ACIDENTE DE TRABALHO
ACIDENTE IN ITINERE
Sumário


I – É acidente de trabalho indemnizável o que se verifique em trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador, na ida da sua residência habitual ou ocasional para as instalações que constituem o seu local de trabalho, ou no regresso deste para aquela.

II – Apesar de não estar inequivocamente expresso na letra da lei, está pressuposto no seu elemento teleológico que aquele trajecto se há-de iniciar logo após o termo da jornada de trabalho, de modo a salvaguardar a conexão espacial e temporal entre o acidente e o trabalho, mas, tal como sucede com as interrupções e desvios, nos termos do n.º 3 do art. 9.º do Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais, aprovado pela Lei n.º 98/2009, de 4/09, deve entender-se como sendo inócua para a qualificação do acidente como de trabalho a dilação que seja determinada pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.

III – É irrelevante, para efeitos da qualificação do acidente como de trabalho, a dilação ocorrida entre o termo do trabalho pelas 15h20 e o início do percurso de regresso a casa pelas 15h40 ou 15h45, posto que a sinistrada despendeu esses breves minutos no próprio local de trabalho, isto é, no hipermercado onde exercia funções de operadora de caixa, embora na qualidade de cliente, a comprar iogurtes e leite para lactantes.

Texto Integral


1. Relatório

S. P. intentou acção declarativa de condenação, com processo especial emergente de acidente de trabalho, contra X - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., pedindo a sua condenação no pagamento de:

a. Pensão anual e vitalícia devida pela incapacidade permanente parcial para o trabalho que venha a ser atribuída;
b. Quantia de € 2.188,91 a título de indemnização pelos períodos em que esteve com incapacidade temporária absoluta e parcial para o trabalho;
c. Quantia de € 20,00 (vinte euros) que despendeu em deslocações obrigatórias no âmbito dos presentes autos e exames médicos;
d. Juros de mora sobre estas quantias, a calcular à taxa legal supletiva.

Foi admitida a intervenção principal provocada das intervenientes Y - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. e SEGURADORAS ..., S.A. em consequência do contrato de seguro em regime de co-seguro que celebraram juntamente com a ré.

Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que terminou com o seguinte dispositivo:

«Pelo exposto, decido julgar a presente acção integralmente procedente e, em consequência, condeno a ré e as intervenientes a pagar à autora:

1. A pensão anual e vitalícia de € 73,24 (setenta e três euros e vinte e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde o dia seguinte ao da alta até integral pagamento;
2. Esta quantia é devida desde o dia seguinte ao da alta e obrigatoriamente remida no correspondente capital de remição;
3. As quantias de € 2.188,91 (dois mil cento e oitenta e oito euros e noventa e um cêntimos) e de € 20,00 (vinte euros), acrescidas de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde a data da tentativa de conciliação até integral pagamento;
4. A ré e as intervenientes são responsáveis pelo pagamento na medida da responsabilidade que cada uma assumiu no contrato de seguro em regime de co-seguro que celebraram.
Nos termos do art. 120º nº1 do Cód. de Processo do Trabalho, fixo à causa o valor de € 3.322,96 (três mil trezentos e vinte e dois euros e noventa e seis cêntimos).
Custas a cargo da ré e das intervenientes.»

A ré, inconformada, interpôs recurso da sentença e formulou, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões:

