INTERESSE EM AGIR
ASSISTENTE
OFENDIDO
RECURSO INTERLOCUTÓRIO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DECISÃO QUE NÃO PÕE TERMO AO PROCESSO
DESPACHO
NULIDADE
OBJECTO DO PROCESSO
VÍCIOS DO ARTº 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
CONHECIMENTO OFICIOSO
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
FUNDAMENTAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
FACTOS PROVADOS
FACTOS NÃO PROVADOS
Sumário

I -O interesse em agir é a necessidade concreta de recorrer à intervenção judicial, à acção, ao processo e, em regra, o assistente só pode reagir à afectação do seu direito mediante a interposição de recurso. Mas tem-se assistido, quer na doutrina quer na jurisprudência, a um reforço da posição processual do assistente, a partir de novo enfoque sobre a figura do ofendido/lesado, olhando a outra margem do crime, ao nível do resultado, do ofendido, não apenas do seu autor, mas da vítima.
II - Da conjugação dos arts. 400.º, 427.º e 432.º, todos do CPP, retira-se que decisões de natureza processual ou que não ponham termo ao processo não são recorríveis para o STJ: pressuposto do recurso para este Tribunal (salvo os casos específicos que a lei especialmente preveja – art. 433.º – como quando o STJ funciona como 1.ª instância de recurso) é a natureza da decisão de que se recorre – decisões finais – e não decisões que incidem sobre questões processuais avulsas (exceptua-se, aqui, o caso de recurso de decisão interlocutória que suba com recurso para cuja apreciação é competente o STJ – art. 432.º, al. e) – actual al. d) – do CPP).
III -Ao confirmar um despacho que indeferiu arguição de nulidade, o acórdão ora recorrido não consubstancia uma decisão de fundo, uma apreciação de mérito, não tendo nesse segmento a natureza de decisão final, antes corresponde a uma decisão que não conhece do objecto do processo, nada tendo decidido, por essa via, em definitivo em termos substantivos, antes revestindo o carácter de decisão no plano processual. Trata-se de uma decisão interlocutória, intermédia, incidental, versando sobre questão processual avulsa que não põe termo à causa, e como tal, abrangida pela irrecorribilidade constante da al. c) do n.º 1 do art. 400.º do CPP.
IV -É inadmissível a invocação pelos interessados de vícios da decisão previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, sem que isso obste a que o STJ deles conheça oficiosamente, se o traçado quadro fáctico no concreto caso assim o impuser, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em erro de apreciação, ou assente em premissas contraditórias detectadas por iniciativa do STJ, ou seja, se concluir que por força da existência de qualquer dos vícios não pode chegar a uma correcta solução de direito e devendo sempre o conhecimento oficioso ser encarado como excepcional, surgindo como último remédio contra tais vícios.
V - O erro-vício previsto na al. c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do erro vício se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto, só este sendo susceptível de apreciação.
VI - Enquanto a valoração da prova, que compete aos julgadores, e só a eles, obedece ao regime do art. 127.ª do CPP e é necessariamente prévia à fixação da matéria de facto, o vício da al. c), bem como os demais constantes das als. a) e b) do n.º 2 do art. 410.ª do CPP, só surge perante o texto da decisão proferida em matéria de facto, que resultou daquela valoração da prova.
VII - A errada valoração da prova, ou o que é o mesmo, o erro de julgamento da matéria de facto é insindicável pelo STJ e pelas mesmas razões escapa aos poderes de cognição da Relação a apreciação da prova produzida em audiência segundo as regras da experiência comum e de acordo com a sua livre convicção, como manda o art. 127.ª do CPP, a menos que seja requerida a reapreciação da prova gravada, mas ainda aí com limitações e desde logo por não ser um segundo julgamento.
VIII - Fora dos dois quadros possíveis de impugnação, e desde que não se esteja perante prova vinculada, e a facticidade apurada não se tenha baseado em meios de prova legalmente proibidos, a manifestação de divergência com o decidido, a desconformidade entre a decisão do julgador e a do próprio recorrente é irrelevante, podendo conduzir a manifesta improcedência e rejeição do recurso.
IX - A omissão de pronúncia significa, na essência, ausência de posição ou de decisão do tribunal em caso ou sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa sobre questões que lhe sejam submetidas, ou que o juiz oficiosamente deve apreciar. Por sua vez, o excesso de pronúncia significa que o tribunal conheceu de questão de que não lhe era lícito conhecer.
X - O STJ já se pronunciou pela verificação de nulidade de acórdão da Relação por omissão de pronúncia, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), aplicável por força do art. 425.º, n.º 4, do CPP. Havendo norma específica no CPP, não há necessidade de invocar a nulidade prevista no art. 668.º do CPC.
XI - Não sendo de exigir, a um acórdão da Relação proferido em sede de recurso, a amplitude de fundamentação que deve estar presente na decisão de 1.ª instância, havendo alteração substancial do conjunto dos factos provados e não provados, impõe-se a observância da injunção do disposto no art. 374.º, n.º 2, do CPP, com a enumeração dos factos provados e não provados.
XII - O acórdão recorrido não cumpriu aquela injunção legal, pois tinha o dever de enunciar com precisão e de forma hialina todos os factos provados e não provados relevantes para a imputação penal que considerou cabida e não cumpriu tal exigência de fundamentação. Estamos, pois, perante o incumprimento do disposto no art. 374.º, n.º 2, do CPP, o que fere o acórdão de nulidade, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, por não conter as menções referidas no n.º 2, sendo tal nulidade de conhecimento oficioso, como decorre do n.º 2 do mesmo preceito.


Texto Integral




      No âmbito do processo comum com intervenção de Tribunal Colectivo n.º 689/12.8JAPRT do 2.º Juízo de Competência Especializada Criminal da Comarca de Vila Nova de Famalicão, integrante do então Círculo Judicial de Vila Nova de Famalicão, foi submetido a julgamento o arguido

      AA, ..., actualmente e desde ..., preso preventivamente à ordem deste processo no Estabelecimento Prisional de ....

      Foi deferido em 8-10-2012 pedido de protecção jurídica formulado pelo arguido em 23-07-2012, sendo concedida na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, conforme consta de fls. 662 e 670.

      Pelo Ministério Público foi deduzida a acusação de 14-12-2012, constante de fls. 836-840, do 3.º volume, imputando ao arguido a prática de um crime de homicídio simples, p. p. pelo artigo 131.º do Código Penal.

      BB e CC, filhas da vítima, após junção de procuração - fls. 658/9 do 3.º volume -, requereram em 6-02-2013, a constituição como assistentes e deduziram pedido de indemnização civil, conforme fls. 1027 a 1037, e em original, de fls. 1043 a 1048.

     Em 8-02-2013, BB requereu abertura de instrução, conforme fls. 1055 a 1072 (4.º volume).

     Por despacho de 14-03-2013, a fls. 1134, as requerentes BB e CC foram admitidas a intervir nos autos como assistentes e foi admitido o requerimento de abertura de instrução.

     Realizado debate instrutório em 3-04-2013, conforme acta de fls. 1159/1160, foi proferida decisão instrutória de pronúncia datada de 12-04-2013 e constante de fls. 1162-1189 do 5.º volume.

     Pela prática dos factos constantes da acusação pública, bem como dos artigos 1, 14, 15, 18 e 22 a 50 do requerimento de abertura de instrução da assistente BB (assim consta do despacho de pronúncia a fls. 1184, mas na verdade os factos integrados na pronúncia são efectivamente os constantes dos números 1), 14), 15), 18), 22) a 50) do artigo 44.º do requerimento para abertura de instrução, como claramente se alcança de fls. 1064), foi o arguido pronunciado pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, p. p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 2, alínea c), do Código Penal.

     O arguido suscitou nulidade da decisão instrutória - fls. 1198 a 1200, e em original, de fls. 1202 a 1204 -, alegando violação do dever de fundamentação e não ser a diferença de idades entre vítima e arguido por si só bastante para se verificar a qualificação do crime, citando acórdão do STJ de 30-03-2006 (CJSTJ XIV, 1, 229), arguição a que se opuseram o Ministério Público, a fls. 1208, bem como as assistentes, a fls. 1210/3.

     Por despacho datado de 22-05-2013, fazendo fls. 1215 a 1234, foi indeferido o requerimento de arguição de nulidade da decisão instrutória.

     O arguido/demandado contestou o pedido cível, conforme fls. 1297/8, 1314/5, e em original, a fls. 1316/7.

     E apresentou contestação à matéria criminal, de fls. 1300 a 1309, e em original, já no 6.º volume, de fls. 1322 a 1331.

     Procedeu-se a julgamento com sessões em 11-09-2013, 18-09-2013 (manhã e tarde), 25-09-2013, 9-10-2013, 24-10-2013 e 30-10-2013, conforme actas de fls. 1471/9 (7.º volume), fls. 1553/5 (manhã) e fls. 1574/6 (tarde), do 7.º volume, fls. 1634/9 do 8.º volume, fls. 1816/1821, fls. 1852/7 e fls. 1859/1861.

     Na sessão de 11-09-2013, foi apreciada a nulidade invocada pelo arguido da prova prevista no artigo 150.º do CPP que foi obtida em inquérito com a colaboração do arguido, sendo indeferida - fls. 1478/9.

     Na sessão de 9-10-2013 foi feito pelo Ministério Público requerimento de realização de diligência de prova consistente em exame e visualização em audiência da filmagem da reconstituição do facto indicada como prova nos autos, subscrita pelas assistentes, a que se opôs o arguido - fls. 1818/1820.

     E na sessão de 24-10-2013 foi proferido despacho sobre o requerimento apresentado pelo Ministério Público, deferindo o requerido, determinando a reprodução do auto de reconstituição vídeo e escrito para contraditório em audiência - fls. 1853/4 - e tendo o ora recorrente arguido a nulidade e inconstitucionalidade de tal despacho, foi proferido novo despacho a indeferir a arguida nulidade ou inconstitucionalidade - fls. 1854/6 (8.º volume).

                                                              *******

     Por acórdão do Colectivo de Vila Nova de Famalicão, de 19 de Novembro de 2013, constante de fls. 1869 a 1916 (8.º volume), depositado no mesmo dia, conforme declaração de fls. 1920, foi deliberado:

     Parte Criminal 

     - Condenar o arguido pela autoria material de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, alínea c), do Código Penal, na pena de 20 anos de prisão; 

     Parte Cível

     - Condenar o arguido/demandado no pagamento às demandantes de indemnização no valor de 40 000 euros, acrescida de juros desde 6-06-2013 e até integral pagamento.

                                                              *******

     Inconformado, o arguido interpôs recurso dirigido ao Tribunal da Relação do Porto, do despacho que indeferiu a arguição de nulidade do despacho que ordenou a leitura e visualização da reconstituição filmada na fase de inquérito, conforme fls. 1922 a 1936, e em original, de fls. 1937 a 1951, do 8.º volume.

     O arguido interpôs recurso do acórdão condenatório, apresentando a motivação de fls. 1955 a 2105 (9.º volume), e em original de fls. 2106 a 2240, abrangendo a parte cível, conforme conclusão 89.ª, a final, declarando manter interesse no outro recurso, juntando transcrições de depoimentos produzidos em julgamento, de fls. 2245 a 2318.

     O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu conforme fls. 2329/2330, quanto ao recurso interposto do despacho, e fls. 2332 a 2336, quanto ao interposto da decisão final.

     As assistentes responderam ao primeiro recurso, nos termos de fls. 2338 a 2352, e ao recurso interposto do acórdão final, conforme fls. 2353 a 2419.

