CONTRATO DE SEGURO DESPORTIVO
CLAUSULAS PROIBIDAS E NULAS
Sumário


Sumário (da relatora):

I. O uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser concretizado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, nomeadamente por os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, imporem uma conclusão diferente (prevalecendo, em caso contrário, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova).

II. O princípio da autodeterminação pessoal em matéria de escolha do prestador de cuidados médicos só deve ser postergado, em sede de contrato de seguro, se isso for exigido pelo balanceamento com outros princípios aplicáveis, nomeadamente o princípio da racionalidade económica de exploração do risco cobertura.

III. Estabelecendo-se no domínio desportivo (necessárias) relações (duradouras) de acompanhamento e de confiança, entre atletas e profissionais afectos à garantia e desenvolvimento do seu rendimento desportivo, as cláusulas que imponham ao atleta sinistrado o imperativo recurso à rede convencionada da seguradora, sob pena de limitação do pagamento dos tratamentos realizados aos valores tabelados por ela - e ainda que globalmente contidos nos limites do capital máximo garantido - provocam o esvaziamento do objecto do contrato de seguro; e são, por isso, nulas (arts. 5º e 6º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2009, de 12 de Janeiro, e art. 294.º do C.C.).

IV. Pretendendo o legislador, com o seguro desportivo obrigatório, garantir a reparação obrigatória dos acidentes pessoais inerentes à actividade desportiva, até ao montante do capital máximo garantido, as cláusulas que imponham ao atleta sinistrado o prévio pagamento do tratamento exigido para a reparação da sua lesão provocam o esvaziamento do objecto do contrato de seguro; e são, por isso, nulas (arts. 5º e 6º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2009, de 12 de Janeiro, e art. 294.º do C.C.).

Texto Integral


Acordam, em conferência (após corridos os vistos legais) os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães.

I – RELATÓRIO

1.1. Decisão impugnada

1.1.1. (…) (aqui Recorrido) - representado por (…) na qualidade de procuradora de (…), sua mãe, face à respectiva menoridade -, residente na(…) , em X, e Outros, propuseram a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra (…) (aqui Recorrente), com sede na Avenida (…), em Lisboa, pedindo (no que ora nos interessa) que

· a Ré fosse condenada a pagar ao Autor, mercê de um contrato de seguro desportivo de que foi contratante, a quantia de € 5.068,15 (a título de reembolso de despesas médicas e de reabilitação realizadas em seu benefício), acrescida de juros de mora, calculados à taxa supletiva legal, contados desde a citação até integral pagamento.

Alegou para o efeito, em síntese, ter sofrido lesões quando participava em actividades desportivas por conta de um Clube filiado na Associação de Futebol de X, que previamente celebrara um contrato de seguro desportivo com a Ré, do qual eram beneficiários todos os atletas inscritos nos clubes nela filiados.
Mais alegou que, com vista a debelar as lesões sofridas, veio a realizar tratamentos médicos e de reabilitação numa clínica que lhe foi aconselhada pelo respectivo Clube, tendo pago o respectivo preço.
Por fim, o Autor (…) alegou que a Ré (…) se recusa a reembolsar-lhe a totalidade do dito preço.

1.1.2. Regularmente citada, a Ré (…) contestou, pedindo que a acção fosse julgada improcedente; ou, subsidiariamente, apenas parcialmente procedente, de acordo com a prova a produzir em audiência de julgamento.
Alegou para o efeito, em síntese, desconhecer os factos relativos à alegada verificação de acidentes desportivos, suas consequências, necessidade e prestação de tratamentos, cujo reembolso de preço o Autor (…) reclama.
Mais alegou que os ditos tratamentos não foram realizados em prestadores protocolados consigo; e que, nos termos do contrato de seguro invocado (cujo teor foi devidamente comunicado à Associação de Futebol de X), só estaria obrigada a restituir os valores máximos ali fixados para os actos médicos da rede convencionada.
Por fim, a Ré (…) alegou que, tendo posto à disposição do Autor (…) o valor indemnizatório assim apurado (nos termos do contrato de seguro celebrado), não poderia ser responsabilizada pelo pagamento de quaisquer juros moratórios.

1.1.3. Em sede de audiência prévia, o Autor (…) respondeu às excepções deduzidas pela Ré (…), pedindo que fossem julgadas improcedentes, por serem nulas as cláusulas contratuais em que assentaria a exclusão/limitação da sua responsabilidade (por violação da norma imperativa do art. 5.º do Decreto-Lei n.º 10/2009, de 12 de Janeiro - Regime Jurídico do Seguro Desportivo Obrigatório), sendo-lhe ainda inoponíveis, por aquela não ter cumprido o respectivo dever de comunicação, de informação e de explicação detalhada das referidas cláusulas (imposto por legislação diversa).

Foi ainda proferido despacho: saneador (fixando o valor da causa em € 29.428,15, e certificando tabelarmente a validade e a regularidade da instância); identificando o objecto do litígio («responsabilidade civil da ré pelo pagamento das despesas de tratamento reclamadas pelos autores em atenção às obrigações por si assumidas no âmbito de um contrato de seguro desportivo, celebrado com uma associação de futebol de que aqueles eram atletas»), e enunciando os temas da prova («Os factos relativos às lesões sofridas pelos autores», e «os factos relativos aos tratamentos realizados pelos autores e seu custo»); apreciando os requerimentos probatórios das partes, e designando dia para realização da audiência final.

1.1.4. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, julgando a acção parcialmente procedente, lendo-se nomeadamente na mesma (e no que ora nos interessa):

«(…)
Pelo exposto, decido julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, condeno a ré a proceder ao pagamento das seguintes quantias:

(…)
• ao demandante (…) , a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros);
Todas acrescidas de juros, à taxa supletiva legal, a contar desde a data da citação da ré.
(…)»

*
1.2. Recurso

1.2.1. Fundamentos

Inconformada com esta decisão, a (… ) interpôs o presente recurso de apelação, pedindo que o mesmo fosse julgado procedente, revogando-se a sentença recorrida e sendo ela própria absolvida de todos os pedidos formulados.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (reproduzindo-se ipsis verbis as respectivas conclusões, embora limitadas exclusivamente ao que ora nos interessa):

1. A Sentença proferida pelo Tribunal Recorrido incorreu em erros na apreciação global da prova produzida, incluindo a testemunhal (cuja reapreciação neste recurso se suscita) violando, assim, normas de direito substantivo e processual, nomeadamente por um lado julgando incorrectamente como factos provados o número e sessões de fisioterapia que cada um dos Autores alega ter efectuado.

2. E, por outro, ao ter considerado como não provado que os Autores suportaram os valores das facturas-recibo correspondentes aos tratamentos, acabou por concluir mal ao condenar a ora Ré no pagamento de valores que os Autores não lograram provar ter liquidado.

3. Por fim, o tribunal recorrido não fez um correcto enquadramento legal da cláusula 9 de fls. 222 verso.

Da decisão da matéria de Facto:

4. A Recorrente impugna a matéria de facto dada como provada nos pontos (…) 100, 101 (…) da sentença.

(…)
9.49. Relativamente aos Autores (…) não foi prestada prova por depoimento de parte ou qualquer outra que lograsse demonstrar os tratamentos e número de sessões alegadamente realizadas.

9.50. Nem o Presidente do Clube Desportivo de Y nem o médico ortopedista e (…) observou ou acompanhou a realização dos alegados tratamentos dos referidos Autores, pelo que também nunca o tribunal recorrido poderia ter dado como provada a realização de 40 sessões de tratamento por parte dos referidos Autores.

9.51. Devendo dar-se por impugnada a matéria de facto assente nos pontos (…) 100) dos factos provados na parte “(…) tendo cumprido um total de 40 sessões” assim como por prejudicada a matéria assente nos pontos (…)101).
(…)
10. Seguidamente, não se entende como o tribunal recorrido tenha por sua vez dado como não provado a parte do depoimento prestado pelos Autores no que diz respeito aos pagamentos dos tratamentos (ponto B dos factos não provados), e ao mesmo tempo colhido “a tese” da outra parte do depoimento dos Autores quanto à realização do número de sessões de tratamento.

11. Tal também bastaria para se concluir que o depoimento prestado pelas Partes não deveria ter sido valorado para a prova dos factos alegados pelos Autores.

12. Por último, não tomou o douto Tribunal Recorrido em consideração o depoimento prestado pela Testemunha (…) (legal representante da clínica (…) onde alegadamente terão sido prestados os tratamentos aos Autores e Fisioterapeuta que presta todos os tratamentos que são efectuados na clínica), prestado no dia 06/09/2018 – ficheiro de áudio 20180906104435 terminado às 11:39.

13. Pelo que, não podia o Tribunal recorrido ter dado como provada a realização e consequente número de tratamentos – quase todos de 40 sessões – efectuados pelos Autores.

14. Deverão assim ser dados como impugnados todos os factos assentes referentes ao número de tratamentos de fisioterapia, nos pontos (…) 100), devendo tal matéria, nas partes identificadas nas pags. 13 e 14 do presente recurso, passar a constar dos factos não provados.

15. Com a impugnação de tais factos sai também prejudicada a matéria de facto assente referente à quantia dos alegados tratamentos, matéria essa assente nos pontos (…) 101), devendo por conseguinte também tal matéria passar a constar dos factos não provados.

16. Tudo sob pena de violação do artigo 342º do Código Civil, e artigos 607º, nº 4 e 5 do Código de Processo Civil.

Da decisão da matéria de Facto e de Direito – A FALTA DE PAGAMENTO DOS TRATAMENTOS PELOS AUTORES

17. Os Autores estruturam a presente acção com base nos pagamentos que alegam terem efectuado para o tratamento das lesões decorrentes dos sinistros dos autos (cfr. artigos 21 a 24 da PI).

18. Na petição inicial cada um dos Autores alegou que como consequência dos diversos tratamentos, suportaram uma determinada quantia, “tudo conforme facturas/recibo” que, por sua vez, discriminaram, descreveram e juntaram aos autos.

19. Em sede de audiência de julgamento os Autores tentaram fazer prova dos alegados pagamentos.

20. Produzida a prova em sede de audiência de julgamento, o Meritíssimo tribunal recorrido deu – e bem – como não provado que os Autores não suportaram o valor das facturas correspondentes aos tratamentos (ponto B. dos factos não provados).

21. Sucede que, não obstante o tribunal recorrido ter dado como não provado que os Autores - contrariamente ao que alegam - não suportaram o valor das facturas correspondentes aos tratamentos, decidiu ainda assim que inexiste razão para negar aos Autores a sua pretensão indemnizatória, com base na motivação de que “pouco importando que não se tivesse apurado o efectivo pagamento das facturas emitidas na sequência dos tratamentos, condição que, de resto, nem resulta do diploma que rege o contrato de seguro em análise, nem das condições contratuais estipuladas pela ré”.

22. Contudo, do contrato de seguro dos autos resulta expressamente que a cobertura de despesas de tratamento dos segurados é realizada através de um reembolso, exigindo um prévio pagamento das mesmas.

23. É o que resulta da alínea b) da cláusula 1 (“Objecto do Contrato”); ponto 1.5 da cláusula 14 (“Obrigações e Direitos das Partes em caso de sinistro”); número 5 da cláusula 15 (“Pagamento de Indemnizações”).

24. Se do acordo firmado entre as partes resulta que quanto à cobertura de despesas de tratamento a Seguradora reembolsará o segurado apenas: após a realização do tratamento, o pagamento desse mesmo tratamento e o envio para a seguradora dos documentos justificativos que comprovam esse pagamento, o tribunal recorrido não poderia concluir que não resulta das condições contratuais a necessidade de se apurar o efectivo pagamento das facturas emitidas na sequência dos tratamentos, sob pena de violação dos artigos 406º e 449º do Código Civil.

25. Mas ainda que assim não se entendesse, se os Autores estruturaram o pedido com base em pagamentos que alegadamente suportaram (juntando para o efeito “facturas/recibo” que não correspondem à verdade) – requerendo o seu reembolso ao abrigo do contrato dos autos –, tendo ficado demonstrado nos factos não provados que os Autores não suportaram as despesas de tratamento pago, o tribunal recorrido deveria ter considerado improcedente a presente acção, sob pena de violação dos artigos 607º, nº 4 e 5 do CPC.

Da decisão da matéria de Direito:

DA VALIDADE DA CLÁUSULA 9 DO CONTRATO DE SEGURO

26. Para considerar a cláusula 9 das condições particulares do Contrato de Seguro dos autos violadora do art. 5º, nº 2, alínea b) do Decreto-Lei nº 10/2009 de 12.1 (“Decreto-Lei”), o tribunal recorrido:

27. Limita-se a citar o artigo 6º do Decreto-Lei e deduz que existe liberdade do segurado optar pelo prestador do acto médico, por o legislador prever o dever de indemnização da seguradora em dinheiro;

28. Para concluir que o legislador não quis que o dever de indemnizar consagrado no art. 5º, nº 2, alínea b) do Decreto-Lei fosse condicionado.

29. Vejamos.

30. Os únicos dois casos em que o conteúdo das cláusulas de exclusão de risco nas apólices de seguro desportivo não é admitido pelo artigo 6º do Decreto-Lei são: i) exclusões contrárias à natureza da actividade desportiva; ii) exclusões que provoquem um esvaziamento do objecto do contrato.

31. Na primeira parte do artigo 6º do Decreto-Lei visa-se proibir exclusões de cobertura de manifestações desportivas que são necessárias à actividade desportiva.

32. É o que se retira dos seguintes preceitos:

33. O próprio nº 1 do art. 5º do Decreto-Lei; artigos 42º e 43º da Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto (Lei n.º 5/2007, de 16 de Janeiro); artigo 1º, nº 2 do Decreto-Lei n.º 146/93, de 26 de Abril;

34. A natureza competitiva da actividade desportiva implica que ela seja exercida em treinos, provas, deslocações para os mesmos, eventos ou em instalações desportivas abertas ao público, pelo que todos os diplomas citados pretenderam que o seguro obrigatório cobrisse a actividade desportiva em sentido amplo, abrangendo os acidentes ocorridos em actividades preambulares e sequenciais do treino e da competição.

