio por negligência) do C. Penal que «[q]uem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa», sendo-o com pena de prisão até 5 anos em caso de “negligência grosseira”.
Estamos perante um tipo especial de punibilidade da ofensa cometida por negligência à vida de uma pessoa. Trata-se de um crime que pressupõe a produção do resultado concretizado na violação do bem jurídico por ele protegido (a vida humana), como consequência da actuação negligente do agente – o incumprimento de um dever objectivo de cuidado) –, que, verdadeiramente, constitui o elemento distintivo do ilícito típico, configurado no art. 15º do mesmo código pelo seguinte modo:
«Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto».
Portanto, a verificação de tal ilícito exige: (i) a violação do dever objectivo de cuidado, que passa pela previsibilidade objectiva do perigo para determinado bem jurídico e pela não observância do cuidado objectivamente adequado a impedir a ocorrência do resultado típico; (ii) a imputação objectiva do resultado típico (“desvalor de resultado”) à acção violadora do dever objectivo de cuidado (“desvalor de acção”), a qual implica o nexo causal efectivo e a conexão típica; (iii) o elemento subjectivo, com representação ou não da possibilidade de resultado; (iv) e a previsibilidade subjectiva do perigo e a possibilidade de o agente ter cumprido o dever objectivo de cuidado por ter representado ou pelo menos tido a possibilidade de representar os riscos da conduta que pratica (a “culpa negligente”) (29).
Ou seja, a par da imputação objectiva do resultado, i. é, que se possa concluir pela sua previsibilidade objectiva, impõe-se, no plano subjectivo, de harmonia com o disposto naquele artigo 15º, que o agente, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, actue sem se conformar com a realização do facto que preenche um tipo de crime, tanto quando represente essa realização como possível (negligência consciente), como quando não chegue sequer a representar a possibilidade de realização desse facto (negligência inconsciente). E, nos termos do art. 10º C. Penal, também se exige um nexo de causalidade adequada entre a omissão do dever de cuidado e a verificação do resultado típico e que a realização deste seja objectivamente evitável.
Aos arguidos vem assacada a negligência “grosseira”.
Na falta de específica definição legal, vem sendo entendido que o aludido conceito penal «implica uma especial intensificação da negligência não só ao nível da culpa, mas também do ilícito: a nível do tipo de ilícito torna-se indispensável que se esteja perante um comportamento particularmente perigoso e um resultado de verificação altamente provável à luz da conduta adoptada – sendo que também o tipo de culpa resulta, nestes casos, inevitavelmente aumentado, tendo de alcançar-se a prova autónoma de que o agente revelou no facto uma atitude particularmente censurável de leviandade ou descuido perante o comando jurídico-penal, plasmando nele qualidades particularmente censuráveis de irresponsabilidade e insensatez» (30).
«Assumido que a discussão sobre a circunstância de a distinção entre negligência consciente e inconsciente revela um significado político-criminal e dogmático de grande relevo é um dado adquirido que a negligência grosseira representa, relativamente à consciente, uma forma mais grave (e que, por conseguinte, deve ser mais intensamente punida). Na verdade, à diferente intensidade da negligência que reside na representação, ou não representação, do facto acresce um grau essencialmente aumentado ou intensificado de negligência.» (31)
Conclui-se, assim, pela importância, em termos de medida da pena, dessa qualificação da negligência, mas a mesma apenas é configurável na conduta do agente que corresponda a uma falta grave e indesculpável, a uma particularmente censurável leviandade na omissão de deveres de cuidado, que só uma pessoa especialmente negligente e incauta deixaria de observar, revelando a sua indiferença ou desprezo pelo bem jurídico protegido e daí o especial desvalor da conduta que passa, necessariamente, pela consciência da sua potencialidade para gerar o perigo quase certo da lesão.
Ainda que, no plano das valorações jurídico-penais, não seja concebível, em abstracto, um tratamento diferenciado para qualquer comportamento negligente que lese a vida de outra pessoa, no caso, a avaliação dos elementos sobre a negligência imputada aos arguidos não pode deixar de atender à especificidade dos actos médicos – porque é disso que aqui se trata –, bem como a de todo o circunstancialismo que enquadra as condutas de quem os pratica e das diversas actividades em que os mesmos se desdobram: a prevenção, o diagnóstico e prognóstico e o tratamento.