                                                              *******

     Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 11 de Junho de 2014, constante de fls. 2474 a 2549 verso, foi deliberado:

     I - Negar provimento ao recurso interlocutório do despacho do Presidente do Colectivo após deliberação de 24-10-2013, a fls. 1853/4;

     II - Julgar parcialmente procedente o recurso interposto do acórdão condenatório, revogando a condenação por homicídio qualificado e a pena de 20 anos de prisão, em substituição, condenando o arguido pela autoria de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, p. e p. pelos artigos 144.º, alínea d) e 145.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, ex vi do artigo 132.º, n.º 2, alínea c), agravado pelo resultado morte artigo, conforme  artigo 147.º, n.º 1, todos do Código Penal, na pena de 12 anos de prisão, mantendo o demais decidido a quo.
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     Inconformado, o arguido interpôs recurso para este Supremo Tribunal, apresentando a motivação de fls. 2646 a 2721, e em original, de fls. 2723 a 2798, do 11.º volume, que remata com as seguintes conclusões (em transcrição integral):  
1.         A decisão ora proferida pelo Tribunal da Relação, não respeitou o direito ao contraditório, no que à informação de fls. 1848 respeita, da qual não foi dado conhecimento ao arguido em sede de audiência de julgamento, ficando assim o arguido impedido de se pronunciar sobre a mesma
2.         Foi-lhe vedado o direito ao contraditório, relativamente aos documentos, nos termos n°2 do art.165, CPP o que constituiu uma nulidade, ao abrigo do disposto no art°120.°n 2 d) que aqui vai arguida e ainda uma inconstitucionalidade: interpretação normativa do artigo 165.° nº 2 do CPP conjugado com o artigo 120.° segundo a qual não se assegure ao arguido o direito ao contraditório, não sendo este notificado da junção de documentos aos autos durante o julgamento e tomando conhecimento deles apenas pelo acórdão, não tendo oportunidade de se pronunciar sobre estes.
3.         O Tribunal da Relação do Porto, justifica que a informação em crise - informação prestada pela Caixa Geral de Depósitos de que os pagamentos foram efectuados em Gandra – foi comunicada aos sujeitos processuais na acta de dia 24.10.2013, o que não corresponde à verdade, pois apesar de constar na acta a referência a um documento da Caixa Geral de Depósitos não foi o arguido notificado de qualquer documento com tal teor, nem nesse dia, nem em qualquer outro, tendo apenas tomado conhecimento do mesmo através do acórdão. Acresce que a informação «corrigida» pela CGD apenas se verificou após informação da SIBS a fls... prestada em 7.11.2013 ou seja numa data em que a produção de prova havia terminado - neste sentido vide acta de 30.10.2013, pelo que é impossível que o arguido tenha sido notificado de tal informação, nem tal consta da plataforma citius.
4.         As garantias de defesa e o respeito pelo direito do silêncio impõem que as declarações do arguido prestadas em reconstituição não possam ser lidas, visualizadas ou ouvidas em julgamento, salvo solicitação do arguido (artigo 357.° n.°1, alª a), e n.° 2, e artigo 356.°, n.° 8) - só as declarações prestadas pelo arguido em reconstituição dirigida pelo Juiz de instrução podem ser lidas, visualizadas ou ouvidas em julgamento quando houver contradições entre elas e as declarações feitas na audiência (artigo 357.° n.°1, al.ª b), e n.° 2, e artigo 356°, n.°8). Durante todo o julgamento o arguido remeteu-se ao silêncio, o que fez no uso de um direito processual e constitucional que lhe é conferido.
5.         Sempre com o devido respeito, entende o arguido que não assiste razão no decidido pelo Tribunal da Relação do Porto e que, in caso, no apuramento dos factos, não se poderá ter em conta a reconstituição de facto levada a cabo nos autos, quer a escrita, quer a filmada, na medida em que, o arguido se remeteu ao silêncio em julgamento e naquela data encontrava-se em vigor o CPP anterior à modificação levada a cabo pela Lei n.° 20/2013, de 21/02.
6.         Ainda que assim não fosse, da visualização da gravação em vídeo da reconstituição constata-se que a mesma possui inúmeros cortes, o que faz com que a mesma não seja de todo fidedigna, desconhecendo-se que tipo de perguntas, ou sugestões são dadas ao arguido nos momentos em que não existe gravação. Para além disso a gravação está pejada de perguntas sugestivas, que direccionam o arguido para a teoria da acusação, pelo que, nunca poderia a reconstituição ser valorada como prova, estando completamente inquinada pela preterição e formalidades legais e pelo modo como foi efectuada.
7.         A reconstituição do facto, meio autónomo previsto no artigo 150° do CPP, não pode servir para contornar os casos de proibição de prova previstos nos artigos 356.° e 357.° do CPP.
8.         Para além das declarações propriamente ditas, constantes de tal registo de vídeo, do mesmo resultarão ainda que sem som, reacções e manifestações corporais, designadamente faciais, que poderão obviamente ser interpretáveis e valoradas dentro do princípio da livre apreciação da prova, o que constitui sempre uma forma "encapotada" de se lograr obter respostas para os factos em apreço na pronúncia à custa do arguido, o que ele, no exercício do seu direito ao silêncio, não pretende.
9.         Fundada a convicção do Tribunal de primeira instância e confirmada pelo Tribunal da Relação com base na reconstituição filmada, falada e comentada pelo arguido, de pouco adiantou à defesa esbater a acusação com elementos de prova objectivos que demonstram até que o arguido mentiu na reconstituição de facto realizada na fase de inquérito - neste sentido vide telefonemas, localizações celulares das chamadas telefónicas e sucessivas mensagens escritas, pagamentos com cartões multibanco, depoimentos das testemunhas DD, EE, FF e GG.
10.       Partiu-se de uso de declarações ilegais - na medida em que, não podem ser usadas como meio de prova por violação dos artigos 355.°, nº 2, do CPP, 357.°, n.°2, conjugado com o artigo 356.°, n.°8, artigo 357.° n.°1, alª a), e n.° 2, e artigo 356.°, n.°8), 61.° alínea d) e artigo 32.° da CRP - para, assentando a veracidade destas (na óptica do julgador) concluir que tudo o demais é mentira.
11.       Para fixar a matéria de facto, em concretos pontos que foram inalterados pelo Tribunal da Relação, baseou-se o Tribunal de primeira instância exclusivamente na reconstituição e necessariamente nas declarações do arguido, visto que, caso tal não decorre de qualquer elemento probatório, como sucede com a matéria constante dos pontos 5, 7, 8, 9, 22, 23, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 68, 69.
12.       O Tribunal da Relação ao confirmar na sua globalidade a decisão do Tribunal de primeira instância e valorar a reconstituição e mais do que isso, a fundar a sua convicção exclusivamente nesta, violou o principio do direito ao silencio do arguido e do in dúbio pro reu e mal andou, na óptica do arguido, ao considerar ser válida a prova resultante da reconstituição, não curando fazer um exame crítico das provas, conjugando-as, porque caso o fizesse não poderia ter mantido, na sua quase globalidade a factualidade provada.
13.       Sendo a situação é ainda mais grave, pois conforme referido supra, a restante prova objectiva, aponta em sentido inverso, sendo manifesto que, na questão essencial, o teor do declarado na reconstituição não corresponde à verdade.
14.       Assim, entende o arguido ser inconstitucional a interpretação defendida no Douto Acórdão ora posto em crise, resultante da conjugação dos artigos 355.°, nº 2, 356.°, n.°8, artigo 357.° n.°1, alª a), e n.° 2, 61.° alínea d) do CPP por violação do artigo 32.° da CRP, quando da sua conjugação resultar a interpretação de que podem ser lidas, visualizadas ou valoradas as declarações prestadas pelo arguido em reconstituição, estando desacompanhado de advogado, e em audiência não requeira tal leitura e se remeta ao silêncio, elo que toda a prova que resultou da visualização da reconstituição se trata de prova proibida, nula e inconstitucional, inconstitucionalidade que se arguiu, o que deverá ser declarada com as legais consequências.
15.       Analisada a decisão recorrida ora proferida pelo TRP, resulta dos factos dados como provados, ter o Tribunal, ficado com dúvidas relativamente a algum dos factos e que, na dúvida apreciou os factos em desfavor do arguido, violando o princípio in dúbio pro reu e consequentemente os direitos de defesa constitucionalmente consagrados no art.° 32° da CRP, padecendo a decisão de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que se refere o art. 410.°, n.° 2, al. a), do CPP.
16.       Assim foi quanto à reconstituição de facto que vai em sentido contrário ao da globalidade da prova produzida em julgamento: a ida do arguido a Joane no dia 29-3-2012, por dos autos existir prova abundante e objectiva em sentido inverso, nomeadamente localizações celulares, registo de chamadas/sms, registo de passagem nas auto-estradas e registo de levantamento bancário de fls. 1848 bem como prova testemunhal.
17.       Vejamos, quanto à presença do arguido em Joane, Famalicão cerca e depois das 21h00 do dia 29 de Março de 2012, toda a prova produzida vai exactamente em sentido contrário, tendo o tribunal de primeira instância em decisão confirmada pelo Tribunal da Relação assente a sua convicção exclusivamente na reconstituição de facto, sem curar confrontar esta prova com a restante.
18.       Dos autos e da prova, emanam elementos objectivos, que demonstram ser impossível corresponder à verdade o que, o arguido disse na reconstituição.
19.       Atenta a prova produzida não podia ter sido dado como provado que o arguido esteve em Joane no dia 29 de Março de 2012 pelas 21 horas e o por isso necessariamente não pôde ser este o autor do crime, pois existem elementos não dependentes ou com fonte no depoimento de qualquer testemunha, mas sim em elementos claros e independentes da prova, isoladamente ou conjugados e assim é com as chamadas telefónicas, registo de mensagens, passagens nas auto-estradas, localização celulares e informações bancárias.
20.       Estes elementos demonstram de forma inequívoca que não só o arguido não esteve no local do crime no dia dos factos, como, igualmente demonstram que o arguido mentiu - e sabe-se lá porquê - na reconstituição dos factos que efectuou na fase de inquérito, sem a presença de defensor ou de Procurador da República. 
21.       O Tribunal de primeira instância, em interpretação seguida pelo tribunal da Relação nega o evidente, não considerando elementos objectivos, chegando ao ponto de desconsiderar, em desfavor o arguido prova em sentido inverso ao decidido no Acórdão: a) Assim é por exemplo com as chamadas telefónicas e mensagens trocadas pelo arguido dando o tribunal tanto de primeira instância, como inalterado pelo Tribunal da Relação, como não provado que o arguido fosse o utilizador do seu telemóvel naquele dia 29-3, quando quer os registos das operadoras e depoimentos das testemunhas vão em sentido contrário; b) E, de igual modo é com a deslocação no seu carro, nesse mesmo dia, a casa da vítima pelas 21 horas do dia 29 de Março de 2012 quando a essa hora existe registo de passagem da viatura na via verde em Ermesinde II - Campo às 21:35 (facto provado 52) e registos de fls. 1335, a mais de 50 Km do local dos factos; c) Considerando as chamadas efectuadas pelo arguido naquela noite e à hora aproximada em a que lhe é imputada a prática do crime, temos como certa as seguintes localizações do arguido: 20:39:05 - Localização bts Valongo Este; 21:35:56 - localização bts Campo; d) E ainda que, naquelas circunstâncias de modo, tempo e lugar, trocou as seguintes sms com a testemunha HH: 20:57:43 - enviada; 21:01:28-enviada; 21:03:26 - recebida - localização Campo; 21:14:04 -enviada; 21:49:23 - enviada, trocas de mensagens essas em que o interlocutor o arguido, como confirmado pela testemunha HH; e) No dia 29 de Março, pelas 22 horas desse mesmo dia, utilizou o seu cartão multibanco (que estava na posse do arguido aquando da sua detenção e que era o cartão multibanco usualmente por si utilizado (fls. 340), em Gandra, concelho de Paredes, que dista a cerca de 55 Km de Joane. (facto provado 46) - fls. 1848; f) depoimento de DD.
22.       Não restam, pois, quaisquer dúvidas de que era o arguido, aqui recorrente, o utilizador do seu telemóvel no dia 29-3-2012, na hora indicada na pronúncia como sendo a hora da morte da vítima e que a essa hora o mesmo se encontra em Gandra/Campo, como o registo das localizações celulares indicam. Aliás para dar este facto como não provado que era o arguido o utilizador do telemóvel em causa - como fez - teria o tribunal que concluir pela utilização de tal telefone por outra pessoa, o que não sucede no Acórdão de primeira instância nem do Tribunal da Relação de que ora se recorre.
23.       Inexiste qualquer prova ou sequer indício de que o arguido tenha emprestado naquele dia e por volta as 21 horas tanto o carro, como o telemóvel ou o cartão multibanco, nem tal consta dos factos provados.
24.       Ainda quanto à ida à casa da tia, naquele dia 29-3, que o tribunal da Relação do Porto, mantém como provado, ter o arguido efectuado a viagem no seu carro - quando temos como dado objectivo as passagens do carro do arguido (seja ou não ele o seu condutor) na via verde nas seguintes horas e locais, e dadas como provadas no facto 52: "52. Registo de movimentos de Via Verde referentes ao veículo com matrícula ...-AV-..., no dia 29/03/2012 -o referido veículo regista os seguintes movimentos: a. 20.16 Campo-Ermesinde II; b. 21:35 Ermesinde II - Campo; c. 23.19 Via Norte E/O - Custoias; d. 00:40 Ermesinde PV- Campo. Então onde esteva o carro do arguido por volta das 21H/21H30? Joane? Famalicão (junto às ATMs)? Ermesinde? Ou Gandra? Dúvidas a mais para a necessária certeza que se impõe numa condenação.