35. Pelo que aquilo que a primeira parte do art. 6º do Decreto-Lei impede são as cláusulas que excluam da cobertura do seguro os acidentes ocorridos aquando a prática de desporto em todas essas manifestações desportivas.

36. A cláusula 9 em análise não impede a cobertura dos acidentes ocorridos numa qualquer manifestação desportiva, seja a mesma antes, durante, ou após a prática desportiva amadora de futebol.

37. Não é por serem impostos montantes máximos para tratamentos prestados fora das clínicas constantes da rede convencionada que se impede a cobertura de acidentes ocorridos antes, durante, ou após a prática desportiva amadora de futebol.

38. Não sendo violadora da primeira parte do art. 6º do Decreto-Lei, a cláusula em análise não limita o dever de indemnizar consagrado no art. 5º, nº 2, alínea b) do mesmo diploma.

39. Na segunda parte do artigo 6º do Decreto-Lei são proibidas “exclusões que provoquem um esvaziamento do objecto do contrato de seguro”.

40. O objecto do contrato de seguro de acidentes pessoais é a cobertura dos riscos para a saúde decorrentes da prática de uma modalidade desportiva.

41. No caso dos autos, a cláusula em análise não exclui da cobertura um praticante da actividade desportiva que não tenha um determinado requisito nem proíbe que um determinado atleta que não cumpra certo requisito não seja assistido.

42. Caso os atletas pretendessem ser assistidos numa clínica em que um só tratamento – que, por sua vez, não seria suficiente para a sua recuperação ! – esgotasse o capital seguro, a liberdade de escolha do segurado impediria precisamente o desiderato do Decreto-Lei que é a segurança dos praticantes.

43. As clínicas constantes da rede convencionada da ora Recorrente são entidades sujeitas a uma auditoria permanente, para as quais a Recorrente assegura ainda nos termos do contrato de seguro dos autos as despesas de deslocação no transporte para as mesmas.

44. O desígnio do Decreto-Lei de os praticantes de uma actividade desportiva usufruírem da cobertura do seguro, para que se atenda à necessidade social fundamental de zelar pela segurança dos mesmos (cfr. preâmbulo do Decreto-Lei), é cumprido da melhor forma precisamente pela cláusula 9 da apólice dos autos.

45. Não só por as clínicas convencionadas estarem sujeitas a uma auditoria permanente quanto à boa prestação de serviços, como praticarem preços que permitem, ao próprio atleta, obter uma recuperação total.

46. A jurisprudência tem também entendido o “esvaziamento do objecto do contrato de seguro” desportivo obrigatório como a situação em que as partes outorgam um contrato de seguro que tem por objecto o risco típico dos contratos previstos no D.L. nº 10/2009, mas dando-lhe outro título e contornando a previsão do art. 6º, o que não sucede no caso dos autos (Cfr. Acórdão no processo nº 4575/15.1T8BRG.G1).

47. Termos em que, também não sendo violadora da segunda parte do art. 6º do Decreto-Lei, a cláusula em análise não limita o dever de indemnizar consagrado no art. 5º, nº 2, alínea b) do mesmo diploma.

48. Ainda para encarar a cláusula em análise como violadora do art. 5º, nº 2, alínea b) do Decreto-Lei, o tribunal recorrido deduz que existe liberdade do segurado optar pelo prestador do acto médico.

49. Interpretação que vai contra a finalidade do Decreto-Lei, que é a segurança dos praticantes de desporto (cfr. preâmbulo do Decreto-Lei e Acórdão do STJ processo nº 343/10.5TBVLN.G2.S1).

50. Caso os atletas pudessem optar por ser assistidos numa clínica cujas despesas de tratamento por sessão ultrapassassem o montante do capital seguro, tal conduziria-nos à possibilidade de o atleta obter o ressarcimento de, somente, uma sessão, ficando sem direito ao reembolso de despesas de tratamento posteriores necessárias para a sua integral recuperação.

51. A possibilidade de um segurado optar por uma sessão cujo custo seja igual ou ultrapasse € 4.000,00, impedindo que o mesmo seja reembolsado de futuras despesas de tratamento que respeitam a sessões necessárias para a sua total recuperação não o protege, indo precisamente contra a finalidade do Decreto-Lei que é a segurança dos praticantes.

52. Pelo contrário, a convenção de clínicas constantes da rede da ora Recorrente, sujeitas a uma auditoria permanente, permite garantir esta mesma segurança.

53. Por uma análise semântica, note-se que o legislador previu, também, que a cobertura mínima do seguro desportivo abrangesse o pagamento “de” despesas de tratamento e não “das” despesas de tratamento, não se vendo então como poderá o legislador ter pretendido deixar uma liberdade de escolha ao segurado.

54. Termos em que, não tendo o legislador previsto o direito de o segurado optar pelo prestador do acto médico, também nem por isso a cláusula em análise não viola o consagrado no art. 5º, nº 2, alínea b) do Decreto-Lei.

55. Para fundamentar a nulidade da cláusula em análise, o meritíssimo tribunal recorrido parte ainda da premissa de que o legislador não quis que o dever de indemnizar consagrado no art. 5º, nº 2, alínea b) do Decreto-Lei nº 10/2009 de 12.1 fosse “de forma alguma condicionado”.

56. Assim o tribunal recorrido incorre em duas falácias: i) considera que a cláusula em análise ao estabelecer tectos indemnizatórios para clínicas não convencionadas está a derrogar o art. 5º, nº 2, alínea b) do Decreto-Lei; e ii) parte do princípio de que referido preceito não pode ser aditado por um qualquer segmento contratual (mais benéfico para o segurado).

57. A cláusula 9 em análise prevê como reembolso pelo pagamento de despesas de tratamento o montante de € 5.000,00, montante superior ao previsto pelo artigo 16º alínea e) do Decreto-Lei.

58. Essa mesma cláusula permite o ressarcimento pelas despesas de tratamento dos segurados até um montante inclusive acima do previsto no artigo 16º, alínea e) do Decreto-Lei.

59. Não é por os atletas realizarem tratamentos fora da rede convencionada que deixarão de beneficiar do montante estabelecido no capital seguro.

60. Em segundo lugar, um conjunto de factores demonstram que o artigo 5º, nº 2 do Decreto-Lei é passível de ser aditado com um segmento contratual que não vá contra o objectivo pretendido pelo referido artigo:

61. I) Por um lado, aquilo que o artigo 5º do Decreto-Lei estabelece são, apenas e só, as coberturas mínimas que devem ser abrangidas pelo seguro desportivo; entre elas conta-se “despesas de tratamento”, não precisando os moldes em que devem ser pagas as despesas nessa eventualidade.

62. Ou seja, nesse mesmo artigo não se encontra proibido o reembolso pelo pagamento de despesas de tratamento por referência a todas as clínicas que se encontram fora da rede convencionada da ora Recorrente.

63. Isto mesmo concluiu a 7ª Secção do Acórdão do STJ em 8.9.2016 (processo nº 1311/11) quando se debruçou sobre a validade da cláusula do contrato de seguro que excluía o pagamento de qualquer quantia perante a verificação de uma situação de invalidez permanente fixada em grau inferior a 10%.

64. Numa situação que o tribunal recorrido não poderia deixar de considerar mais gravosa - porque referente à incapacidade permanente do segurado e não ao reembolso de despesas de tratamento -, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu pela validade da cláusula, fundamentando que o diploma que instituiu o seguro obrigatório desportivo “limita-se a estabelecer coberturas mínimas que devem ser abrangidas pelo seguro desportivo. Entre elas conta-se a invalidez permanente, não precisando (…) os moldes em que deve ser pago o capital seguro nessa eventualidade. Por isso, deve-se considerar que, nesse artigo, não se proíbe que o capital seguro seja atribuído em função do grau de incapacidade que venha a ser apurado. O facto de nada se prever não significa, inelutavelmente, que o vede”.

65. II) Por outro lado, pela consagração do artigo 6º do Decreto-Lei conclui-se que o conteúdo das cláusulas do contrato que o legislador quis especificamente proibir foi, apenas e só, as exclusões previstas nesse artigo, mas já não outros segmentos contratuais aditados ao disposto no artigo 5º do diploma que beneficiem os segurados.

66. III) A obrigação de pagamento de despesas de tratamento do segurado não tem natureza indemnizatória, pelo que resulta apenas do funcionamento dos exactos termos em que o contrato foi celebrado.

67. IV) O artigo 146º do Decreto-Lei nº 72/2008 de 16.4 (“LCS”) é uma disposição idêntica ao artigo 6º do Decreto-Lei;

68. O artigo 146º LCS é apenas relativamente imperativo (artigo 13º, nº 1 LCS), pelo que o legislador permitiu que as parte pudessem estipular outros graus de protecção para a regulação do caso que alcançassem os mesmos objectivos;

69. É o caso da cláusula 9 do contrato dos autos, tanto porque a mesma estabelece um montante de capital seguro para reembolso de despesas de tratamento superior ao previsto no Decreto-Lei, como ao estabelecer clínicas convencionadas garante que os segurados possam vir a obter uma recuperação física total, impedindo que o capital seguro se esgote numa única sessão de tratamento realizada por uma clínica à sua escolha.

70. Termos em que a definição de valores máximos de indemnização para tratamentos fora da rede não reduz de forma inadmissível o capital previsto pelo do artigo 5º do Decreto-Lei.

SEGURO DESPORTIVO OBRIGATÓRIO AQUÉM DO REGIME LEGAL

71. O Tribunal recorrido incorre em erro de aplicação do direito ao considerar que a solução do presente caso passa por considerar a cláusula em análise nula e excluída do contrato dos autos.

72. É jurisprudência assente que caso se considere que o contrato de seguro dos autos ficaria aquém da previsão do artigo 5º, nº 2, alínea b) do Decreto-Lei, a solução legal não passaria pela nulidade da cláusula, mas sim pela responsabilização da Tomadora de Seguro que celebrou o contrato nas referidas condições (Cfr., os seguintes arestos do STJ: Acórdão do STJ de 3.3.2009, CJ, Ano XVII, T. I/2009, pag. 121; Acórdão do STJ de 8.9.2016, 7ª Secção, processo nº 1311/11.5TJVNF.G1.S1; Acórdão do STJ de 25 de outubro de 2012, Processo n.º 2598/09.9TBVNG.P1.S1).

73. Caso se considerasse que o contrato dos autos não preenche de forma suficiente o disposto no artigo 5º do decreto-Lei, não seria a seguradora mas sim o tomador de seguro o responsável pelo pagamento aos Autores.

74. É também isto que resulta dos artigos 2º e 20º do Decreto-Lei, referindo este último que “As entidades que incumpram a obrigação de celebrar e manter vigentes os contratos de seguro desportivo previstos no presente decreto-lei respondem, em caso de acidente decorrente da actividade desportiva, nos mesmos termos em que responderia o segurador, caso o seguro tivesse sido contratado.”

75. Neste sentido, o Acórdão do STJ de 3.3.2009, processo 08A4004, considerou imputável ao tomador e não à seguradora o desrespeito da lei que regula o seguro desportivo obrigatório ao outorgar um seguro de grupo que não preenchia as condições claramente consignadas nesse diploma.

76. Termos em que, caso se venha a considerar que o contrato de seguro dos autos viola o disposto no artigo 5º do Decreto-Lei, deverá imputar-se a responsabilidade à Associação Portuguesa de Futebol e, em consequência, ser a ora Recorrente absolvida, sob pena de violação dos artigos 2º e 20º do Decreto-Lei nº 10/2009 de 12.1.

77. Assim sendo, face à validade da cláusula do contrato de seguro em análise, impõe-se, salvo o devido respeito, a aplicação da mesma ao caso dos autos e a absolvição da Recorrente, sob pena de violação dos artigos 2º, 6º e 20º do Decreto-Lei nº 10/2009 de 12.1, artigos 11º, 45º, 48º, nº 5, 146º, 147º do Decreto- Lei nº 72/2008 de 16/4, artigos 405º, 406º e 443º do Código Civil, e artigos 607º, nº 4 e 5 do Código de Processo Civil.
*
1.2.2. Contra-alegações

O Autor (M. R.) contra-alegou, pedindo que fosse negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (reproduzindo-se ipsis verbis as respectivas conclusões, embora limitadas exclusivamente ao que ora nos interessa):

(…)
20. A Recorrente veio interpor recurso da douta sentença proferida nos presentes autos, dizendo não poder conformar-se com a mesma, ao decidir esta, como decidiu.

21. Salvo o devido respeito por opinião diversa, não assiste qualquer razão à Recorrente, não merecendo a douta sentença recorrida qualquer reparo, pelo que deverá manter-se na íntegra.

22. Bem andou a Meritíssima Juiz a quo na douta decisão que proferiu, a qual, como deixamos já afirmado, não nos merece qualquer censura, por se encontrar plenamente alicerçada na factualidade assente e na factualidade que a prova produzida demonstrou, à qual foi efectuada correta aplicação do direito.

23. Os argumentos usados pela Recorrente carecem de consistência, quer do ponto de vista da interpretação dos factos, quer do ponto de vista da aplicação do direito, como infra se demonstrará.

24. Efectivamente, concorda-se com a forma como o Tribunal a quo apreciou a prova, concordando igualmente com as corretas conclusões jurídicas extraídas das premissas de facto estabelecidas.

25. Como é consabido, “a apreciação da prova na Relação envolve «risco de valoração» de grau mais «elevado» que os que se correm em 1ª Instância, onde são observados os princípios da imediação, da concentração e da oralidade, já que, no caso em apreço, a gravação/transcrição não permite colher, por intuição, tudo aquilo que o Julgador pode apreender, quando tem a testemunha ou o depoente diante de si. Quando o Juiz tem diante de si a testemunha ou o depoente de parte, pode apreciar as suas reacções, apercebe-se da sua convicção e da espontaneidade, ou não, do depoimento, do perfil psicológico de quem depõe; em suma, daqueles factores que são decisivos para a convicção de quem julga que, afinal, é fundada no juízo que faz acerca da credibilidade dos depoimentos.” (Ac. Relação Porto de 19 de Fevereiro de 2004, Processo nº 0350455).