Assim, desde logo, facilmente se compreende que:
Nessa avaliação, não se mostra curial adoptar critérios apriorísticos em função da mera categorização do tipo de actividade médica, mas sim centrá-la, de forma casuística, no contexto e contornos de cada situação.
De um modo geral, o resultado correspondente ao fim visado pela prestação do acto médico reconduz-se a uma obrigação de meios dirigida ao tratamento adequado da patologia em causa mediante a observância diligente e cuidadosa das regras da ciência e da arte médicas (leges artis) e não a uma obrigação de resultado, no sentido de garantir a cura do paciente.
Contudo, relativamente a um médico, vinculado a uma obrigação geral de prudência e de diligência e a empregar a sua ciência para a obtenção da cura do doente, esta obrigação de meios implica o dever de esgotar todas as possibilidades oferecidas pelo conhecimento científico actual, designadamente para fazer um diagnóstico correcto, pois dele se espera «uma atenta análise dos sintomas reveladas pelo doente», «de acordo com as regras técnicas actualizadas da ciência médica», «um comportamento particularmente diligente, que possibilite o correcto diagnóstico, permitindo, com isso, a adopção da terapia mais idónea, mas ficando exonerado de responsabilidade se o cumprimento requerer uma diligência maior, e liberando-se com a impossibilidade objectiva ou subjectiva que lhe não sejam imputáveis» (32).
Mas, por outro lado, não comporta um desvalor jurídico-penalmente relevante todo e qualquer resultado clinicamente “falhado”, reputado de “erro médico” pela Medicina – que actua no interesse da saúde do doente ou, pelo menos, para suavizar os seus sofrimentos. A alçada do Direito Penal queda-se pelo “erro” que concretize uma indesculpável violação de um dever de cuidado de conteúdo específico e incisivo, aferido pelas “leges artis”, entendidas estas como o conjunto de regras da arte médica conformadas pelo estado actual da ciência e dos procedimentos médicos que, razoavelmente, são exigíveis ao profissional, porque estabelecidos, por exemplo, por protocolos de diagnóstico, de terapêutica e/ou de execução ou de procedimento técnicos (33).
É por isso que a prova pericial, neste âmbito da negligência médica, assume uma particular e determinante importância para aferir da concretização da violação do dever de cuidado. Os pareceres disponibilizados pelo Conselho Médico-Legal ou pelos Colégios da Especialidade da Ordem dos Médicos são essenciais na determinação da causa do resultado e na violação dos deveres de cuidado. «Porém, não habilitam uma reconstrução total do facto que permita, para além da dúvida razoável, uma condenação justa do médico arguido com fundamento em violação de dever de cuidado. A contextualização e a circunstancialidade do acto médico são fundamentais à valoração global da conduta médica, não sendo, igualmente, indiferente o momento em que é praticado (diagnóstico ou terapêutico)» (34).
Não se estranha, pois, que, na averiguação feita na decisão recorrida aos elementos sobre a negligência imputada aos arguidos, se tenha dedicado especial atenção ao teor dos pareceres juntos aos autos, bem como à contextualização e circunstancialismo da visada actuação médica que neles são pressupostos.
À luz de tudo o exposto, entendemos que a descrita actuação negligente dos arguidos causou adequadamente a morte do D. P., preenchendo integralmente a tipicidade do ilícito previsto no art. 137º do C. Penal.
Contudo, no que concerne à qualificação (“grosseira”) dessa negligência, assacada a ambos os arguidos, divergimos parcialmente da decisão recorrida por considerarmos que da factualidade assente apenas sobressaem elementos para poder, sem margem para dúvidas, como neste domínio se impõe, firmar um tal juízo em relação ao arguido R. M..
Como se evidenciou, à luz da conduta particularmente perigosa adoptada por este arguido, revelando qualidades particularmente censuráveis de irresponsabilidade e insensatez pela persistente leviandade e descuido perante o estado clínico e o bem jurídico vida (do D. P.), a lesão deste deveria ter-se como um resultado de verificação altamente provável, do que decorre, inevitavelmente, uma especial intensificação da negligência do arguido.
Já quanto ao arguido J. M., a referenciada omissão do elementar cuidado na superficial abordagem por ele efectuada ao processo inflamatório de que padecia o D. P. integra o analisado conceito de negligência, como concluímos, uma vez que não cuidou de ponderar os efeitos no resultado do exame objectivo que realizou da medicação que fora ministrada ao doente, nem de colher a história clínica completa junto deste e dos seus acompanhantes ou de resultados analíticos, bem como nem sequer admitiu a necessidade de uma reavaliação clínica ou qualquer estudo imagiológico.
