BURLA QUALIFICADA
Sumário


I – Comete o crime de burla qualificada a arguida que dispondo de uma procuração de pessoa já falecida vende um imóvel pertencente à herança indivisa aberta por óbito desta, afirmando perante o notário que esta se encontrava ainda viva, assim logrando provocar uma falsa representação da realidade no comprador do imóvel, levando-o a uma disposição patrimonial – o pagamento do preço estipulado no contrato – com intenção de obter para si vantagem patrimonial, em detrimento do património da herança indivisa e dos demais herdeiros.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. RELATÓRIO

Nos presentes autos, de processo comum, perante tribunal singular, que correu termos no Juízo Local Criminal de Albufeira do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, o Ministério Público deduziu acusação contra NN, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal (CP).

O assistente, JP, veio acompanhar a acusação e deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida/demandada, peticionando o pagamento da quantia de €29.000,00, correspondente à quota-parte que lhe pertence, juros à taxa legal de 4% desde 14 de Junho de 2010 até 14 de Junho de 2016 que perfazem o montante global de €6.900,00 e juros acrescidos, honorários de advogado no valor de €2.500,00 e danos não patrimoniais no valor de €750,00.

A arguida apresentou contestação e arrolou testemunhas.

Alegou, em sua defesa, em síntese, que as despesas da falecida tia rondavam os €1.500,00 mensais, razão pela qual foi acordado, uma vez que esta estava a seu cargo, que o montante necessário para fazer face às despesas seria suportado pelo dinheiro dessa tia e, quando este faltasse, caberia à arguida e a seu irmão fazer face às mesmas, sendo que para o efeito, a certa altura, passou também pela alienação do património desta tia, razão pela qual foi efectuada a venda do imóvel em discussão nos autos, com o conhecimento e assentimento desta última, que veio a falecer uns dias antes da escritura de compra e venda, não sem antes, ainda em vida da mesma, ter sido realizado contrato-promessa. Admitiu, contudo, ter declarado na escritura que a tia se encontrava viva, facto que se deveu à ausência de conhecimentos jurídicos e desconhecimento das implicações das suas declarações.

Realizado julgamento e proferida sentença, decidiu-se:

a) absolver a arguida NN da prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de burla qualificada;

b) julgar totalmente improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente/demandante JP contra a arguida/demandada NN, absolvendo-a do mesmo.

Inconformados com tal decisão, o Ministério Público e o assistente interpuseram recursos, formulando as conclusões:

- o Ministério Público:
1 - O Ministério Público recorre da douta sentença proferida nos autos a 07/12/2017, que absolveu a arguida NN da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º n.º 1 e 218.º n.º 2 al. a) do Código Penal.

2 - O Ministério Público não concorda com tal decisão, entendendo que a decisão proferida sobre a matéria de facto padece de contradição insanável entre matéria de facto dada como provada e não provada, pugnando pelo entendimento de que a factualidade que foi objecto de um juízo negativo deveria, pelo menos em parte, ter sido dada como provada, tendo a sentença incorrido ainda, além do vício supra referido, numa errada subsunção jurídica dos factos apurados pelo que em consequência a arguida deveria ter sido condenada pela prática do crime de que estava acusada, pois estavam preenchidos todos os elementos do tipo de crime em causa, muito em concreto a existência de prejuízo patrimonial na esfera jurídica de uma pessoa em concreto, ou seja, o assistente, herdeiro, a par de outros, da falecida MJC.

3 - No que concerne à alínea a) dos factos não provados, entendeu o Tribunal que a arguida desconhecia as consequências plenas do seu acto, ao omitir que a outorgante da procuração havia falecido, ou seja, não conhecia o conceito de caducidade de uma procuração.

4 - Salvo melhor opinião, o Ministério Público entende que esse facto em concreto dado como não provado, decorre natural e logicamente dos factos dados como provados na sentença, e, nessa medida, deveria ter sido dado como provado, verificando-se, por conseguinte, o vício de contradição insanável previsto na alínea b) do nº 2 do art.º 410º do C.P.P..

5 - Efectivamente, além do mais, ficou provado que a arguida actuou com conhecimento e vontade de omitir o pretérito falecimento da tia perante o Sr. Notário e o comprador, quando questionada directamente sobre o facto, visto que queria concluir o negócio e a escritura de venda do imóvel, por forma a receber o preço acordado, bem sabendo que tal estava errado. Na realidade no facto provado 9) foi dado como assente que”…A arguida apresentou a procuração como se fosse a sua legítima portadora, bem sabendo MJC havia morrido e que já não a podia utilizar para efectuar a referida compra e venda do imóvel supra descrito, nem para se apropriar dos valores provenientes de tal venda...”.

6 - Ou seja, dando o Tribunal como provada a factualidade supra, não poderia ter deixado de dar como provado que a arguida sabia que a procuração caducara com a morte da outorgante. Em suma: o facto dado como provado em 9), acaba por ser uma explicação de senso comum para o conceito de caducidade de uma procuração, conceito esse que, mesmo sem rigor jurídico, não escapa à compreensão do Homem médio, mais ainda da arguida que tem formação superior.

7 - Com efeito se foi dado como provado que a arguida sabia que não podia utilizar a procuração após a morte da tia, nomeadamente, para concretizar a venda e receber o preço, não poderia ter sido dada como não provada a consciência e volição do uso de uma procuração caducada. Os factos julgados como provados e como não provados colidem inconciliavelmente entre si e tal incompatibilidade resulta evidente da análise do próprio texto da decisão recorrida.

8 - Consequentemente, e porque a factualidade dada como não provada decorre lógica e naturalmente dos factos dados como provados, deveria ter sido considerado provado que “…a arguida sabia que a procuração caducara com a morte da outorgante…”. Ao ter decidido de modo diverso, a sentença evidencia o vício previsto no art.º 410º nº2, alínea b) do C.P.P., cuja sanação se impõe e ora se suscita, devendo em, consequência determinar-se que tal facto não provado se desloque para os factos provados, passando assim a integrar a matéria de facto provada a subsumir juridicamente.

9 - A Mma. Juiz “a quo” considerou que os factos dados como não provados em b) e c) resultam da forma como se alcançou a noção de verdadeiro prejudicado patrimonialmente com a conduta da arguida que, contrariamente ao sustentado pelo assistente, não foram os herdeiros, mas a herança em si, indivisa e aberta por óbito de MJC.

10 - Ora, no entender do Tribunal, efectivamente prejudicada foi a herança, à data dos factos ainda indivisa, e não o herdeiro, ou pelo menos, não na posição isolada em que se coloca.

11 - Segundo o Tribunal, o tipo de crime de burla exige que o prejuízo patrimonial seja causado a uma pessoa (singular ou colectiva), algo que uma herança indivisa não é, sendo que, no limite, só a herança jacente revestirá personalidade judiciária. Assim sendo, na ausência de prejuízo patrimonial numa pessoa, como o tipo determina, conclui o Tribunal que falecem os pressupostos para considerar a existência de um crime de burla, remanescendo apenas uma questão de índole civilista, de prestação de contas a uma herança, de inventário por morte de um parente da arguida e do assistente, de eventuais efeitos de uma venda de bem alheio e que é nessa sede que devem resolvidos.

12 - Chama-se à colação o vertido no Ac. do TRE de 26/04/2016, proc. 90/13.6TASRP.E1, relator Dr. João Amaro, disponível em www.dgsi.pt, que se pronunciou sobre um caso em que o recorrente pugnava que, estando em causa a prática de um crime contra o património (dano), o queixoso, que mais não era do que herdeiro de uma herança indivisa, não podia considerar-se “ofendido”, isto na medida em que o queixoso não era o titular dos interesses que a lei directamente quis proteger com a incriminação.

13 - Nesse acórdão, de forma certeira diz-se, além do mais, “…Com o devido respeito, discorda-se inteiramente deste entendimento, que não atenta, devidamente, ao conteúdo das normas e dos princípios do direito civil (substantivo) aplicáveis ao caso, e confunde a personalidade e a capacidade judiciárias da herança indivisa (representada pelo cabeça-de-casal) - em processo civil - com a legitimidade de um co-herdeiro para se constituir assistente em processos que visem crimes praticados contra os bens da herança…”.

14 - Mais se acrescenta nesse douto acórdão que “…É evidente que, como bem se escreve no Ac. do S.T.J. de 17-04-1980 (in BMJ 295-298), o “domínio e posse sobre os bens em concreto da herança só se efetivam após a realização da partilha. Até aí, a contitularidade do direito à herança significa direito a uma parte ideal, não de cada um dos bens que compõem a herança”. Só que, se é assim, como é, cada um dos herdeiros, mesmo na indivisão, goza de um direito sobre a totalidade dos bens (é contitular deles)… A herança é uma universitas juris com determinada afetação de bens, e os herdeiros, enquanto se não fizer a partilha, são titulares de um direito (indiviso, obviamente) sobre esses bens. Assim sendo, estando alguém a destruir ou danificar esses mesmos bens ou parte deles, é absurdo, salvo o devido respeito, afirmar-se que um dos co-herdeiros não se pode constituir assistente no respetivo processo-crime, por não ser ofendido, isto é, na expressão constante do artigo 68º, nº 1, al. a), do C. P. Penal, não ser titular “dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”…Tudo se passa, pois, como se os herdeiros tivessem o domínio e a posse dos bens (que, em concreto, lhes foram atribuídos na partilha) desde o momento em que se abre a sucessão… Neste sentido, e com o supra referido alcance, os herdeiros são titulares dos bens da herança, ainda que esta esteja indivisa, e, por isso, sendo o objeto do dano, na versão do queixoso, bens da herança de que também é herdeiro (além de ser cabeça-de-casal), é evidente o interesse do queixoso, como herdeiro, em agir nos presentes autos…”.

15 - A herança indivisa não constitui um património colectivo, mas antes um património autónomo. Com a abertura da herança, os interessados ou chamados apenas possuem o direito a uma quota hereditária, sendo que os herdeiros são titulares, apenas, de um direito à herança, universalidade de bens, ignorando-se sobre qual ou quais esse direito hereditário se concretizará. Até à partilha, os herdeiros são titulares tão-somente do direito a uma fracção ideal do conjunto.

16 - Ora, se nenhum herdeiro tem, na indivisão da herança, qualquer direito sobre qualquer bem específico concreto que dela faça parte, não podemos deixar de concluir que, contrariamente ao decidido, no caso em apreço, estamos efectivamente perante uma apropriação de bens alheios, que afecta o património autónomo da herança e reflexamente gera prejuízo na esfera jurídica dos herdeiros, pois os seus bens (ainda que indivisos numa mera universalidade jurídica) estão a ser apropriados ou descaminhados.

17 - No crime de burla o bem jurídico tutelado é o património, entendido como o complexo de relações jurídicas tituladas pelos sujeitos. Tutela-se, pois, a disponibilidade, ainda que futura, da fruição das coisas, acautelando-se a sua ilegítima agressão.

18 - Ora, a fruição da utilidade dos bens que integram a herança indivisa, não cabendo a um único titular de interesses, não está adstrita a qualquer dos co-herdeiros. Tais bens encontram-se afectos a mais do que um centro de imputação de direitos, sendo essa afectação feita em termos de quota-ideal relativamente à unidade patrimonial autónoma que congrega os bens concretos do “de cujus”.