26. Como ensina Antunes Varela (in Manual de Processo Civil, 2ª ed., p. 657): "Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar".

27. Assim sendo, sempre se entenderá que “O Tribunal da Relação só deve alterar a matéria de facto, em que assenta a decisão recorrida, caso seja evidente a má apreciação e valoração feitas na 1ª instância, já que a reapreciação da prova gravada está limitada pela ausência de imediação e oralidade, princípios da maior relevância na formulação do processo de convicção probatória.” (Ac. Relação Porto de 19 de Fevereiro de 2004, Processo nº 0350455).

28. Assim, no caso sub iudice, importará aferir, desde logo, se as alegadas desconformidades entre a prova produzida e a resposta dada à matéria de facto é “flagrante”, “grosseira”.

29. Na verdade, a apreciação da prova em 2ª instância não pode constituir um segundo julgamento da matéria de facto nem contender com o princípio da livre apreciação da prova.
(…)
49. Importa ainda atentar nas declarações dos dois médicos que prestavam serviços na clínica P., nomeadamente:

50. o depoimento da Testemunha N. T. - médico ortopedista que prestava serviços na clínica P. - prestado a 06/09/2018 (com a duração de 44 minutos e 34 segundos, desde 09:58:54 a 10:43:29), aos 15:00', aos 17:22', aos 19:54', aos 23:20', aos 24:00', aos 32:48' e aos 33:20';

51. o depoimento da Testemunha J. C. - médico de medicina física e reabilitação que prestava serviços na clínica P. - prestado a 06/09/2018 (com a duração de 27 minutos e 1 segundos, desde 14:26:01 a 14:53:03), aos 15:15' e aos 17:34'.

52. Ambas as testemunhas disseram que não tinham dúvidas quanto à efectiva execução dos tratamentos de fisioterapia,

53. e que dado o desenvolvimento da lesão dos atletas algo estava a ser feito, e bem.

54. Depois destes dois depoimentos, claramente desinteressados e cristalinos, não podem restar quaisquer tipo de dúvidas quanto à efectiva execução das sessões de fisioterapia prescritas pelos médicos.

55. Importa ainda atentar no depoimento da testemunha F. M. - fisioterapeuta e gerente da clínica P. - prestado a 06/09/2018 (com a duração de 54 minutos e 24 segundos, desde 10:44:36 a 11:39:01), aos 30:20', em que afirma que após o fim dos tratamentos prescritos de fisioterapia, é normal deixar os pacientes usufruir do ginásio existente na clínica para reforço muscular, que era feito 1 ou 2 vezes por semana.
()
61. Quanto ao demandante M. R.,

62. alega a recorrente que o demandante M. R. não conseguiu provar que foi sujeito às sessões de fisioterapia e que lhe pertencia o ónus desta prova.

63. Di-lo, talvez, apenas por este não ter estado presente em julgamento e não ter deposto, mas a verdade é que o depoimento de parte não é o único meio probatório.

64. Basta atentar nos Docs. 161 a 170 juntos com a Petição Inicial e com os depoimentos das testemunhas N. T. e J. C., ambos médicos que prestaram e prestam serviços na P..

65. Atente-se no depoimento da Testemunha N. T. - médico ortopedista que prestava serviços na clínica P. - prestado a 06/09/2018 (com a duração de 44 minutos e 34 segundos, desde 09:58:54 a 10:43:29), aos 22:50’, aos 24:07’, aos 39:34 e aos 41:30.
E no depoimento da Testemunha N. T. - médico ortopedista que prestava serviços na clínica P. - prestado a 06/09/2018 (com a duração de 44 minutos e 34 segundos, desde 09:58:54 a 10:43:29), aos 20:48’ e aos 22:47’.

66. Ora, tendo em conta estes dados, parece claro que está mais que provado que o demandante M. R. sofreu a lesão e se sujeitou a todas as sessões de fisioterapia, as quais, aliás segundo a prova produzida, poderiam, quando muito, pecar por defeito, por escassas.

67. Como já foi referido supra, apenas quanto ao pedido do demandante M. R. é que o recurso poderá ser apreciado por este Tribunal, mas que, pela prova produzida, terá que forçosamente improceder.

68. Quanto à falta de pagamento dos tratamentos pelos demandantes,

69. bem andou o tribunal a quo ao decidir como decidiu.

70. De facto, apesar de não se ter provado os pagamentos por parte dos demandantes - note-se que não conseguir provar é diferente de efectivamente não o ter feito - existiu um dano, uma perda patrimonial que se reflectiu, que teve repercussões negativas, na esfera jurídico-patrimonial dos demandantes.

71. Aqueles demandantes que efectivamente ainda não pagaram os tratamentos, não deixam de ter um dano na sua esfera jurídica, uma dívida. São, neste momento, devedores do valor dos tratamentos realizados pela P..

72. Ora, não há dúvidas que as lesões existiram. Não há dúvidas que os tratamentos foram efectuados. Não há dúvidas que esses tratamentos implicam um custo.

73. Assim, não pode também haver dúvidas de que há um dano patrimonial na esfera jurídica dos demandantes, tendo ou não suportado, ainda, os custos dos tratamentos.

74. Quanto à validade da cláusula 9 do contrato de seguro:

75. Também aqui, esteve bem o tribunal a quo em decidir como decidiu, ora veja-se:

76. O seguro desportivo – DL n.º 10/2009, de 12 de Janeiro – que é obrigatório para todos os agentes desportivos inscritos em federações dotadas de utilidade pública desportiva – cobre os riscos de acidentes pessoais inerentes à actividade desportiva.
As coberturas mínimas do seguro desportivo, designadamente de grupo, comportam, por um lado, o pagamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da actividade desportiva, e, por outro lado, o pagamento de despesas de tratamento, incluindo internamento hospitalar, e de repatriamento (art. 5.º, nº 2).

77. Os capitais mínimos obrigatórios são actualizados no início de cada época desportiva, desconhecendo-se qual o seu valor na época em que se verificaram os sinistros.

78. Note-se que a justificação da existência de um seguro obrigatório com incidência temática na actividade desportiva não profissional justifica-se até porque “o desporto, até por definição, é uma actividade predominantemente física, exercitada com carácter competitivo. Cobrir os riscos, através da instituição do seguro obrigatório, é uma necessidade absoluta para a segurança dos praticantes.”.

79. Para alcançar tal desiderato, no desenvolvimento da Lei n.º 1/90, de 13 de Janeiro – Lei de Bases do Sistema Desportivo – foi publicado o Decreto-Lei n.º 146/93, de 26 de Abril, diploma pelo qual se instituiu o regime jurídico do seguro desportivo, enquanto seguro obrigatório.

80. Com os seguros obrigatórios atende-se a uma necessidade social fundamental, a de assegurar que o beneficiário chegue, efectivamente, a usufruir da cobertura. É certo que um sistema de seguros não evita o risco, mas previne o perigo das vítimas não obterem o ressarcimento.

81. Constitui a categoria dos seguros obrigatórios um elemento fundamental da moderna actividade seguradora, expressando ela um dos pólos da distinção mais intuitiva que podemos configurar nessa actividade: a existência de seguros obrigatórios e de seguros facultativos. A existência (rectius, a celebração e o essencial do conteúdo) destes últimos é entregue à autonomia das partes (tratando-se de uma actividade, pode esta ser coberta ou não, nas suas incidências, por um seguro).
Diversamente, a categoria dos seguros obrigatórios pressupõe uma celebração imposta por disposição legal em sentido amplo, verificados determinados pressupostos associados a essa obrigatoriedade (constitui exemplo paradigmático o da circulação automóvel).

82. A actividade desportiva está integrada no domínio dos seguros obrigatórios.

83. O Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril – que tem a designação de "regime jurídico do contrato de seguro" – prevê a existência de seguros obrigatórios, cuja regulamentação pressupõe elementos necessários (elementos que as partes não podem afastar), numa espécie de reserva de conteúdo mínimo da relação contratual correspondente.

84. Nos seguros obrigatórios verifica-se uma convergência entre elementos negociais estabelecidos no quadro da autonomia das partes (se quisermos, negociados livremente) e elementos necessários (se quisermos, imperativos), modelados exteriormente ao exercício dessa autonomia e, em certo sentido, a ela subtraídos.

85. O seguro aqui em causa - que é, como se demonstrou, o seguro obrigatório previsto no DL 10/2009 - "[...] cobre os riscos de acidentes pessoais inerentes à actividade desportiva" (artigo 5.º, n.º 1).

86. Está-se perante, de acordo com o DL 72/2008, um "seguro de pessoas", no sentido em que o definem (agora) os artigos 175.º e 176.º deste Diploma: Artigo 175.º (Objecto):
1 - O contrato de seguro de pessoas compreende a cobertura de riscos relativos à vida, à saúde e à integridade física de uma pessoa ou de um grupo de pessoas nele identificadas. 2 - O contrato de seguro de pessoas pode garantir prestações de valor predeterminado não dependente do efectivo montante do dano e prestações de natureza indemnizatória

e Artigo 176.º (Seguro de várias pessoas):
1 - O seguro de pessoas pode ser contratado como seguro individual ou seguro de grupo.”.

87. Aqui chegados, tem que se referir que os seguros obrigatórios só podem cabalmente desempenhar a função social para que foram criados se à vítima, ao beneficiário, forem inoponíveis quaisquer excepções resultantes do contrato.

88. Da obrigatoriedade da assistência em rede convencionada:

89. A suposta existência de “rede convencionada”, bem como de limites aos valores das despesas de tratamento, desde que compreendidas dentro das coberturas mínimas, traduz-se na redução das coberturas mínimas obrigatórias, frustrando o carácter imperativo do artigo 5.º do DL 10/209, de 12 de Janeiro, que, em ultima ratio, se traduz num esvaziamento do objecto do contrato de seguro, que é obrigatório.

90. É que a norma constante do art. 5.º, n.º 2, ao estipular coberturas mínimas para o seguro desportivo, integra norma imperativa, pelo que não pode ser derrogada ou restringida por acordo das partes, sob pena de nulidade, nos termos do disposto no art. 294.º do C. Civil, sendo que tais cláusulas deverão ser sempre interpretadas de acordo com a regra in dúbio contra stipulatorum, pela qual o contrato seguro se rege em sede interpretativa (arts. 236.º a 238.º do C. Civil) – teoria da impressão do destinatário –, embora em relação às cláusulas contratuais gerais, enquanto contrato de adesão, há que ponderar ainda as regras especiais previstas no RJCCG, mais concretamente nos seus arts. 10.º e 11.º, devendo, na dúvida, prevalecer o sentido mais favorável ao aderente” (cfr. Acórdão TRG, de 2 de Julho de 2013, Proc. N.º 1344/11.1TBVCT.G1), sendo esta, portanto, a regra à luz da qual estas cláusulas devem ser interpretadas (in dubio contra stipulatorem ou in dubio contra proferentem).

91. A inutilização do contrato de seguro desportivo, pelo esvaziamento do seu objecto, pode ocorrer como quando se exclui a possibilidade e liberdade de a pessoa segura, o beneficiário, recorrer aos tratamentos que os profissionais médicos entendam por necessários para restabelecimento da sua integridade física, da sua saúde.

92. O legislador não distingue o recurso a profissionais médicos à escolha do beneficiário daqueles constantes de uma suposta rede convencionada, com o que, não distinguindo a lei, também o não pode fazer o contrato, o predisponente, nem o intérprete, sendo que a lei apenas estabelece o máximo de responsabilidade (de cada cobertura) da seguradora.

93. Estamos, repete-se, perante um seguro obrigatório, o qual – contrariamente ao que sucede nos contratos de natureza facultativa – não deixa às partes toda a liberdade contratual no sentido de estas poderem fazer incluir, no contrato, as cláusulas que lhes aprouver.

94. Posto isto, se a intenção do legislador fosse no sentido de impor a obrigatoriedade de recurso a uma determinado médico (indicado pela seguradora) ou a uma determinada rede convencionada, à semelhança do que sucede na Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro – que regulamenta o Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais (LAT), o qual prevê, no n.º 1 do artigo 28.º, que, em regra, “a entidade responsável tem o direito de designar o médico assistente do sinistrado” (excepcionando apenas, no n.º 2, as quatro situações em que pode o sinistrado recorrer a qualquer outro), neste tipo de seguros, o legislador tê-lo-ia igualmente expressamente estipulado para os contratos como aquele em apreço.

95. Porém, a Lei do Regime Jurídico do Seguro Desportivo (DL 10/2009 de 12 de Janeiro) não prevê nem obriga o sinistrado a recorrer a supostas redes convencionadas, pelo que o facto de o contrato o fazer, obrigando o sinistrado, pessoa segura, a recorrer a uma rede convencionada (quando as condições gerais lhe concedem a liberdade de escolha), bem como a estabelecer valores mínimos para tratamentos, faz com que a cláusula – alegadamente constante das condições particulares – que estabelece tais limitações seja nula.

96. O que alegadamente sucede é que, nos termos das condições particulares da apólice do seguro em apreço, se compele o sinistrado a recorrer a uma rede convencionada, bem como se impõem limites (diga-se, perfeitamente irrazoáveis e desconformes com o preçário usado no foro: € 8,00 por tratamento, incluindo consultas médicas !?).

97. Ora, de acordo com o disposto nos arts. 405.º e 406.º do C.C., é permitida às partes a livre fixação do conteúdo do contrato, os quais uma vez firmados devem ser pontualmente cumpridos.

98. Todavia, essa autonomia da vontade e liberdade contratuais têm limites, não podendo desrespeitar leis imperativas conforme resulta do art. 405.º n.º 1 do C.C., pois elas têm de se conter "dentro dos limites da lei".