Mas não é suficiente para alcandorar essa negligência à qualificação de “grosseira”. O arguido J. M. agiu mal, mas não a tal ponto, como, aliás, denuncia a parcial divergência dos pareceres emitidos pelos Presidentes do ... da Especialidade de Cirurgia Geral da Ordem dos Médicos, Dr. P. C. (cf. fls. 484 e 609) e Dr. E. N. (cf. fls.), este último a enfatizar a dificuldade do diagnóstico, a raridade da situação clínica e o relativo mascaramento pela medicação do quadro clínico, factores a que já aludimos: face ao enunciado circunstancialismo que a contextualizou, não consideramos essa pontual intervenção do arguido como devendo configurar uma conduta que corresponda a uma particularmente censurável leviandade na omissão de deveres de cuidado, que só uma pessoa especialmente negligente e incauta deixaria de observar, revelando a sua indiferença ou desprezo pelo bem jurídico protegido.
Por conseguinte, (apenas) procede o recurso do arguido J. M., nesta vertente.
5.A medida das penas e sua substituição.
O Ministério Público também manifestou o seu inconformismo quanto à medida das penas aplicadas, pugnando pela condenação dos arguidos R. M. e J. M. em penas de prisão efectiva e nos patamares de quatro e três anos, respectivamente, e, se assim não se entender, pela subordinação da suspensão da execução das penas à entrega, no período de suspensão, das quantias de € 20.000 e € 15.000, também respectivamente, aos pais do D. P. ou, se assim não se entender, ao lar de crianças e jovens “Patronato de (...)”, sito em Vilar de (...), X.
Por sua vez, neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto apenas secundou o recurso quanto à subordinação da suspensão à entrega de uma quantia monetária a uma instituição de protecção de crianças e jovens na zona onde os factos ocorreram.
Vejamos.
Os arguidos R. M. e J. M. incorreram na prática de um crime de homicídio por negligência p. e p. pelo art. 137º do C. Penal, sendo o primeiro com negligência grosseira, com os seus comportamentos em apreço nos autos e que, por isso, são abstractamente puníveis, respectivamente, com pena de prisão até 5 anos e com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
A Sra. Juíza, para a determinação da medida concreta da pena em três e em um ano de prisão, em relação aos arguidos R. M. e J. M., respectivamente, atendeu ao disposto no art. 40º do C. Penal, que estabelece que a aplicação de penas ou medidas de segurança tem como finalidade a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. E aos parâmetros estabelecidos pelo n.º 1, do art. 71º, do C. Penal, segundo os quais a medida da pena é determinada, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, conforme prescreve o art. 40º, n.º 2, do mesmo Código, bem como às circunstâncias de facto, que deponham a favor ou contra o agente, nomeadamente ao grau de ilicitude, e a outros factores ligados à execução do crime, à intensidade do dolo, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e aos fins e motivos que o determinaram, às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior ao crime (art. 71º, n.º 2, do C. Penal).
Realmente, a finalidade essencial da aplicação da pena, para além da prevenção especial – encarada como a necessidade de socialização do agente, no sentido de o preparar para no futuro não cometer outros crimes – reside na prevenção geral, o que significa «que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto … alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada...». «É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que justifica que se fale aqui de uma “moldura” de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade. Mas, abaixo desta medida de pena, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas – até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral; definido, pois, em concreto, pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica» (35). «Resta acrescentar que, também aqui, é chamada a intervir a culpa a desempenhar o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas...» (36). «Sendo a pena efectivamente medida pela prevenção geral, ela deve respeitar o limite da culpa e, assim, preservar a dignidade humana do condenado» (37).
Em suma, a pena concreta será limitada, no seu máximo, pela culpa do arguido. O princípio da culpa dispõe que «não há pena sem culpa e a medida da pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa».
Ora, é relativamente acentuada a gravidade objectiva das condutas dos arguidos, particularmente a do arguido R. M., pois que com as mesmas atingiram o valor fundamental vida, produzindo o falecimento de uma criança de 13 anos, pelo que a validade da norma violada deve ser convenientemente sublinhada.
Há, ainda, a considerar, por outro lado, a boa inserção socioprofissional dos arguidos.
O arguido R. M. tem mais de 28 anos de exercício da medicina, sempre na especialidade de pediatria.