25.       Tendo em conta que Joane se situa a cerca de 55 km de Campo (facto provado 46), e não ficando no percurso feito pelo arguido e dado como provado no facto 52, nem sequer algum dos percursos tido tomado tal direcção, resulta ser impossível ter sido o arguido a estar em casa da sua tia, naquele dia, pelo que não pode ser responsabilizado pela sua morte.
26.       Da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, resulta que ninguém viu o arguido em Joane na noite de 29 de Março de 2012, não há qualquer prova que lá tenha estado, nem passagens do seu veículo em scuts, auto-estradas ou via verde, ou chamadas telefónicas, efectuadas por si sequer próximo do local dos factos criminosos; Não lhe foram encontrados quaisquer objectos que o coloquem ou sequer indiciem que ele tenha estado no local do crime, nem sequer foram recolhidas quaisquer vestígios digitais - cf. fls. 141; não lhe foi encontrada qualquer bolsa ou objectos que pudesse ter no seu interior; não lhe foi encontrado o molho de chaves; ninguém o viu no prédio; inexistem impressões digitais do arguido em nenhum dos móveis da casa da vítima; submetido ao teste da zaragota com vista à comparação de ADN nada se verificou.
27.       Os mesmos considerandos se fazem quanto à posse ou utilização do multibanco da vítima pelo arguido: o mesmo não lhe foi apreendido, ninguém o viu com ele, não foi filmado em nenhuma das ATMs onde foram tentados os levantamentos, no cartão da vítima não existem impressões digitais do arguido, verificando um ausência total de prova.
28.       Quanto à utilização dos cartões multibanco da vítima assentou o tribunal de primeira instância, em raciocínio inalterado pela Relação, a sua convicção para dar como provada a utilização dos cartões multibanco pelo arguido exclusivamente na reconstituição efectuada pelo arguido, nada mais existindo, seja imagens, vídeos a partir das camarás nas respectivas agências bancárias, impressões digitais, localizações bts ou de via verde do arguido naqueles locais ou próximos.
29.       Confrontada e conjugadas as horas das movimentações bancárias com o cartão da vítima, com as horas das localizações celulares, registo de aulas e informação da SIBS resulta ser objectivamente impossível ter o arguido qualquer responsabilidade no evento criminoso em causa nos autos.
30.       No caso em apreço e sempre com o devido respeito, entende o arguido que a matéria de facto assenta num raciocínio dedutivo, sem sentido lógico e que ultrapassa os limites da normalidade e das regras da experiência comum e vai em sentido inverso aos elementos objectivos de prova constantes dos autos e que supra se citaram, tudo porque se partiu de um sentimento de que o que resulta da reconstituição de facto é verdade, logo tudo o depois não o é e tal não faz sentido, devendo antes perceber-se a razão de um inocente, em determinadas circunstâncias de modo, tempo e lugar se incriminar, o que, além do mais constitui uma violação do art.° 127° do CPP.
31.       Mantém-se no acórdão ora proferido as contradições invocadas no recurso do acórdão proferido em primeira instância, tanto entre factos provados em si, como entre factos provados e a motivação e entre a motivação e os factos não provados.
32.       Como se referiu no ponto C do recurso ora apresentado aquando da análise da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada diversas são as contradições, nomeadamente as que resultam das seguintes questões: a) A reconstituição de facto que vai em sentido contrário ao da globalidade da prova produzida em julgamento; b) Contradições relativas à ida do arguido a Joane no dia 29-3-2012, por dos autos existir prova abundante e objectiva em sentido inverso, nomeadamente localizações celulares, registo de chamadas/sms, registo de passagem nas auto-estradas e registo de levantamento bancário de fls. 1848 bem como prova testemunhal. Tais contradições, que existiam já no acórdão de que se recorreu proferido em primeira instância, foram, inalteradas pelo Tribunal da Relação.
33.       A decisão ora proferida pelo TRP, ao dar como provados factos contraditórios entre si, implica que se verifique a contradição insanável entre a fundamentação e decisão - 410.° n.° 2 b), com as consequências legais previstas no CPP. Este vício que já vinha, da Douta decisão proferida pelo Tribunal Colectivo, mantem-se no Acórdão do TRP.     
34.       Aliás, quanto às contradições insanáveis suscitadas pelo arguido no recurso para o Tribunal da Relação do Porto este apenas se pronunciou quanto à contradição relativa à forma como ocorreu a morte – fls. 111 e seguintes, o que leva à omissão de pronúncia quanto às restantes questões arguível nos termos do artigo 668.° do Código de Processo Civil, aplicável nos termos do artigo 4.° do CPP.
35.       Padece o acórdão de que ora se recorre de nulidade por omissão de pronúncia, por não ter apreciado concretamente as questões mencionadas pelo arguido no recurso, havendo assim uma omissão de pronúncia em desfavor do arguido, violando os artigos 97.°, n.°4, 374° n° 2, 379°, n.° 1, alínea a), b) e c) do CPP bem como artigo 202.° e 205°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa, o que deverá ser declarado com as legais consequências.
36.       Entende recorrente que, caso em apreço e sempre com o devido respeito, foi violado o disposto no artigo 127° do C.P.P., o princípio da livre apreciação da prova, segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, tratando-se esta questão de matéria de direito (embora ligada à matéria de facto) e por isso de conhecimento pelo Supremo Tribunal de Justiça.
37.       No caso concreto, elementos objectivos da prova, nomeadamente, localizações celulares do telemóvel (chamadas e sms) do arguido, passagens na via verde em conjugação com a prova testemunhal resultante da inquirição das testemunhas FF, HH, DD, EE, FF e GG, resulta de forma evidente que os factos provados 5, 59,7, 8, 9, 19, 64, 22, 24, 23, 25, 26, 27, 28, 29, 30 a 36, 68 e 69 deveriam resultar como não provados, ao invés do que, com base na reconstituição de facto, sucedeu.
38.       O Douto acórdão ora posto em crise enferma de erro na apreciação da prova produzida, por dar como provada, matéria de facto que não tem qualquer sustentação. Quer da prova documental, quer da prova testemunhal em que o Tribunal assentou a sua convicção não resulta que o recorrente matou a ofendida, verificando-se assim o vício processual da alínea c) do n.° 2 do artigo 410.° do CPP, resultante do próprio texto da decisão recorrida. Por referência à matéria de facto provada e não provada que supra foi impugnada, em especial quando apenas pelo recurso à reconstituição efectuada pelo arguido, sem confrontar com a restante prova produzida se chega à conclusão que foi este o autor do crime, verifica-se o erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410°,n° 2, al c) do. C.P.P.
39.       Como se expôs neste recurso não poderá em caso algum o arguido ser condenado, visto que é humanamente possível que tenha sido ele a estar em Joane pelas 21 horas do dia 29 de Março de 2012, impondo-se, por tudo que foi explanado, a absolvição do arguido, só assim se fazendo a, acostumada, justiça, contudo, para a mera hipótese de tal entendimento improceder, não se admite ser de manter a qualificação jurídica, entendendo, humildemente, o arguido que na Douta decisão ora posta em crise se verifica uma errada qualificação jurídica.
40.       O Tribunal da Relação do Porto condenou o arguido pelo crime de ofensa à integridade física grave qualificado por excepcional censurabilidade ou perversidade pelo segmento "Praticar o facto contar pessoa particularmente indefesa, em razão da idade" (art. 132-2-C ex vi art 145° n. 2).
41.       Contudo, a diferença de idades por si só, como vem decidindo a jurisprudência dos Tribunais Superiores, não é bastante para se verificar a qualificação do crime.
42.       Analisada os factos dados como provados na Doutra decisão recorrida, de nenhum resulta a revelem especial censurabilidade ou perversidade a que alude o artº 132° do CP.
43.       Quanto muito, deveria o arguido ter sido condenado por ofensa à integridade física agravada pelo resultado, nos termos do artigo 143° e 147° do Código, que tem como limite máximo da medida da pena 4 anos de prisão, inexistindo prova que nos permita ir para além desta previsão legal.
44.       Não se tendo produzido qualquer prova sobre o elemento subjectivo e conjugado isso com a falta de certeza quanto à causa da morte, como resulta da página 120 do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, dado que "não foi possível afirmar médico-legalmente que alguma das 9 lesões supra elencadas tenha efectivamente sido causa directa e necessária da morte", não se poderá ir além desses elementos objectivos e em face disso, sem prescindir do que se disse em sede do presente recurso quanto à reconstituição de facto, deverá, abstractamente a conduta do arguido ser subsumível na previsão legal do art.°143, punido com pena de prisão até 4 anos, impondo-se a fixação da pena no limite mínimo legal, atentos os factores de carácter pessoal provados nos autos. 
45.       A pena aplicada ao arguido é manifestamente desadequada, desde logo porque foi feita uma errada subsunção jurídica dos factos, devendo o arguido, como exposto supra - sem prescindir a tese que defende a sua absolvição - ser condenado pelo crime de ofensas à integridade física simples, agravada pelo resultado, nos termos do artigo 143 e 147.°.
46.       Independentemente disso e ainda que se mantenha a qualificação jurídica, o que apenas por mera hipótese académica se admite, sempre entendemos que a pena que lhe foi cominada é manifestamente desajustada quer à culpa, quer às exigências de prevenção.
47.       A pena de prisão de 12 anos é além de desadequada, por desajustada quer à culpa, também desajustada às exigências de prevenção, porque na determinação da medida da pena o Tribunal "a quo" não teve em devida consideração todos os factos dados como provados favoráveis ao arguido, a sua correcta interpretação obrigava à ponderação pelo Tribunal "a quo" de todo o circunstancialismo exposto, o grau da sua culpa, as exigências de prevenção e todas circunstancias que a seu favor depõem. Ainda que se mantenha a qualificação jurídica, em face do exposto, deverá a pena ser fixada no seu mínimo, ou seja, quatro anos ou próxima disso.
48.       Parece-nos que, salvo o devido respeito por melhor opinião, a ter em consideração os factos dados como provados no douto acórdão o Tribunal "a quo" na determinação da medida da pena e tendo em consideração todas a circunstâncias que depuseram a favor do arguido e dadas como provadas, não as apreciou devidamente.
49.       A pena aplicada ao ora recorrente é excessiva, para além de que violou o disposto no art° 71° do C.P.P, ao não ter em consideração na determinação da medida da pena todos os factos que depuseram a favor do arguido, nomeadamente: O grau de ilicitude, A situação pessoal; O seu comportamento anterior e posterior à prática do crime; A ausência de antecedentes criminais, a idade do arguido - 27 anos, o facto de ser tratar de um acto isolado na vida do recorrente; de ser pessoa integrada e com boa imagem social.
50.       No caso concreto, exercendo uma cuidada análise da materialidade dada como provada vertida no douto acórdão ora posto em crise, permitir-se-ia concluir pela existência de sérias razões para crer que duma pena mais baixa pena resultariam vantagens para a reinserção social do arguido condenado, importando fazer referência ao facto provado 57.
51.       As exigências de prevenção, não revelando o arguido «carência de socialização» apontam para uma pena situada em 4 anos e seis meses de prisão, ainda que se mantenha a matéria dada como provada, embora estes considerandos quanto à medida da pena sejam apresentados de forma abstrata e académica, na medida em que o arguido defende, prima face, solução antagónica e que passa pela sua absolvição, o que deveria ter desde logo ocorrido em primeira instância, caso tivesse sido feita uma verdadeira ponderação e apreciação da prova.
52.       Para além de que, a fixação da pena de prisão próxima do limite mínimo abstratamente aplicável permitirá, como se espera e Requer, a suspensão da pena na sua execução, que no caso do arguido, será, salvo o devido respeito de aplicar.
53.       No caso concreto, há sérias razões para crer que a simples ameaça da pena, ainda que acompanhada de apoio adequado por parte do IRS, se mostre bastante para dissuadir o mesmo da prática de novos crimes, razão pela qual a suspensão da execução da pena será perfeitamente adequada a facilitar a reintegração do recorrente na sociedade, permitindo recolocá-lo em conformidade com o direito, sem os inconvenientes decorrentes do cumprimento de uma pena de prisão efectiva.
54.       Assim e em face de tudo o que se expôs e sem prescindir do que alegou nos pontos A a F deste recurso nos quais lhe deve ser dada razão, entende o recorrente, sempre com o devido respeito, que a pena que lhe foi aplicada terá que se situar nos 4 anos e 6 meses de prisão e pelas razões de facto e de direito, deverá tal pena ser suspensa na sua execução, tudo nos termos do disposto nos artigos 40°, 50°, 51° e 71° do Código Penal.