99. Tais limites da lei "(...) visam a tutela de interesses das partes - nomeadamente a correcção e a justiça substancial nas suas relações -, ao lado de valores colectivos - como sejam a salvaguarda de princípios de ordem pública e da facilidade e segurança do comércio jurídico. Postula-se modernamente uma concepção de contrato dominada por imperativos éticos e sociais. Sobressai o princípio intervencionista, em particular dos contratos que vão participando do chamado direito social, de que representam exemplos expressivos as relações de trabalho e as de arrendamento rural e urbano, assim como a esfera da defesa do consumidor" - (cfr. Almeida Costa in "Direito das Obrigações", 2006, Almedina p. 241/242).

100. Tal resulta ainda do disposto no art. 6.º do diploma legal em apreço.

101. É que a lei fixa, de modo imperativo, certos limites máximos que interferem com o conteúdo válido do negócio, porquanto limitam a sua eficácia no plano temporal ou quantitativo.

102. Se a injunção legal for violada, só é afectada a cláusula excessiva, então considerada nula.

103. Contudo, o negócio não fica a subsistir como se a cláusula não existisse; no lugar dela prevalece a estatuição legal definidora do conteúdo máximo admissível para o acto.

104. As razões que justificam esta solução são de índole diversa, mas todas elas se prendem com a necessidade de fazer prevalecer o regime legal, por só este assegurar a solução tida como mais adequada à composição dos interesses em causa. Se assim não acontecesse, se a cláusula nula fosse eliminada sem mais, isso podia envolver uma solução injusta para alguma das partes ou pôr em causa interesses de ordem geral, de natureza social ou económica, que aos dos contraentes se devem sobrepor.

105. Deste modo, mantendo-se a lei (e até as condições gerais) para além do seu cumprimento, estar-se-á a proteger a parte mais débil – a pessoa segura.

106. Destarte, invoca-se expressamente, para os todos os legais efeitos, a nulidade daquelas cláusulas constantes das condições particulares.

107. Veja-se ainda a título de exemplo a cláusula segundo a qual a “Invalidez Permanente igual ou inferior a 10% não é indemnizável”. Na verdade, de acordo com a Jurisprudência unitária, o normativo do artigo 5º do DL 10/2009 (cobertura legalmente estabelecida obrigatória, dado ser essa a natureza do seguro) tem natureza imperativa, cobrindo todas as desvalorizações funcionais, razão por que não pode considerar-se válida a cláusula geral do contrato que exclui a indemnizações referentes a desvalorizações funcionais inferiores a 10%, deduzindo-se que, sendo obrigatória, no mínimo, a cobertura da invalidez permanente parcial, essa obrigação se refere a toda e qualquer incapacidade permanente parcial (IPP), e não só à que seja igual ou supere os 10% de incapacidade – vide a este título Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, 15-01-2015 (em que é relator o Dr. Juiz Desembargador Heitor Gonçalves) e Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, Proc. no 165/06.8TBGVA.C1, disponíveis em www.dgsi.pt.

108. Refira-se que os limites para a cobertura – cfr. artigos 5º, n.º 2 e 16.º, al. e) do DL 10/2009 – não foi, em qualquer dos casos, i. e, dos demandantes, atingido, com excepção no que ao demandante M. R. se refere, com o que, neste caso, só será devido o valor até ao limite previsto na lei.

109. A demandada, ao impor uma rede convencionada, com valores, incluindo consulta, de € 8,00 por tratamento, muito aquém daqueles que comummente são normais e usuais no âmbito dos tratamentos, da prestação de serviços, de fisioterapia, pretende que os beneficiários não se socorram do seguro e, assim, defraudar a lei, o seu objectivo (cfr. art. 281.º do CC), o que expressamente se invoca.

110. Aliás, como bem diz o tribunal a quo: “Aliás, o legislador previu que o dever de indemnização fosse em dinheiro e não em espécie, por isso tendo previsto a responsabilidade pelo pagamento de despesas de tratamento e não pelo tratamento, assim deixando ao segurado a liberdade de optar pelo prestador do acto médico, direito que sai coarctado pela norma de exclusão/limitação em causa.”

111. As agremiações desportivas e os atletas recorrem para os tratamentos a profissionais que lhe dão confiança pelo seu profissionalismo, não sendo irrelevante ainda a questão da localização da clínica/estabelecimento onde recebem os tratamentos.

112. Assim, nos termos contratuais e legais, compete à demandada, para quem foi transferida a responsabilidade obrigatória por sinistros, sofridos por atletas filiados na Associação de Futebol de X, o reembolso das despesas por estes suportadas, dentro dos limites/coberturas mínimas, para restabelecimento do seu estado de saúde e integridade física.
*
II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.ºs 1 e 2, ambos do C.P.C.), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, n.º 2, in fine, ambos do C.P.C.).

Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação).
*
2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar

Mercê do exposto, 02 questões foram submetidas à apreciação deste Tribunal:

Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e valoração da prova produzida, nomeadamente porque a mesma

. não permitia que se dessem como demonstrados os factos provados enunciados sob o número 100 («Posteriormente, o Dr. J. C. prescreveu-lhe tratamento de Medicina Física e de Reabilitação, tendo cumprido um total de 40 sessões») e sob o número 101 («Como consequência dos diversos tratamentos, o demandante suportou a quantia de € 5.068,15 (cinco mil cento e vinte oito euros e quinze cêntimos), dos quais € 180,00 para fisiatria, € 250,00 para a RMN, € 2.838,15 para a intervenção cirúrgica, € 1.800,00 para fisioterapia e € 60,00 para consulta de ortopedia, nos termos das seguintes facturas») ?

- Deverá ser alterada a decisão de mérito proferida (nomeadamente, face ao prévio sucesso da impugnação de facto feita, mas também de forma independente dele), por forma a que se julgue a acção totalmente improcedente (nomeadamente, por ser válida a cláusula 9ª das condições particulares do contrato de seguro desportivo, e/ou as que impunham ao Autor o prévio pagamento do custo dos tratamentos em que alegadamente incorreu) ?
*
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1. Decisão de Facto do Tribunal de 1ª Instância

3.1.1. Factos Provados

Realizada a audiência de julgamento no Tribunal de 1ª Instância, resultaram provados os seguintes factos (limitados ao que ora nos interessa):

1 - Entre a Associação de Futebol de X, como tomadora, e K Limited - Sucursal em Portugal (aqui Ré) foi celebrado um contrato de seguro desportivo de grupo de acidentes pessoais para as épocas 2014/2015, 2015/2016, 2016/2017, titulado pela apólice nº ..., a que respeitam as «Condições Particulares» de fls. 222 a 242, cujo teor aqui se dá por reproduzido, e as «Condições Gerais» de fls. 315 a 341, cujo teor aqui se dá por reproduzido, pelo qual a Ré se obrigou a cobrir acidentes pessoais de que fossem vítimas os praticantes desportivos amadores (pessoas seguras) dos clubes filiados na referida Associação (Tomador), pelo capital máximo de € 28.000,00 (vinte e oito mil euros, e zero cêntimos) com o sublimite máximo, por sinistro, de € 5.000,00 (cinco mil euros, e zero cêntimos) para despesas de tratamento, aplicando-se uma franquia de € 75,00 (setenta e cinco euros, e zero cêntimos) por sinistro para petizes, traquinas, benjamins e infantis, sendo que aos restantes se aplicaria uma franquia de € 150,00 (cento e cinquenta euros, e zero cêntimos) por sinistro.

2 - É o seguinte o teor do Ponto «9. Restantes Termos e Condições» das «Condições Particulares» do contrato referido em 1:
«(…)
Os sinistrados serão assistidos nos hospitais e centros médicos convencionados, colocados à disposição pela gestão clínica e de acordo com o Manual de Procedimentos ou em hospitais civis em situações de urgência comprovada.
No caso de uma Pessoa Segura optar por efectuar uma Cirurgia ou um outro qualquer tratamento médico, num estabelecimento que não o designado pela Seguradora, carecerá ainda assim de pré-autorização e o pagamento das respectivas despesas será limitado ao valor que a mesma cirurgia custaria na Entidade designada.
(…)»

95 - M. R. (aqui Autor) é atleta do C.D. Ys, na categoria de júnior, com o n.º …, onde é atleta amador.

96 - No dia 30 de Abril de 2016, o Autor (M. R.) - num dos habituais treinos do seu clube, numa disputa de bola mais acesa com um colega - sofreu um forte impacto do outro jogador.

97 - O pé do Autor (M. R.) ficou preso na relva e o movimento de rotação do joelho, resultaram numa entorse do joelho esquerdo.

98 - No dia seguinte ao sinistro, a conselho do Clube, o Autor (M. R.) dirigiu-se à Clínica Médica P., onde foi observado pelo médico J. C., que lhe diagnosticou entorse no joelho esquerdo, tendo solicitado a realização de uma ressonância magnética (RMN), a qual revelou uma rotura completa do ligamento cruzado anterior da perna esquerda.

99 - Perante este diagnóstico e a gravidade da lesão, o Autor (M. R.) foi submetido a uma ligamentoplastia, na Clínica Médico-Cirúrgica de ....

100 - Posteriormente, o médico J. C. prescreveu ao Autor (M. R.) tratamento de Medicina Física e de Reabilitação, tendo cumprido um total de 40 sessões.

101 - Como consequência dos diversos tratamentos, o Autor (M. R.) suportou a quantia de € 5.068,15 (cinco mil, cento e vinte oito euros, e quinze cêntimos), dos quais € 180,00 para fisiatria, € 250,00 para a RMN, € 2.838,15 para a intervenção cirúrgica, € 1.800,00 para fisioterapia, e € 60,00 para consulta de ortopedia, nos termos das seguintes facturas:
. Factura/Recibo FR 2016/186, no valor de € 60,00, datada de 30.09.2016;
. Factura/Recibo FR 2017/17, no valor de € 5.068,15, datada de 24/06/2016.

102 - O Autor (M. R.) liquidou a franquia, no valor de € 150,00 (cento e cinquenta euros, e zero cêntimos).

103 - A Ré (K Limited - Sucursal em Portugal) exigiu aos Autores, para abertura do processo de sinistro, o prévio pagamento da franquia, independentemente de se haveria indemnização a liquidar futuramente.

104 - A clínica P. - Clínica Médica, Lda., está fora da rede convencionada da Ré (K Limited - Sucursal em Portugal).
*
3.1.2. Factos não provados

Na mesma decisão, o Tribunal de 1ª Instância considerou como não provados os seguintes factos (limitados ao que ora nos interessa):

(…)
B - Os Autores suportaram o valor das facturas correspondentes aos tratamentos.

C - Todas as cláusulas referidas em 1 foram devidamente comunicadas e esclarecidas à Associação de Futebol de X.
*
3.2. Modificabilidade da decisão de facto - Erro de julgamento

3.2.1. Incorrecta apreciação da prova legal - Poder (oficioso) do Tribunal da Relação

Lê-se no art. 607.º, n.º 5 do C.P.C. que o «juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto», de forma consentânea com o disposto no C.C., nos seus art. 389.º do C.C. (para a prova pericial), art. 391.º do C.C. (para a prova por inspecção) e art. 396.º (para a prova testemunhal).
Contudo, a «livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes» (II parte, do n.º 5, do art. 607.º do C.P.C. citado, com bold apócrifo).

Mais se lê, no art. 662.º, n.º 1 do C.P.C., que a «Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».

Logo, quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto - que a ela conduza - constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do art. 607.º, n.º 4 do C.P.C., aqui aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2 do mesmo diploma).

Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no C.C.), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspectos não respeita apenas às provas a produzir em juízo.

Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa. Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico - com força probatória plena - cuja falsidade não tenha sido suscitada (arts. 371.º, n.º 1 e 376.º, n.º 1, ambos do C.P.C.), ou quando exista acordo das partes (art. 574.º, n.º 2 do C.P.C.), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (art. 358.º do C.C., e arts. 484.º, n.º 1 e 463.º, ambos do C.P.C.), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (vg. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos arts. 351.º e 393.º, ambos do C.P.C.).
Ao fazê-lo, tanto poderá afirmar novos factos, como desconsiderar outros (que antes tinham sido afirmados).
*
3.2.2. Incorrecta livre apreciação da prova

3.2.2.1. Âmbito da sindicância (provocada) do Tribunal da Relação

Lê-se no n.º 2, als. a) e b), do art. 662.º citado, que a «Relação deve ainda, mesmo oficiosamente»: «Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade de depoente ou sobre o sentido do seu depoimento» (al. a); «Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova» (al. b)».

«O actual art. 662.º representa uma clara evolução [face ao art. 712.º do anterior C.P.C.] no sentido que já antes se anunciava. Através dos n.ºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e fundar a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis.

(…) Afinal, nestes casos, as circunstâncias em que se inscreve a sua actuação são praticamente idênticas às que existiam quando o tribunal de 1ª instância proferiu a decisão impugnada, apenas cedendo nos factores de imediação e da oralidade. Fazendo incidir sobre tais meios probatórios os deveres e os poderes legalmente consagrados e que designadamente emanam dos princípios da livre apreciação (art. 607.º, n.º 5) ou da aquisição processual (art. 413.º), deve reponderar a questão de facto em discussão e expressar de modo autónomo o seu resultado: confirmar a decisão, decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão num sentido restritivo ou explicativo» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 225-227).

É precisamente esta forma de proceder da Relação (apreciando as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios, e indo à procura da sua própria convicção), que assegura a efectiva sindicância da matéria de facto julgada, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise (conforme Ac. do STJ, de 24.09.2013, Azevedo Ramos, comentado por Teixeira de Sousa, Cadernos de Direito Privado, nº 44, p. 29 e ss.).
*
3.2.2.2. Modo de operar o duplo grau de jurisdição - Ónus de impugnação

Contudo, reconhecendo o legislador que a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto «nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência», mas, tão-somente, «detectar e corrigir pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento» (preâmbulo do DL 329-A/95, de 12 de Dezembro), procurou inviabilizar a possibilidade de o recorrente se limitar a uma genérica discordância com o decidido, quiçá com intuitos meramente dilatórios.