19 - E enquanto tal, entendemos dever concluir que, relativamente a cada um dos co-herdeiros, tais bens concretos devem ser considerados bens alheios, estando a sua apropriação por parte de um deles (a quem não pertencem, nem nunca pertenceram), lesiva da disponibilidade da fruição das respectivas utilidades em detrimentos dos demais detentores de quotas hereditárias, com o inerente prejuízo, abrangida na tutela penal concretizada pela tipificação do artº 217º do Cód. Penal, tutela penal que se mostra inequivocamente necessária, não sendo os meios civis suficientes para a salvaguarda do bem violado.

20 - Em tais termos configuramos a apropriação por parte da arguida, a quem nenhum dos bens ou valores da herança pertence, (detendo tão só a titularidade de quota ideal do património autónomo que os congrega), mas que deles se apropriou e dispôs, fazendo-os seus (ou, pelo menos, o produto da venda), mediante o uso de erro e de engano, crime de burla.

21 - Entende, assim, o Ministério Público terem sido incorrectamente julgados os factos dados como não provados em a) a c), cuja matéria deveria ter sido levada aos factos provados, em face de uma correcta interpretação do elemento típico “prejuízo patrimonial” constante do artº 217º, nº 1 do CP, tal como acima se explanou.

22 - Ao ter decidido de modo diverso, o Tribunal “a quo” violou o disposto no referido artº 217º, nº 1 do Cód. Penal.

23 - Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, deve ser revogada a decisão absolutória proferida, substituindo-se a mesma por outra que expurgue o vício de contradição insanável invocado, considere provada a matéria factual dada como não provada em a) a c) e julgando preenchidos todos os elementos do tipo de crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º n.º 1 e 218.º n.º 2 al. a) do Código Penal, condenando a arguida NN pelo mesmo, na pena que for julgada adequada.

- o assistente:
1. O recurso deve ser admitido pela natureza da decisão impugnada, pelo critério da alçada e da sucumbência, bem como o facto do recorrente estar em tempo e ter legitimidade para praticar o ato processual em causa;

2. Vem o presente recurso interposto que absolveu a arguida NN da prática de um crime de burla qualificada, e julgou totalmente improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente/demandado JP contra a arguida, absolvendo-a do mesmo;

3. O recorrente impugna as decisões, nomeadamente, sobre matéria de facto não provada, especificando os concretos pontos que considera incorretamente julgados, e as passagens em que funda a sua impugnação, e por último, impugna matéria de direito por incorreta interpretação dos elementos de tipo, decisão essa que padece ainda do vício de contradição insanável, previsto na alínea a) do n.º 2 do art. 410.º do C.P.P;

4. Vem a arguida acusada da prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 217.º n.º 1 e 218.º n.º 2 al. a), ambos do Código Penal;

5. Este crime exige, para o seu preenchimento, que se verifiquem os seguintes elementos constitutivos do tipo de burla: a astúcia do agente, exteriorizada numa conduta que a norma não descreve; o erro/engano; os actos da disposição patrimonial ou de administração realizados pelo enganado, e o consequente prejuízo patrimonial deste ou de uma terceira pessoa;

6. Da matéria de facto não provada:

- Alínea a)- ’O tribunal a quo começou pela primeira questão, ou seja, a razão da arguida de dizer que MJC estava viva quando manifestamente não estava. Disse a arguida que não agiu com consciência, ao mesmo tempo que admite em audiência ter sido o seu único erro.’’

- O recorrente vem demonstrar que o primeiro elemento objetivo e o elemento subjetivo do tipo do crime de burla (astúcia do agente, exteriorizada numa conduta que a norma não descreve, o erro/engano, e o dolo), se encontram presentes no caso em apreço, uma vez que a arguida quando questionada no cartório, se MJC estava viva naquela data, respondeu que sim, quando bem sabia que não, e que a sua conduta era vedada pela lei penal, provocando um erro quer no Sr. Notário quer no comprador, criando a ilusão de que se poderia prosseguir com a venda;

- Entende-se que este facto dado como não provado, decorre diretamente do facto dado como provado 9), e por uma questão de lógica, se foi facto provado que a arguida apresentou a procuração como se fosse a sua legítima portadora, bem sabendo MJC havia morrido e que já não a podia utilizar para efetuar a venda do imóvel, nem para se apropriar dos valores provenientes de tal venda, também deveria ser facto provado que a arguida sabia que a procuração caducara com a morte da outorgante.

Verificando-se por conseguinte, o vício de contradição insanável previsto na alínea b) do n.º 2 do art.º 410.º;

- Alíneas b) e c) – ‘’Os factos dados como não provados em b) e c) resultam da forma como se alcançou a noção de verdadeiro prejudicado patrimonialmente com a conduta da arguida que, contrariamente ao sustentado pelo assistente, não foram os herdeiros, mas a herança em si, indivisa e aberta por óbito de MJC.’’
- O crime da burla completa-se, quanto aos seus elementos objetivos, com o prejuízo patrimonial sem o qual apenas poderá haver burla na forma tentada. Com o preenchimento deste elemento objetivo, está relacionada a questão em torno do conceito de património que tem sido definido como o conjunto dos valores ou utilidades económicas protegidas pela ordem jurídica;

- A arguida apresentou razões para não ter entregue à herança a quantia de € 58.000,00. Alegou em sua defesa, que as despesas da falecida tia rondavam os € 1.500,00 por mês, e que o valor da venda seria para reembolsar estes montantes;

- No entanto, e como bem referiu o Tribunal a quo a arguida foi incapaz de precisar datas ou valores concretos suportados por si e pelo seu irmão, RR, que inclusivamente, referiu que a maior parte do valor da venda reverteu para as despesas que fez em vida e por morte de MJC, sem apresentar quaisquer meios de prova;

- Reapreciando a prova gravada, com a indicação exacta das passagens da gravação, torna-se claro e evidente, que a arguida recebeu a totalidade do valor da venda de € 58.000,00, justificando que seria para reembolsar despesas feitas pela tia, sem apresentar quaisquer faturas ou recibos;

- “Não cabia à arguida provar a sua inocência, mas se assenta a sua defesa nas inúmeras despesas que fez ao longo dos anos, muito se estranha a absoluta inexistência de faturas ou recibos médicos, pagamentos de empregadas, etc., que façam prova do que alega.”

- Ficando preenchido o último elemento objetivo do tipo de crime de burla “o consequente prejuízo patrimonial deste ou de uma terceira pessoa.”, na medida em que ficou provado que a arguida queria concluir o negócio e apoderar-se da totalidade do valor da venda;

- Relativamente à matéria de direito, o recorrente versa sobre a incorreta interpretação dos elementos do tipo típico “prejuízo patrimonial”, constante do art. 217.º n.º 1 do Código Penal.

- Alíneas d), e), f) e g) – Pedido de indemnização civil
- Julgou o tribunal a quo que os factos não provados do pedido de indemnização
civil de d), e), f) e g), resultaram da total ausência de prova quanto aos mesmos.

- Foi facto provado que JP só teve conhecimento da venda da propriedade quatro anos depois, mercê de uma notificação da Administração Tributária, em função da liquidação de mais valias correspondentes à venda do imóvel, tendo procedido ao pagamento da quantia de € 1.764,36.

- O demandante procedeu ao pagamento de € 1.764,36, e aos juros calculados desde a data da venda até à notificação da liquidação.

- Também foi facto provado que a arguida recebeu o valor de € 58.000,00, pela venda do imóvel, quantia essa que fez sua e de seu irmão RR, não a entregando à herança.

- Contrariamente ao sustentado pelo tribunal a quo, os verdadeiros prejudicados patrimonialmente com a conduta da arguida foram os herdeiros, e não a herança indivisa, pelo que deve a arguida ser condenada a pagar ao demandante € 29.000.00, correspondente à quota parte pertencente ao ora assistente, sendo de metade do valor da venda do imóvel declarado na escritura de compra e venda, e os juros legais de 4% ao ano, desde 14 de Junho de 2010, que somaram até à data de 14 de Junho de 2016, o montante de € 6.960,00, e ainda € 2.500,00 a título de honorários de advogado e de despesas judiciais.

- Também ficou provado que o assistente ficou entristecido e sentiu uma tremenda injustiça, chegando mesmo a referir nas suas declarações que “foi como uma faca nas costas.”

- Assim como a sua esposa, MV, que no minuto 02:58 referiu que o marido nos dias seguintes “ficou bastante magoado.

- A prova desse facto é suficiente e justifica a tutela do seu direito, pelo que deve o tribunal ad quem dar lugar à compensação por danos não patrimoniais, no valor de € 750,00.

- Nos termos do supra alegado, e tendo a arguida praticado o crime, deve ser condenada do pedido de indemnização civil.

- As alíneas elencadas da matéria de facto não provada foram incorrectamente julgadas, uma vez que não existe compatibilidade e coerência entre o teor do depoimento do assistente, da arguida, e da testemunha RR, termos de se poder dizer que existe uma flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis, e da decisão do tribunal;

- Pelo que no entender do recorrente, deve o tribunal ad quem reapreciar a prova gravada, e julgar as alíneas anteriores matéria de facto provada;

- Face ao exposto, deve ser dado provimento ao presente recurso, e em consequência, deve ser revogada a decisão absolutória proferida, substituindo-se a mesma por outra que expurgue o vício de contradição insanável invocado, considerando provada a matéria factual dada como não provada em a) a g), e julgando preenchidos todos os elementos do tipo de crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º n.º 1 e 218.º n.º 2 a) do Código Penal, condenando a arguida NN, no pagamento do pedido de indemnização civil, e na pena que for julgada adequada;

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, e em consequência, deve ser revogada a decisão absolutória proferida, substituindo-se a mesma por outra que expurgue o vício de contradição insanável invocado, considerando provada a matéria factual dada como não provada em a) a g), e julgando preenchidos todos os elementos do tipo de crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º n.º 1 e 218.º n.º 2 a) do Código Penal, condenando a arguida NN, no pagamento do pedido de indemnização civil, e na pena que for julgada adequada

Os recursos foram admitidos.

Apresentaram respostas:

- a arguida, relativamente ao recurso do Ministério Público, concluindo:

a) Do facto de ter sido dado por provado (embora erroneamente) que “a arguida apresentou a procuração como se fosse a sua legítima portadora, bem sabendo que MJC havia morrido e que já não a podia utilizar para efectuar a referida compra e venda do imóvel supra descrito, nem para se apropriar dos valores provenientes dessa venda” não decorre necessariamente que tivesse de ser dado por provado que “a arguida sabia que a procuração caducara com a morte da outorgante

b) O conceito de caducidade é um conceito jurídico, e embora o desconhecimento da Lei não aproveite a ninguém, não é exigível ao cidadão comum que tenha conhecimento de que, da morte de alguém, decorre imediatamente a caducidade (como conceito jurídico que é) das procurações por si outorgadas

c) não devia ser considerada matéria de facto o conhecimento da “caducidade da procuração” por integrar um conceito de direito – “caducidade

d) o mecanismo anteriormente previsto no artigo 646.º n.º 4 do Código de Processo Civil mantém-se na nossa ordem jurídica, apesar de não figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no artigo 607.º n.º 4 do actual Código de Processo Civil, devem constar da fundamentação da sentença os factos - e apenas os factos - julgados provados e não provados.

e) A menção a que, da sentença, deverão constar os factos, implica que deve ser suprimida da mesma toda a matéria constante dos “factos” susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, juízos de valor ou conclusivos.

f) Daqui decorre que o conceito de “caducidade” inserto na alínea a) dos factos dados por não provados, passível de, para um leigo, ser confundido, por exemplo, com “extinção”, não possa ser dado por provado, simplesmente como decorrência natural e lógica de se ter dado por provado que a arguida sabia que não podia usar a procuração atenta a morte da mandante.