«1. A factualidade apurada não permite qualificar o acidente dos autos como um acidente de trabalho.
2. Efectivamente, apurou-se o seguinte: “ No dia 16 de Janeiro de 2017, quando se deslocava do local de trabalho para a sua residência, a autora foi atropelada; 3. O acidente ocorreu pelas 16.00 horas; 4. O local de trabalho da autora era o hipermercado que a entidade patronal explorava em ..., Braga; 5. Este hipermercado estava inserido num centro comercial com lojas de café, restauração, vestuário, desporto, tecnologia e outras; 6. A autora residia na Rua …, Braga; 7. O acidente ocorreu na …, em ..., Braga; 8. O horário de trabalho da autora era, todos os dias, das 11.00 horas até às 15.00 horas, com folgas rotativas; 9. No dia do acidente, após ter terminado o trabalho, a autora saiu do local de trabalho pelas 15.20 horas; 10. Após, a autora dirigiu-se ao hipermercado que era explorado pela entidade patronal, como qualquer cliente, para adquirir iogurtes e leite para lactantes; 11. A autora saiu do hipermercado pelas 15.40 horas ou 15.45 horas; 12. A autora iniciou então a pé o percurso até à sua residência, tendo feito este percurso durante cerca de 12 ou 15 minutos até que foi atropelada;
3. Ou seja, é bom de ver que, ao contrário do que se refere na Douta decisão em crise, o percurso trabalho – casa da A. não sofreu qualquer interrupção ou desvio, por mais atendível que fosse.
4. A A., pura e simplesmente, não encetou o seu percurso do local de trabalho para casa após terminar o seu dia de trabalho antes se mantendo, entre vinte a vinte e cinco minutos a realizar compras no interior do Centro Comercial … e, mais concretamente, nas própias instalações do ….
5. Tal situação não é subsumível a qualquer das hipóteses que o Artigo 9.º da Lei 98/2009 estabelece ao operar a extensão do conceito de acidente de trabalho.
6. Não estando, obviamente, prevista no conceito original – sem extensão ou alargamento – a que se refere o Art. 8º do mesmo diploma.
7. A verdade é A Apelada apenas iria iniciar o trajecto local de trabalho/residência após realizar as compras a que se dedicou durante creca de meia hora.
8. Por isso, no caso dos autos foi quebrado todo e qualquer nexo ou ligação entre a prestação laboral da A. e o acidente que veio a sofrer.
9. A letra da lei, ao operar a extensão do conceito de acidente de trabalho (artigo 9.º da Lei n.º 98/2009), mesmo quando admite a sua interrupção ou desvio pressupõe que no momento da ocorrência do acidente, o trabalhador se encontre já no trajecto casa/trabalho.
10. O que, só depois de cortado o nexo ou relação com a prestação de trabalho sucedeu, pois que, como muito bem diz o Mmo. Juiz a quo, No dia do acidente, após ter terminado o trabalho, a autora saiu do local de trabalho pelas 15.20 horas. Após, a autora dirigiu-se ao hipermercado que era explorado pela entidade patronal, como qualquer cliente, para adquirir leite para lactantes. A autora saiu do hipermercado pelas 15.40 horas ou 15.45 horas e iniciou a pé o percurso até à sua residência, tendo feito este percurso durante cerca de doze ou quinze minutos até que foi atropelada, o que aconteceu pelas 16.00 horas.
11. Assim, não estamos perante um acidente de trabalho, nem sequer no conceito alargado consagrado pelo preceito legal que se vem de reproduzir e que é invocado na Douta decisão em crise.
12. Ao entender diferentemente, o Mmo. Juiz a quo efectuou uma errada interpretação dos Arts. 9º CCiv. e Arts. 8º e 9º da Lei 98/2009, pois que, crê-se, não respeita nem a sua letra nem o seu espírito e quebra a coerência do sistema e ordenamento jurídico vigentes.
13. Ademais, nem sequer apurou o Tribunal que as necessidades que a Apelada pretenderia satisfazer com as compras que foi efectuar eram, se não imediatas, pelo menos temporalmente muito próximas, o que, como decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21-02-2018 igualmente afasta a qualificação do acidente dos autos como acidente de trabalho.
14. Qualificação esta que, de todo o modo, jamais se poderia fazer, dado que, quando a A. inicia o ser percurso trabalho/casa estava já quebrada qualquer ligação ao trabalho, ou seja, não há qualquer conexão ou causalidade entre a sua verificação e a relação laboral – cfr. Acórdão do Tribunal da Relaçao do Porto de 22-10-2018.»
A autora apresentou resposta ao recurso da ré, pugnando pela sua improcedência.
O recurso foi admitido como apelação, com efeito suspensivo, atenta a prestação de caução.
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, e cumprido o disposto no art. 87.º, n.º 3 do CPT, o Ministério Público apôs o seu visto.
Colhidos os vistos dos Exmos. Desembargadores Adjuntos, cumpre decidir.

2. Objecto do recurso

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, a única questão que se coloca a este tribunal é a de saber se o acidente que a autora sofreu deve ser caracterizado como sendo de trabalho, na modalidade de in itinere.