Com efeito, e desta feita, «à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respectivas alegações que servem para delimitar o objecto do recurso», conforme o determina o princípio do dispositivo (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 228, com bold apócrifo).

Lê-se, assim, no art. 640.º, n.º 1 do C.P.C. que, quando «seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».

Precisa-se ainda que, quando «os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados», acresce àquele ónus do recorrente, «sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes» (art. 640.º, n.º 2, al. a) citado).

Logo, deve o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada; e esta última exigência (contida na al. c) do n.º 1 do art. 640.º citado), «vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente», devendo ser apreciada à luz de um critério de rigor enquanto «decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes», «impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 129, com bold apócrifo).

Dir-se-á mesmo que as exigências legais referidas têm uma dupla função: não só a de delimitar o âmbito do recurso, mas também a de conferir efectividade ao uso do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).

Por outras palavras, se o dever - constitucional e processual civil - impõe ao juiz que fundamente a sua decisão de facto, por meio de uma análise crítica da prova produzida perante si, compreende-se que se imponha ao recorrente que, ao impugná-la, apresente a sua própria. Logo, deverá apresentar «um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido» por si (Ac. da RP, de 17.03.2014, Alberto Ruço, Processo n.º 3785/11.5TBVFR.P1, in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem).

Com efeito, «livre apreciação da prova» não corresponde a «arbitrária apreciação da prova». Deste modo, o Juiz deverá objectivar e exteriorizar o modo como a sua convicção se formou, impondo-se a «identificação precisa dos meios probatórios concretos em que se alicerçou a convicção do Julgador», e ainda «a menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto» (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1985, p. 655).

«É assim que o juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)» (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 325).

«Destarte, o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (provado, não provado, provado apenas…, provado com o esclarecimento de que…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol. I, pág. 591, com bold apócrifo).

Dir-se-á mesmo que, este esforço exigido ao Juiz de fundamentação e de análise crítica da prova produzida «exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo Tribunal Superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao acto jurisdicional» (José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2013, p. 281).

É, pois, irrecusável e imperativo que, «tal como se impõe que o tribunal faça a análise crítica das provas (de todas as que se tenham revelado decisivas)… também o Recorrente ao enunciar os concreto meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa deve seguir semelhante metodologia», não bastando nomeadamente para o efeito «reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, p. 595, com bold apócrifo).

De todo o exposto resulta que o âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se de acordo com os seguintes parâmetros: só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo recorrente; sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento; e nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).

Importa, porém, não esquecer - porque (como se referiu supra) se mantêm em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta -, que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.

Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância. «Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, pág. 609).
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3.2.2.3. Caso concreto (cumprimento do ónus de impugnação)

Concretizando, considera-se que a Recorrente (K Limited - Sucursal em Portugal) cumpriu o ónus de impugnação que lhe estava cometido pelo art. 640.º, n.º 1 e n.º 2, al. a), do C.P.C. (conclusão distinta de saber se existe fundamento para a pretendida alteração dos factos julgados como provados).

Com efeito, indicou nas suas conclusões de recurso: os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (os factos provados enunciados na sentença recorrida sob os números 100 e 101); os concretos meios probatórios que imporiam decisão diferente (no caso, uma diferente valoração dos documentos juntos de fls. 161, verso, a 191, verso, e dos depoimentos prestados pelas testemunhas N. T. e J. C.); e a decisão que, no seu entender, se impunha (o darem-se como não demonstrados os factos provados enunciados na sentença recorrida sob os números 100 e 101).

A Recorrente (Ré) indicou ainda com exactidão as passagens da gravação dos depoimentos seleccionados para fundar a sua sindicância, e simultaneamente procedeu à transcrição da sua parte mais relevante.

Relativamente ao juízo crítico próprio, a Recorrente (Ré) assentou o mesmo na reclamação de uma diferente valoração a fazer da prova documental e pessoal produzidas, por ela seleccionadas para o efeito.

Por outras palavras, admitindo-se necessariamente que o Tribunal a quo examinou os documentos juntos e ouviu integralmente os depoimentos escolhidos, certo é que fez dos mesmos uma outra valoração, ajuizando todo o seu conjunto face à demais prova produzida e às regras da experiência.

Assim, pretendendo a Recorrente (Ré) sindicar este juízo, importaria que indicasse as razões objectivas pelas quais entende que às provas documental e pessoal que seleccionou deveria ter sido dada outra relevância, nomeadamente, refutando de forma fundada as razões objectivas apresentadas pelo Tribunal a quo em sentido contrário; e fê-lo de facto.

Crê-se, assim, estar este Tribunal da Relação em condições de poder proceder, nos termos autorizados pelo art. 640º do C.P.C., à reapreciação da matéria de facto pretendida pela Ré (K Limited - Sucursal em Portugal), aqui recorrente.
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3.3. Modificabilidade da decisão de facto - Caso concreto

3.3.1. Realização de quarenta sessões de fisioterapia
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 100)

Veio a Recorrente (K Limited - Sucursal em Portugal) defender que a prova produzida não permitia que se desse como provado que o Autor (M. R.) beneficiou da realização de quarenta sessões de fisioterapia.
Esta factualidade encontra-se vertida no facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 100 («Posteriormente, o Dr. J. C. prescreveu-lhe tratamento de Medicina Física e de Reabilitação, tendo cumprido um total de 40 sessões»).
Invocou para o efeito uma diferente valoração dos documentos juntos de fls. 161, verso, a 191, verso, e dos depoimentos prestados pelas testemunhas N. T. (médico ortopedista) e J. C. (médico fisiatra).

Começa-se por considerar o juízo de prova vertido na sentença recorrida, para depois se aferir da bondade da sindicância que lhe foi feita pela Recorrente.
Assim, ponderou a mesma para este efeito (limitando-se a reprodução às partes relevantes e com bold apócrifo, aposto nos segmentos que se consideraram mais significativos, atento o objecto da sindicância):
«(…)
Para a formação da sua convicção quanto à factualidade relativa aos acidentes sofridas pelos demandantes e tratamentos por si realizados com vista a debelar as lesões dali resultantes, atentou o tribunal (…) a testemunha R. V., presidente do club desportivo de Ys, confirmado os sinistros relativos aos demandantes F. B. e M. R., sendo que (…) os documentos de fls. 92 verso, 166, 187 e 188 demonstram que muitos dos atletas foram mesmo sujeitos a exames de diagnóstico e cirurgia, tudo inculcando a firme convicção da efectiva ocorrência dos sinistros alegados pelos demandantes, convicção esta que saiu reforçada em face do depoimento das testemunhas N. T., médico ortopedista, e J. C., fisiatra.

De facto, tais testemunhas atestaram, de forma que se nos afigurou imaculada, a veracidade e autenticidade da informação que, por referência a cada um dos demandantes, fizeram consignar nos inúmeros relatórios médicos que se mostram juntos aos autos, que confirmaram terem sido por si elaborados na sequência do exame clínico dos demandantes após a ocorrência das ditas lesões desportivas, tendo ainda atestado a necessidade dos tratamentos que ali prescreveram aos mesmos, incluindo, no que tange ao demandante M. R., a necessidade da realização da cirurgia a que respeita a factura de fls. 188.

É certo que a ré, com a junção dos documentos de fls. 242 verso a 244 e com o depoimento das testemunhas J. D., médico ortopedista, e J. R., perito averiguador, procurou levantar a suspeição sobre a autenticidade da informação constante dos relatórios clínicos juntos aos autos e sobre a efectiva prestação dos tratamentos de fisioterapia que ali constam prescritos, trazendo para tanto à colação a factualidade relativa a um processo-crime de que estaria a ser alvo o legal representante da P. por burla cometida a diversas seguradoras e por falsificação de relatórios médicos.

Sucede que, para além das meras suspeições assentes no comportamento inidóneo e criminoso da testemunha F. M., representante legal da P., comportamento este prontamente assumido pelo mesmo, e do alegado aliciamento da testemunha J. D. por aquela testemunha, de quem era amigo, com vista à “falsificação” de diagnósticos por forma a enquadrar no âmbito de apólices de seguro/subsistemas de saúde eventos que não se encontrariam à partido abrangidos, como admitido por tal testemunha e declarado pela testemunha A. F., responsável pelo departamento de fraude e investigação da ré, mais nenhuma prova concreta foi produzida pela ré no sentido da infirmação quer da bondade das declarações dos diversos depoentes no que tange à realização dos tratamentos, quer sobretudo do depoimento dos clínicos que os examinaram e que prescreveram aqueles tratamentos de reabilitação física/cirurgia e que garantiram a sua necessidade e efectiva prestação.

E nem a estranheza demonstrada pela testemunha João ... quanto ao número de sessões de tratamento prestadas, que reputou de “excessivas”, foi capaz de gerar qualquer dúvida no tribunal pois que tal testemunha não demonstrou qualquer razão de ciência válida para a emissão de tal juízo, tendo admitido não ter qualquer formação na área da saúde e reabilitação física, limitando-se, por isso, a tecer um juízo empírico de comparação com as situações por si anteriormente analisadas, tendo os clínicos inquiridos N. T., médico ortopedista, e J. C., fisiatra, pelo contrário, garantido, com base nos seus conhecimentos médicos, a “normalidade e razoabilidade” dos tratamentos prescritos em face das lesões que visavam tratar.

Aliás, a tese da rede criminosa que a ré procurou demonstrar ter-se criado em torno da P. como forma de tentar criar no tribunal a dúvida quanto à efectiva prestação dos tratamentos reclamados nos autos mostrou-se perfeitamente descabida em face da diferente filiação desportiva dos demandantes, que alinhavam por clubes de futebol diversificados, sendo altamente improvável que pessoas provenientes de meios tão diversificados, com diferente formação e ocupação, a maior parte deles menores de idade, fossem “concertar-se” para formar uma teia criminosa por forma a favorecer aquela clínica.

Daí que, embora se tivesse anotado a existência de alguma incongruência em certos depoimentos quanto à periodicidade das sessões, circunstância perfeitamente justificável em face do longo período de tempo já decorrido sobre a ocorrência dos factos, tal não tivesse minimamente abalado a convicção do tribunal quanto à efectiva prestação de todos os tratamentos reclamados.
(…)»

Logo, duas conclusões se podem desde já enunciar: o Tribunal a quo, no juízo de demonstração da efectiva realização de quarenta sessões de fisioterapia na pessoa do Autor (M. R.), ponderou toda a prova (documental e pessoal) produzida por iniciativa do mesmo sobre esta realidade; e, sendo a mesma conforme entre si, bem como com as regras da experiência vigentes neste domínio, teve-a por suficiente para o juízo de afirmação do facto agora controvertido.

Ora, ouvida integralmente toda a prova pessoal produzida em sede de audiência de julgamento, e consultados os documentos juntos aos autos, afirma-se desde já que se sufraga inteiramente o juízo de prova do Tribunal a quo.
*
Com efeito, e relativamente à prova documental, consubstancia a mesma relatórios clínicos (nomeadamente, os juntos a fls. 166, verso, 187, 189 e 190), neles se identificando como doente/lesado o aqui Autor (M. R.), discriminando-se o tipo de lesão física sofrida, o tratamento prescrito e a evolução clínica, constando expressamente dos mesmos: que deverá, em 03 de Outubro de 2016, «fazer 20 tratamentos de Medicina Física e de Reabilitação» (no assinado pelo médico ortopedista «Dr. N. T.»); que se prescreve, em 28 de Novembro de 2016, «20 sessões de fisioterapia para controlo do quadro álgico e inflamatório, optimização de amplitude articular e início de fortalecimento muscular analítico» (no assinado pelo médico fisiatra «Dr. J. C.»); que se prescreve, em 30 de Dezembro de 2016, «mais 20 sessões de fisioterapia para continuação do programa de fortalecimento muscular e exploração do potencial proprioceptivo e estabilidade dinâmica que se encontram muito deficitários» (no assinado pelo médico fisiatra «Dr. J. C.»); e que se prescreve, em 10 de Fevereiro de 2017, «mais 20 sessões de fisioterapia para reeducação funcional plena e diminuição do risco de nova lesão, quer no joelho intervencionado, quer no joelho contralateral, pelos naturais desequilíbrios biodinâmicos inerentes a este caso clínico», precisando-se que assim se decidia atendendo-a à concreta «fase do programa de reabilitação», ao «tempo de pós-cirurgia», aos «défices objectivos que ainda apresenta» e à «ausência ainda de programa de “return to play” específico e adequado à modalidade praticada pelo atleta» (no assinado pelo médico fisiatra «Dr. J. C.»).

Consubstanciando esta documentação clínica meros documentos particulares (art. 363.º, n.ºs 1 e 2 do C.C.), e tendo sido impugnados, ficaram sujeitos à livre apreciação do julgador (arts. 374.º e 376º, ambos do C.C. e a contrario, e art. 607.º, n.º 5 do C.P.C.); e na valoração que foi feita dos mesmos ponderou-se a falta de idónea e credível contraprova, nomeadamente a que fosse produzida com a mesma valia técnica (afirmando a desnecessidade de tais - em natureza e número - tratamentos de fisioterapia/reabilitação).

Dir-se-á ainda que, e ao contrário do sustentado pela Ré (K Limited - Sucursal em Portugal), esta prova efectiva não atesta apenas a necessidade, natureza e o número dos tratamentos a realizar, indiciando ainda que os mesmos (pelos menos os iniciais quarenta, aqui em causa) foram efectivamente prestados.
Com efeito, sendo os três relatórios clínicos do médico fisiatra (J. C.) sequenciais no tempo, reflectem a avaliação que vai fazendo da evolução clínica do atleta lesado (aqui Autor), nela nomeadamente ponderando os efeitos do anterior conjunto de vinte sessões de fisioterapia, por ele próprio prescritas.
Ficou, assim, desde logo afirmado (quanto à concreta factualidade em causa) um credível e consistente princípio de prova (no caso, documental).
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Já relativamente à prova pessoal, nomeadamente à seleccionada para este efeito pela Ré recorrente (K Limited - Sucursal em Portugal), veio a mesma a robustecer o sentido daquela outra.