DISPOSIÇÕES LEGAIS VIOLADAS
•              97.° do código de processo penal
•              120.° n. 2 d) do código de processo penal
•              125.°, 126.°, 127° do código de processo penal
•              150.° do código de processo penal
•              165.° n.° 2 do código de processo penal
•              355.°, n° 2, 356.°, nº 8, artigo 357.° n.°1, alª a), e n.° 2 do código de processo penal
•              374° n° 2, 379°, n.° 1, alínea a), b) e c) do código de processo penal
•              410°, n° 2, al. a) b) e c) do código de processo penal
•              40°, 50.°, 70°, 71°, e 72°, do código penal
•              132.°, 143º, 144.°, 145.° e 147.° do código penal 
•              61.° Alínea d) e 32 n.°1, 2, 5 e 8, 202.° e 205°, n.° 1 da Constituição da Republica Portuguesa
•              615.° n.°1 d) do código de processo civil, aplicável nos termos do artigo 4.° do CPP
•              11.° n.° 2 da Declaração Universal dos Direitos do Homem
      Termina pedindo o provimento do recurso e em consequência a substituição do acórdão por outro que contemple as conclusões aduzidas.
                                                            *******

      Igualmente inconformadas, mas por razões opostas, as assistentes interpuseram recurso, apresentando a motivação de fls. 2803 a 2844, que rematam com as seguintes conclusões (em transcrição integral):
I - A dignidade e até o respeito que nos deve merecer o Supremo Tribunal de Justiça, impede-nos de sequer pôr a hipótese de o ver proferir um acórdão meramente formal, vazio de qualquer conteúdo útil. Mas, in casu, não cumpre a sua função de realização da Justiça, e por isso merece censura, uma decisão, proferida na segunda instância, que faz tábua rasa da prova constante dos autos, desvaloriza parte dos relatórios médico-legais de fls. 599 e 605 e ignora por completo um elemento de prova fulcral (uma almofada ensanguentada encontrada em cima da cara da vítima, cfr. fotografias de fls. 42 e segs.), todos eles referidos no próprio texto da decisão proferida na primeira instância e cuja apreciação conjunta fundou a convicção dos julgadores a quo (a fls. 1895 e 1910) de que o arguido matou a sua tia por asfixia, ao comprimir, com toda a força, uma almofada na sua cara, até lhe fracturar o nariz e uma cartilagem tiróide do pescoço.
1.1 Violando, assim, o respeito pelo direito à vida da vítima, consagrado no art. 24.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa.
1.2. Mostra-se violado o disposto nos artºs 127.°, 163.°, n.° 2, e 410.°, n.° 2, als. b) e c), todos do CPP.
II - Não merece censura o acórdão proferido na primeira instância, onde foi considerado "prima facie os exames forenses" de fls. 599 e 605, "de onde resulta, apesar das dúvidas geradas pelo avançado estado de decomposição do corpo da vítima, que a mesma terá ocorrido provavelmente por asfixia, por obstrução das vias aéreas com almofada (cf. fls. 602), já que nenhuma outra lesão mortal foi encontrada e o exame do cadáver demonstra sinais de compressão da almofada ma face da vítima (fls. 55 e 602 v.), traduzidos em fratura da pirâmide nasal (cf. fls. 602 v.), acompanhada de fratura do corno superior esquerdo da cartilagem tiróide no pescoço, relembrando-se aqui a forma como foi encontrada a dita almofada na cara da mesma, o que é compatível com a posição em que o corpo foi encontrado, ou seja, de costas para o chão, vulnerável a esse tipo de ataque fatal." (cfr. Acórdão de fls. 1869 e segs., a fls. 1895, 1° parágrafo).
2.1. Como consta do próprio texto do acórdão da primeira instância, os julgadores a quo demonstraram ter tido um o raciocínio lógico (o arguido, primeiro, empurrou a tia, fazendo com que esta caísse desamparada no chão; depois, já com a tia no chão, bateu-lhe com um objecto contundente na cabeça, provocando-lhe uma laceração na região frontal; e ainda com a tia no chão, pegou e comprimiu com toda a força uma almofada na face da tia, até lhe fracturar o nariz e uma cartilagem do pescoço, e até aquela deixar de respirar) e objectivo (pois basearam-se, de acordo com as regras da experiência comum, numa apreciação conjunta da prova constante dos autos, a saber os relatórios médico-legais de fls. 599 e 605, as fotografias do local do crime, a fls. 42 e seg.s), para fundamentarem a sua decisão, a qual, por isso, não padece de "erro notório na apreciação da prova" ou de "contradição insanável".
2.2.      Foi feita, na primeira instância, uma justa aplicação do disposto nos art.s 127.° e 163.° do CPP, devendo, em conformidade, revogar-se a decisão recorrida, nessa parte, mantendo-se a factualidade dada como provada e não provada na primeira instância.
2.3.      Ao invés, conforme decorre do próprio texto do acórdão recorrido, a fls. 2529 e seg.s, apesar de nele se determinar a necessidade de conjugar "os dados de facto" dos relatórios médico-legais com os "dados de facto" objectivos resultantes da inspecção policial ao "crime scene" (acórdão recorrido, a fls. 2531), tal não acontece, pois no acórdão recorrido não se faz sequer menção às fotografias do local do crime, do corpo, da almofada deformada e ensanguentada, constantes do relatório de inspecção judiciária, a fls. 42 e seg.s, nem se leva em consideração as ressalvas constantes dos relatórios médico-legais, embora citados no próprio acórdão recorrido a fls. 2532 (a fls. 602, sob 1. "Em face dos dados necrópsicos e da informação atrás transcrita, a morte de II pode ter sido devida a asfixia por obstrução das vias aéreas com almofada." e, sob 2., "Devido ao avançado estado de decomposição cadavérica, não é possível determinar com um elevado grau de certeza a causa da morte.").
2.4. Padece o acórdão recorrido, no entender das assistentes, de um erro notório na apreciação da prova, no que refere à causa da morte, nos termos do disposto na al. c) do n.° 2 do art. 410.° do CCP ex vi do art. 434.° do CPP.
III - Na falta de confissão, constam dos autos elementos de prova suficientes que, tendo em conta as circunstâncias do crime e o tempo decorrido entre ele e a descoberta do corpo, e, à luz dos princípios de livre apreciação da prova e de livre convicção do julgador, não deixam dúvida: o arguido quis matar e matou a tia.
3.1.      O Tribunal da Relação do Porto partiu do princípio errado que, como todos os ferimentos observados na vítima não eram mortais, estes apenas causaram a sua morte "por evolução clínica" das lesões infligidas (expressão usada a fls. 2535 verso), e, com base nessa decisão, julgou ""não provado" que o Arguido "tivesse querido e conseguido tirar a vida de II" (acórdão recorrido, a fls. 2535).
3.2.      Num caso, como é o caso em apreço, em que, entre os factos, o arguido comprimiu uma almofada na cara da vítima com toda a força e o tempo suficiente para lhe fracturar totalmente o nariz e lhe fracturar uma cartilagem tiróide do pescoço, queria, tinha intenção de matar a vítima (dolo homicida), ou, pelo menos, dada a violência e o meio usados, sabia que a morte podia ser uma "consequência possível" da sua conduta, e, mesmo assim, manteve a compressão até a vítima deixar de respirar (dolo eventual).
3.3. Não obstante, em ambos os casos, mostra-se preenchido o elemento subjectivo do dolo, nos termos previstos, respectivamente, no n.° 1 e nos n.°5 2 e 3, do art. 14.° do C. Penal, devendo, em conformidade, manter-se os factos dados como provados na primeira instância, sob 14 e 15.
IV - Uma apreciação cuidadosa de todos factos dados como provados, de acordo com as normas constitucionais e legais pertinentes e de acordo com as regras da experiência, impunha e impõe a condenação do arguido pelo crime doloso de homicídio, qualificado, in casu, pela especial censurabilidade.
4.1.      Atendendo não só à idade, mas também à estrutura física e à força (ou falta dela no caso da vítima) da vítima e do arguido - ela tinha 73 anos, media l,58m e pesava cerca de 60kg, ele tinha 26 anos, media l,75m e era encorpado; bem como ao facto de a vítima ser tia, sendo que a vítima e os pais tinham problemas com a herança da família; assim como o facto de o arguido se ter deslocado a casa da vítima, sabendo que vivia sozinha e que fazia anos, para ter acesso à casa; à violência das agressões infligidas à vítima, quando esta já se encontrava indefesa no chão; à desconsideração pela tia e total frieza, quando, depois de a matar, o arguido tenta simular um assalto e, assim, despistar os investigadores; e a total falta de arrependimento quando, pelo menos desde o dia do crime (29/03/2012) até à data em que é detido (14/06/2012) o arguido continua com uma vida de estudante, convivendo com os amigos, como se nada fosse, fazendo nossas as palavras do tribunal recorrido: ""Ora o crime doloso [de ofensa à integridade física grave] afigura-se "qualificado" por "...especial censurabilidade ou perversidade..." pelo segmento "Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade..." (art 132-2-C ex vi art 145-2) pela excepcional desproporção da actuação do Arguido possante homem adulto na força da idade dirigida versus a menor compleição física de pessoa idosa de sua tia na sua residência à mercê da [conduta contundente que aprouve ao sobrinho desferir-lhe] como se o corpo da tia fosse um objecto.".
4.2.      Mostram-se preenchidos os requisitos contemplados nos artºs 131.° e 132°, n.° 1, e n.° 2, al. c), do Código Penal.
4.3.      Foram violados, no acórdão recorrido, o n.° 1 do art. 40.° e os nºs 1 e 2 do art. 71.°, do C. Penal, os quais impunham a fixação da pena muito próxima dos seus limites máximos, pois as exigências de prevenção geral demandam adequada punição, face à total indiferença demonstrada pelo arguido pelo valor da vida da vítima, sua tia.
4.4. Deverá, por isso, manter-se a pena aplicada ao arguido na primeira instância, a saber vinte anos de prisão.
      Terminam pedindo a revogação da decisão do Tribunal da Relação do Porto e a condenação do arguido, pela autoria material de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. c), do Código Penal, numa pena de vinte anos de prisão.
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      Ambos os recursos foram admitidos por despacho de fls. 2846.
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      As assistentes responderam ao recurso interposto pelo arguido, conforme fls. 2851 a 2911, apresentando conclusões de fls. 2905 a 2911, que terminam, assim:
      “Termos em que, não sendo requalificado o crime como sendo de homicídio qualificado de acordo com o recurso apresentado pelas assistentes, deve, face à matéria de facto provada ou dada como provada na segunda instância, manter-se a decisão do Tribunal da Relação do Porto que condenou o arguido, aqui recorrente, pela autoria material de um crime doloso de ofensa à integridade física grave qualificada, numa pena de doze anos de prisão, assim realizando o Direito e a Justiça que ao caso cabe”.