3. Fundamentação de facto

Os factos provados são os seguintes:

1. A autora exercia a actividade profissional de operadora de caixa, auferindo a retribuição anual de € 10.462,91;
2. No dia 16 de Janeiro de 2017, quando se deslocava do local de trabalho para a sua residência, a autora foi atropelada;
3. O acidente ocorreu pelas 16.00 horas;
4. O local de trabalho da autora era o hipermercado que a entidade patronal explorava em ..., Braga;
5. Este hipermercado estava inserido num centro comercial com lojas de café, restauração, vestuário, desporto, tecnologia e outras;
6. A autora residia na Rua …, Braga;
7. O acidente ocorreu na Rua …, em ..., Braga;
8. O horário de trabalho da autora era, todos os dias, das 11.00 horas até às 15.00 horas, com folgas rotativas;
9. No dia do acidente, após ter terminado o trabalho, a autora saiu do local de trabalho pelas 15.20 horas;
10. Após, a autora dirigiu-se ao hipermercado que era explorado pela entidade patronal, como qualquer cliente, para adquirir iogurtes e leite para lactantes;
11. A autora saiu do hipermercado pelas 15.40 horas ou 15.45 horas;
12. A autora iniciou então a pé o percurso até à sua residência, tendo feito este percurso durante cerca de 12 ou 15 minutos até que foi atropelada;
13. Como consequência directa e necessária do acidente, a autora esteve com incapacidade temporária absoluta para o trabalho pelo período de cento e vinte e nove dias;
14. Como consequência directa e necessária do acidente, a autora esteve com incapacidade temporária parcial para o trabalho de 50,00% pelo período de vinte e dois dias;
15. Como consequência directa e necessária do acidente, a autora ficou a padecer de uma incapacidade permanente parcial para o trabalho de 1,00%;
16. A autora teve alta clínica no dia 4 de Junho de 2017;
17. Como consequência directa e necessária do acidente, a autora despendeu a quantia de € 20,00 em deslocações obrigatórias no âmbito dos presentes autos;
18. A responsabilidade por acidentes de trabalho com a autora estava transferida para as rés por contrato de seguro titulado pela Apólice nº …, o qual era válido e eficaz na data do acidente;
19. Este contrato de seguro cobria a retribuição anual de € 10.462,91;
20. A autora nasceu no dia .. de .. de 1975.

4. Apreciação do recurso

Como se disse, a única questão a tratar é se o acidente que a autora sofreu deve ser caracterizado como sendo de trabalho, na modalidade de in itinere, como concluiu o tribunal a quo.

Vejamos.

Estabelece o Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais, aprovado pela Lei n.º 98/2009, de 4/09, no que respeita ao conceito de acidente de trabalho:

Artigo 8.º
Conceito

1 - É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
2 - Para efeitos do presente capítulo, entende-se por:
a) «Local de trabalho» todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador;
b) «Tempo de trabalho além do período normal de trabalho» o que precede o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho.

Artigo 9.º
Extensão do conceito

1 - Considera-se também acidente de trabalho o ocorrido:
a) No trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos termos referidos no número seguinte;
b) Na execução de serviços espontaneamente prestados e de que possa resultar proveito económico para o empregador;
c) No local de trabalho e fora deste, quando no exercício do direito de reunião ou de actividade de representante dos trabalhadores, nos termos previstos no Código do Trabalho;
d) No local de trabalho, quando em frequência de curso de formação profissional ou, fora do local de trabalho, quando exista autorização expressa do empregador para tal frequência;
e) No local de pagamento da retribuição, enquanto o trabalhador aí permanecer para tal efeito;
f) No local onde o trabalhador deva receber qualquer forma de assistência ou tratamento em virtude de anterior acidente e enquanto aí permanecer para esse efeito;
g) Em actividade de procura de emprego durante o crédito de horas para tal concedido por lei aos trabalhadores com processo de cessação do contrato de trabalho em curso;
h) Fora do local ou tempo de trabalho, quando verificado na execução de serviços determinados pelo empregador ou por ele consentidos.
2 - A alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador:
a) Entre qualquer dos seus locais de trabalho, no caso de ter mais de um emprego;
b) Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho;
c) Entre qualquer dos locais referidos na alínea precedente e o local do pagamento da retribuição;
d) Entre qualquer dos locais referidos na alínea b) e o local onde ao trabalhador deva ser prestada qualquer forma de assistência ou tratamento por virtude de anterior acidente;
e) Entre o local de trabalho e o local da refeição;
f) Entre o local onde por determinação do empregador presta qualquer serviço relacionado com o seu trabalho e as instalações que constituem o seu local de trabalho habitual ou a sua residência habitual ou ocasional.
3 - Não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.
4 - No caso previsto na alínea a) do n.º 2, é responsável pelo acidente o empregador para cujo local de trabalho o trabalhador se dirige.