Com efeito, quer a testemunha N. T. (médico ortopedista), quer a testemunha J. C. (médico fisiatra) - cuja idoneidade técnica e isenção foram reconhecidas pelo Tribunal a quo, e não sindicadas pela Ré (K Limited - Sucursal em Portugal) no recurso interposto - confirmaram a autoria dos relatórios clínicos que lhes foi imputada, bem como a veracidade das informações aí prestadas.

Instados expressamente para o efeito, reconheceram ainda que, não tendo assistido à efectiva realização (na pessoa do Autor) das quarenta sessões de fisioterapia aqui em causa, acreditavam porém que, não só se justificavam inteiramente (quando muito pecando por defeito, no expressivo dizer da testemunha N. T. - «Para o M. R. ? Parece-me pouco Sr.ª Dr.ª»), como teriam sido efectivamente realizadas, face à evolução clínica do doente, que atestaram pessoalmente.

Ora, face a esta coerente, consertada e suficiente prova produzida, não aduziu a Ré (K Limited - Sucursal em Portugal), nas suas alegações de recurso, qualquer outra que a tivesse tornado, pelo menos, duvidosa (já que tanto lhe bastaria para que os factos por ela atestados se tivessem por indemonstrados, nos termos do art. 346.º do C.C.).
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Recorda-se, por fim, que, impondo-se à Recorrente a indicação dos «concretos meios probatórios que impunham [e não apenas que permitiam] decisão sobre pontos da matéria de facto impugnados diversos da recorrida», teria que ter contrariado a apreciação crítica da prova realizada pelo Tribunal a quo, demonstrando e justificando por que razão as regras da lógica e da experiência por ele seguidas não se mostrariam razoáveis no caso concreto, conduzindo a um resultado inadmissível, por não sufragado por elas. Ora, o esforço probatório realizado nas suas alegações recurso foi, claramente, inidóneo para este efeito.

Deverá assim, e sem necessidade de mais alongadas considerações, decidir-se em conformidade, pela improcedência do recurso interposto sobre o facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 100 - que por isso permanece inalterado.
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3.3.2. Efectivo pagamento pelo Autor do custo dos tratamentos de que beneficiou, no valor global de € 5.058,15
(facto provado enunciados na sentença recorrida sob o número 101)

Veio ainda a Recorrente (K Limited - Sucursal em Portugal) defender que a prova produzida não permitia igualmente que se desse como provado que o Autor (M. R.) pagou efectivamente o custo dos tratamentos de que beneficiou, no valor global de € 5.058,15.
Esta factualidade encontra-se vertida no facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 101 («Como consequência dos diversos tratamentos, o demandante suportou a quantia de € 5.068,15 (cinco mil cento e vinte oito euros e quinze cêntimos), dos quais € 180,00 para fisiatria, € 250,00 para a RMN, € 2.838,15 para a intervenção cirúrgica, € 1.800,00 para fisioterapia e € 60,00 para consulta de ortopedia, nos termos das seguintes facturas: - Factura/Recibo FR 2016/186 no valor de € 60,00, datada de 30/09/2016; - Factura/Recibo FR 2017/17 no valor de € 5.068,15, datada de 24/06/2016»).
Invocou para o efeito ter sido o próprio Tribunal a quo quem reconhecera esta ausência de prova, ao dar como não provado, na alínea B) dos factos não provados, que: «Os demandantes suportaram o valor das facturas correspondentes aos tratamentos».

Começa-se por considerar o juízo de prova vertido na sentença recorrida, para depois se aferir da bondade da sindicância que lhe foi feita pela Recorrente.

Assim, ponderou a mesma para este efeito (limitando-se a reprodução às partes relevantes e com bold apócrifo, aposto nos segmentos que se consideraram mais significativos, atento o objecto da sindicância):

«(…)
Já não se convenceu o tribunal do efectivo pagamento dos tratamentos prestados.
De facto, embora conste junto aos autos documento de quitação emitido pela P. em tal sentido por referência a todos os tratamentos médicos prestados aos demandantes, incluindo exames e cirurgias, e embora os depoentes tivessem garantido ter realizado tal pagamento, certo é que não veio a ser produzida prova inequívoca de tais pagamentos.
Desde logo os pais do demandante D. e o demandante P. F. negaram ter realizado qualquer pagamento, sendo que a testemunha F. M. negou também que tal pagamento tivesse ocorrido por referência aos tratamentos prestados ao demandante M. R..
Ora, considerando que também por referência aos demandantes que confessadamente não pagaram o valor dos serviços de reabilitação foi emitido recibo de quitação, o que bem demonstra que a emissão de tal documento não era necessariamente precedida de pagamento, assim ficando irremediavelmente abalada a declaração de quitação constante de tais recibos, e que em comprovação dos pagamentos, e para além de tais documentos de quitação, não foi produzida qualquer outra prova senão o depoimento naturalmente interessado dos demandantes (ou seus representantes legais) ou o depoimento da testemunha Fernando, a quem se anotou um claro interesse no desfecho da acção dado que o pagamento dos seus serviços (pelo menos por referência a alguns dos demandantes) depende da procedência da acção, o tribunal não logrou atingir um estádio de certeza quanto aos pagamentos alegados pelos autores, tanto mais porque a maioria dos demandantes não conseguiu justificar de forma plausível a proveniência do dinheiro com que teriam liquidado as facturas, sendo que o rendimento da maioria dos demandantes/pais, a rondar valores próximos do salário mínimo nacional, não justifica o aforro de que os mesmos declararam ter-se socorrido para fazer face a despesas de tratamento tão avultadas como aquelas que reclamam.

Aliás, estando os mesmos convencidos que a responsabilidade do pagamento das despesas de tratamento era dos respectivos clubes, como claramente demonstraram nas suas declarações, e tendo-se dirigido à clínica que prestou os tratamentos por indicação do clube, mal se perceberia que viessem a assumir o pronto pagamento dos tratamentos sem exigir que o clube assumisse o seu pagamento.

Tal, conjugado com a circunstância de na clínica em questão existir uma placa onde se informava que os atletas assegurados poderiam pagar os tratamentos no final e após ressarcimento das seguradoras/subsistemas de saúde, tal como asseverado pela testemunha João ..., que verificou tal facto quando se deslocou à clínica no âmbito das averiguações a que procedeu, foi de molde a criar no tribunal sérias dúvidas quanto à factualidade referida em B., que, não tendo sido por qualquer forma dissipadas, lograram justificar a não demonstração de tal factualidade.
(…)»

Logo, duas conclusões se podem desde já enunciar: foi o próprio Tribunal a quo quem, de forma inequívoca na motivação da sua decisão de facto, esclareceu ter considerado que ficou provar, quanto a todos os Autores, o efectivo pagamento por eles do preço dos tratamentos de que beneficiaram; e só por manifesto lapso de escrita seu, deixou por compatibilizar a redacção do facto provado enunciado sob o número 101 com esse seu juízo (bem como com o facto não provado enunciado sob a alínea B) ), ao contrário do que tinha feito antes a propósitos dos outros dezoito co-Autores.

Ora, ouvida integralmente toda a prova pessoal produzida em sede de audiência de julgamento, e consultados os documentos juntos aos autos, afirma-se desde já que se sufraga inteiramente o juízo de prova do Tribunal a quo.

Com efeito, e no caso do único Autor recorrido (que aqui nos ocupa) foi a própria testemunha F. M. (legal representante da Clínica prestadora dos serviços em causa) quem confirmou aquela falta de pagamento, esperando obtê-lo directamente da aqui Ré (K Limited - Sucursal em Portugal).

Deverá assim, e sem necessidade de mais considerações, decidir-se em conformidade, pela procedência do recurso interposto sobre o facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 101 - cuja redacção é aqui alterada, passando a ler-se doravante no mesmo:

«101 - Os diversos tratamentos ascenderam à quantia de € 5.068,15 (cinco mil, cento e vinte oito euros, e quinze cêntimos), dos quais € 180,00 para fisiatria, € 250,00 para a RMN, € 2.838,15 para a intervenção cirúrgica, € 1.800,00 para fisioterapia e € 60,00 para consulta de ortopedia, nos termos das seguintes facturas:
- Factura/Recibo FR 2016/186 no valor de € 60,00, datada de 30/09/2016;
- Factura/Recibo FR 2017/17 no valor de € 5.068,15, datada de 24/06/2016».
*
IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Determinação e interpretação do Direito aplicável

4.1.1. Contrato de seguro

Lê-se no seu art. 1º do Dec-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril (que aprovou o Regime Jurídico do Contrato de Seguro - R.J.C.S. -, entrado em vigor em 01 de Janeiro de 2009, conforme art. 7º do mesmo diploma), epigrafado «Conteúdo típico», que, «por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente».

Assim, sem que o legislador defina expressamente o que seja um contrato de seguro (mas sim as obrigações principais das respectivas partes), pode afirmar-se que o mesmo é um contrato aleatório, pelo qual uma das partes, o segurador, compensando segundo as leis da estatística um conjunto de riscos por ele assumidos, se obriga, mediante o pagamento de uma soma determinada - o prémio - a, no caso de realização de um risco, indemnizar o segurado pelos prejuízos sofridos.

(No mesmo sentido, Ac. do STJ, de 28.06.2007, Salvador da Costa, Processo n.º 07B2142, onde se lê que «o contrato de seguro em geral é a convenção pela qual uma seguradora se obriga, mediante retribuição paga pelo segurado, a assumir determinado risco e, caso ele ocorra, a satisfazer ao segurado ou a terceiro, uma indemnização pelo prejuízo ou um montante estipulado». Sumariando, com todo o interesse, as principais definições da doutrina - não só de contrato de seguro, como de risco e de sinistro -, vide Ac. do STJ, de 10.03.2016, Tomé Gomes, Processo n.º 4990/12.2TBCSC.L1.S1).

Existe, pois, a transmissão correspectiva de duas prestações:

. por um lado, a do segurador, de conteúdo complexo, e consistente na assunção do risco, pelo qual liberta o segurado da preocupação e insegurança de vir a suportar os danos decorrentes da verificação do sinistro típico do risco coberto, e na obrigação de pagar um determinado capital, se o sinistro se verificar;
. por outro, a do segurado, consistente na obrigação de pagamento do prémio.
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4.1.2. (Contrato de seguro) Facultativo / Obrigatório

O contrato de seguro está, em princípio, sujeito ao princípio da atipicidade ou da liberdade contratual, previsto no art. 405º do C.C., onde se lê que: dentro «dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver», podendo «ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei».

Logo, e desde que o contrato de seguro tenha natureza facultativa (conforme art. 11.º do R.J.C.S.) as partes respectivas podem: escolher celebrá-lo, ou não; escolher cada uma delas, livremente, o outro contraente; e na regulamentação convencional dos seus interesses, incluírem cláusulas divergentes da regulamentação supletiva contida na lei para ele (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1987, p. 335).

Terão, porém, que agir sempre «dentro dos limites da lei», incluindo-se aqui as normas imperativas que «visam a tutela de interesses das partes - nomeadamente a correcção e a justiça substancial nas suas relações -, ao lado de valores colectivos - como sejam a salvaguarda de princípios de ordem pública e da facilidade e segurança do comércio jurídico». Com efeito, postula-se «modernamente uma concepção de contrato dominada por imperativos éticos e sociais. Sobressai o princípio intervencionista, em particular dos contratos que vão participando do chamado direito social, de que representam exemplos expressivos as relações de trabalho e as de arrendamento rural e urbano, assim como a esfera da defesa do consumidor» (Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 2006, Almedina pp. 241-242).

Contudo, e atentos especiais e relevantes interesses sociais que entende proteger, o legislador impõe por vezes a própria celebração obrigatória de contratos de seguro em determinados domínios, como sejam o laboral (contrato de seguro de acidentes de trabalho para trabalhadores por conta de outrem obrigatório), de circulação rodoviária (contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel obrigatório), ou desportivo (contrato de seguro desportivo obrigatório).

Pretende deste modo que os sinistros que antecipa como prováveis, em domínios de actividades cuja manutenção, ou mesmo incremento, pretende, não fiquem sem a devida reparação, nomeadamente pelo volume e natureza dos danos facilmente produzíveis (v.g. para a integridade física, ou a vida) e pela menor (ou mesmo ausente) capacidade económica dos eventuais lesantes. Logo, o legislador, se não consegue evitar o risco, previne, porém, o perigo das vítimas não obterem o ressarcimento das respectivas lesões.

Compreende-se, por isso, que, quando assim o faça, tais contratos de seguro obrigatórios (isto é, cuja celebração foi por si imposta) incluam ainda (ao lado daquelas outras, gerais e aplicáveis a todos os demais contratos) normas imperativas próprias, isto é, pertinentes à particular composição dos interesses em causa e não derrogáveis por regulamentação produzida pelas próprias partes, nomeadamente quanto ao núcleo essencial da obrigação de reparação que pretenda assegurar (v.g. definição do âmbito de cobertura).

Fala-se, assim, numa espécie de reserva de conteúdo mínimo da relação contratual, que nomeadamente perpassa na redacção do art. 146.º, n.ºs 5 e 6 do R.J.C.S. (com bold apócrifo): «Enquanto um seguro obrigatório não seja objecto de regulamentação, podem as partes convencionar o âmbito da cobertura, desde que o contrato de seguro cumpra a obrigação legal e não contenha exclusões contrárias à natureza dessa obrigação, o que não impede a cobertura, ainda que parcelar, dos mesmos riscos com carácter facultativo»; e sendo «celebrado um contrato de seguro com carácter facultativo, que não cumpra a obrigação legal ou contenha exclusões contrárias à natureza do seguro obrigatório, não se considera cumprido o dever de cobrir os riscos por via de um seguro obrigatório».