g) Mesmo que se considerasse existir contradição insanável entre as respostas, da mesma não decorreria de imediato a prova de factos que o Tribunal julgou não provados

h) Isto porque, se houvesse contradição, faria tanto sentido considerar como consequência directa da contradição como provada a matéria que o Tribunal considera não provada, como o inverso, ou seja, considerar como não provada a matéria (erradamente, diga-se) dada por provada.

i) E, a favor desta tese abonaria sempre o conceito de “in dubio pro reo”, uma das vertentes do princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP), o qual constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.

j) Por outro lado, ocorrendo contradição insanável que não seja passível de sanação, determina o artigo 426.º do Código de Processo Penal “o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio

k) O Tribunal não pode dar por provado, “em face de uma correcta interpretação do elemento típico “prejuízo patrimonial”, que a arguida tinha conhecimento da caducidade da procuração, agiu com intenção de obter para si uma vantagem patrimonial de forma ilícita, no valor recebido pela venda do imóvel, à custa do prejuízo de terceiros, bem sabendo que causava prejuízo aos demais herdeiros, acção essa livre, deliberada e consciente, bem sabendo a arguida que a sua conduta lhe era vedada pela lei penal”, porquanto nenhuma dessas “ocorrências” se encontra relacionada com a “correcta interpretação do elemento típico prejuízo patrimonial”.

l) Por outro lado, quer a caducidade, quer a ilicitude, quer a vantagem patrimonial, quer a “acção livre, deliberada e consciente” são conceitos jurídicos e não factos que, como tal, não podem constar da matéria a provar.

m) Na realidade, dar por provado que a arguida agiu com intenção de obter uma vantagem patrimonial, vantagem essa obtida de forma ilícita, corresponde a um juízo de conclusão sobre factos, que caberá ao julgador fazer, e não matéria de facto, em si.

n) Não poderia o Tribunal dar por provado o previsto no artigo 217.º/1 do Código Penal - porque é este o teor da alínea b) dos “factos” dados por não provados, e é o que pretende o Ministério Público - que sejam dados por provados conceitos de direito, tipificações de crimes e conclusões.

o) No caso em análise, e num enorme atalho de raciocínio, pretende ainda o Ministério Público que se parta da premissa: a “herança” enquanto património autónomo pode ser lesada, para se concluir o seguinte: “a arguida sabia que a procuração caducara com a morte da outorgante, tendo agido com intenção de obter para si uma vantagem patrimonial de forma ilícita, no valor recebido pela venda do imóvel, à custa do prejuízo de terceiros, bem sabendo que causava prejuízo aos demais herdeiros, e de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta lhe era vedada pela lei penal”.

p) Ora bem, mesmo que se aceite, o que aqui se diz sem conceder, que a “herança” possa ser lesada, não se pode extrapolar de tal entendimento jurídico que a acção praticada pela arguida teve em vista uma intenção de obter, para si, uma vantagem patrimonial de forma ilícita!

q) Na realidade, e bem, entendeu o Tribunal que estamos perante uma questão a decidir no âmbito de uma acção civil, de prestação de contas.

r) Grosso modo, embora se tivesse dado por provado que a arguida recebeu - para si e para seu irmão, ou seja, sem benefício integralmente próprio - o montante da venda, tal facto não é, na totalidade, verdadeiro, porquanto o contrato promessa de compra e venda celebrado (em vida da falecida) havia sido sinalizado, pelo que o montante que a arguida recebeu com a escritura foi inferior ao preço de venda, tendo o remanescente sido recebido pela mandante (ainda em vida) - não integrando este valor, assim, qualquer herança.

s) Tendo o tribunal considerado que, quanto à acção da arguida, não se verificou qualquer astúcia na sua conduta porquanto esta se terá limitado a responder “sim” ao Sr. Notário quando este lhe perguntou se a mandante da procuração estava viva, daqui decorre que a mesma não agiu em consciência, respondendo “sim”, pois desconhecia, na altura da escritura, que a procuração caducara com a morte da outorgante.

t) Se analisarmos a situação do ponto de vista estruturado, temos que a execução do mandato se iniciou quando foram dadas indicações para venda do imóvel, prolongando-se durante o processo que conduziu à celebração do contrato promessa de compra e venda, e culminando com a outorga da escritura, sendo manifesto que a “astúcia”, com toda a evidência, não estava presente no momento da celebração do contrato-promessa.

u) Apesar de o contrato-promessa e o contrato definitivo não constituírem um mesmo acto e, concretamente, estarem separados temporalmente por quase um mês, encontram-se entre si apertadamente conexionados. A arguida tinha iniciado o cumprimento do mandato, tendo firmado o compromisso de celebrar, em nome da mandante, o contrato prometido no dia 19 de Maio de 2010. Seguidamente, o promitente comprador agendou a escritura para o dia 14 de Junho de 2010. Sem que nada o fizesse prever, a vendedora, MJC faleceu dia 11 de Junho de 2010, uma sexta feira, tendo o funeral tido lugar no dia 12 de Junho - sábado, e a escritura dia 14 de Junho de 2010,

v) A morte da tia da arguida, MJC, constituiu facto intercorrente absolutamente independente da vontade da mandatária. Seria, por isso, verdadeiramente excessivo pretender que a arguida tenha tido um verdadeiro domínio do erro e que agisse astuciosamente com o intuito de enganar terceiros.

w) Não se provando:
i. a existência de um enriquecimento (na verdade, tendo a arguida cuidado da mandante durante anos e anos a fio, com os gastos inerentes - que não se lograram provar quantitativamente, é certo - terá havido um enriquecimento ou um reembolso?)

ii. extensão do “enriquecimento”/reembolso;

iii. a ilegitimidade do mesmo - estaria a arguida obrigada a providenciar pela velhice condigna de sua tia, a suas próprias expensas, quando a tia detinha meios de subsistência, ou, antes pelo contrário, poderia/deveria a arguida utilizar (como desejo expresso) o património da tia para providenciar pelo seu sustento e qualidade de vida?

iv. uma criação de factos astuciosa (uma actuação com destreza, através do qual se pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado, de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro), não se provam os elementos estruturais da burla.

x) Por outro lado, e no que concerne ao prejuízo patrimonial propriamente dito, não ficou estabelecido que tenha existido efetivo prejuízo da herança e, mormente, que, tratando-se de um bem imóvel, os eventuais prejuízos não pudessem ser facilmente sindicados pelos normais meios cíveis.

- o Ministério Público, quanto ao recurso do assistente, sem extrair conclusões, entendendo que deve ser dado provimento ao mesmo na vertente criminal.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no sentido da procedência dos recursos.

Observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), nada foi apresentado.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto de cada um dos recursos define-se pelas conclusões que o respectivo recorrente extraiu da motivação, como decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam, as nulidades da sentença (art. 379.º, n.º 1, do CPP) e os vícios da decisão e as nulidades que se não considerem sanadas (art. 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP), designadamente conforme jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário das Secções do STJ n.º 7/95, de 19.10, in D.R. Série I-A de 28.12.1995 e, entre outros, acórdãos do STJ: de 13.05.98 (BMJ n.º 477, pág. 263); de 25.06.98 (BMJ n.º 478, pág. 242); de 03.02.99 (BMJ n.º 484, pág. 271); e de 12.09.2007, no proc. n.º 07P2583 (www.dgsi.pt); Simas Santos/Leal Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 3.ª edição, pág. 48; e Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1994, vol. III, págs. 320 e seg..

Assim, sem prejuízo de que por identidade de questão(ões), venha(m) estas(s) a ser analisada(s) por referência a ambos os recursos, reside em apreciar:

- recurso do Ministério Público:
A) - da contradição insanável entre factos;
B) - da consequente condenação da arguida pelo imputado crime de burla;

- recurso do assistente:
A) - da contradição insanável entre factos;
B) - da modificação da matéria de facto mediante reapreciação da prova;
C) - da consequente condenação da arguida pelo imputado crime de burla;
D) - da consequente condenação no pedido de indemnização civil.

Ao nível da matéria de facto, consta da sentença recorrida:

Dos factos provados:
Da discussão da causa e produção da prova vieram a resultar provados os seguintes factos com interesse para a boa decisão da causa:

da acusação pública
1) No dia 11 de Junho de 2010 faleceu MJC, que deixou como herdeiros JP, filho de seu irmão germano pré-falecido JPJ, e NN e RR, ambos filhos da sua irmã germana pré-falecida MCP.

2) A falecida era a única proprietária da fracção autónoma designada pela Letra “AZ”, correspondente ao primeiro andar, zona habitacional, apartamento --, do prédio urbano situado na Rua Miguel Bombarda, na cidade, freguesia e concelho de Albufeira.

3) Em 22 de Agosto de 2001 a falecida passou uma procuração a favor da arguida NN autorizando-a a “proceder à venda de quaisquer bens imóveis situados nos concelhos de Silves e Albufeira pelos preços e condições que entender convenientes, assinar as respectivas escrituras, contratos de promessa de compra e venda, caso o entenda necessário; representá-la junto de quaisquer repartições públicas ou administrativas em todos os assuntos relacionados com o objecto da presente procuração”.

4) A arguida, munida de tal documento, no dia 14 de Junho de 2010, após a morte de MJC, dirigiu-se ao Cartório Notarial sito na Urbanização Quinta da Correeira,… em Albufeira, onde se apresentou perante o notário como legítima titular de tal procuração.

5) Nesse Cartório Notarial, a arguida não era conhecida pessoalmente nem era conhecido o falecimento da outorgante da procuração, sendo certo que a arguida declarou expressamente que a mandante se encontrava viva nessa data.

6) Após o que outorgou a escritura pública de compra e venda da referida fracção autónoma designada pela Letra “AZ”, correspondente ao primeiro andar, zona habitacional, apartamento ---, do prédio urbano situado na Rua Miguel Bombarda, na cidade, freguesia e concelho de Albufeira, imóvel que vendeu.

7) A arguida recebeu o valor de €58.000,00 do comprador JM, representado por PM, pela venda de tal imóvel, quantia essa que fez sua e de seu irmão RR, não a entregando à herança.

8) A arguida, apresentando-se ao comprador e perante o notário como legítima titular da procuração supra referida, determinou-os a outorgarem a referida escritura de compra e venda, recebendo daquele primeiro a referida quantia em dinheiro, o que efectivamente conseguiu.

9) A arguida apresentou a procuração como se fosse a sua legítima portadora, bem sabendo MJC havia morrido e que já não a podia utilizar para efectuar a referida compra e venda do imóvel supra descrito, nem para se apropriar dos valores provenientes de tal venda.

Do pedido de indemnização civil
10) O demandante JP teve conhecimento da venda da propriedade descrita em 4) mercê de uma notificação da Administração Tributária, em função de liquidação de mais valias correspondentes à venda do imóvel, tendo procedido ao pagamento da quantia de €1.764,36.

11) Por força da conduta da arguida o demandante sentiu-se entristecido, ficando dominado por um sentimento de injustiça.

Da contestação
12) A partir do ano 2000 MJC passou a viver a cargo da arguida e do seu irmão.

13) Em Janeiro de 2010 foi encarregue a Remax de proceder à promoção da venda do apartamento.

14) Em 20 de Maio de 2010 foi emitida factura em nome de MJC pela Remax no valor de €2.500,00 por “prestação de serviços imobiliários; R. Miguel Bombarda … – Albufeira”

15) Por contrato epigrafado de “Contrato-Promessa de compra e venda de imóvel” datado de 19 de Maio de 2010, em que consta como primeiro outorgante MJC, representada por NN e PM como segundo outorgante, lê-se designadamente, que:

“(...) Cláusula 1.ª
A 1.ª Contratante é proprietária e legítima possuidora do prédio urbano sito em Rua Miguel Bombarda, designado pela fracção “AZ” descrito na Conservatória do Registo Predial de Albufeira sob a descrição n.., inscrito na matriz predial sob o artigo matricial n.º ---da freguesia de Albufeira, possuidora do Alvará de Licença n.º 174/88, emitido em 4 de Maio pela Câmara Municipal de Albufeira.