O arguido J. M. nunca foi anteriormente acusado ou julgado por qualquer ilícito criminal. Licenciado em medicina e cirurgia em 1975, é médico cirurgião-geral desde 3/7/1985, foi docente de enfermagem cirúrgica, formador do internato de cirurgia geral, integrou vários júris de exame de cirurgia, foi director de serviço de urgência e do bloco operatório, adjunto da direcção e exerceu medicina em regime de exclusividade em vários hospitais públicos. À data dos factos, mantinha a atividade de cirurgião geral há mais de 25 anos, em atividade hospitalar ininterrupta, imaculada e muito intensa, e, fruto do seu exercício, granjeou uma experiência cirúrgica assinalável e a reputação, no meio hospitalar, de muito competente, assíduo e dedicado. Encontra-se aposentado, já não exerce medicina há 3 anos e não voltará a exercer, dedicando parte do seu tempo à agricultura e à pintura.
Ora, tendo o Tribunal recorrido beneficiado da imediação e oralidade, a intervenção deste Tribunal, no âmbito do recurso, na cognoscibilidade da concretização do quantum das penas e no controlo da sua proporcionalidade tem de ser autolimitada e necessariamente parcimoniosa: ainda que o cumprimento do dever de fundamentação da determinação concreta da pena pelo tribunal recorrido vise, precisamente, facultar o controlo dessa determinação, uma vez que nesta sejam observados os apontados critérios da sua dosimetria, há uma margem de actuação do julgador que não deve ser fiscalizada.
Como se defende no Acórdão do STJ de 12-07-2018 (38), pode sindicar-se a decisão, quer quanto à desconsideração ou errada aplicação pelo tribunal dos princípios gerais de determinação da medida da pena, à correcção das operações nela efectuadas, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação dos factores relevantes, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como à forma de actuação dos fins das penas no quadro de prevenção. Mas já não a determinação do quantum exacto da pena que se cinja àqueles parâmetros, ressalvados os casos de patente violação das regras da experiência ou de desproporção dessa quantificação.
O recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do acto de julgar, como também já se sustentou no acórdão da RE de 22/04/2014 (39): «A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na detecção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exacto de pena que, decorrendo duma correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada.».
Assim sendo, este Tribunal de recurso apenas deve intervir na medida das penas, modificando-as, se detectar incorrecções ou distorções no seu processo de aplicação, na interpretação e aplicação das normas constitucionais e legais que a regem, como já se acentuou. Ora, o Tribunal recorrido observou correctamente todos os parâmetros estabelecidos na lei e não se detecta qualquer distorção na determinação da medida das penas, com a apontada ressalva da pena de um ano de prisão imposta ao arguido J. M., que assentou no pressuposto de que a sua conduta seria punível com pena de prisão até 5 anos, o qual afastámos, pelas razões expendidas.
Na verdade, sopesando todos os enunciados factos e considerações, em especial as atinentes à necessidade da pena e, sobretudo, à intensidade da culpa, mostra-se que a pena de prisão de três anos aplicada pelo Tribunal de 1ª instância ao arguido R. M. é a adequada a satisfazer as sentidas necessidades de afirmação dos bens jurídicos violados, bem como a de estimular o arguido, como tudo indica que fará, a não voltar a infringir normas jurídico-penais. E o mesmo juízo de adequação se emitiria relativamente à pena de um ano de prisão imposta ao arguido J. M. se não falecesse o aludido pressuposto.
No caso deste último arguido, a já acentuada gravidade objectiva da sua conduta não aconselha a opção pela pena de multa, que a lei, em abstracto, facultaria. Todavia, dentro da moldura de uma pena de prisão até 3 anos, sua concreta fixação em dez meses cumpre suficientemente as mencionadas necessidades em presença.
O recorrente (MP) também não se resignou com a suspensão da execução da pena de prisão, o que nos insta a averiguar se o sentido pedagógico e ressocializador ínsito ao direito penal apenas se atinge, neste caso, com a rejeição da substituição por que o mesmo pugna.
A opção pela concessão ou pela denegação da suspensão, ora em análise, reconduz-se ao exercício de um poder-dever, de um poder vinculado, sempre sujeito a uma devida, criteriosa e especificada fundamentação, tal como o Supremo Tribunal de Justiça vem entendendo, reiteradamente. Também Maia Gonçalves sustenta (40): «Trata-se de um poder-dever, ou seja de um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização das finalidades da punição, sempre que se verifiquem os apontados pressupostos».