Defende-se, assim, que nos contratos de seguro obrigatórios relativamente aos quais exista, para além da obrigação de cobertura, uma regulamentação legal específica de aspectos do seguro imposto, a liberdade de modulação da relação contratual fica bastante mitigada, tornando-se uma faculdade quase residual, valendo os chamados «limites da lei» na fixação do conteúdo contratual e na inclusão de cláusulas (conforme Ac. da RC, de 08.09.2009, Teles Pereira, Processo n.º 165/06.8TBGVA.C1).
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4.1.3. Contrato de seguro desportivo (obrigatório)

Lê-se no art. 42.º da Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto (Lei n.º 5/2007, de 16 de Janeiro - que sucedeu à Lei n.º 1/90, de 13 de Janeiro, Lei de Bases do Sistema Desportivo), que deverá ser instituído um sistema de seguros, nomeadamente um seguro obrigatório para todos os agentes desportivos, um seguro para instalações desportivas e um seguro para manifestações desportivas; e lê-se no art. 43.º seguinte que este seguro obrigatório será imposto às entidades prestadoras de serviços desportivos, que proporcionam actividades físicas ou desportivas, ou que organizam competições desta natureza.

Compreende-se, assim, que no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 10/2009, de 12 de Janeiro - que consagra este pretendido seguro desportivo obrigatório (o que primeiro foi fora feito pelo Decreto-Lei n.º 146/93, de 26 de Abril) - se afirme que com ele se visou atender «a uma necessidade social fundamental, a de assegurar que o beneficiário chegue, efectivamente, a usufruir da cobertura», prevenindo-se «o perigo de as vítimas não obterem o ressarcimento» (com bold apócrifo).

Lê-se, pois, no art. 2º do Decreto-Lei n.º 10/2009, de 12 de Janeiro, que a «responsabilidade pela celebração do contrato de seguro desportivo referido (…) no número anterior cabe às federações desportivas, às entidades que explorem infra-estruturas desportivas abertas ao público e às entidades que organizem provas ou manifestações desportivas» (sendo inclusivamente as mesmas pessoalmente responsabilizadas pela reparação dos danos, caso «incumpram a obrigação de celebrar e manter vigentes os contratos de seguro desportivo (…), nos mesmos termos em que responderia o segurador, caso o seguro tivesse sido contratado», conforme art. 20º do diploma citado).

Este seguro desportivo - obrigatório, portanto, para todos os agentes desportivos, para os praticantes de actividades desportivas em infra-estruturas desportivas abertas ao público, e para os participantes em provas ou manifestações desportivas - cobre precisamente os riscos de acidentes pessoais inerentes à actividade desportiva, reconhecida como predominantemente física, e exercitada muitas vezes com carácter competitivo (o que aumenta o risco de lesão). Daí a necessidade, para segurança dos praticantes, de cobrir os riscos inerentes à sua prática.

Mais se lê, no art. 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 10/2009, de 12 de Janeiro, que o «seguro desportivo cobre os riscos de acidentes pessoais inerentes à respectiva actividade desportiva, nomeadamente os que decorrem dos treinos, das provas desportivas e respectivas deslocações, dentro e fora do território português».
O objecto do contrato de seguro desportivo obrigatório é, pois e grosso modo, a cobertura dos riscos para a vida e saúde decorrentes da prática de uma modalidade desportiva (conforme preâmbulo citado, e Ac. do STJ, Processo n.º 343/10.5TBVLN.G2.S1).

Logo, está-se perante um «seguro de pessoas», já que «compreende a cobertura de riscos relativos à vida, à saúde e à integridade física de uma pessoa ou de um grupo de pessoas nele identificadas» (art. 175.º, n.º 1 do R.J.C.S.); e, nessa medida, poderá ser «contratado como seguro individual ou seguro de grupo» (art. 176.º, n.º 1, do mesmo diploma).

Precisando, as coberturas mínimas do seguro desportivo, lê-se no n.º 2 do art. 5.º citado, que as mesmas abrangem o pagamento de «um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da actividade desportiva», e o pagamento «de despesas de tratamento, incluindo internamento hospitalar, e de repatriamento».

O capital mínimo garantido, para pagamento de despesas de tratamento, incluindo internamento hospitalar, e de repatriamento, era (à data da publicação do Decreto-Lei n.º 10/2009, de 12 de Janeiro) de € 4.000,00, por sinistro e por lesado, (ainda art. 16.º, al. e) do mesmo diploma); mas o mesmo é actualizável no início de cada época desportiva (para qualquer dos riscos cobertos), nos termos do art. 18.º do mesmo texto.

Esta norma é obviamente imperativa, isto é, não pode ser derrogada pela vontade das partes: as normas legais que estipulam coberturas mínimas para o seguro desportivo obrigatório constituem normas imperativas que limitam, nessa medida, a liberdade de conformação do conteúdo contratual (Ac. da RP, de 07.04.2016, Maria José Costa Pinto, Processo n.º 335/10.4TTOAZ.P1).

Logo, o contrato de seguro de acidentes desportivos terá de incluir necessariamente a assumpção, pela seguradora, da obrigação de custear as despesas de tratamento de cada lesado, por sinistro, e até ao capital mínimo garantido.
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4.1.4. Contrato de seguro de grupo

Precisando agora o que seja um contrato de seguro de grupo, entende-se ser aquele que «cobre riscos de um conjunto de pessoas ligadas ao tomador do seguro por um vínculo que não seja o de segurar» (art. 76º do RJCS).

O seguro de grupo pressupõe, assim, a existência de três sujeitos distintos: o segurador, o tomador de seguro, e a pessoa ligada a este por um vínculo que não seja o de segurar (v.g. contrato de concessão de crédito, contrato de associação desportiva).

A «exigência de um vínculo estranho ao propósito de segurar previne a anti-selecção dos riscos, pela qual se deixam os “maus” riscos para o segurador, contrariando as regras da actividade seguradora» (Pedro Romano Martinez, Leonor Cunha Torres, Arnaldo da Costa Oliveira, Maria Eduarda Ribeiro, José Pereira Morgado, José Vasques e José Alves de Brito, Lei do Contrato de Seguro Anotada, Almedina, Janeiro de 2009, p. 261 e 262, anotação de José Alves de Brito).

Compreende-se, por isso, que a formação do contrato se processe em dois momentos distintos e sucessivos: num primeiro, o contrato é celebrado entre a seguradora e o tomador do seguro, estando prevista a possibilidade de virem a existir pessoas seguras (que são aquelas que vierem a aderir e que terão o seguro com as coberturas e nos termos em que foram contratados pelo tomador); e num segundo, o tomador do seguro promove a adesão ao contrato junto dos membros do grupo (começando o mesmo a produzir efeitos, como seguro, no momento da primeira adesão ou num momento posterior se tal for acordado pelas partes).

O seguro de grupo pode ser contributivo, ou não contributivo, sendo que na primeira hipótese caberá aos segurados suportarem - no todo ou em parte - o pagamento do montante do prémio devido pelo tomador de seguro, ou suportando-o este, na segunda hipótese (art. 77º do RJCS).

Pretendendo-se reforçar a tutela dos segurados na primeira modalidade dos seguros de grupo (contributivos), a lei consagrou-lhes um regime especial - no art. 86º e seguintes do RJCS -, onde nomeadamente se prevê um robustecido dever de informação por parte do segurador (art. 87º), por forma a assegurar a pretendida transparência do contrato.

Reconhece-se, deste modo, que os contratos de seguro de grupo contêm inúmeras cláusulas atípicas ao modelo clássico do contrato de seguro.

O contrato, porém, só se torna perfeito com a adesão do segurado (v.g. mutuário, atleta federado), por ser ele que celebra e aceita os termos contratuais, transferindo o risco para a seguradora (elemento típico do contrato em causa) e pagando o prémio de seguro. Compreende-se, por isso, que seja sobre este aderente que recaia a obrigação de declaração do risco, e a obrigação de pagamento dos prémios.
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4.1.5. Exclusão / limitação de responsabilidade civil - Cláusulas nulas

Lê-se no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 10/2009, de 12 de Janeiro, e em conformidade com os objectivos do seguro desportivo obrigatório que com ele se consagrou, que se proíbem as apólices de seguro desportivo que contenham «exclusões que, interpretadas individualmente ou consideradas no seu conjunto, sejam contrárias à natureza da actividade desportiva ou provoquem um esvaziamento do objecto do contrato de seguro» (com bold apócrifo).

De forma conforme, lê-se no art. 6.º do Decreto-Lei n.º 10/2009, de 12 de Janeiro, que as «apólices de seguro desportivo não podem conter exclusões que, interpretadas individualmente ou consideradas no seu conjunto, sejam contrárias à natureza da actividade desportiva ou provoquem um esvaziamento do objecto do contrato de seguro».

Precisando a primeira proibição («exclusões contrárias à natureza da actividade desportiva»), atende-se ao âmbito amplo da prática de desporto, em todas as suas possíveis manifestações, interditando-se as cláusulas que pretendam restringir a reparação dos danos resultantes de apenas algumas delas.

Assim, terão de ficar imperativamente cobertos os sinistros ocorridos em treinos, provas desportivas, ou deslocações para os mesmos, em eventos ou em instalações desportivas abertas ao público, isto é, abrangendo indiscutivelmente os sinistros ocorridos em actividades preambulares e sequenciais do treino e da competição (Ac. da RC, Teles Pereira, Processo n.º 165/06.8TBGVA.C1).

Compreende-se, por isso, que já se tenha decidido que, perante um acidente sofrido aquando a prática de futebol nas instalações de quem exercia a actividade de exploração de um ginásio e instalações desportivas, que o mesmo foi originado, ou era inerente, à actividade (desportiva) explorada pela demandada, inserindo-se no risco abrangido pela previsão do art. 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2009, de 12 de Janeiro (Ac. da RG, José Manuel Alves Flores, Processo n.º 4575/15.1T8BRG.G1).

Precisando agora a segunda proibição do art. 6.º citado («exclusões que provoquem um esvaziamento do objecto do contrato de seguro»), atende-se ao fim pretendido com o mesmo, isto é, a efectiva reparação das lesões resultantes da prática desportiva, até ao limite máximo do capital garantido.

Como concretizações jurisprudenciais, encontram-se: a exclusão da cobertura dos riscos de agentes desportivos federados menores de determinada idade e aos quais está, formalmente, aberta a prática desportiva federada (Ac. da RL, de 09.07.2014, Olindo Geraldes, Processo n.º 1 118/2002.L1-2); ou a exclusão do risco típico do contrato em análise, por as partes outorgantes lhe terem dado outro título (Ac. da RG, José Manuel Alves Flores, Processo n.º 4575/15.1T8BRG.G1).

Se a injunção legal for violada, só é afectada a cláusula excessiva, então considerada nula (conforme princípio geral do art. 294.º do C.C.).

Contudo, o negócio não fica a subsistir como se a cláusula não existisse; no lugar dela prevalece a estatuição legal definidora do conteúdo máximo admissível para o acto.

As razões que justificam esta solução são de índole diversa, mas todas elas se prendem com a necessidade de fazer prevalecer o regime legal, por só este assegurar a solução tida como mais adequada à composição dos interesses em causa. Se assim não acontecesse, se a cláusula nula fosse eliminada sem mais, isso podia envolver uma solução injusta para alguma das partes ou pôr em causa interesses de ordem geral, de natureza social ou económica, que aos dos contraentes se devem sobrepor.
Deste modo, mantendo-se a lei (e até as condições gerais) para além do seu cumprimento, estar-se-á a proteger a parte mais débil - a pessoa segura.
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4.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)

4.2.1. Contrato obrigatório de seguro de grupo desportivo

Concretizando, verifica-se que entre a Associação de Futebol de X, como tomadora, e a Ré (K Limited - Sucursal em Portugal), como seguradora, foi celebrado um contrato de seguro desportivo de grupo, de acidentes pessoais, para as épocas 2014/2015, 2015/2016 e 2016/2017, titulado pela Apólice nº ..., a que respeitam as Cláusulas Particulares de fls. 222 a 242 (cujo teor aqui se dá por reproduzido), e as Condições Gerais de fls. 315 a 341 (cujo teor aqui se dá por reproduzido), pelo qual a Ré se obrigou a cobrir acidentes pessoais de que fossem vítimas os praticantes desportivos amadores (pessoas seguras) dos clubes filiados na referida Associação de Futebol de X (Tomadora), pelo capital máximo de € 28.000,00 (vinte e oito mil euros, e zero cêntimos) com o sublimite máximo, por sinistro e lesado, de € 5.000,00 (cinco mil euros, e zero cêntimos) para despesas de tratamento, aplicando-se uma franquia de € 75,00 (setenta e cinco mil euros, e zero cêntimos) por sinistro para petizes, traquinas, benjamins e infantis, sendo que aos restantes se aplicaria uma franquia de € 150,00 (cento e cinquenta mil euros, e zero cêntimos) por sinistro.

Mais se verifica que o Clube Desportivo de Ys é filiado na Associação de Futebol de X; e que o Autor (M. R.) é atleta amador daquele primeiro, na categoria de júnior.

Verifica-se, ainda, que dia 30 de Abril de 2016, num dos habituais treinos do seu clube, numa disputa de bola mais acesa com um colega, o Autor (M. R.) sofreu uma entorse do joelho esquerdo, com rotura completa do ligamento cruzado anterior da perna esquerda; e que o diagnóstico e o tratamento dessa lesão implicou, não só a realização de uma ressonância magnética (RMN), como de uma ligamentoplastia e de quarenta sessões de medicina física e de reabilitação, cujo custo global foi de € 5.068,15.