Verifica-se, assim, que o art. 9.º enuncia situações que também se consideram como sendo acidentes de trabalho, não obstante escaparem à definição nuclear dada pelo art. 8.º, designadamente os acidentes de trajecto ou de percurso, igualmente designados na doutrina e jurisprudência como acidentes in itinere, porquanto são os que ocorrem no caminho de ida ou de regresso do local de trabalho.

Sobre o conceito de acidente in itinere, diz-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Outubro de 2011, proferido no Processo n.º 154/06.2TTCTB.C1.S1 (Relator Gonçalves Rocha)(1):

“(…) Para que se esteja em face dum acidente de trajecto indemnizável, já não exige o legislador o preenchimento daqueles exigentes requisitos da lei anterior, bastando para tanto que o acidente ocorra no trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto para o percorrer.

Trata-se da consagração das modernas teorias que consideram que o risco de acidentes neste percurso é inerente ao cumprimento do dever que incumbe ao trabalhador de comparecer no lugar do trabalho, para nele executar a prestação resultante do contrato de trabalho, constituindo assim uma das suas obrigações instrumentais ou acessórias.

Por isso, sendo o trabalhador obrigado a fazer o percurso necessário ao cumprimento da sua obrigação de trabalhar no lugar determinado pela sua entidade patronal e usando, para tanto, as vias de acesso e os meios de transporte disponíveis, justifica-se que os acidentes ocorridos neste percurso e no tempo habitualmente gasto para o percorrer, já gozem da protecção própria dum acidente de trabalho, conforme prescrevia o artigo 6º, nº 2, do DL nº 143/99, de 30/4.

Por outro lado, estão abrangidos nesta previsão legal, os acidentes que se verifiquem no trajecto normalmente utilizado pelo trabalhador e durante o período de tempo habitualmente gasto entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho - alínea a).

Donde resulta que não basta o trabalhador estar no percurso normalmente utilizado para ir trabalhar ou para regressar a casa depois do trabalho, pois para além disso é preciso que o acidente ocorra dentro do período de tempo que se gasta habitualmente nesse percurso.”

Isto é, de acordo com o que, também, ensina Júlio Gomes (2), o elemento espacial e o elemento temporal inerentes à definição de acidente in itinere limitam-se a indiciar o elemento teleológico, esse, sim, o essencial, e, assim, “(…) o trajeto tutelado é, em princípio, aquele que o trabalhador empreende ao sair da sua residência habitual ou ocasional com a intenção de se deslocar para o seu local de trabalho e aqueloutro, de regresso a essa mesma residência habitual ou ocasional, a partir do seu local de trabalho, uma vez terminada a sua prestação.”(3)

Em suma, o elemento teleológico que actualmente se entende presidir à tutela do trajecto para e do local de trabalho é a necessidade de fazer o percurso inerente ao cumprimento do dever de comparecer no local de trabalho, em benefício do empregador, independentemente de riscos específicos ou agravados do percurso em si mesmo, susceptíveis de fazer incorrer em “(…) distinções quase bizantinas”(4) em matéria de acidentes in itinere.

Retornando ao caso em apreço, e porque o recurso não abrange impugnação da matéria de facto, há que ter em conta a seguinte factualidade relevante:

No dia 16 de Janeiro de 2017, na Rua …, em ..., Braga, quando se deslocava do local de trabalho para a sua residência, a autora foi atropelada.

O local de trabalho da autora era o hipermercado que a entidade patronal explorava em ..., Braga, onde exercia funções de operadora de caixa, e a sua residência era na Rua …, Braga.

O horário de trabalho da autora era, todos os dias, das 11.00 horas até às 15.00 horas, com folgas rotativas, tendo, no dia do acidente, a autora saído do trabalho pelas 15.20 horas.