Cláusula 2.ª
Pelo presente contrato, a 1.ª Contratante promete vender, devoluto e livre de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades, ao 2.º Contratante, e este promete comprar-lhe, o prédio identificado na cláusula anterior pelo preço de 58.000,00€ (cinquenta e oito mil euros).

Cláusula 3.ª
1-A título de sinal e princípio de pagamento, a 1.ª Contratante recebe nesta data do 2.º Contratante a quantia de €10.000,00 (dez mil euros), de que aquele dá a respectiva quitação neste contrato.

2-O remanescente do preço, no valor de €48.000,00 (quarenta e oito mil euros) será pago pelo 2.º Contratante no acto de celebração da escritura de compra e venda.

Cláusula 4.ª
A entrega das chaves será efectuada aquando o acto de celebração da respectiva escritura pública contra entrega e boa cobrança das quantias aludidas na cláusula anterior.

Cláusula 5.ª
1-A escritura pública de compra e venda será celebrada num prazo de 30 dias, a contar da data de celebração do presente contrato promessa de compra e venda.

2-Compete ao 2.º Contratante a marcação da escritura pública, devendo notificar a 1.ª Contratante do dia, da hora e local, com a antecedência mínima de 10 (dez) dias.
(...)
Cláusula 10.ª
Não obstante a constituição de sinal, as partes expressamente declaram que, em caso de incumprimento do presente contrato promessa de compra e venda, reservar-se-ão no direito de recorrer à execução específica, nos termos e para os efeitos do artigo 830.º do C.C. (...)”

mais se provou que:
16) A arguida encontra-se no estado civil de casada e reside com o seu marido.

17) A arguida vive em casa própria pela qual paga mensalmente ao banco a quantia de €300,00.

18) A arguida tem dois filhos maiores de idade.

19) A arguida é professora universitária, com um doutoramento em Matemática, auferindo mensalmente a quantia de €1.900,00.

20) Do certificado de registo criminal da arguida não resultam quaisquer antecedentes criminais.

Dos factos não provados:
Não se logrou provar qualquer outro facto, com relevo para a boa decisão da causa, ou que esteja em contradição com os dados como provados. Designadamente não se logrou provar que:
da acusação pública

a) Que a arguida sabia que a procuração caducara com a morte da outorgante.

b) Que a arguida agiu com intenção de obter para si uma vantagem patrimonial de forma ilícita, no valor recebido pela venda do imóvel, à custa do prejuízo de terceiros, bem sabendo que causava prejuízo aos demais herdeiros.

c) Que a arguida agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta lhe era vedada pela lei penal.

Do pedido de indemnização civil
d) Que o denunciante se deslocou de Lisboa ao Algarve e que essa deslocação lhe causou incómodos e transtornos.

e) Que com telefonemas, honorários de advogados e taxas de justiça com o presente processo gastou o demandante até à presente data €2.500,00.

f) Que o demandante passou a evitar deslocar-se a locais públicos que costumava e gostava de frequentar e recusa-se a estar presente em eventos sociais.

g) Que o demandante ficou deprimido, não consegue dormir ou descansar.

Da contestação
h)Que as despesas efectuadas mensalmente por MJC rondavam os €1.500,00.

i) Que MJC acordou com a arguida e seu irmão que o montante necessário a fazer face às despesas que causava seria suportado por algum dinheiro que tinha depositado em conta bancária, sendo que quando esse valor acabasse a arguida e seu irmão passariam a suportar os custos até que MJC realizasse capital para satisfazer os valores em dívida.

j) Que face a este acordo, e uma vez que MJC não dispunha de rendimentos, a arguida e o irmão foram adiantando todos os montantes necessários a prestar todos os cuidados e vivência condigna desta e, ocasionalmente, acertavam contas.

l) Que MJC tinha perfeita noção que o volume da dívida que tinha para com os sobrinhos rondava os €50.000,00.

m) Que a quantia de €48.000,00 era o que se entendia corresponder ao montante gasto pela arguida e seu irmão.

n) Que além do reembolso de valores já gastos, havia despesas respeitantes a MJC que careciam de pagamento como empregadas, despesas de funeral, etc.

o) Que após a escritura a arguida e o seu irmão se ressarciram das despesas por estes suportadas e ainda liquidaram as que ficaram pendentes.

Exame crítico da prova:
O Tribunal norteou a sua convicção quanto à matéria de facto provada com base na valoração da prova produzida e examinada em audiência, conjugada com o princípio da livre apreciação da prova, entendido como o esforço para alcançar a verdade material, tendo desconsiderado todas as afirmações de pendor conclusivo e de matéria de direito, analisando dialecticamente os meios de prova ao seu alcance, procurando harmonizá-los entre si de acordo com os princípios da experiência comum, sem critérios pré-definidores de valor a atribuir aos diferentes elementos probatórios, salvo quando a lei diversamente o disponha.

Em face da complexidade da matéria a analisar, impõe-se começar por referir o que se mostra assente por todos os sujeitos processuais, atenta não só a confissão da arguida como a prova documental.

Resulta provado o facto descrito em 1) por conta da certidão de óbito de fls. 28 e da habilitação de herdeiros de fls. 164, não existindo dúvidas do falecimento em 11 de Junho de 2010 de MJC, deixando como herdeiros JP, NN, ora arguida, e RR.

A propriedade do imóvel em apreço nos autos, ou seja, a fracção autónoma designada pela Letra “AZ”, correspondente ao primeiro andar, zona habitacional, apartamento ---, do prédio urbano situado na Rua Miguel Bombarda, na cidade, freguesia e concelho de Albufeira era de MJC, conforme resulta da certidão da caderneta predial urbana de fls. 112 e da certidão do registo predial de fls. 124, pelo que resulta provado o facto descrito em 2).

Por conta desta propriedade, em 22 de Agosto de 2001 MJC outorgou uma procuração a favor da arguida autorizando-a a proceder à venda de quaisquer bens imóveis situados nos concelhos de Silves e Albufeira, conforme resulta do compulsar da dita a fls. 41 e 42, estando provado o facto descrito em 3).

Também por conta dessa procuração não existem dúvidas de que a arguida, no dia 14 de Junho de 2010 dirigiu-se ao Cartório Notarial sito na Urbanização Quinta da Correeira,…, em Albufeira e outorgou a escritura pública de compra e venda da referida fracção autónoma, declarando que a sua tia estava viva, embora bem soubesse do falecimento da mesma, e recebeu o valor de €58.000,00 do comprador JM, quantia essa que fez sua e de seu irmão RR. A prova, assim, dos factos descritos em 4), 5), 6), 7) e 8) resulta não só da escritura de compra e venda de fls. 33 a 37, como ainda das declarações da arguida que, nesse aspecto, esclareceu que foi efectivamente fazer a escritura pública tendo atestado que a sua tia estava viva à data, quando sabia que o contrário era verdade.

Tudo isto se passou sem o conhecimento de JP, herdeiro de MJC, que esclareceu em audiência que veio a saber da situação quando, na qualidade de cabeça de casal e herdeiro, recebeu uma notificação referente ao pagamento de mais valias da fracção autónoma em causa no valor de €1.764,36, a qual liquidou, conforme resulta da notificação da Autoridade Tributária de fls. 57, dando-se, assim, como provado o facto descrito em 10).

É pelas declarações JP e de sua esposa MV, que o Tribunal alcançou a convicção do estado em que o demandante ficou quando se inteirou da situação referindo que acima de tudo ficou aborrecido, irritado e descrente nos valores da família, resultando, assim, provado o facto descrito em 11).

Não existem dúvidas de que a partir de uma determinada altura da vida de MJC esta passou a ficar aos cuidados da arguida e de seu irmão, RR. Isto foi esclarecido pelos próprios e ainda pelo assistente, dando-se assim como provado o facto descrito em 12).

Fez-se ainda fé na prova documental e testemunhal oferecida pela arguida, em particular o contrato promessa de fls. 105 a 106, a factura de fls. 100 e 101 e as declarações de EC, consultora imobiliária, que deu conta de que o processo de venda da fracção autónoma em questão não se iniciou no dia da escritura pública, mas sim uns meses antes, tanto mais que foi alvo de contrato-promessa em Maio de 2010, de entrega de um sinal de €10.000,00 nessa mesma data, de intermediação de uma agência imobiliária que recebeu a respectiva comissão e esteve encarregue da promoção do imóvel, assim se dando como provados os factos descritos de 13), 14), 15) e 16).

Na verdade, a forma como os eventos se desenrolaram não se mostra controvertida.

A razão da discórdia passa pelo significado real de duas atitudes da arguida: em primeiro lugar, ter dito que MJC estava viva quando bem sabia que não estava; em segundo lugar qual o destino desse dinheiro e a razão pela qual não foi relacionado como um bem da herança.

Para o assistente estamos perante engano da arguida, bem manifestado nas duas atitudes supra descritas, que visou exclusivamente o enriquecimento patrimonial da arguida e o empobrecimento do assistente.

Começando pela primeira questão, ou seja a razão de dizer que MJC estava viva quando manifestamente não estava. Diz a arguida que não agiu em consciência, ao mesmo tempo que admite em audiência ter sido o seu único erro. Ficamos na dúvida se a arguida efectivamente assume a final que sabia que o que fazia era errado. No entanto, ainda que sem conhecimentos jurídicos, o cidadão comum não sabe que é errado mentir? E sabendo que é errado mentir, mesmo que desconheça as consequências da caducidade de uma procuração, quando é questionada directamente quanto a esse aspecto, não seria razoável que ao menos se interrogasse quanto ao porquê dessa pergunta específica? O cidadão pode não conhecer todas as leis, mas não só a sua ignorância não lhe deve aproveitar, como perante a pergunta avisada do senhor notário, impunha-se-lhe que o questionasse quanto ao porquê da mesma. A arguida é pessoa com educação superior pelo que não pode escudar-se no mero desconhecimento. E se foi avisada o suficiente para sugerir ou assegurar ou manter uma procuração por parte de MJC é razoável ao Tribunal concluir que sabe para que serve, que conhece os seus efeitos e que terá, pelo menos de se conformar com o resultado da sua conduta, pois que quando lhe perguntaram se MJC estava viva respondeu falsamente que sim e não cuidou de saber no momento, como se lhe impunha, as consequências do seu acto. E se parece que estamos a conduzir a actuação da arguida para o campo do dolo eventual, dizemos já que não estamos. Não há razão nenhuma para crer que actuou conformando-se com o resultado. A arguida sabia que MJC tinha falecido, foi questionada directamente quanto a esse aspecto e escolheu, de livre e espontânea vontade mentir, escolhendo também prestar falsas declarações porque, no fundo, queria que o negócio seguisse em diante. Insista-se; é irrelevante saber para efeitos do crime que discutimos se a arguida sabia que a procuração caducava; o que é relevante saber é se a arguida sabia que enganava e mentia para garantir a vantagem patrimonial. Se sabia que mentia quanto a este aspecto, sabia que haveria algum problema com a procuração, o que determinaria um problema com a venda subsequente. E quanto a isso, não temos dúvidas que ocorreu. Razão pela qual se dá como provado o facto descrito em 9), no sentido de ter consciência da sua actuação e como não provado o facto descrito em a), sendo aliás, irrelevante que não conhecesse especificamente os efeitos de caducidade da procuração com a morte do mandante.