Assim, e nos termos da Cláusula 1.ª dos «Termos e Condições Gerais» do contrato de seguro desportivo obrigatório, de grupo, em causa nos autos, tendo a Ré ficado obrigada ao «reembolso, até ao limite do valor máximo para o efeito fixado nas Condições Particulares e Especiais das despesas necessárias para o tratamento das lesões sofridas em caso de acidente coberto pelas Condições da Apólice», deveria assegurar o pagamento do custo do tratamento ao aqui Autor (M. R.), até ao limite de € 5.068,15.
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4.2.2. Cláusula 9.ª das «Condições Particulares» (rede convencionada de prestadores de serviços médicos)

Concretizando novamente, verifica-se que, a conselho do Clube Desportivo de Ys, o Autor (M. R.) efectuou o seu diagnóstico e tratamento junto da Clínica Médica P. e da Clínica Médico-Cirúrgica de ..., estando a primeira fora da rede convencionada da Ré (K Limited - Sucursal em Portugal).

Mais se verifica que, de acordo com a Cláusula 9ª das Condições Particulares do contrato de seguro desportivo obrigatório dos autos, os «sinistrados serão assistidos nos hospitais e centros médicos convencionados, colocados à disposição pela gestão clínica e de acordo com o Manual de Procedimentos ou em hospitais civis em situações de urgência comprovada»; e que, no «caso de uma Pessoa Segura optar por efectuar uma Cirurgia ou um outro qualquer tratamento médico, num estabelecimento que não o designado pela Seguradora, carecerá ainda assim de pré-autorização e o pagamento das respectivas despesas será limitado ao valor que a mesma cirurgia custaria na Entidade designada».

Seguiu-se assim, no contrato de seguro desportivo obrigatório dos autos, uma solução idêntica à consagrada no art. 28.º, n.º 1 da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro (que estabelece o Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais), segundo o qual a «entidade responsável tem o direito de designar o médico assistente do sinistrado», um e outro em clara derrogação do princípio da autodeterminação pessoal em matéria de escolha do prestador de cuidados médicos.

Dir-se-á, porém, que se o balanceamento pressuposto entre este princípio e o princípio da racionalidade económica de exploração do risco cobertura se encontra verificado no regime especial aplicável aos acidentes de trabalho e doenças profissionais, o mesmo não sucede no que ao seguro desportivo obrigatório diz respeito.

Precisando, e de acordo com o art. 23º do Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais, o direito de reparação (cometido à seguradora) compreende, simultaneamente: uma prestação em espécie, «de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida activa»; e uma prestação dinheiro, «indemnizações, pensões, prestações e subsídios previstos na presente lei», incluindo todas aquelas previstas e discriminadas no art. 47.º, entre as quais se contam a indemnização por incapacidade temporária para o trabalho (prevista no n.º 1, al. a), deste último preceito).

Sendo, assim, a seguradora chamada a assegurar funções que poderiam, com toda a naturalidade, caber directamente ao próprio Estado (em sede de prestações de natureza social), compreende-se que lhe seja permitido um controlo directo e rigoroso do tratamento e evolução clínica do sinistrado, até à respectiva alta, uma vez que é ela própria quem, nomeadamente, deverá assegurar-lhe um rendimento mensal mínimo (sob a forma de indemnização por incapacidade temporária para o trabalho), até que mesma seja alcançada.

Ora nada disto sucede no caso do seguro desportivo obrigatório, em que a prestação da seguradora - e no que ora nos interessa - se encontra duplamente limitada: ao pagamento das despesas de tratamento; e até ao limite do capital máximo garantido (por sinistro, e por lesado).

Compreende-se, por isso, que o Decreto-Lei n.º 10/2009, de 12 de Janeiro, não preveja a possibilidade da seguradora impor ao sinistrado a obrigação de recorrer a quaisquer redes convencionadas (com a inerente e simultânea limitação do pagamento dos actos praticados fora dela a valores previamente tabelados por si, independentemente de, considerados de per se ou no conjunto dos efectivamente realizados, não esgotarem o capital máximo garantido).

Considera-se ainda, e salvo o devido respeito pela opinião contrária a Ré (K Limited - Sucursal em Portugal), que ao pretender esta fazê-lo, provoca um efectivo esvaziamento do objecto do contrato de seguro, isto é, a reparação obrigatória dos acidentes pessoais inerentes à actividade desportiva, até ao montante do capital máximo garantido.

Com efeito, num domínio em que se justifica o estabelecimento de (necessárias) relações (duradouras) de acompanhamento e de confiança, entre atletas e profissionais afectos à garantia e desenvolvimento do seu rendimento desportivo, mal se compreenderia que - em caso de acidente e de forma imperativa - se intrometessem terceiros, de todo estanhos às especificidades da pática desportiva, e do praticante, em causa.

Dir-se-á ainda que a limitação do pagamento dos tratamentos realizados fora da rede convencionada - ao optar o atleta lesado pelo seu acompanhamento preferencial - aos valores tabelados pela seguradora, e ainda que contidos globalmente abaixo do capital máximo garantido, não pode deixar de se converter num efectivo e concreto impedimento à reparação pretendida pela lei, ao consagrar o regime de seguro desportivo obrigatório (onde a única limitação consagrada foi, precisamente, a daquele valor de capital máximo garantido).
Tem-se, por isso, tal cláusula como proibida; e nula, por contrária a lei imperativa.

Compreende-se, assim, que se leia, na sentença recorrida:

«(…)
Resta, então, saber se a imposição de limitações a este dever de indemnizar, nos termos que resultam da cláusula 9 de fls. 222 verso, através da estipulação de montantes máximos para o caso de os cuidados de tratamento não serem prestados através da rede convencionada da ré, é ou não violadora de tal norma legal imperativa.

E cremos ser evidente que o é.
(…)
Ora, ao estipular a obrigatoriedade de recurso à rede médica convencionada e impor limites máximos de indemnização para o caso de os actos médicos virem a ser prestados fora da rede convencionada, a ré está naturalmente a limitar o dever/direito de indemnização consagrado no art. 5.º, n.º 2, alin. b), do D.L. n.º 10/2009, que o legislador quis que fosse apenas limitado pelo montante máximo de capital seguro e de forma alguma condicionado.

Aliás, o legislador previu que o dever de indemnização fosse em dinheiro e não em espécie, por isso tendo previsto a responsabilidade pelo pagamento de despesas de tratamento e não pelo tratamento, assim deixando ao segurado a liberdade de optar pelo prestador do acto médico, direito que sai coarctado pela norma de exclusão/limitação em causa.

Mas é sobretudo a estipulação de valores máximos de indemnização para os tratamentos individualmente considerados (quando realizados fora da rede convencionada) que configura um inadmissível abaixamento ao capital seguro fixado nos termos dos arts. 5.º, n.º 2, alin. b), 16.º e 18.º D.L. n.º 10/2009, conseguindo a ré, por efeito da cláusula em apreço, estabelecer tectos indemnizatórios que se situam abaixo do capital que o legislador quis global e obrigatoriamente seguro, limitação de responsabilidade que claramente viola o objectivo do citado art. 5.º, n.º 2, alin. b), do D.L. 72/2008, que, como se disse, é norma imperativa, não podendo ser afastada por vontade das partes, donde se retira que a cláusula em que a ré assenta a limitação/exclusão da sua responsabilidade deve ter-se por nula, por contrária à lei (cfr. art. 294.º do Código Civil).
(…)»

Mais se dirá (reiterando o acima aludido) que, no «âmbito dos negócios onerosos, a nulidade parcial só deve comunicar-se à totalidade do negócio quando se verifique que o mesmo não teria sido concluído, sem a parte viciada, atento o critério da sua vontade hipotética ou conjetural, estabelecendo-se uma presunção de divisibilidade ou separabilidade do negócio, sob o ponto de vista da vontade das partes, aproveitando-se o restante da cláusula e do contrato, através da chamada “eficácia mediata das normas imperativas”, enquanto solução alternativa a nulidade que resultaria da supressão do negócio ou da respetiva cláusula nula» (Ac. do STJ, de 08.11.2016, Hélder Roque, Processo n.º 815/11.4TBCBR.C1.S1, proferido igualmente em sede de seguro desportivo obrigatório).

Por fim, dir-se-á que, salvo novamente o devido respeito pela opinião contrária da Ré (K Limited - Sucursal em Portugal), essa nulidade não comete a obrigação de indemnizar à Associação de Futebol de X (como tomadora do contrato de seguro desportivo obrigatório em causa), nos termos do art. 20º do Decreto-Lei n.º 10/2009, de 12 de Janeiro (onde se lê que as «entidades que incumpram a obrigação de celebrar e manter vigentes os contratos de seguro desportivo previstos no presente decreto-lei respondem, em caso de acidente decorrente da actividade desportiva, nos mesmos termos em que responderia o segurador, caso o seguro tivesse sido contratado»).

Com efeito, o que se prevê neste artigo é o incumprimento da obrigação de «celebrar e manter vigentes» os contratos de seguro desportivo obrigatório, e não a obrigação de assegurar que todas as suas cláusulas (quase sempre propostas pela seguradora, no âmbito de reconhecidos contratos de adesão) sejam válidas; e, ainda que se entendesse de forma diversa, só poderá concluir-se que o tomador violou o seu dever de segurar se, previamente, se tiver concluído pela validade e eficácia da cláusula em apreço, o que não é manifestamente o caso (neste sentido, Margarida Lima Rego, «O Início Da Cobertura No Seguro Desportivo», O Desporto Que Os Tribunais Praticam, Coordenação de José Manuel Meirim, Coimbra Editora, 1ª edição, Fevereiro de 2014, p. 224-226).
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4.2.3. Cláusula 14ª e 15ª das «Condições Particulares» (prévio pagamento pelo sinistrado dos tratamentos realizados fora da rede convencionada, com reembolso posterior)

Concretizando uma derradeira vez, verifica-se que o custo dos diversos tratamentos exigidos pela lesão sofrida pelo Autor (M. R.) ascendeu à quantia de € 5.068,15, que, porém, o mesmo não suportou ainda.

Mais se verifica que, de acordo com a Cláusula 14ª das Condições Particulares do contrato de seguro desportivo obrigatório dos autos, em «caso de acidente, o tomador de seguro e/ou o segurado ficam cumulativamente obrigados para com a seguradora a: 1.5). facultar para o reembolso a que houver lugar, todos os documentos justificativos das despesas de tratamento»; e que, de acordo com a seguinte Cláusula 15ª, n.º 5, o «reembolso das despesas de tratamento, caso esteja garantido por outras Apólices, reger-se-á pelo previsto na cláusula 14º da presente Apólice. Relativamente a despesas de tratamento, o segurado subroga a seguradora em todos os seus direitos contra responsáveis pelos acidentes até à concorrência da indemnização paga».

Logo, no contrato de seguro desportivo obrigatório, de grupo, em causa nos autos, a Ré (…), como seguradora, obrigou-se ao reembolso das despesas de tratamento, exigindo, por isso, que as mesmas sejam previamente realizadas pelo sinistrado (que não haja optado pelo recurso à sua rede convencionada).

Ora, e salvo novamente o devido respeito pela opinião contrária da Ré (…l), exigir ao atleta sinistrado que suporte previamente as despesas do tratamento próprio - que, recorde-se, podem atingir para este efeito a quantia de € 5.000,00 -, não pode deixar de provocar um efectivo esvaziamento do objecto do contrato de seguro (recorda-se, a efectiva reparação obrigatória dos acidentes pessoais inerentes à actividade desportiva, até ao montante do capital máximo garantido).

Por outras palavras, afirmando o legislador (no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 10/2009, de 12 de Janeiro), que o «desporto, até por definição, é uma actividade predominantemente física, exercitada com carácter competitivo», e que, por isso, cobrir «os riscos, através da instituição do seguro obrigatório, é uma necessidade absoluta para a segurança dos praticantes», tendo para o efeito imposto o seguro desportivo obrigatório, com a cobertura mínima de «pagamento de despesas de tratamento, incluindo internamento hospitalar, e de repatriamento», até ao montante máximo do capital seguro (arts. 5.º, n.º 1 e n.º 2, al. b) e 16º, do mesmo diploma), ficaria essa sua pretensão inviabilizada se, afinal, o próprio lesado tivesse, primeiro, que assegurar a reparação das respectivas lesões.

Aliás, a própria lei é rigorosa, quando refere que impõe o pagamento das «despesas de tratamento» (daquele que seja exigido pelo caso concreto), e não das «despesas do tratamento» (daquele que já haja sido - pretérita e efectivamente - realizado).
Tem-se, por isso, tal cláusula como proibida; e nula, por contrária a lei imperativa.

Compreende-se, assim, que se leia, na sentença recorrida:

«(…)
E excluída tal cláusula do contrato de seguro em apreço [antecedente verificada cláusula 9.ª das «Condições Particulares»], teremos de concluir que, com ressalva do valor da franquia, que será obviamente a deduzir ao valor dos tratamentos realizados (apenas no caso dos demandantes que ainda não a pagaram), e do limite máximo do capital seguro (5.000,00€, a atender apenas para o caso do demandante M. R., único cujo pedido ultrapassa tal valor), limitações que de resto os demandantes aceitam, inexiste qualquer outra razão para negar aos autores (…) a sua pretensão indemnizatória pois que, como se extrai da factualidade assente, os mesmos realizaram tratamentos em valor equivalente ao por si peticionado, pouco importando que não se tivesse apurado o efectivo pagamento das facturas emitidas na sequência dos tratamentos, (…), importando sim que na esfera jurídica dos demandantes se tivesse gerado, como se gerou, uma dívida por tratamentos, o que inequivocamente se conclui da factualidade assente.
(…)»
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Deverá, assim, decidir-se em conformidade, pela total improcedência do recurso de apelação interposto pela Recorrente (…) , confirmando-se integramente a sentença recorrida.
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V - DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pela Ré (… l) e, em consequência, em

· Confirmar integralmente a sentença recorrida.
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Custas da apelação pela Recorrente (art. 527.º, n.º 1 do C.P.C.).
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Guimarães, 06 de Junho de 2019.

O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias;
2º Adjunto - António José Saúde Barroca Penha.