Por outro lado, as finalidades da punição prosseguidas pela substituição em causa são, não propriamente de ordem retributiva, mas, essencialmente, de prevenção especial – visando a reintegração do agente na sociedade (41) – e de prevenção geral – para protecção dos bens jurídicos violados, reafirmando a crença da comunidade na sua validade (42).
Ora, a especificação feita pelo Tribunal recorrido dos concretos fundamentos por que procedeu a tal substituição demonstra o inteiro acerto da opção tomada e não vemos que o arrazoado recursivo forneça argumentos que convençam de que aquelas finalidades só seriam cabalmente atingidas com o cumprimento efectivo da prisão.
Realmente, nenhum dos dados fornecidos pelo processo sustenta um juízo de prognose de ressocialização desfavorável aos arguidos, sendo que, como se sabe, a execução da pena de prisão aplicada deve ser suspensa se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste o tribunal concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, constituindo a reclusão a última ratio da política criminal.
O que significa que apenas deve negar-se a possibilidade de suspensão se os factos provados justificarem sérias dúvidas sobre a capacidade do condenado para compreender a oportunidade de reinserção que a sociedade lhe oferece, ou seja, se o juiz não estiver convicto desse prognóstico (favorável) (43).
Perante os elementos disponíveis nos autos, não é, claramente, o que sucede na situação em apreço: não estamos, sequer, perante um non liquet quanto ao vaticínio sobre ressocialização dos arguidos e a sua fidelização ao direito.
Contudo, no caso específico (apenas) do arguido R. M., cuja conduta atingiu mais exacerbadamente o bem jurídico protegido, entendemos que as finalidades de prevenção geral da punição exigem, para que a crença da comunidade na validade da norma incriminadora não seja abalada, que a substituição da pena de prisão que lhe foi imposta seja subordinada à condição proposta pelo recorrente: a entrega, no prazo de um ano, da quantia de € 20.000, não aos pais do D. P. (para evitar o eventual risco de duplicação), mas a uma instituição de protecção de crianças e jovens da área territorial do Tribunal, incidentalmente designada pela Titular do processo em sede de cumprimento da pena.
Portanto, na estrita medida do exposto, procede o recurso do Ministério Público.
*
IV. Decisão:
Nos termos expostos, acorda-se em julgar o recurso interposto pelo arguido R. M. improcedente e os interpostos pelo Ministério Público e pelo arguido J. M. parcialmente procedentes e, por consequência, em:
a) condenar o arguido R. M., como autor, com negligência grosseira, de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo artigo 137.º, n.ºs 1 e 2, do C. Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo, sob a condição de o mesmo demonstrar, no prazo de um ano, a entrega da quantia de € 20.000 (vinte mil euros) à instituição de protecção de crianças e jovens da área territorial do Tribunal que a respectiva Titular designar nos termos supra indicados;
b) condenar o arguido J. M., como autor de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 1, do C. Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano;
c) manter a decisão recorrida, no demais;
d) condenar o recorrente R. M. nas custas, fixando-se a taxa de justiça devida em cinco unidades de conta (art. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, art. 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma).
Guimarães,11/06/2019
Ausenda Gonçalves
Maria José Matos
1 Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, p. 261.
2 In Curso de Processo Penal, II, 3ª Edição, 2002, Verbo, pág. 197.
3 cfr. art. 379º, nºs 1, al) a) e 2: «É nula a sentença que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º».
4 Cfr. art. 97º nº 5 do CPP.
5 Segundo o Ac. do STJ de 17-09-2014 (1015/07.3PULSB.L4.S1 - Armindo Monteiro), a «A fundamentação das sentenças judiciais é a forma que o legislador se serve para a sua explicação aos sujeitos processuais e aos cidadãos: através dela o julgador presta conta a ambos, proclama as razões de facto e de direito, por que optou por certa solução, ao fixar os factos e ao assentar neles o direito». Também Perfecto Ibañez, no estudo “Sobre a formação racional da convicção judicial”, publicado na Revista do CEJ, 1.º semestre, 2008, p. 167, citado no Ac. do STJ de 8-01-2014 (7/10.0TELSB.L1.S1 - Armindo Monteiro), considera que «motivar uma decisão é justificar a decisão por que se optou para que possa ser controlada tanto pelos seus destinatários directos como pelos demais cidadãos, apresentar de forma inteligível, lógica, coerente e racional, o “iter“ seguido no tratamento valorativo da prova». No mesmo sentido salienta Germano Marques da Silva, In Curso de Processo Penal, III Vol, pág. 289, «As decisões judiciais, com efeito, não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz».