Por outro lado, a arguida apresenta razões para não ter entregue à herança a quantia de €58.000,00. Contudo, refere despesas que num primeiro momento rondam os €2.000,00, noutro já rondam os €1.500,00. Aventa despesas genéricas com médicos, comida, electricidade, lares, uma empregada; existiam ainda despesas após a morte de MJC. Refere despesas que eram suportadas pelo património de MJC e outras que eram suportadas por si e pelo seu irmão. Mas é, uma vez mais, incapaz de precisar datas ou valores concretos e, no que ora nos importa, que tenham, ainda que remotamente, correlação com os €58.000,00 em discussão. O seu irmão, RR refere inclusive que a maior parte do valor da venda reverteu para si e para as despesas que fez em vida e por morte de MJC, mas é tão ou mais lacónico que a arguida a descrever as despesas. Não cabe à arguida provar a sua inocência, mas se assenta a sua defesa nas inúmeras despesas que fez ao longo dos anos, muito se estranha a absoluta inexistência de facturas ou recibos médicos, pagamentos de empregadas, etc., que façam prova do que alega. Acresce que os factos como se mostram vertidos na contestação e que se deram como não provados bem denotam a confusão em que labora a arguida. Ou bem que seriam os €48.000,00 que pagariam as despesas, ou bem que seriam os €58.000,00. Ou bem que MJC vivia dos rendimentos da venda do património e não tinha outros bens, ou bem que teria contas bancárias, que de forma alguma foram mencionadas em julgamento; ou bem que a quantia de €48.000,00 era o que se entendia corresponder ao montante gasto pela arguida e seu irmão, ou ainda havia despesas respeitantes a MJC que careciam de pagamento. Em suma, a versão trazida pela arguida não justifica, de forma alguma o arrogar-se como proprietária legítima, juntamente com apenas o seu irmão, desta quantia de €58.000,00, razão pela qual se deram como não provados os factos descritos em h), i), j), l), m), n), e o).

Os factos dados como não provados em b) e c) resultam da forma como se alcançou a noção de verdadeiro prejudicado patrimonialmente com a conduta da arguida que, contrariamente ao sustentado pelo assistente, não foram os herdeiros, mas a herança em si, indivisa e aberta por óbito de MJC; contudo, e acerca deste aspecto teceremos considerações em sede de enquadramento jurídico.

Os factos não provados do pedido de indemnização civil de d), e), f) e g) resultaram da total ausência de prova quanto aos mesmos.

O Tribunal não responde à demais matéria vertida na acusação, pedido de indemnização civil e contestação por considerar a mesma de direito, conclusiva ou irrelevante para o objecto do processo.

Em sede de condições de vida, designadamente quanto à situação económica, social e familiar do arguido o Tribunal fez fé nas declarações da própria que, na medida do dado como provado, lograram convencer.

Relativamente aos antecedentes criminais da arguida, o Tribunal formou a sua convicção com base no teor do Certificado de Registo Criminal junto aos autos.

Todos os meios de prova foram devidamente sopesados, conduzindo, fundamentadamente, à formação de um todo lógico e coerente de verdade.

Apreciando:
- recurso do Ministério Público:
A) - da contradição insanável entre factos:

- recurso do assistente:
A) - da contradição insanável entre factos:
Ambos os recorrentes suscitam a existência de contradição insanável entre factos, reportando-se residir entre o facto não provado em a) e o facto provado em 9).

Atente-se no que deles consta:

- não provado:
a) Que a arguida sabia que a procuração caducara com a morte da outorgante”;

- provado:
9) A arguida apresentou a procuração como se fosse a sua legítima portadora, bem sabendo MJC havia morrido e que já não a podia utilizar para efectuar a referida compra e venda do imóvel supra descrito, nem para se apropriar dos valores provenientes de tal venda”.

Refere o Ministério Público que esse facto em concreto dado como não provado, decorre natural e logicamente dos factos dados como provados na sentença, e, nessa medida, deveria ter sido dado como provado, sendo que dando o Tribunal como provada a factualidade supra (facto provado em 9)) não poderia ter deixado de dar como provado que a arguida sabia que a procuração caducara com a morte da outorgante, pois, como a própria sentença afirma, “…ainda que sem conhecimentos jurídicos, o cidadão comum não sabe que é errado mentir? E sabendo que é errado mentir, mesmo que desconheça as consequências da caducidade de uma procuração, quando é questionada directamente quanto a esse aspecto, não seria razoável que ao menos se interrogasse quanto ao porquê dessa pergunta específica?...”.

Acrescenta que o facto dado como provado em 9), acaba por ser uma explicação de senso comum para o conceito de caducidade de uma procuração, conceito esse que, mesmo sem rigor jurídico, não escapa à compreensão do Homem médio, mais ainda da arguida que tem formação superior e se foi dado como provado que a arguida sabia que não podia utilizar a procuração após a morte da tia, nomeadamente, para concretizar a venda e receber o preço, não poderia ter sido dada como não provada a consciência e volição do uso de uma procuração caducada.

Quanto ao assistente, referindo-se ao mesmo facto não provado em a), entende, no essencial, que decorre automaticamente dos factos dados como provados.

Suscitam, pois, a questão por referência ao art. 410.º, n.º 2, alínea b), do CPP, ou seja, enquanto vício da decisão, no caso, como contradição insanável da fundamentação, que, conforme citado pelo Ministério Público, se verifica, Nas doutas palavras de Simas Santos e Leal Henriques quando “se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável. Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada (…) e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente”..In Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 5ª edª, 2002, p.65/67.

Haverá de resultar “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum”, de acordo com o n.º 2 do mesmo art. 410.º e é neste sentido, e bem, que os recorrentes o colocam.

Note-se, para o efeito, que o tribunal a quo fundamentou, designadamente, que:

A arguida sabia que MJC tinha falecido, foi questionada directamente quanto a esse aspecto e escolheu, de livre e espontânea vontade mentir, escolhendo também prestar falsas declarações porque, no fundo, queria que o negócio seguisse em diante. Insista-se; é irrelevante saber para efeitos do crime que discutimos se a arguida sabia que a procuração caducava; o que é relevante saber é se a arguida sabia que enganava e mentia para garantir a vantagem patrimonial. Se sabia que mentia quanto a este aspecto, sabia que haveria algum problema com a procuração, o que determinaria um problema com a venda subsequente. E quanto a isso, não temos dúvidas que ocorreu. Razão pela qual se dá como provado o facto descrito em 9), no sentido de ter consciência da sua actuação e como não provado o facto descrito em a), sendo aliás, irrelevante que não conhecesse especificamente os efeitos de caducidade da procuração com a morte do mandante”.

Resulta, assim, que o tribunal não conferiu relevância ao que acabou por verter como não provado em a), aparentemente suportado no rigoroso conhecimento dos efeitos da caducidade, não exigível à arguida, não obstante a dimensão inerente a esses efeitos, a que alude a sentença no exame crítico da prova, não tivesse ficado reflectida nesse facto, mas sim, e apenas, que “a procuração caducara com a morte da outorgante”.

Em idêntica perspectiva entronca a argumentação da arguida, na sua resposta ao recurso, ao invocar que não devia ser considerada matéria de facto o conhecimento da "caducidade da procuração” por integrar um conceito de direito, por imperativo do disposto no artigo 607.º n.º 4 do actual Código de Processo Civil, pois, da sentença, deverão constar os factos o que implica que deve ser suprimida da mesma toda a matéria constante dos “factos” susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, juízos de valor ou conclusivos.

Ora, vem sendo pacificamente reconhecido que, no âmbito da matéria de facto, se deve incluir unicamente os factos, ou seja, as ocorrências da vida real, isto é, os fenómenos da natureza, ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos dos homens (Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil anotado”, Coimbra Editora, 1985, volume III, pág. 209) ou, como se sublinhou no acórdão do STJ de 07.05.2009, no proc. n.º 08S3441, in www.dgsi.pt, inserem-se todos os acontecimentos concretos da vida, reais ou hipotéticos, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis: os acontecimentos externos (realidades do mundo exterior) e os acontecimentos internos (realidades psíquicas ou emocionais do indivíduo), sendo indiferente que o respectivo conhecimento se atinja directamente pelos sentidos ou se alcance através das regras da experiência (juízos empíricos) — neste sentido, Manuel A. Domingues Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1963, pp. 180/181, e Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, Coimbra, 1982, p. 268; na jurisprudência, entre outros, o Acórdão deste Supremo de 24 de Setembro de 2008 (Documento n.º SJ20080924037934, em www.dgsi.pt).

Nem sempre é fácil, contudo, distinguir, com rigor, entre o que é matéria de facto e o que é matéria de direito, servindo como orientação que a) É questão de facto tudo que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior; b) É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei e Reduzido o problema à sua maior simplicidade, (…) a) É questão de facto determinar o que aconteceu; É questão de direito determinar o que quer a lei (…) (Alberto dos Reis, ob. cit., págs. 206/207).

Se assim é, a matéria de facto não deve suportar questões de direito e juízos de valor ou conclusivos, apesar de, relativamente a essas questões, não se descure o seu sentido corrente na sociedade, que seja acessível ao cidadão de média formação e, por isso, consentindo, de algum modo, que acabem por reflectir-se na matéria se nesta se vierem a incluir.

Quanto à caducidade da procuração aqui em análise, embora se trate de questão tendencialmente jurídica, a sua inserção na acusação (fls. 130) surgiu como consentânea com o que veio a ser dado por provado em 9) e, como o Ministério Público assinala, e bem, relativamente a este facto, acaba por ser uma explicação de senso comum para o conceito de caducidade de uma procuração, conceito esse que, mesmo sem rigor jurídico, não escapa à compreensão do Homem médio, mais ainda da arguida que tem formação superior.

Na verdade, afigura-se que a caducidade, no sentido corrente, não pode desprender-se do significado de algo que cai em desuso e, assim, de que não pode utilizar-se, pelo que, ao ter-se provado em 9) que a arguida sabia que “MJC havia morrido e que já não a podia utilizar para efectuar a referida compra e venda do imóvel”, se reflectiu, afinal, que teria de conhecer que a procuração caducara.

Afigura-se, pois, que o tribunal incorreu na alegada contradição, ao ter consignado como não provado “Que a arguida sabia que a procuração caducara com a morte da outorgante”, uma vez que se entende que este aspecto se revela incompatível com o provado em 9).

Em presença da contradição, resta saber se a mesma se deverá ter como insanável, ou seja, não suprível, na medida em que, só em caso afirmativo, se imporá o reenvio do processo nos termos do art. 426.º, n.º 1, do CPP.

E embora os recorrentes a tenham invocado como insanável, não deixaram de defender que esse facto não provado em a) se deva considerar como provado, sendo que, à luz do exame crítico operado na sentença, resultado idêntico se permite alcançar.

Com efeito, se como ali consta, “resulta não só da escritura de compra e venda de fls. 33 a 37, como ainda das declarações da arguida que (…) esclareceu que foi efectivamente fazer a escritura pública tendo atestado que a sua tia estava viva à data, quando sabia que o contrário era verdade” e “se foi avisada o suficiente para sugerir ou assegurar ou manter uma procuração por parte de MJC é razoável ao Tribunal concluir que sabe para que serve, que conhece os seus efeitos” e, ainda, “sabia que MJC tinha falecido, foi questionada directamente quanto a esse aspecto e escolheu, de livre e espontânea vontade mentir, escolhendo também prestar falsas declarações porque, no fundo, queria que o negócio seguisse em diante”, a análise conjugada destes parâmetros conflui para o seu inevitável conhecimento de que a procuração já não servia de suporte para realizar o negócio, o mesmo é dizer, já se revelava caduca para essa finalidade que prosseguiu.