                                                             *******

      O Exmo. Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação do Porto apresentou a resposta de fls. 2912 a 2917, defendendo quanto ao recurso do arguido, a irrecorribilidade no que toca ao recurso interlocutório, entendendo que, tendo decidido a questão da visualização/valoração positiva do auto de reconstituição como meio de prova não proibido, no âmbito do recurso interlocutório a que não deu provimento, o acórdão da Relação do Porto é nessa parte irrecorrível, devendo nesse específico, o recurso do arguido, enquanto continua a impugnar a valoração positiva do auto de reconstituição e a própria legalidade deste, ser rejeitado, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 432.º, n.º 1, alínea b) [por referência ao art. 400.º, n.º 1, al. c)], 414.º, n.º 2 e 420.º, n.º 1, al. b) do CPP. 

      No mais, manifesta concordância com a alteração da matéria de facto efectuada e de igual modo no que toca à qualificação jurídica, entendendo não merecer o acórdão recorrido qualquer censura.

      Quanto ao recurso das assistentes, suscitou a questão prévia da ilegitimidade e falta de interesse em agir, defendendo a rejeição do recurso.

      Caso se decida pela legitimidade e interesse em agir, salienta não ser possível a reapreciação da matéria de facto, por tal pretensão extravasar os poderes de cognição da 3.ª instância, que apenas pode conhecer dos vícios elencados no n.º 2 ou de nulidades nos termos do n.º 3 do artigo 410.º do CPP.

      Finaliza, defendendo dever ser negado provimento a ambos os recursos, com confirmação in totum do acórdão recorrido.

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      O arguido respondeu ao recurso das assistentes, conforme fls. 2918 a 2920, e em original, de fls. 2922/4.

                                                             *******

      A Exma. Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal emitindo douto parecer, de fls. 2936 a 2940, suscitou questão prévia ao conhecimento do recurso interposto pelo arguido, dizendo que a revogação da condenação anterior não terá resultado apenas de uma diferente interpretação da matéria de facto dada por provada na 1.ª instância, mas da alteração dessa matéria.

      Considera que o acórdão, pese as alterações que efectuou, não descreveu (enumerou) de forma perfeitamente clara e inequívoca, quais os factos que, a final, considerou provados e quais os não provados, citando o acórdão do STJ de 24-02-2010, processo n.º 36/06.8GAPSR.S1

      Depois das alterações a que procedeu o acórdão recorrido sem que tivesse enumerado alguns, também é omisso quanto a todos os outros factos que não foram alterados.

      Entende que o acórdão deve conter a enumeração de todos os factos provados e não provados, de acordo com o artigo 374.º, n.º 2 do CPP, porque procedeu a alterações significativas da factualidade considerada provada e não provada pela 1.ª instância, devendo a sentença bastar-se a si mesma.

      Defende a nulidade do acórdão, nos termos do artigo 379.º, n.º 2, a), do CPP, que não se poderá compreender, designadamente na condenação do arguido por autoria de outro crime se não foram especificados os factos novos e a sua fundamentação conjuntamente com os que se mantiveram provados e os que ficaram não provados.

      Quanto ao recurso intercalar, defende a irrecorribilidade, dizendo que o facto de o recurso intercalar ter subido com o recurso interposto do acórdão final e ter sido apreciado simultaneamente no tribunal da relação, mantém formalmente a sua autonomia e por isso não faz parte da decisão condenatória, citando acórdãos de 25-02-2009, processo n.º 101/09-3.ª, de 2-02-2011, processo n.º 1375/07.6PMMTS.P1.S1, de 30-10-2013, processo n.º 40/11.4JAAVR.C2.S1-3.ª e de 4-06-2014, processo n.º 298/12.1JDLSB.L1.S1.

      Diz ainda que “Quando o Supremo Tribunal de Justiça é um Tribunal de revista, a sua competência limita-se à apreciação da matéria de direito e ao mérito da causa, por isso, só, oficiosamente é que poderá apreciar os recursos “interlocutórios” que subam conjuntamente com recursos diretos para o Supremo Tribunal de Justiça (artº 432.º, n.º 1 b) e d) do C.P.P.).

      Não será, pois, recorrível o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que negou provimento ao recurso interlocutório interposto pelo arguido AA da decisão proferida pelo Mmo. Juiz em audiência determinando que fosse reproduzido o auto de reconstituição vídeo e escrito

      A inconstitucionalidade defendida pelo arguido AA não nos parece que vise a inconstitucionalidade da decisão da relação, mas sim os fundamentos que levaram a negar provimento ao recurso”.

      Defende não ter sido violada qualquer disposição da Constituição, citando acórdãos do Tribunal Constitucional de 9-02-2012, processo n.º 253/11 (81/12) e de 25-06-2014, processo n.º 663/2013 (482/14). 

                                                             *******

      Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, as assistentes apresentaram a resposta fls. 2944/5, afirmando que os factos são claros e inequívocos e não ocorrer nulidade, defendendo que se verifica a manutenção, mesmo no caso de nulidade do acórdão, dos pressupostos previstos no n.º 6 do artigo 215.º do CPP.

      O arguido respondeu a fls. 2947, e em original, a fls. 2949, afirmando não assistir razão ao Ministério Público, devendo os recursos ser julgados totalmente procedentes.
                                                             *******
      Não tendo sido requerida audiência de julgamento, o processo prosseguiu com julgamento em conferência, nos termos dos artigos 411.º, n.º 5 e 419.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal.
                                                             *******

      Colhidos os vistos, realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.

                                                             *******

      Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (neste sentido, o acórdão do Plenário da Secção Criminal, de 19 de Outubro de 1995, proferido no processo n.º 46580, Acórdão n.º 7/95, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 298, de 28 de Dezembro de 1995, e BMJ n.º 450, pág. 72, que fixou jurisprudência, então obrigatória, no sentido de que “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”) e verificação de nulidades, que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2 e 410.º, n.º 3, do CPP – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior.

                                                             *******

      Questões propostas a reapreciação e decisão

      Como resulta das conclusões dos recursos, onde os recorrentes resumem as razões de divergência com o deliberado pelo Tribunal da Relação do Porto, as questões propostas a reapreciação por este Supremo Tribunal, são as seguintes:

 

      Recurso do arguido

 

     Questão I – Nulidade por não notificação de documento junto em audiência – Conclusões 1.ª a 3.ª. 

     Questão II – Nulidade - Reconstituição de facto – Conclusões 4.ª a 15.ª.

     Questão III – Vícios decisórios e erro de julgamento – Conclusões 15.ª a 33.ª e 36.ª a 38.ª.

     Questão IV – Omissão de pronúncia – Conclusões 34.ª e 35.ª.

     Questão V – Alteração de qualificação jurídica – Conclusões 39.ª a 45.ª.

     Questão VI – Medida da pena – Conclusões 46.ª a 51.ª.

     Questão VII – Suspensão da execução da pena – Conclusões 52.ª a 54.ª.

     Nas conclusões 4.ª a 15.ª, o recorrente impugna a decisão tomada no âmbito do recurso interlocutório, relacionado com a reconstituição de facto e declarações do arguido, prova proibida e inconstitucionalidade da interpretação defendida.

     Recurso das assistentes

    

     Questão I – Violação do princípio da livre apreciação da prova, prova pericial e vícios decisórios. Erro notório na apreciação da prova – Conclusões I e II. 

     Questão II – Qualificação jurídica; reposição do homicídio qualificado e da pena aplicada na primeira instância – Conclusões III e IV.

                          

      Quanto ao recurso das assistentes, abordar-se-á a seguinte

      Questão prévia – (I)legitimidade e (falta de) interesse em agir

      Oficiosamente, abordar-se-á a questão da

      Nulidade do acórdão recorrido, por violação da injunção do disposto no artigo 374.º, n.º 2, do CPP, nos termos do artigo 379.º n.º 1, alínea a) e n.º 2 do CPP.

                                                            **********

     Apreciando.
                                     

     Fundamentação de facto
   
     Factos Provados

     Nota Introdutória

     Aqui e agora decisão recorrida é o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, que alterou, de facto e de direito, o deliberado pelo Colectivo de Vila Nova de Famalicão.

     Não é o acórdão da primeira instância que em primeira linha deve ser sindicado, mas é incontornável a necessidade da sua análise, porque é a base da decisão, que em parte intocada ficou com o acórdão recorrido e noutras sofreu alterações de relevo.

     Na apresentação que se segue dos Factos Provados e Factos não Provados vai transcrita a enumeração dos factos tal como vertidos no acórdão de Vila Nova de Famalicão, incluídas as notas de rodapé, optando-se no FP 57 pelo arranjo dado pelo Tribunal da Relação do Porto, e de seguida são enumerados os factos alterados pelo acórdão ora recorrido, em cujo texto, aqueles e estes, se encontram separados por 24 folhas e respectivos versos, apartando-os o fosso que vai de fls. 2510 a 2534. (A matéria de facto no acórdão do Tribunal da Relação do Porto é apresentada/exposta com assinalável descontinuidade).

     O acórdão de Vila Nova de Famalicão optou por não condensar a matéria de facto (deficiência anotada no acórdão recorrido na nota de rodapé n.º 109, a fls. 2530 verso), a qual se apresenta dispersa e repetida em função da sua tríplice origem no que respeita aos factos essenciais, mostrando-se estruturado do seguinte modo:

Acusação pública – FP 1 a 15 e FNP 1 a 18

Requerimento de abertura de instrução (RAI) * – FP 16 a 43 e FNP 19 a 39

Contestação – FP 44 a 55 e FNP 40 a 52

Registo criminal – FP 56

Enquadramento social – FP 57

Pedidos cíveis (PIC) – FP 58 a 88 e FNP 53 a 65.

    * E não “Acusação das assistentes”, como consta do acórdão do Colectivo de Vila Nova de Famalicão, a fls. 1875 e 1887.

    O acórdão recorrido refere “RAI das assistentes BB e CC”, a fls. 2474, referindo “acusação particular”, a fls. 2529 verso e “acusação particular das assistentes”, a fls. 2530 verso.

    Em rigor, não há nenhuma acusação das assistentes, não tendo aderido à acusação pública, por dela discordar – imputava homicídio simples – e defendendo a qualificação.