6 Cfr. também acórdãos do STJ de 11-07-2007 (07P1416) e 29-03-2006 (06P478), ambos relatados por Armindo Monteiro) e de 16-03-2005 (05P662) relatado por Henriques Gaspar.
7 A óbvia vinculação dessa liberdade às regras fundamentais de um estado-de-direito democrático, sobretudo as vertidas na lei fundamental e na do processo penal, não obsta à busca da verdade material. Por ser condição da realização da justiça e da sua própria subsistência, não pode a concretização dessa tarefa, embora exercida com exigência e rigor, tropeçar em exagero ou comodismos, travestidos de juízos matematicamente infalíveis ou de argumentos especulativos e transcendentes, sob pena de essencialmente deixar de o ser e de o julgamento passar à margem da verdadeira, fundamental e íntima convicção dos juízes, com o risco indesejável de, assim, o tribunal abdicar da sua soberana função de julgar em nome da comunidade (cfr. Ac. STJ de 15/6/2000, in CJ(S), 2º/228, sobre a questão da livre convicção).
Mas, ainda a propósito da livre apreciação da prova, convém lembrar o que refere o Prof. F. Dias: «(…) o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida». E acrescenta que tal discricionaridade tem limites inultrapassáveis: «a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» – , de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo». E continua: «a «livre» ou «íntima» convicção do juiz ... não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável». Embora não se busque o conhecimento ou apreensão absolutos de um acontecimento, nem por isso o caminho há-de ser o da pura convicção subjectiva. E «Se a verdade que se procura é...uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença (maxime da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v. g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais – mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impôr-se aos outros». E conclui: «Uma tal convicção existirá quando e só quando ... o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável», isto é, «quando o tribunal ... tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse» - Direito Proc. Penal, 1º. Vol., pp. 203/205.
8 Sumário do Ac. do STJ de 3-10-2007 (07P1779 - Henriques Gaspar).
9 Sumário do já citado Ac. do STJ de 8-01-2014, em cujo texto se acrescenta: «(…) a exigência de um exame crítico, não definido por lei, das provas que serviram para formar a convicção probatória, de valoração livre, porém racional, à margem do capricho do julgador, mas objectivada e apoiada num processo lógico que inteligência o material recolhido, atentando nas regras da lógica, da experiência comum, ou seja daquilo que comummente sucede, e que, como ser socialmente integrado, aquele deve ter presente, sopesando a valia das provas e opondo – lhe o seu desvalor, face ao que fará a opção final, (…), para não se quedar a um estádio puramente subjectivo, pessoal, emocional, imotivável, tutelado pelo arbítrio, mas antes evidencie o processo lógico-racional proporcionando fácil compreensão aos destinatários directos e à comunidade de cidadãos, que espera dos tribunais decisões credíveis, desde que justas, concorrendo ainda para a celeridade processual na decisão, desse modo fornecida aos tribunais de recurso. E nesse sentido se pronunciam, além do mais, Rosa Vieira Neves, in Livre Apreciação da Prova e Obrigação de Fundamentação, Coimbra Ed., 2011, 151 e segs, elucidativos, entre tantos, os Acs deste STJ, 23.2.2011 e de 7.4.2010, P.º n.º 3621.7.6TBLRA.O exame crítico funciona como limite ao princípio da livre convicção probatória que emerge da oralidade e acautela a discricionariedade do julgador, legitimando o poder judicial, acautelando os interesses a prosseguir em processo penal, tão indispensável como ar que se respira, na expressão do Prof. Alberto dos Reis; IV, 566 e segs, na esteira de Chiovenda.».
10 Publicado no DR. 2ª Série de 13 de Novembro de 1998.
11 Neste sentido, Ac. da R.L. de 18/01/2011, proc. 1670/07.4TAFUN-A.L1-5, Ac. da R.E. de 06/11/2012, proc. 220/09.2GAGLG.E1, Ac. da R.G. de 08/02/2016, proc. 285/13.2TAMDL.G1.
12 A expressão «questões», de modo algum, se pode confundir com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que os sujeitos processuais fundam a sua posição na controvérsia, antes se prende, desde logo, com a pretensão punitiva do Estado ou com a de ressarcimento que os demandantes submetam à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir invocadas.