Deste modo, acolhendo, ainda, implicitamente, a circunstância sublinhada pelo assistente de que a arguida prestou declarações no sentido de ter afirmado, no acto da escritura, que a tia estava viva, em sintonia com o que ficou fundamentado na sentença, entende-se que o facto não provado em a) passa a considerar-se como provado.

No que concerne aos restantes factos não provados em b) e c), transparece que o Ministério Público os suscita, também, como incompatíveis com o que ficou provado.

Ainda que sem concretizar essa perspectiva, a sua posição resulta inteligível em razão do acervo de factos em questão, postos no confronto com outros, sem descurar o exame crítico que a prova mereceu.

Assim, tendo em conta os referidos factos não provados:
b) Que a arguida agiu com intenção de obter para si uma vantagem patrimonial de forma ilícita, no valor recebido pela venda do imóvel, à custa do prejuízo de terceiros, bem sabendo que causava prejuízo aos demais herdeiros.

c) Que a arguida agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta lhe era vedada pela lei penal”,

resultam como contraditórios com os factos provados em:
7) A arguida recebeu o valor de €58.000,00 do comprador JM, representado por PM, pela venda de tal imóvel, quantia essa que fez sua e de seu irmão RR, não a entregando à herança.

8) A arguida, apresentando-se ao comprador e perante o notário como legítima titular da procuração supra referida, determinou-os a outorgarem a referida escritura de compra e venda, recebendo daquele primeiro a referida quantia em dinheiro, o que efectivamente conseguiu.

9) A arguida apresentou a procuração como se fosse a sua legítima portadora, bem sabendo MJC havia morrido e que já não a podia utilizar para efectuar a referida compra e venda do imóvel supra descrito, nem para se apropriar dos valores provenientes de tal venda”.

Concretizando, se se apurou que a arguida recebeu aquele valor e que o fez seu, não o entregando à herança, mediante a apresentação da procuração nas descritas condições, torna-se incompreensível que não tivesse tido intenção de obter vantagem patrimonial e em prejuízo dos demais herdeiros, agindo consciente do que estava em causa, tanto mais que, segundo o fundamentado pelo tribunal, “queria que o negócio seguisse em diante”, razões que apresentou para não ter entregue à herança a quantia restaram como não provadas e inexiste dado algum no sentido da sua liberdade de actuação e de decisão se ter revelado inquinada.

Aliás, a fundamentação atinente àqueles factos não provados em b) e c), que se quedou por referir que “resultam da forma como se alcançou a noção de verdadeiro prejudicado patrimonialmente com a conduta da arguida que, contrariamente ao sustentado pelo assistente, não foram os herdeiros, mas a herança em si, indivisa e aberta por óbito de MJC”, não aporta motivos que contendam, antes pelo contrário, com os que estão subjacentes aos factos provados referidos, mormente quando aqui se mencionou que “recebeu o valor de €58.000,00 (…) pela venda de tal imóvel, quantia essa que fez sua e de seu irmão RR, não a entregando à herança”, o que implicitamente denota, sem que outros elementos o infirmem, que “agiu com intenção de obter para si uma vantagem patrimonial de forma ilícita, no valor recebido pela venda do imóvel, à custa do prejuízo de terceiros, bem sabendo que causava prejuízo aos demais herdeiros”.
Ainda que em presença, no caso, de bem que pertencia à herança indivisa e, assim, relativamente ao qual a acção da arguida foi adequada a causar prejuízo aos demais herdeiros, o tribunal enveredou por interpretação incorrecta, intrínseca à valoração que estabeleceu para alcançar aqueles factos não provados.

Colhe-se da fundamentação da sentença (em sede de enquadramento jurídico-penal, na sequência de que, no âmbito do exame crítico da prova, referiu, que “acerca deste aspecto teceremos considerações em sede de enquadramento jurídico”) que:

Temos ainda que o bem, à data em que é vendido, faria já parte da herança, por conta do falecimento da proprietária.

Temos ainda como provado que o assistente, juntamente com a arguida e seu irmão seriam os herdeiros desta proprietária, MJC.

Então quem é a pessoa que sofre prejuízo patrimonial exigida pelo crime de burla?
(…)
E tratando-se de venda de bem alheio – ineficaz quanto aos sucessores, como vimos - esse imóvel integra o património hereditário.
(…)
Assim, trazendo os ensinamentos da jurisprudência ao caso concreto, se é titular de direito a uma quota da herança e não a um bem em concreto, quem se viu efectivamente prejudicada foi a herança, à data dos factos ainda indivisa, e não o herdeiro, ou pelo menos, não na posição isolada (…).

E, nesta medida, se o imóvel faria parte da herança indivisa aberta por óbito de MJC, tia da arguida, seu irmão e do assistente, então o assistente não é proprietário ou comproprietário do imóvel, pois que isso implicaria a partilha de bens entre os herdeiros, o que não se verificou, tanto mais que nada foi alegado nesse sentido. E se não pode considerar-se que os herdeiros de herança indivisa têm direitos sobre bens certos e determinados, ou um direito real sobre um bem em concreto da herança, ou ainda uma quota parte sobre cada um, sendo apenas titulares de um direito à herança entendida como universalidade de bens, não se sabendo, à cabeça, quem irá ser o titular do direito de propriedade sobre um bem que integre a herança enquanto não se realizar a partilha, nunca estamos a falar de um prejuízo patrimonial concreto do assistente.
(…)
Insistimos, não é possível quantificar ou nomear, porque não são os herdeiros os prejudicados – é a herança”.

Todavia, se bem que não se possa dizer, relativamente ao imóvel que faz parte da herança indivisa, a qual dos herdeiros o mesmo pertence, afigura-se que a sua protecção jurídica está inevitavelmente implicada na dos herdeiros, sob pena de, se assim não fosse, a noção de herança não passasse de entidade abstracta e sem conteúdo, numa visão redutora da realidade das coisas.

Acompanham-se, por inteiramente pertinentes, as considerações constantes do acórdão desta Relação de Évora de 26.04.2016, no proc. n.º 90/13.6TASRP.E1, rel. João Amaro, in www.dgsi.pt (a propósito de um caso em que se discutia a legitimidade de um co-herdeiro para se constituir como assistente), citado por ambos os recorrentes:

«Estamos, como é pacífico nos autos, perante uma herança indivisa, isto é, uma herança aceite pelos vários herdeiros a ela chamados mas ainda não partilhada entre eles.

Desde a aceitação até à partilha da herança, esta mantém-se num estado de indivisão.

Nesse ínterim, a administração ordinária da herança e as obrigações judiciais, fiscais e administrativas ligadas à universalidade da herança cabem, como é sabido, ao cabeça-de-casal.

Contudo, os atos de alienação ou oneração dos bens da herança só podem ser praticados (cfr. o disposto no artigo 2091º do Código Civil) por todos os herdeiros (por exemplo, a venda de um bem hereditário) ou contra todos os herdeiros (por exemplo, a constituição de uma servidão sobre um bem hereditário), uma vez que, enquanto dura a indivisão, os herdeiros têm um direito sobre a universalidade da herança.

A herança indivisa é uma universalidade jurídica que integra um autêntico património autónomo, na medida em que pelos encargos da herança respondem em conjunto todos os bens da herança indivisa e apenas tais bens (cfr. artigos 2097º e 2071º do Código Civil).

Após a partilha da herança, esta desaparece como património autónomo, uma vez que os bens que a constituem transitam para a propriedade exclusiva dos respetivos herdeiros, passando estes a ter um poder de disposição plena sobre os bens hereditários que integram o respetivo quinhão e podendo os seus credores pessoais executar diretamente tais bens.
(…)
É evidente que, como bem se escreve no Ac. do S.T.J. de 17-04-1980 (in BMJ 295-298), o “domínio e posse sobre os bens em concreto da herança só se efetivam após a realização da partilha. Até aí, a contitularidade do direito à herança significa direito a uma parte ideal, não de cada um dos bens que compõem a herança”.
Só que, se é assim, como é, cada um dos herdeiros, mesmo na indivisão, goza de um direito sobre a totalidade dos bens (é contitular deles).

Aberta a herança, e uma vez aceite a mesma, os herdeiros passam a ser titulares dos bens, não como donos de cada um deles em concreto, mas sim como donos da universalidade jurídica constituída por todos eles».

Ora, na situação, encontrando-se os herdeiros devidamente determinados, a venda do imóvel e o valor recebido pela arguida consentem que se extraia a conclusão de que, se assim ocorreu, o património em que se traduz a herança indivisa foi prejudicado e, como bem refere o Ministério Público, reflexamente gera prejuízo na esfera jurídica dos herdeiros, pois os seus bens (ainda que indivisos numa mera universalidade jurídica) estão a ser apropriados ou descaminhados.

Acresce que, mediante o texto da sentença, além do mais, pelo exame crítico das declarações da arguida, se permite descortinar como pautou a sua decisão, no sentido, que decorre da avaliação conjunta das circunstâncias, de ter querido actuar da forma como o fez e com o propósito de obter vantagem patrimonial.

Tanto basta para que, também, os factos não provados em b) e c) passem a ser tidos como provados.

- recurso do assistente:
B) - da modificação da matéria de facto mediante reapreciação da prova:

O assistente, insurgindo-se contra a decisão relativa a ter-se considerado como não provados os factos mencionados em b) e c), bem como os aludidos em d), e), f), e g), convoca o apelo à reapreciação da prova, oferecendo excertos da prova produzida.

Como tal, reporta-se à faculdade de impugnação da matéria de facto, prevista no art. 412.º, n.º 3, do CPP, para o efeito tendo observado minimamente as condições tendentes à apreciação em vista (cfr. acórdão de fixação de jurisprudência do STJ de 08.03.2012, in D.R. I Série, n.º 77, de 18.04.2012).

Relativamente aos referidos factos não provados em b) e c), já ficou definida a sua alteração para factos provados, pelo que não se mostra necessária acrescida análise aferida em razão de trechos das declarações da arguida e do irmão desta, confrontado o exame crítico do tribunal, que o assistente trouxe ao recurso.

Restam, assim, os outros factos, atinentes ao pedido de indemnização civil.

Sobre eles, o tribunal referiu que “resultaram da total ausência de prova quanto aos mesmos”.

Por seu lado, neste âmbito, o assistente limita-se a indicar excertos das suas declarações e da sua esposa, MV, que unicamente se poderiam prender com o facto não provado em g).

Assim, inexiste fundamento válido para modificar os factos não provados em d), e) e f), no sentido, pretendido, de haverem de ser considerados como provados.

Quanto ao facto não provado em g), afigura-se, não só analisadas as transcrições apresentadas, como também decorrendo da audição a que se procedeu, que, também, não se encontra motivo para modificação, uma vez que essa prova tão-só consente, como o tribunal fundamentou, o que ficou provado em 11) - “Por força da conduta da arguida o demandante sentiu-se entristecido, ficando dominado por um sentimento de injustiça”.

Nesta vertente, cível, não procede a pretendida modificação dos factos.

- recurso do Ministério Público:
B) - da consequente condenação da arguida pelo imputado crime de burla:

- recurso do assistente:
C) - da consequente condenação da arguida pelo imputado crime de burla:

Na sequência da modificação dos factos, os recorrentes preconizam a condenação da arguida pela prática do imputado crime de burla.