    Mas a verdade é que apenas a lesada – qualidade invocada na peça – BB requereu abertura de instrução, como claramente resulta do intróito de tal requerimento junto de fls. 1055 a 1072 do 4.º volume. (A legitimação processual para o acto adviria naturalmente do facto de a requerente ser assistente e não mera lesada, como decorre do artigo 287.º, n.º 1, alínea b), do CPP).

    Assim, obviamente, consta da introdução expositiva da decisão instrutória, a fls. 1164, do 5.º volume, sendo a única assistente tributada, conforme fls. 1189, por despacho de não pronúncia parcial, pois que imputada havia sido a prática, para além de homicídio qualificado, p. p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 2, alíneas c) e j), de um crime de simulação de crime, p. p. artigo 366.º, n.º 1 e de um crime de furto qualificado, p. p. artigo 204.º, n.º 1, alínea d), todos do Código Penal, vindo o arguido a ser pronunciado apenas por homicídio qualificado, p. p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 2, alínea c), do Código Penal.

    A requerente indicou como factos a incorporar na pronúncia os constantes do artigo 44.º, sob os n.º 1 a 52, de fls. 1064 a 1071, alguns reproduzindo o que contava da acusação a que não aderira, como acontece nos pontos 3 – 4 – 5 – 6 – 8 – 9 – 10 – 11 – 12 – 16 – 17 – 19 – 20 – 21 – 51 – 52. 

    Se como refere o acórdão recorrido a fls. 2531, o Colectivo de Vila Nova de Famalicão “optou pela apresentação tripartida dos «factos provados»”, o que considera “técnica que não deve ser utilizada”, depois de a fls. 2530 verso ter referido estar-se “perante a «tergiversação» factual a quo provada em III partes”, a verdade é que o acórdão do Tribunal da Relação não introduziu melhoria no panorama, pois que veio aditar uma quarta parte, apresentando uma “versão condensada de factos”, utilizando inclusive uma técnica consistente em dar por eliminado o teor ou parte do teor de alguns FP e FNP, em vez de pura e simplesmente estabelecer a dicotomia FP-FNP.

     Correcção

 

     Ao abrigo do disposto no artigo 380.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, do CPP, procede-se desde já à correcção de manifestos lapsos de escrita presentes no acórdão do Colectivo de Vila Nova de Famalicão, mantidos no acórdão recorrido.

     Assim:

I – No FP 57, segmento “IV – Conclusão”, a fls. 1881, última linha, consta AA, tratando-se de AA.

II – Nos FP 68 e 69, a fls. 1883, consta respectivamente “No dia 30.3.2013…” e “Nesse mesmo dia 30.3.2013…”, o que corresponde a manifesto lapso de escrita, pois estão em causa as duas tentativas de levantamento de dinheiro a seguir ao dia da morte de II, devendo ler-se em ambos os casos 2012 em vez de 2013.

III – No FP 44 Contestação consta “…pelas 02:15:17 9 pelas 02:16:06”, devendo ler-se em vez do algarismo “9” a copulativa “e”, conforme ressalta do artigo 12 da contestação, sua fonte, a fls. 1324.

IV – No FNP 8 da acusação pública, consta “JJ”, quando como decorre para além do mais, do antecedente FNP 7, trata-se da mãe do arguido, LL.

V – No FNP 43, a fls. 1889, contém-se matéria extraída do artigo 15 da contestação – fls. 1324 – o número do telemóvel para onde foi efectuada a chamada é ... e não ..., terminando, pois, em 63 e não 83.

     No acórdão do Colectivo de Vila Nova de Famalicão, no FP 13 constava “laceração com 2 por 0,3 mm” e no FP 20 “laceração com 2 por 0,3 cm”, sendo esta a dimensão correcta, conforme relatório de autópsia a fls. 600, tendo a discrepância sido superada em função da alteração feita pelo acórdão recorrido que eliminou o teor dos FP 13 e 20, incorporando tal lesão no novo FP 11.

    Nota – No elenco dos FNP emergentes da contestação o n.º 45 não tem à frente qualquer texto, facto de que se deu conta o acórdão recorrido, conforme nota de rodapé 64, a fls. 2509 verso.

    Os sublinhados são do texto do acórdão de primeira instância.

    O texto que adopta a escrita preconizada no Acordo Ortográfico não é de nossa responsabilidade.

Como FACTOS PROVADOS o Tribunal Colectivo de Vila Nova de Famalicão enumerou os seguintes:

Acusação pública


1. O arguido é filho de MM e de LL [1], sendo que os seus pais mantiveram uma relação amorosa mas apenas contraíram matrimónio em 2006 [2],

tendo o primeiro falecido em 2012 [3].


2. Dessa relação nasceu o arguido.


3. A relação entre LL e o falecido MM nunca foi aceite pela irmã [4] deste, NN
4. Os contactos entre os pais do arguido e a sua tia prendiam-se com a gestão de negócios relativos à herança da família, designadamente terrenos.


5. No dia 29 de Março de 2012, cerca das 21h00, o arguido dirigiu-se ao ....


6. Aí residia a sua tia II, nascida a ... [5]  e que vivia sozinha, circunstância essa que o arguido bem conhecia.


7. Aí chegado tocou à campainha e depois de se identificar subiu ao ... andar onde a sua tia o aguardava.


8. O arguido entrou naquela casa e ficou pela sala, onde iniciou uma conversa com a sua tia.


9. A dada altura, o arguido desferiu pelo menos um empurrão na sua tia, fazendo com que a esta caísse desamparada no chão.


10. Já com a tia caída no chão o arguido pegou numa almofada e comprimiu-a sobre a face daquela.


11. O arguido comprimiu a almofada sobre a face de NN de modo a que a mesma não conseguisse respirar. Manteve tal compressão até que a mesma deixasse de oferecer resistência.


12. Tal conduta do arguido, para além de provocar a fratura do corno superior esquerdo da cartilagem tireoide, resultou na morte de NN, por asfixia.


13. A conduta do arguido resultou ainda nas seguintes lesões localizadas na cabeça da NN: uma laceração com 2 por 0,3 mm, na metade esquerda da região frontal, próxima à linha média, de bordos irregulares e com infiltração sanguínea.


14. O arguido quis, agindo do modo que se descreveu, tirar a vida de NN, o que conseguiu.


15. Agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Da acusação das Assistentes (SIC)


16. O arguido, filho dos pais acima referidos, nasceu a .... [6]


17. A NN completava nesse mesmo dia (29.3.2012) 73 anos [7], tinha uma estatura média, media 1,58 m [8], e um peso normal de cerca de 60 kg [9].


18. O Arguido tinha 26 anos de idade, tem uma estatura alta, mede pelo menos 1,75 metro e à data dos fatos era encorpado [10].


19. Já com a tia caída no chão (conforme acima exposto), o arguido desferiu-lhe golpe ou pancada na cabeça, com um objeto de natureza contundente ou atuando como tal, tendo sido projecta dos salpicos [11] de sangue na porta da sala.


20. A conduta do arguido resultou nas seguintes lesões localizadas na cabeça da NN: uma laceração (já referida supra em 13. e 19.) com 2 por 0,3 cm de maiores dimensões, vertical, localizada na metade esquerda da região frontal, próxima à linha média, de bordos irregulares e com infiltração sanguínea" e com pontes de tecido a interligarem os bordos (confirmada histologicamente como lesão vital) e (com o apurado em 11.) uma fratura multicominutiva da pirâmide nasal sem infiltração sanguínea dos bordos. [12]


21. Após (o referido supra em 11.), para não ficar incomodado com a visão da cara ensanguentada da tia, o arguido foi buscar um casaco que se encontrava em cima de uma cadeira da sala que colocou sobre a cabeça de NN.


22. Nessa sequência (além de mais), o arguido começou a remexer nalgumas gavetas dos móveis da sala, dirigiu-se aos quartos onde remexeu da mesma forma nas gavetas e despejou o conteúdo de algumas, respetivamente, para o chão e para cima da cama [13].


23. O arguido apoderou-se da bolsa da tia [14].


24. O arguido, a final, dirigiu-se ao hall de entrada, onde pegou num molho de chaves que se encontrava em cima de um móvel aí existente.


25. Munido da bolsa antes referida, o arguido abriu a porta de casa, saiu, bateu a porta e desceu pelas escadas do prédio.
26. Viu o conteúdo da bolsa quando já se encontrava dentro do carro e com este a trabalhar.


27. Verificou que tinha um cartão multibanco.


28. Iniciou a marcha e dirigiu-se para a Avenida ...


29. Andou alguns metros, seguiu em frente na rotunda, tendo a dada altura virado à esquerda.


30. Parqueou o seu veículo e dirigiu-se à caixa multibanco.


31. Às 02h15mn de 30.3.2012, na caixa multibanco inseriu o cartão que tinha retirado de casa de NN e marcou um código [15]



33. Regressou ao seu veículo e conduziu para a E.N. 206, no sentido de Vila Nova de Famalicão.


34. Durante o percurso, atirou a bolsa que tinha retirado de casa de NN pela janela do lado do pendura, com o veículo em andamento, para uma zona de mato.


35. No mesmo dia 30 de Março de 2012, durante manhã, regressou a Vila Nova de Famalicão para efetuar mais uma tentativa de levantamento com o cartão multibanco que tinha retirado de casa de NN.


36. Dirigiu-se à agência do banco ...a, e às 10h05, digitou novo código errado na caixa multibanco, ficando o cartão retido [17].


37. Passados dias, no dia 02 de Abril de 2012, o arguido abordou um amigo, OO, para o acompanhar a Joane, para onde se dirigiram em veículo automóvel.


38. Com o veículo estacionado frente ao ...., o arguido saiu do carro e observou esse andar.


39. Nessa sequência, ligou para a mãe, LL [18], e voltou a entrar no veículo.


40. O cadáver de NN foi encontrado por uma vizinha, PP, que tinha uma cópia da chave da porta, passados dias, no dia 12 de Abril de 2012, cerca das 18h30[19], já em avançado estado de decomposição.
41. Entre a data do crime, dia 29 de Março, a data em que cadáver foi encontrado, a 12 de Abril, e a data da detenção do arguido, ocorrida em Junho de 2012, o arguido fez uma vida normal de estudante, continuando a conviver com os amigos.


42. À data dos factos, o arguido encontrava-se a tirar o curso de "Ciências Forenses e Criminais" [20].


43. O arguido tinha 26 anos e era encorpado.

Contestação



44. O cartão multibanco da vítima foi utilizado em duas caixas ATM no dia 30 de Março de 2012, pelas 02:15:17 9 pelas 02:16:06, na Rua Mato Senra, em Joane, e na agência do ...A de Vila Nova de Famalicão, pelas 10:05:10 onde acabou por ser capturado pela máquina ATM.


45. No dia 30/03/2012, pelas 02:03:47, foi efetuada uma chamada do número ... para o número ... pertencente a QQ, que ativou a localização de BTS de Campo [21].



47. Aquando da tentativa de uso na agência do ... de Vila Nova de Famalicão (30. 3.2012), pelas 10:05:10, foi efetuada uma chamada às 10:13:50, do seu número ... para o número ... [23], que ativa a localização de BTS de Campo, no concelho de Paredes, à uma distância aproximada daquela.


48. No dia 30.3.2012, no Instituto Superior de Ciências da Saúde, onde estudava, em Gandra, a aula de Farmacologia Aplicada, da Turma 2, iniciava-se às 8 e durava até às 11 horas, com um pequeno intervalo por volta das 10 horas.


49. Ora esta hora é também coincidente com a hora (referida supra em 44.) da terceira tentativa de uso do multibanco no ATM do Banco ... em Vila Nova de Famalicão.


50. É impossível a presença do arguido em dois sítios ao mesmo tempo, sendo que entre estes, distam mais de 40 km.