Na doutrina e na jurisprudência a questão de saber se tal vício constitui nulidade insanável ou sanável, por não se encontrar incluída na previsão do art. 119º do CPP, tem motivado largo debate, que, mo caso vertente, não se justifica na medida em que a nulidade foi arguida pelo recorrente.
De todo o modo, a jurisprudência do STJ veio a consolidar-se no sentido de a nulidade dever ser oficiosamente conhecida, perante o que passou a dispor o n.º 2 do citado artigo 379º, a partir da redacção conferida pela Lei n.º 59/98, de 25/08: «As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso …»..
13 Também aqui, nada tem a ver com qualquer destes vícios a adequação da fundamentação utilizada para julgar o objecto em apreço aos princípios jurídicos aplicáveis. Poder-se-á discordar da decisão, como, aliás, o recorrente demonstra ser o caso, mas não são razões de fundo as que subjazem aos vícios imputados. A arguição de tais vícios não procede quando fundada em divergências com o decidido, sendo distintos do erro de julgamento.
14 Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2.ª ed., p. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 8ª Edição, pp. 73 e ss.
15 Como assinalam os já mencionados autores Simas Santos e Leal Henriques, (ob. cit., p. 74) este vício existe quando a factualidade dada como provada na sentença é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final ou, por outras palavras, quando a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito (cf. também Germano Marques da Silva, ob. cit., p. 340).
Também o Supremo Tribunal de Justiça vem considerando que o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena e circunstâncias relevantes para a determinação desta -, e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão (entre outros, cfr. Acs sumariados em Sumários de Acórdãos do STJ - Secções Criminais de: 4/10/2006, Proc. n.º 06P2678, em www.dgsi.pt; de 5/9/2007, Proc. n.º 2078/07; e de 14/11/2007, Proc. n.º3249/07).
16 Cfr. Acs. do STJ de 7/1/2004, P. n.º 3213/03, e de 29/4/1992, P. n.º 42535.
17 Ac. do STJ de 17-12-2014 (p. 937/12.4JAPRT.P1.S1 - Isabel São Marcos). No mesmo sentido, os Acs. do STJ de 14-03-2013 [(p. 1759/07.0TALRA.C1.S1 - Raul Borges): «Há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, (…) se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados»], de 11/5/1994 [(p. 045987 - Amado Gomes): «verifica-se quando, segundo um raciocínio lógico, é de concluir que a fundamentação justifica precisamente a decisão contrária ou quando, segundo o mesmo raciocínio, se conclui que a decisão não fica suficientemente esclarecida dada a colisão entre os fundamentos invocados»] e de 12/2/1997 [(p. 047001 - Joaquim Dias): «A contradição insanável de fundamentação é um vício ao nível das premissas, determinando a formação defeituosa da conclusão; se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correcta é impossível, não passa de mera falácia. Este vício pode ocorrer por contradição entre factos provados, contradição entre factos provados e não provados, contradição entre factos provados e motivos de facto, contradição entre a indicação das provas e os factos provados e contradição entre a indicação das provas e os factos não provados.»].
18 P. 06P363 - Rodrigues da Costa.
19 Cfr. v. g., o Ac. STJ de 2/2/2011 (p. 308/08.7ECLSB.S1 - Maia Costa): «O erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Porém, o vício, terá de constar do teor da própria decisão de facto, não da motivação dessa decisão, ou da fundamentação de direito».
20 Cfr. Germano Marques da Silva, loc. e p. cit..
21 Cfr. Simas Santos e Leal Henriques, loc. cit., p. p. 80.
22 É, aliás, no cumprimento deste último requisito que, segundo parece ser consensual, se deve estabelecer alguma maleabilidade, em função das especificidades do caso, da maior ou menor dificuldade que ofereça, com relevo, designadamente, para a extensão dos depoimentos e das matérias em discussão, uma vez que se considere que a insuficiência de tal indicação não dificulta de forma substancial e relevante o exercício do contraditório, nem o exame pelo Tribunal.
23 Como dizia Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, p. 191.
24 Rev. Min. Pub. 19º, 40.
25 Embora em grau menor o arguido R. M..
26 Sendo certo que esta referência à fundamentação da divergência com a prova pericial é entendida pela jurisprudência com o sentido de que o julgador pode divergir da prova pericial, mas, para o fazer, tem de fundamentar a divergência, estribando-se numa crítica pericial da mesma natureza (científica, técnica ou artística, consoante o caso). V. acórdão do STJ de 5-5-1993, processo 044111, e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2002, pág. 198. (daí o vício de violação do valor da prova legal poder ser tido ou como erro notório na apreciação da prova, ou como falta de fundamentação.