No essencial, em crítica à sentença, defendem diversa perspectiva quanto à visão do tribunal a quo relativa à ausência de prejuízo patrimonial, chamando à colação o mencionado acórdão desta Relação.

Segundo o Ministério Público, Tal entendimento (o do tribunal) a valer definitivamente, estabelece uma actuação ilícita sem responsabilidade ou responsáveis penais, apenas porque se perspectiva que um descaminho de património de uma herança, ataca os interesses de uma entidade etérea, sem ofendidos concretos, sem prejuízo imediatamente mensurável e se nenhum herdeiro tem, na indivisão da herança, qualquer direito sobre qualquer bem específico concreto que dela faça parte, não podemos deixar de concluir que, contrariamente ao decidido, no caso em apreço, estamos efectivamente perante uma apropriação de bens alheios, que afecta o património autónomo da herança e reflexamente gera prejuízo na esfera jurídica dos herdeiros.

Acrescenta que No crime de burla o bem jurídico tutelado é o património, entendido como o complexo de relações jurídicas tituladas pelos sujeitos. Tutela-se, pois, a disponibilidade, ainda que futura, da fruição das coisas, acautelando-se a sua ilegítima agressão, a fruição da utilidade dos bens que integram a herança indivisa, não cabendo a um único titular de interesses, não está adstrita a qualquer dos co-herdeiros, entendemos dever concluir que, relativamente a cada um dos co-herdeiros, tais bens concretos devem ser considerados bens alheios, estando a sua apropriação por parte de um deles (a quem não pertencem, nem nunca pertenceram), lesiva da disponibilidade da fruição das respectivas utilidades em detrimento dos demais detentores de quotas hereditárias, com o inerente prejuízo, abrangida na tutela penal concretizada pela tipificação do artº 217º do Cód. Penal, tutela penal que se mostra inequivocamente necessária, não sendo os meios civis suficientes para a salvaguarda do bem violado.

Conclui, assim, pela apropriação por parte da arguida, a quem nenhum dos bens ou valores da herança pertence, (detendo tão só a titularidade de quota ideal do património autónomo que os congrega), mas que deles se apropriou e dispôs, fazendo-os seus (ou, pelo menos, o produto da venda), mediante o uso de erro e de engano.

Quanto ao assistente, a argumentação é, em tudo, idêntica.
*
Como mais relevante em sede de enquadramento jurídico, colhe-se, então, da sentença:

O crime de burla apresenta-se como a forma evoluída de captação do alheio em que o agente se serve do erro e do engano para que incauteladamente a vítima se deixe espoliar. Através da incriminação jurídico-penal da burla, pretendeu o legislador conferir tutela penal ao património da pessoa individual. Neste sentido e para o efeito de identificar rigorosamente o bem jurídico protegido na sua específica intencionalidade, haverá que entender o património numa acepção jurídico-económica, fazendo-o coincidir com um conjunto de utilidades económicas cuja disponibilidade e fruição o ordenamento jurídico tutele.

Este crime exige, para o seu preenchimento, que se verifiquem os seguintes elementos objectivos do tipo de burla: a astúcia do agente, exteriorizada numa conduta que a norma não descreve; o erro ou engano; os actos de disposição patrimonial ou de administração realizados pelo enganado, e o consequente prejuízo patrimonial deste ou de uma terceira pessoa.

Sendo o erro e o engano elementos do tipo da burla, eles têm que estar em relação, de um lado, com os meios empregues pelo burlão e, do outro, com os actos que vão directamente defraudar o património do lesado, exigindo-se, assim, para o preenchimento deste tipo objectivo de crime a existência de um duplo nexo de causalidade. Nesta medida, a conduta astuciosa do burlão há-de motivar o erro ou engano e, em consequência disso, a vítima procederá ao acto de que resulta o prejuízo patrimonial.

O conceito de astúcia tem dado azo a diversas discussões no sentido de se encontrar uma figura unitária capaz de abranger as possíveis actividades astuciosas que a lei não descreve. No entanto tem sido configurado o comportamento do burlão a partir das mais variadas manobras, desde a simples mentira que, em face das circunstâncias envolventes, se tornam credíveis perante o homem médio, até às maquinações complexas e multiformes ou aos mais elaborados artificios susceptíveis de levar a vítima a uma falsa representação da realidade. Essencial é que esta conduta astuciosa seja de molde a determinar um erro na vítima, exigindo-se, para esse efeito, que a conduta do burlão seja causal do erro do burlado e não meramente acidental, isto é, é necessário que a vítima tenha sido induzida a crer numa falsa representação da realidade, em termos equivalentes ao vício na formação da vontade.

Como consequência do erro, a vítima deverá realizar o outro requisito da burla, isto é, um acto de disposição patrimonial, que terá, pois, de traduzir-se num comportamento voluntário da vítima determinante de um prejuízo no seu património ou no de terceiro.

É, precisamente, esta voluntariedade que distingue a burla de outros crimes patrimoniais como o furto ou o abuso de confiança, fazendo, aqui, da figura da vítima um elemento imprescindível no iter criminis da burla, não obstante não ser punível.

Este acto de disposição constitui o elemento do tipo que está em contacto, dum lado, com o elemento intelectual que é o erro ou engano de quem os pratica e do outro, com a consequência exterior - patrimonial - ­da burla, que é o prejuízo do enganado ou de terceiro.

Por fim, a burla completa-se, quanto aos seus elementos objectivos, com o prejuízo patrimonial sem o qual apenas poderá haver burla na forma tentada. Com o preenchimento deste elemento objectivo está relacionada a questão em torno do conceito de património que entre nós tem sido definido como o conjunto dos valores ou utilidades económicas protegidas pela ordem jurídica.

O enriquecimento ilegítimo pode ocorrer por diversas formas, seja mediante um aumento patrimonial dos bens do agente ou de terceiro, seja através da diminuição do passivo patrimonial do agente ou de terceiro ou ainda da poupança de despesas, que são satisfeitas pelo lesado. E pode até nem chegar a ocorrer, já que ao contrário do que se verifica com o prejuízo patrimonial da vítima, a obtenção de uma vantagem patrimonial para o agente não é requisito de consumação da burla, bastando aqui a respectiva intenção. Por isso se diz que a burla é um crime de resultado cortado.

Quanto ao elemento subjectivo, a burla pressupõe, para o seu preenchimento, a existência de dolo em relação a todos os elementos objectivos do tipo e exige ainda um dolo específico, revelador de uma intenção de enriquecimento ilegítimo de tal forma que o modo pelo qual se realiza essa intenção se revele engenhoso, enganoso, criando a aparência de realidades que não existem, ou falseando directamente a realidade.

Munidos dos elementos que compõem o crime de burla revertamos ao caso concreto.

O caso que nos cumpre apreciar tem os seguintes contornos: a arguida, com uma procuração, outorgou contrato-promessa em Maio de 2010 prometendo vender a um terceiro um imóvel pertença de quem lhe outorgou a procuração. Sucede, porém, que após o falecimento da proprietária escolheu a arguida referir que esta ainda se encontrava viva para, em Junho de 2010, outorgar contrato de compra e venda. Com o falecimento da proprietária a procuração teria caducado, tendo ocorrido venda do bem pelo valor de €58.000,00, valor esse com o qual a arguida ficou.

Estaremos perante crime de burla?

O crime de burla exige, em primeiro lugar, o dito engano sobre factos astuciosamente provocados. No caso concreto, temos uma afirmação verbal explícita da arguida que, no momento da escritura, refere que a proprietária do imóvel, que lhe outorgou a procuração, está viva. É facto que a própria sabia ser falso. E não se diga que desconhecia os efeitos dessa sua afirmação. Não há quaisquer dúvidas que a arguida enganou justamente para criar a falsa convicção de que a venda do bem poderia prosseguir, como prosseguiu.

Essa circunstância provocou um erro quer no Sr. Notário, quer no comprador, sendo que este último viu produzida no seu espírito a ilusão de que poderia prosseguir na venda e, como tal, fez a disposição patrimonial de apenas €48.000,00, tendo feito já uma prévia disposição patrimonial, a título de sinal e de princípio de pagamento, desta feita sem qualquer engano, de €10.000,00.

Assim, para que se entenda: existe engano por parte da arguida, que provoca uma falsa representação da realidade no espírito da vítima, o comprador do imóvel, induzindo-o em erro e que leva esta vítima à disposição patrimonial.

Mas, determina o artigo 217.º n.º 1 do Código Penal que quem burla "determina outrem à prática de actos que lhe causem, ou a outra pessoa, prejuízo patrimonial ".

Parece, assim, que o requisito final, o prejuízo patrimonial não necessita de coincidir com quem pratica os actos de disposição em erro motivado pelo engano. E é aqui que, cremos, entrará o assistente.

O que temos provado? A venda de um bem após o falecimento do seu proprietário. Em termos civilísticos, e de forma muito simples, existe venda de bem alheio.

Temos ainda que o bem, à data em que é vendido, faria já parte da herança, por conta do falecimento da proprietária.

Temos ainda como provado que o assistente, juntamente com a arguida e seu irmão seriam os herdeiros desta proprietária, MJC.

Então quem é a pessoa que sofre prejuízo patrimonial exigida pelo crime de burla?

Socorrendo-nos das palavras de Miguez Garcia, bem sabemos que "haverá prejuizo sempre que se verifique diminuição do activo, aumento do passivo ou perda do ganho devido. Pode até o prejuizo consistir na privação duma vantagem económica certa, a qual teria permitido um aumento patrimonial" (cfr. O Direito Penal Passo a Passo, Volume II, Almedina Editora, pg. 232).

Que prejuízo existiu então nos autos? O do comprador vimos já que não ocorreu, pois que o bem, tanto quanto se sabe, não saiu da sua posse. O assistente? Seria em teoria possível se sustentarmos a tese que, como um dos herdeiros, o que não recebeu consistiria na privação desta vantagem económica certa, ou nesta perda de ganho devido.

Mas será assim tão líquido?
(…)
Assim, trazendo os ensinamentos da jurisprudência ao caso concreto, se é titular de direito a uma quota da herança e não a um bem em concreto, quem se viu efectivamente prejudicada foi a herança, à data dos factos ainda indivisa, e não o herdeiro, ou pelo menos, não na posição isolada em que se coloca e nos moldes em que explana a sua pretensão de prejudicado na quantia de €29.000,00; valor que aliás, é invocado apenas uma só vez ao longo dos autos e é somente um dos pedidos deduzidos no pedido de indemnização civil, sem qualquer alegação que o sustente. Quanto a esta quantia diremos ainda que nada havendo como partilhado, teria necessariamente direito a esta quantia? Não existiriam tornas? Não existiriam despesas da falecida que se imporia liquidar? A ser verdade o que alega a arguida não haveria reembolsos a fazer por conta da herança? Cremos também que não é nesta sede que se impõe apurar estas questões, mas ainda que fosse, nada se logrou apurar quanto ao efectivo prejuízo que o herdeiro JP se arroga.

E, nesta medida, se o imóvel faria parte da herança indivisa aberta por óbito de MJC, tia da arguida, seu irmão e do assistente, então o assistente não é proprietário ou comproprietário do imóvel, pois que isso implicaria a partilha de bens entre os herdeiros, o que não se verificou, tanto mais que nada foi alegado nesse sentido. E se não pode considerar-se que os herdeiros de herança indivisa têm direitos sobre bens certos e determinados, ou um direito real sobre um bem em concreto da herança, ou ainda uma quota parte sobre cada um, sendo apenas titulares de um direito à herança entendida como universalidade de bens, não se sabendo, à cabeça, quem irá ser o titular do direito de propriedade sobre um bem que integre a herança enquanto não se realizar a partilha, nunca estamos a falar de um prejuízo patrimonial concreto do assistente.