Após, a autora dirigiu-se ao hipermercado que era explorado pela entidade patronal, como qualquer cliente, para adquirir iogurtes e leite para lactantes, de onde saiu pelas 15.40 horas ou 15.45 horas, iniciando então a pé o percurso até à sua residência, que percorreu durante cerca de 12 ou 15 minutos, até que foi atropelada.

Em face do exposto, forçoso é concluir que a sinistrada sofreu um acidente de viação no trajecto que normalmente utilizava e durante o período de tempo que habitualmente gastava entre o seu local de trabalho e a sua residência, a coberto do citado art. 9.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. b), já que ficou esclarecido:

- que o acidente ocorreu no percurso a pé que ligava o local de trabalho da autora à sua residência, não sendo posto em causa que era o que vinha fazendo diariamente;
- que no dia referido a sinistrada saiu do local de trabalho pelas 15h40 ou 15h45 e iniciou então a pé o percurso até à sua residência, tendo feito este percurso durante cerca de 12 ou 15 minutos, até que foi atropelada, não sendo posto em causa que era o tempo habitualmente gasto para percorrer tal distância.

É certo que, apesar de não estar inequivocamente expresso na letra da lei, está pressuposto no seu elemento teleológico, nos sobreditos termos, que o trajecto normalmente utilizado, percorrido durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador, se há-de iniciar logo após o termo da jornada de trabalho, de modo a salvaguardar a conexão espacial e temporal entre o acidente e o trabalho, mas, tal como sucede com as interrupções e desvios, nos termos do n.º 3 do citado art. 9.º, deve entender-se como sendo inócua para a qualificação do acidente como de trabalho a dilação que seja determinada pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.

Assim sendo, no caso dos autos, é irrelevante a dilação ocorrida entre o termo do trabalho pelas 15h20 e o início do percurso de regresso a casa pelas 15h40 ou 15h45, posto que a sinistrada despendeu esses breves minutos no próprio local de trabalho, isto é, no hipermercado onde exercia funções de operadora de caixa, embora na qualidade de cliente, a comprar iogurtes e leite para lactantes.

Com efeito, a lei não delimita o relevo das interrupções e desvios do trajecto – e, assim, também da eventual dilação inicial – em função da sua duração, mas dos motivos que os justificam.(5)

Ora, conforme refere Júlio Gomes, são necessidades atendíveis, “desde logo, as necessidades da vida pessoal e familiar do trabalhador, que a nossa Lei, aliás, não exige sequer que sejam urgentes ou de satisfação imprescindível.”(6)

Por conseguinte, parece-nos manifestamente razoável, para efeitos de atendibilidade da necessidade, que um trabalhador de hipermercado se demore alguns minutos no seu local de trabalho para fazer a compra de meia dúzia de alimentos básicos da economia familiar, antes de iniciar o regresso a casa.

Na verdade, a situação é equiparável à apreciada no Acórdão da Relação de Évora de 26 de Abril de 2018, proferido no Processo n.º 2477/15.0T8PTM.E1 (Relator Moisés Silva) (7), onde se decidiu que “o acidente ocorrido durante a interrupção, pela trabalhadora, do trajeto de regresso à sua residência para almoço a partir do momento em que saiu do seu posto de trabalho na peixaria para efetuar compras de bens no supermercado onde trabalha e depois prosseguir o seu percurso, tendo em conta a natureza dos bens vendidos no supermercado, consubstancia a compra de bens para a satisfação de necessidades pessoais atendíveis, pelo que o evento deve ser considerado como acidente de trabalho.”

Aí se refere que “[n]ão nos parece anormal, estranho, negligente, imprudente ou de alguma maneira ilegítima ou injustificável a compra de bens no estabelecimento onde se trabalha para satisfazer as necessidades pessoais. Antes pelo contrário, deixa entrever uma relação saudável entre empregadora e trabalhadora e, até pela manifesta proximidade e conforto, se revela adequada e normal a qualquer trabalhador colocado na posição da sinistrada.

A interrupção do trajeto normal efetuada pela trabalhadora destinou-se a satisfazer necessidades atendíveis e enquadra-se na previsão do art.º 9.º n.º 3 da Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro.

Como se refere no acórdão do STJ que referimos, trata-se de compras que dizem respeito a necessidades atendíveis da trabalhadora, não se exigindo que sejam urgentes ou que se destinassem à confeção do almoço. Poderiam ser compras para o próprio dia e/ou para os dias seguintes. O que releva é que eram compras para satisfazer as suas necessidades pessoais.”