51. O cartão multibanco (supra referido) foi retirado à vítima na altura do homicídio e pelo homicida.
52. Registo de movimentos de Via Verde referentes ao veículo com matrícula ...-AV-..., no dia 29/03/2012 -o referido veículo regista os seguintes movimentos:

a. 20.16 Campo-Ermesinde II;

b. 21:35 Ermesinde II - Campo;

c. 23.19 Via Norte E/O - Custoias;

d. 00:40 Ermesinde PV- Campo [24].


53. O arguido é primário.


54. À data da detenção era estudante universitário.


55. É pessoa respeitada e respeitadora no meio onde vive e estuda.

Registo Criminal


56. Em 5.09.2013 o arguido não tinha antecedentes criminais registados [25].


57. Enquadramento Social


57.1. I - Dados relevantes do processa de socialização


57.1.1. AA foi concebido no contexto do namoro dos pais, relação que formalizaram por casamento realizado em 2006, e então iniciaram a coabitação, tinha o descendente vinte anos de idade. O processo de desenvolvimento decorreu no ambiente familiar com posto pela mãe e os avós matemos, sendo ela a figura privilegiada no acompanhamento e supervisão, se bem que o pai marcou presença, pelas visitas regulares que fomentaram uma relação de proximidade com reciprocidade afetiva. A tia/madrinha materna de AA foi um elemento próximo no acompanhamento do seu processo de crescimento, e de suporte afetivo e económico.
57.1.2. O processo educativo é caraterizado como tradicional, referenciado ao estabelecimento de regras e limites, quadro a que ele correspondeu, por ser de temperamento calmo e cumpridor. Efetuou a formação escolar sem alguma retenção até concluir o 9° ano, com um desempenha regular, eventualmente condicionado por problema de dislexia, diagnosticado na fase de infância. O nível do ensino secundário foi concretizado no Colégio de Amarante, mas abandonou durante a frequência do 12° ano, por desinteresse pela formação, e sem terminar este ciclo. Aos dezoito anos ingressou na atividade laboral como aprendiz no sector de restauração, em estabelecimento propriedade da madrinha, sito na Vila Cova da Lixa, onde permaneceu dois anos, até ao fecho, ficando na situação de desempregado cerca de meio ano, quando foi trabalhar como servente de carpinteiro de cofragens, cerca de um ano, no país vizinho, interrompendo por motivo de saúde. Concorreu para ingresso numa empresa de segurança, foi admitido em Setembro de 2003, concluiu a formação específica e dez meses de trabalho efetivo, não tendo sido renovado o contrato anual. Entretanto, com a anuência e suporte familiar, o arguido decidiu concretizar o processo de ingresso no ensino universitário, em Setembro de 2009, na licenciatura em ciências forenses e criminais, no Instituto Superior de Ciências da Saúde - Noite, sito em Gandra, Paredes, e passou a morar na localidade referida, em apartamento arrendado partilhado com outros estudantes.
57.1.3. As despesas no geral inerentes à formação foram sendo suportadas pela madrinha, até que o pai e a irmã deste, vítima no presente processo, dividiram a receita da venda de um bem imóvel rústico, e então o pai teve condições para gerir as despesas do arguido.
57.1.4. O aproveitamento escolar foi baixo, considerado que no terceiro ano de frequência ainda tinha várias disciplinas em atraso dos dois anos anteriores, aproveitamento que os familiares atribuem ao processo de adaptação ao contexto universitário, à falta de preparação e de sólidos conhecimentos anteriores, e a eventual limitação pessoal, já evidenciada no passado escolar.
57.2. II - Condições sociais e pessoais
57.2.1. À data da ocorrência que originou os autos, AA frequentava a licenciatura referida, pelo terceiro ano eletivo consecutivo, e partilhava apartamento com outros estudantes» na época escolar, na Travessa da Cruz, 22,r/c, Gandra, mantendo morada oficial correspondente à casa dos pais, conforme consta nos autos.
57.2.2. O agregado era então composto pelos pais, desde o casamento em 2006, e pela avó materna, esta dependente de terceiros e com sinais de senilidade, e o pai do arguido condicionado por debilidade acentuada e evolutiva decorrente da doença de Alzheimer diagnosticada anos antes, e que provocou o óbito em Maio de 2012.
57.2.3. Com a família paterna o arguido estabelecia um relacionamento distante e ocasional, iniciado só após o casamento dos pais, relacionamento que foi sendo motivado por questões patrimoniais, já que a mãe assumia um papel ativo na gestão das obrigações do património comum herdado pelo marido e a sua irmã, substituindo-o devido à sua incapacidade, por doença.
57.2.4. O meio social onde o arguido reside com a família, é de características rurais e sem problemáticas relevantes, onde ele detém uma imagem social positiva associada ao trato cordial e à relação de proximidade com a família, descrito como jovem preocupado com os outros, com atitudes de solidariedade e de cooperação com os vizinhos, não lhe sendo conhecidos comportamentos de risco, nem atitudes impulsivas na interação social.
57.2.5. No estabelecimento prisional o arguido tem o apoio familiar da mãe e dos padrinhos, concretizado nas visitas periódicas e na manifestação de disponibilidade para d ajudar no processo de reinserção.
57.3. III - Impacto da situação jurídico-penal
57.3.1. O processo penal que respeita ao arguido é do conhecimento da comunidade em geral, sobretudo pelo relevo dado pela comunicação social, tendo a natureza do ocorrido provo cado surpresa, que subsiste, pelo entendimento de a mesma não se enquadrar na postura nem no estilo de vida conhecido ao arguido. A comunidade mantém uma atitude expectante face ao desfecho do julgamento, e não existindo por ora prova da culpa do arguido, não se detetam sentimentos de rejeição a ele dirigidos. Os familiares, mãe e padrinhos, continuam a revelar abalo emocional e algum desgaste com a situação. O arguido reconhece o significado criminal que a ocorrência representa, o valor do bem desrespeitado e a consequência no que respeita à vítima.
57.3.2. Avalia que está Injustamente privado de liberdade e manifesta a expectativa que o julga mento confirme a ausência do seu envolvimento, ao invés do que pretende a acusação que lhe está imputada. No cumprimento da medida de coação tem apresentado uma postura de adequação face ao normativo institucional e adaptada no relacionamento com os funcionários e os pares.
57.3.3. Projeta dar continuidade e concluir a formação universitária para se inserir profissional mente, em consonância com as competências adquiridas.
57.4. IV - Conclusão
57.4.1. Armando Castro evidencia um percurso de vida pessoal e social adaptado e cordato, com um nível de inserção reconhecido na comunidade, por não evidenciar condicionantes, nem estilo de vida dissonante das regras e valores dominantes.
57.4.2. Usufrui de enquadramento familiar afetivo e consistente, e social recetivo e solidário.
57.4.3. Perspetiva prosseguir e conclui a formação universitária, como meio de realização pessoal e de inserção socioprofissional.
57.4.4. Caso seja condenado, o arguido evidencia necessidade de intervenção dirigida à assunção da prática criminal e à consolidação da interiorização dos valores juridicamente protegidos pela norma incriminatória, de molde a prosseguir uma conduta normativa.

Pedidos Cíveis


58. No dia 29 de Março de 2012, cerca das 21h00, o arguido dirigiu casa da tia e desferiu pelo menos um empurrão na sua tia, fazendo com que esta caísse desamparada no chão, o arguido pegou numa almofada e comprimiu-a sobre a face daquela (...) de modo a que não conseguisse respirar, o que "resultou", além de vários ferimentos, na morte de NN.


59. O arguido foi a casa da tia, aqui vítima, na última semana de Março de 2012.


60. O arguido escolheu a data de 29 de Março de 2012, pois a sua tia fazia anos - sendo que, estando em curso a resolução das questões referentes à herança aberta pelo óbito dos avós paternos, o arguido tinha acesso a tal informação.
61. A vítima: - por um lado, tinha ferimentos na parte frontal da cabeça, e uma fratura multicominutiva da pirâmide nasal, isto é existiam vários fragmentos; por outro, o cadáver encontrava-se em decúbito dorsal, cabeça na direção da porta, pernas estendidas e paralelas, e por último, na porta, junto à cabeça, foi possível verificar a presença de alguns salpicos de sangue, que em altura não ultrapassavam os trinta centímetros.


62. O arguido empurrou a tia e já no chão bateu-lhe com algum objecto na cabeça, usando naquele empurrão de força, o que lhe provocou uma queda, acabando por embater no chão com a cabeça e as costas. Ao atingi-la com esse objeto lacerou a parte frontal da cabeça da tia, tendo sido projetados salpicos de sangue na porta da sala.


63. O arguido é um homem que tinha à data dos factos 26 anos, enquanto a vítima tinha 73 anos, media 1,58 m e pesava cerca de 60 kg.


64. (pela ordem acima apurada) O arguido, bateu na tia com a força que um homem alto e pesado com 26 anos tem face a uma mulher de 73 anos, e deu-lhe um empurrão fazendo com que esta caísse desamparada no chão.


65. Em vez de ligar para o 112 e esperar pela chegada do INEM ou, se tivesse medo das consequências, denunciar o sucedido com o telefone ou o telemóvel da tia e fugir: o arguido foi buscar uma almofada, e, com toda a força, comprimiu a almofada sobre a face de modo a que a mesma não conseguisse respirar, até lhe fraturar, partir, o corno superior esquerdo da cartilagem tiroide...


66. E manteve tal compressão até que a mesma deixasse de oferecer resistência, o que resultou na morte de NN por asfixia.


67. Mais, enquanto a sua tia se encontrava no chão, o arguido andou a passear pela casa e tentou simular um roubo ou um assalto e retirou as chaves e levantou o auscultador do telefone.


68. No dia 30.3.2013, foi a várias caixas de multibanco fazer tentativas (as acima referidas) de utilização do cartão multibanco que retirou da casa da vítima.


69. Nesse mesmo dia 30.3.2013, cerca das 10 horas, conforme acima concretizado, o arguido voltou a, em Vila Nova de Famalicão, tentar utilizar o referido cartão nos termos acima descritos.


70. No dia 2.4.2012, cerca das 21.42 horas, voltou a Joane para averiguar se o corpo já tinha sido encontrado e levou um amigo.


71. Deixou a sua tia, o corpo da sua tia, a apodrecer durante cerca de 13 dias, sendo que o crime só foi descoberto graças a uma vizinha e não ao arguido.


72. O arguido empurrou a tia e, nessa altura, optou por matar a tia com as próprias mãos, sendo que, depois de consumar o crime, andou a passear pela casa e deixou apodrecer o corpo da sua tia durante cerca de treze dias.
73. Assim o corpo da vítima, a casa e o prédio não puderam ser objeto de investigação durante treze dias.


74. Tempo esse durante o qual alguns indícios probatórios, foram desparecendo, pelo decorrer do tempo ou pela atuação livre e consciente do arguido, simulando um assalto e fazendo desaparecer provas como a bolsa da vítima.


75. O arguido era estudante, a frequentar o curso de "Ciências Forense Criminais", o que lhe deu acesso a muita informação sendo que era interessado pelas matérias criminais.


76. O arguido não só se deslocou a Joane, a casa da sua tia, no dia 29 Março, como no dia 02 de Abril de 2012, nos termos acima descritos.


77. Disse, através de sms, ter sido "encorralado", quando foi ouvido na Policia Judiciária.


78. As lesadas, aqui demandantes, são filhas da NN [26].


79. Embora as filhas não mantivessem contactos com a mãe, tendo um relacionamento conturbado.


80. O momento em que os inspetores da Polícia Judiciária lhe deram a notícia da morte e das circunstâncias do homicídio que vitimou a mãe foi aterrador.