Nada disto resulta sequer da acusação, que se refere genericamente aos "herdeiros", ao que acresce, nada resulta provado quanto ao efectivo prejuízo sofrido, tanto mais que é a própria acusação a mencionar a arguida como uma das herdeiras, pelo que é simplesmente impossível quantificar o prejuízo de que se fala.

Insistimos, não é possível quantificar ou nomear, porque não são os herdeiros os prejudicados - é a herança.

Por fim, parece o tipo de crime exigir que o prejuízo patrimonial seja causado a uma pessoa (singular ou colectiva, acrescentamos nós), algo que uma herança indivisa não é, sendo que, no limite, só a herança jacente revestirá personalidade judiciária - artigo 12.º al. a) do Código de Processo Civil.

Assim sendo, na ausência de prejuízo patrimonial numa pessoa, como o tipo determina, falecem os pressupostos para considerar a existência de um crime de burla. Não se trata sequer de uma tentativa de burla porque para configurar a mera tentativa é necessário que não ocorra prejuízo patrimonial; in casu ele existe, mas não é numa pessoa.

Tão pouco podemos fazer uma excursão sobre outros crimes patrimoniais, como por exemplo o crime de abuso de confiança, já que nada foi entregue à ofendida a título não translativo da propriedade, pelo que nada haveria a devolver; note-se que estamos perante a venda de bem alheio, o que igualmente faz com que, a entender-se que ocorreu qualquer entrega, a mesma não poderia certamente ter ocorrido de forma lícita, falhando todos os pressupostos de integração neste ilícito criminal.

Estamos aqui perante questões, em nosso entender, de índole civilista; de prestação de contas a uma herança, de inventário por morte de um parente da arguida e do assistente, de eventuais efeitos de uma venda de bem alheio e que é nessa sede que devem resolvidos.

Razão pela qual, sem mais, se impõe a absolvição da arguida.
*
Vejamos.

Pelo que se deixou já analisado no âmbito factual, mormente pelas razões apontadas para a operada modificação, facilmente flui que a interpretação seguida pelo tribunal a quo não merece aceitação, enquanto restritiva, por que enveredou, da noção de património, ao excluir a herança indivisa dessa vertente, afastando, assim, a subsunção ao tipo legal do crime de burla.

Na verdade, apesar de se acompanhar as considerações explanadas pelo tribunal quanto aos elementos que caracterizam a burla, incluindo a noção de património subjacente ao crime - “numa acepção jurídico-económica, fazendo-o coincidir com um conjunto de utilidades económicas cuja disponibilidade e fruição o ordenamento jurídico tutele”-, já o mesmo não sucede quanto à configuração concreta desse prejuízo, uma vez que não se descortina motivo para que se haja entendido pela ausência do mesmo.

Se bem que, no caso, o prejuízo exista relativamente à herança que ainda está indivisa, consubstanciando, esta, em si mesmo, um património autónomo, isso não significa que não deva gozar da devida tutela, que, tal como o Ministério Público sublinha, reflexamente se projecta na esfera jurídica dos herdeiros, sendo que, também conforme referido naquele acórdão desta Relação, cada um dos herdeiros, mesmo na indivisão, goza de um direito sobre a totalidade dos bens.

Modificada como foi a matéria de facto, não obstante a tónica colocada pelo tribunal na ausência de prejuízo concreto e quantificado para o assistente, não se extrai a consequência de que a arguida não tenha causado, através da sua conduta, prejuízo aos demais herdeiros, atenta a inevitável repercussão na herança, a cuja titularidade se encontravam adstritos.

A noção de património, para o efeito de subsunção ao tipo legal em questão, deve ser suficientemente ampla, assumindo, quer a vertente dos direitos subjectivos de carácter patrimonial, quer a diminuição de outros direitos, valores ou expectativas (Almeida Costa, in “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial”, Coimbra Editora, 1999, tomo II, págs. 275 e segs.).

Tendo-se provado, tal como o tribunal fundamentou, que “existe engano por parte da arguida, que provoca uma falsa representação da realidade no espírito da vítima, o comprador do imóvel, induzindo-o em erro e que leva esta vítima à disposição patrimonial” e que, assim, actuou com intenção de obter vantagem patrimonial, também causou prejuízo patrimonial, ainda que esse imóvel integre herança indivisa, merecedor de que a posição dos demais herdeiros goze da tutela penal, aqui por via do crime de burla, definido no art. 217.º, n.º 1, do CP, em que, como autora, incorreu.

Na situação, ainda, a burla é qualificada em razão do valor consideravelmente elevado de que se apropriou, por referência ao disposto nos arts. 218.º, n.º 2, alínea a), e 202.º, alínea b), do CP.

Impondo-se, pois, a condenação, importa determinar a pena concreta a aplicar à arguida.

O crime é punível com prisão de dois a oito anos.

Partindo desses limites legais, a pena é determinada em sintonia com as finalidades previstas no art. 40.º, n.º 1, do CP.

Essas finalidades - de prevenção geral positiva e de integração e de prevenção especial de socialização - conjugam-se na prossecução do objectivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos cuja violação constitui crime, devendo levar-se em conta que, conforme ao n.º 2 desse art. 40.º, a pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa.

Segundo Hans Heinrich Jescheck, in “Tratado de Derecho Penal, Parte General”, II, pág. 1194, o ponto de partida da determinação judicial das penas é a determinação dos seus fins, pois, só partindo dos fins das penas, claramente definidos, se pode julgar que factos são importantes e como se devem valorar no caso concreto para a fixação da pena.

Conforme Fernanda Palma, in “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, em Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, AAFDL, 1998, pp.25-51 e in “Casos e Materiais de Direito Penal”, Almedina, 2000, pp. 31-51 (32/33), a protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial. Por outro lado, a reintegração do agente significa a prevenção especial na escolha da pena ou na execução da pena. E, finalmente, a retribuição não é exigida necessariamente pela protecção de bens jurídicos. A pena como censura da vontade ou da decisão contrária ao direito pode ser desnecessária, segundo critérios preventivos especiais, ou ineficaz para a realização da prevenção geral.

De qualquer modo, por respeito à salvaguarda da dignidade humana, a medida da culpa constitui aquele limite inultrapassável; como já referia Claus Roxin, in “Derecho Penal, Parte General”, tomo I, tradução da 2.ª edição alemã e notas por Diego-Manuel – Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Civitas, págs. 99/100, a pena não pode ultrapassar na sua duração a medida da culpabilidade mesmo que interesses de tratamento, de segurança ou de intimidação relevem como desenlace uma detenção mais prolongada (…) não pode ultrapassar a medida da culpabilidade, mas pode não alcançá-la sempre que isso seja permitido pelo fim preventivo. Nele radica uma diferença decisiva frente à teoria da retribuição, mas que reclama em todo o caso que a dita pena àquela corresponda, com independência de toda a necessidade preventiva.

Ainda, acompanhando Figueiredo Dias, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal ano 3, 2º a 4º, Abril-Dezembro de 1993, págs. 186 e seg., o modelo de determinação da medida da pena comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos – dentro do que é consentido pela culpa – e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o “quantum” exacto de pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente.

Esta (a medida da pena) deve, em toda a extensão possível, evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade, só deste modo e por esta via se alcançando uma eficácia óptima de protecção dos bens jurídicos, sendo que culpa e prevenção são (…) os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena (em sentido estrito ou de determinação concreta da pena) - mesmo Autor, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, págs. 231 e 214.

Em síntese, a defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quanto possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.

Dentro de todos estes parâmetros e apelando ao previsto no art. 71.º, n.ºs 1 e 2, do CP, afigura-se, em concreto, que as finalidades de prevenção assumem alguma pertinência, designadamente na vertente da prevenção geral, e que a culpa da arguida, aferida pelo grau de censura da sua conduta, atinge dimensão de significado não despiciendo, bem pelo contrário.

O grau da ilicitude e a intensidade do dolo situam-se na mediania.

Não se descura que (de acordo com a análise das suas declarações que consta do exame crítico da prova) a arguida apresentou versão dos factos, pelo menos em parte, não aceitável, denotando ausência de devida valorização do seu comportamento, tanto mais sendo pessoa com formação superior.
Identicamente, não abona a circunstância de ter agido em detrimento da intrínseca dignidade conferida a acto realizado perante notário.

Em seu favor, considera-se que está socialmente integrada e não tem antecedentes criminais.

Entende-se justificada a aplicação de pena superior ao limite mínimo legal, que se fixa em 2 anos e 8 meses de prisão.

Ao abrigo do art. 50.º, n.º 1, do CP, a sujeição a prisão não se mostra necessária, dando-se prevalência a medida substitutiva, no caso, a suspensão da sua execução, porque, dadas as condições de vida da arguida, a aparente ocasionalidade do seu comportamento e o tempo desde então decorrido, desse modo se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Tal suspensão consubstancia medida penal de conteúdo reeducativo e pedagógico, que tem a virtualidade, além do mais, de dar expressão a que a prisão (e sua execução) constitui ultima ratio da punição, apesar de limitada pela salvaguarda das referidas finalidades punitivas.

Crê-se, pois, na prognose favorável da futura conduta da arguida.

A pena fixada fica, então, suspensa na execução por período de igual duração (n.º 5 desse art. 50.º, vigente à data dos factos).

Também, ao nível das custas, impõe-se que a arguida seja condenada, por força do art. 513.º do CPP, alterando-se assim o que ficou a constar da sentença nesse âmbito.

Em conformidade, atento o art. 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, vai condenada nas custas criminais, com taxa de justiça de 4 UC.

- recurso do assistente:

D) - da consequente condenação no pedido de indemnização civil:
A perspectiva de alteração dos factos atinentes ao pedido de indemnização civil, preconizada pelo assistente, aqui demandante, não obteve sucesso.

Por isso, não se vê motivo para não sufragar os fundamentos que presidiram à absolvição da arguida/demandada.

Dispensando-se aqui a reprodução dos mesmos, assinale-se, apenas, que, relativamente à parte do pedido atinente ao montante de € 29.000,00 (e juros respectivos), apesar do assistente ser visto como ofendido pela prática do crime de burla, enquanto herdeiro da herança, a circunstância desta se encontrar indivisa impede que esse valor seja correspondente a dano que sofreu, uma vez que, conforme já explicitado, os herdeiros, nessa situação, são apenas titulares do direito à herança, que é uma universalidade de bens, sem que se saiba a quem e em que medida esses bens ficarão a pertencer antes de efectuada a devida partilha.

Até à partilha, o assistente tão-só detém uma quota ideal e sobre o conjunto de bens que integram a herança, pelo que não é viável a atribuição daquele montante.

Tanto mais que, acautelando esse aspecto, o art. 2091.º, n.º 1, do Código Civil, dispõe que os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.

Assim, nesta sede, o recurso do assistente tem de improceder.

3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se:
- conceder provimento ao recurso do Ministério Público;
- conceder parcial provimento ao recurso do assistente;

- em consequência,
- proceder à modificação da matéria de facto nos termos sobreditos e, por isso, revogar a sentença na parte em que absolveu a arguida, condenando-a pela prática, em autoria, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, alínea a), do CP, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão suspensa na execução por período de igual duração;

- condenar a arguida nas custas criminais, com taxa de justiça de 4 UC;

- no mais, manter a sentença.

Custas pelo assistente, com taxa de justiça de 3 UC (art. 515.º, n.º 1, alínea b), do CPP).

Processado e revisto pelo relator.

7.Maio.2019
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(Carlos Jorge Berguete)

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(João Gomes de Sousa)