Por outro lado, ainda que se admita que na atendibilidade do motivo subjacente à dilação, interrupção ou desvio deva ser ponderada a respectiva duração, a situação dos autos apresenta-se como cumprindo tal requisito, na medida em que a tarefa considerada relevante foi levada a cabo em tempo normal e de forma consecutiva ao termo do trabalho e imediatamente anterior ao início do percurso habitual, podendo descortinar-se que a tal sequência presidiu a intenção unívoca e final do regresso a casa.

A situação é completamente diferente da decidida no acima citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Outubro de 2011, relativa a trabalhador que, pernoitando habitualmente nas instalações da empresa para quem exercia funções, numa dada sexta-feira terminou o trabalho cerca do meio-dia e a meio da tarde decidiu ir passar o fim-de-semana na sua residência ocasional, vindo a ser vítima de acidente de viação no percurso, tendo-se entendido que se cortou a conexão com o trabalho ao se iniciar a viagem de regresso cerca de três ou quatro horas depois de se ter deixado de trabalhar.

Efectivamente, ali se sublinha que “(…) o que justifica a responsabilização do empregador por este tipo de acidentes é a ligação que o regresso a casa do trabalhador tem com o trabalho, sendo razoável impor-lhe tal ónus em virtude dos trajectos de ida para o trabalho e de regresso a casa depois dele, serem inerentes ao cumprimento do dever de trabalhar.

Por isso, ao deslocar-se para comparecer no lugar do trabalho para o executar, ou ao regressar dele depois de trabalhar, o trabalhador está a dar cumprimento a uma das suas obrigações instrumentais ou acessórias, o que legitima a exigência de responsabilização da entidade patronal pelos acidentes ocorridos neste percurso.

No entanto, estando quebrada a ligação com o trabalho em virtude do trabalhador ter iniciado a viagem três ou quatro horas depois do seu termo, já não há justificação para imputar o risco de acidentes ao empregador.”

Ora, diferentemente, no caso dos autos existe uma conexão espacial e temporal entre o acidente sofrido pela sinistrada e o trabalho que aquela terminara de prestar, como acima se explicitou, o que bem evidencia o mencionado elemento teleológico subjacente à tutela dos acidentes in itinere.

Nestes termos, considera-se que improcede o recurso.

5. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e em confirmar a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.

Guimarães, 6 de Junho de 2019

Alda Martins
Eduardo Azevedo
Vera Sottomayor


Sumário (elaborado pela Relatora):

I – É acidente de trabalho indemnizável o que se verifique em trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador, na ida da sua residência habitual ou ocasional para as instalações que constituem o seu local de trabalho, ou no regresso deste para aquela.
II – Apesar de não estar inequivocamente expresso na letra da lei, está pressuposto no seu elemento teleológico que aquele trajecto se há-de iniciar logo após o termo da jornada de trabalho, de modo a salvaguardar a conexão espacial e temporal entre o acidente e o trabalho, mas, tal como sucede com as interrupções e desvios, nos termos do n.º 3 do art. 9.º do Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais, aprovado pela Lei n.º 98/2009, de 4/09, deve entender-se como sendo inócua para a qualificação do acidente como de trabalho a dilação que seja determinada pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.
III – É irrelevante, para efeitos da qualificação do acidente como de trabalho, a dilação ocorrida entre o termo do trabalho pelas 15h20 e o início do percurso de regresso a casa pelas 15h40 ou 15h45, posto que a sinistrada despendeu esses breves minutos no próprio local de trabalho, isto é, no hipermercado onde exercia funções de operadora de caixa, embora na qualidade de cliente, a comprar iogurtes e leite para lactantes.

Alda Martins


1. Disponível em www.dgsi.pt.
2. O Acidente de Trabalho - O acidente in itinere e a sua descaracterização, Coimbra Editora, 2013, pp. 168 e ss..
3. P. 177.
4. Aut. cit., op. cit., p. 184.
5. Sobre tal temática, cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Setembro de 2014, proferido no Processo n.º 771/12.1TTSTB.E1.S1 (Relator António Leones Dantas), disponível em www.dgsi.pt.
6. Op. cit., pp. 188-189.
7. Disponível em www.dgsi.pt.