27 Designadamente no acórdão n.º 198/2004, de 24-03-2004, in DR, II Série, n.º 129, de 02-06-2004.
28 Devendo anotar-se que a falta dessa imediação, sempre imporia a este Tribunal de recurso alguma cautela na afirmação de tal irrazoabilidade. Como se sabe, apesar de as palavras serem importantes, só uma percentagem da nossa comunicação é feita verbalmente. Ora o simples registo audiofónico da prova não permite interpretar, na sua plenitude, as emoções reflectidas nos sinais não-verbais (movimentos corporais ou expressões faciais), designadamente os involuntários e inconscientes, dos depoentes e demais intervenientes. Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, in “Princípios Gerais do Processo Penal”, p. 160, só a oralidade e a imediação permitem o indispensável contacto vivo com o arguido e a recolha deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por um lado, avaliar o mais contritamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Tal relação estabelece-se com o tribunal de 1ª instância, e daí que a alteração da matéria de facto fixada deverá ter como pressuposto a existência de elemento que pela sua irrefutabilidade, não possa ser afectado pelo princípio da imediação.
29 «A possibilidade de previsão dos resultados pelo agente, mesmo daqueles que decorrem da sua falta de capacidade individual, segundo as suas aptidões pessoais, define o limite da sua responsabilidade» (acórdão do STJ de 24-05-2011, p. 1347/04.2TBPNF.P1.S1).
30 Cf. acórdãos do STJ de 21-04-2016 (p. 29004/10.3T2SNT.L1.S1) e de 17-10-2012 (p.87/11.0PJAMD.S1), sustentando tal entendimento com a invocação de Roxin, citado por Figueiredo Dias.
31 Citado acórdão de 17-10-2012.
32 Cit. acórdão do STJ de 24-05-2011.
33 Nesse sentido, refere Vera Lúcia Raposo que «as “leges artis” se traduzem nos métodos e procedimentos, comprovados pela ciência médica, que dão corpo a “standards” contextualizados de actuação, aplicáveis aos diferentes casos clínicos, por serem considerados pela comunidade científica como os mais adequados e eficazes» (in “ Do ato médico ao problema jurídico”, 2016, Reimpressão, p. 45).
34 Como defende Ana Margarida Reis Carvalho Araújo (in “O ERRO E A NEGLIGÊNCIA MÉDICA NUMA PERSPECTIVA JURÍDICO-PENAL”.
35 A. G. Miranda Rodrigues, “A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade”, Coimbra Editora, p. 570 e s.
36 Ibidem, p. 575.
37 Ibidem, p. 558.
38 Proc. nº 116/15.9JACBR.C1.S1, Relatado pelo Conselheiro Raúl Borges.
39 Proc. nº 291/13.7GEPTM.E1, relatado por Ana Brito
40 In Código Penal Português Anotado, 8.ª ed., 1995, p. 314,
41 A reintegração do agente na sociedade, ou seja, o seu retorno ao tecido social lesado, reporta-se à chamada prevenção especial, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de actuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que, no futuro, ele cometa novos crimes.
42 A protecção dos bens jurídicos consubstancia-se na utilização da pena como instrumento para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração). Já a prevenção geral negativa ou de intimidação da generalidade apenas pode surgir como um efeito lateral da necessidade de tutela dos bens jurídicos.
43 Como realça F. Dias (Direito Penal Português, as consequências jurídicas do crime, p. 344), o que está em causa não é qualquer certeza, mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda, devendo o tribunal estar disposto a correr um certo risco fundado e calculado – sobre a manutenção do agente em liberdade. Só havendo sérias razões para duvidar da capacidade do arguido de não repetir crimes, se for deixado em liberdade, é que o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada.
Também Hans Heinrich Jescheck defende (Tratado, Parte Geral, versão espanhola, vol. II, pp. 1152 e 1153): «na base da decisão de suspensão da execução da pena deverá estar uma prognose social favorável ao agente, baseada num risco prudencial. A suspensão da pena funciona como um instituto em que se une o juízo de desvalor ético-social contido na sentença penal com o apelo, fortalecido pela ameaça de executar no futuro a pena, à vontade do condenado em se reintegrar na sociedade».