81. As demandantes, receberam um primeiro contacto de elementos da Polícia Judiciária na noite de 12 de Abril de 2012, sendo ouvidas às 23h10 e 23h30 [27].


82. Depois do choque inicial, as semanas e os meses que se seguiram foram e continuam a ser tempos de horror, pois acabam por ter conhecimento pormenores cada vez mais macabros e repugnantes no que toca arguido,


83. E de ansiedade, de desgosto, de perturbação, de noites mal dormidas, do reviver constante da notícia, de dúvidas, de dor e de sofrimento constantes, pois apesar de não manter com a mãe um relacionamento próximo, a vítima não deixava de ser a mãe delas, a única mãe.


84. As demandantes irão, para sempre, ficar com uma imagem da mãe, mulher de baixa estatura e com 73 anos de idade, atacada por um homem mais alto e forte com 26 anos de idade, indefesa, e, cujo corpo apodreceu durante cerca de treze dias.


85. Segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) sobre no período 2009/2011, o valor da esperança média de vida à nascença foi estimado em 82,43 [28] para as mulheres, pelo que a vítima tinha uma esperança de vida de cerca de dez anos, anos esses que lhe foram retirados.


86. Apesar de ser considerada uma pessoa "idosa", a vítima, como era uma mulher vaidosa, que gostava de se aprontar, de se "vestir' amigas com quem convivia e a suas condições financeiras permitiam-lhe ter uma vida folgada.


87. As filhas, aqui demandantes, são, respetivamente e elas próprias mães de um menino nascido em ... [29], de nome ..., uma menina nascida em ... [30], de nome ..., e um menino nascido em ... [31], de nome ....


88. Netos, esses, que ficaram privados, para sempre, de hipotética convivência e relacionamento com a avó materna».

Factos Não Provados  [32]

Acusação pública


1. Que a relação amorosa entre MM e LL durou 28 anos.


2. Que o arguido foi perfilhado pelo referido MM.


3. Que a relação entre LL e o falecido ... nunca foi aceite pela família deste além da NN.

4. Em consequência disso o arguido nunca teve contacto com a sua família paterna, à exceção dos últimos cinco anos, período em que iniciou contacto a NN
5. Os contactos entre o arguido e a sua tia prendiam-se com a gestão de negócios relativos à he rança da família, designadamente venda de terrenos e pagamentos dos respetivos impostos.


6. O arguido foi a casa da tia NN uma ou duas vezes tratar dos assuntos acima indicados e chegou a deslocar-se com a mesma às Finanças para o mesmo efeito (isto, durante o ano de 2009).
7. Passados uns meses desta ocasião a NN telefonou a LL (mãe do arguido), acusando-a de ser uma ladra e de ter vendido madeira de um terreno que pertencia à herança, sem prestar contas.


8. Durante esse telefonema a NN acusou JJ de ser uma mulher de má vida e de se ter "posto debaixo" do seu irmão para ter o filho (o aqui arguido).


9. LL transmitiu tais impropérios ao seu filho o que fez nascer dentro deste um sentimento de revolta para com a sua tia NN.


10. Nessa sequência arguido e sua mãe não mantiveram qualquer contacto com NN até Março de 2012, altura que aquela decidiu ligar a esta, para saber se era necessário contribuir com qualquer quantia para os impostos devidos pelos terrenos da herança da família.


11. Como não conseguiu contactar com NN, LL insistiu com o arguido para que fosse a casa de sua tia tentar saber se esta ainda lá morava.


12. Foi dentro deste quadro que no dia 29 de Março de 2012 o arguido se dirigiu ao Edifício ....


13. Que a conversa que o arguido iniciou então com a sua tia fosse a propósito de questões patrimoniais e familiares.


14. A determinada altura a conversa tomou proporções de discussão, tendo o arguido dito à NN para não voltar a insultar a sua mãe.


15. Durante a discussão a NN disse ao arguido que a mãe deste era uma puta e que só queria o dinheiro da família.


16. Tai[s] palavras fizeram crescer o sentimento de revolta do arguido, que foi ficando cada vez mais nervoso e perturbado com o rumo que a conversa levava.


17. A dada altura o arguido quis ir embora, sendo que a NN lhe bloqueou a porta de saída com o seu corpo.


18. A conduta do arguido resultou ainda nas seguintes lesões localizadas na cabeça da NN: Uma laceração com 5 cm por 1 cm, ligeiramente oblíqua, localizada na metade esquerda da região frontal, de bordos irregulares e com aparente infiltração sanguínea.

Da acusação das Assistentes (SIC)


19. Que o arguido mede mais de 1,80 metros e à data dos fatos pesava mais de 90 kg.


20. Que o arguido desferiu à NN mais do que um golpe ou pancada na cabeça.


21. A conduta resultou ainda nas seguintes lesões localizadas na cabeça da NN:"Uma laceração de 5cm por 1cm" de maiores dimensões, "ligeiramente obliqua, localizada na metade esquerda da região frontal, de bordos irregulares e com aparente infiltração sanguínea" e com pontos de tecido a interligarem os bordos; uma laceração com 5,5 cm por 0,5 cm de maiores dimensões, na região parietal direita, de bordos irregulares e com aparente infiltração sanguínea e com pontes de tecido a interligarem os bordos; três lacerações, na região occipital esquerda, de bordos irregulares, sem infiltração sanguínea dos bordos, duas horizontais com 2,1 cm e 1,8 cm de comprimento e outra oblíqua com 3,1 cm de comprimento; laceração de bordos irregulares, sem infiltração sanguínea dos bordos, com 2,5 cm de comprimento na região retro-auricular esquerda.


22. Que foi em ato contínuo (ao referido no item que antecede) que o arguido se levantou e foi buscar um casaco que se encontrava em cima de uma cadeira da sala que colocou sobre a cabeça de NN. 


23. O arguido, já na cozinha, deixou aberta a janela que dá para a rua, com uma abertura de 10 cm.


24. O arguido voltou para a sala (...) e meteu as chaves supra referidas dentro da bolsa.


25. Que o arguido abandonou a morada da vítima munido do referido objeto contundente antes referido.


26. Verificou que tinha uma carteira com documentos e um porta-moedas.


27. Que o arguido virou para um parque de estacionamento existente junto a um prédio onde se localizam as agências dos Bancos ... e ....


28. Que o arguido parqueou o seu veículo em frente à agência do ... referida no item 27. e dirigiu-se à caixa multibanco sita nessa.


29. Que o arguido repetiu a operação às 02h16 por que deu código errado.


30. Seguiu sempre pela estrada nacional até Póvoa de Varzim e depois para Gandra, evitando sempre vias com portagens.


31. Que no dia seguinte, o arguido quis efetuar mais uma tentativa de levantamento com o cartão multibanco que tinha retirado de casa de NN.


32. Chegado a Vila Nova de Famalicão, deu várias voltas de carro pela cidade, tendo acabado por o estacionar junto a um largo.


33. Dirigiu-se à agência sita na Rua ...


34. Dirigiu-se ao seu veículo e regressou a Gandra, sempre evitando vias com portagens.
35. Que no dia 02 de Abril de 2012, o arguido veio Joane no seu veículo Citroen C4, com a matrí cula ...-AV-....


36. Que o arguido observou que a janela da cozinha da morada da NN, que dá para a rua, permanecia aberta.


37. Na viagem de regresso, o arguido pediu ao amigo OO para não contar a ninguém aquela ida a Joane.


38. Entre a data do crime, dia 29 de Março, a data em que cadáver foi encontrado, a 12 de Abril, o arguido continuou a frequentar bares noturnos.


39. O arguido pesava certamente mais de 90 kg, media e mede mais de 1,80 m.

Contestação


40. A confissão do arguido...foi uma forma de o arguido, confrontado com uma situação grave, re-vestida de pressão e verdadeiro pânico - acusações deste teor que, segundo a policia implicavam a sua mãe, e porque a sua mãe também estaria na Policia Judiciária, a admitir arcar com as cul pas de um crime que não cometeu e assim acabar com a situação em que a mãe se encontrava.


41. Que o cartão multibanco da vítima foi utilizado em agência do ... de Joane.


42. Foi o arguido que, no dia 30/03/2012 pelas 02:03:47, efetuou uma chamada do número ... para o número ....


43. Foi o arguido que realizou uma chamada às 10:13:50, do seu número ... para o número ....


44. O arguido encontrava-se no Instituto Superior de Ciências da Saúde, na aula de Farmacologia Aplicada, entre as 8 e as 11 horas do dia 30.3.2012.
45.
46. Em face de tudo o exposto, resulta ser impossível a presença do arguido em dois sítios ao mesmo tempo.


47. Que as deslocações, referidas em 21. da contestação do arguido, se tratam de idas ao restaurante Mc Donalds de Ermesinde/Valongo.


48. A primeira deslocação (dos registos de movimentos da via verde referidos na contestação (item 21.) do arguido, identificada pelas letras a. e b. nem sequer é feita pelo arguido, que nesse momento havia emprestado o carro a amigos, sendo que a segunda, identificada pelas letras c. e d. já se trata da deslocação do mesmo a esse estabelecimento de restauração, sendo este visível desde as Bombas de combustível da Repsol.
49. Assim, conjugando a factualidade exposta e as referências horárias resulta de todo impossível que a pessoa a quem a vitima tenha aberto a porta, entre as 21 e as 22 horas pudesse ser o arguido.


50. O arguido não mantinha um relacionamento habitual com a vítima.


51. O arguido e a vítima não mantinham qualquer relação de proximidade e/ou amizade.


52. À data da detenção encontrava-se integrado profissionalmente.

Pedidos Cíveis


53. O arguido foi a casa da vítima a pedido da mãe para tentar saber se esta ainda lá morava, depois de esta não ter conseguido falar com ela por telefone.


54. Que o referido em 2.1.61., 2a parte, supra, serviu como desculpa que terá permitido ao arguido ir a casa da tia e ser por ela recebido.


55. A vítima tinha ferimentos na região occipital esquerda.


56. Que o arguido bateu mais do que uma vez com algum objeto na cabeça da NN e deu-lhe um muro ou uma bofetada, usando de muita força (...) acabando esta por embater com a parte lateral da cabeça, com força suficiente para que a cabeça da vítima se lacerasse em vários sítios e para que, por isso, fosse projetado sangue na porta.


57. O arguido tem aproximadamente 1,80 m de altura e pesava mais de 90 kg.


58. O arguido apanhou a tia desprevenida.


59. Que o arguido olhou a tia nos olhos.


60. Que a tia se encontrava a esvair-se em sangue.


61. No próprio dia foi a várias caixas de multibanco tentar levantar os cartões.


62. No dia a seguir, depois de dormir e da suposta raiva ou revolta, o arguido voltou a Joane para tentar novamente levantar dinheiro com um dos cartões.


63. O arguido matou a tia sentado em cima dela e usando o próprio corpo para impedi-la de se debater e de lutar pela sua vida.


64. As demandantes ainda não conseguiram deslocar-se a casa da mãe, local do homicídio, passados mais de dez meses.


65. A vítima teria festejado 73 anos de idade se não fosse assassinada ».

                                                        ********

     O Tribunal da Relação do Porto procedeu a alterações, modificando a redacção dos FP 10, 11, 12, 13 e 14, o que fez do modo seguinte:

     «Assim importa formalizar em conformidade com todo o supra expendido uma versão condensada de factos que ficam uns «provados» e outros «não provados» nos termos seguintes:

«10. Já com a tia caída no chão (conforme acima exposto), o arguido desferiu-lhe golpe ou pancada na cabeça, com um objecto de natureza contundente ou actuando como tal, tendo sido projectados salpicos de sangue na porta da sala.

«11. Tal conduta do Arguido resultou nas seguintes lesões localizadas na cabeça da NN:
Fratura do corno superior esquerdo da cartilagem tiróide sem infiltração sanguínea dos bordos
Laceração, na região occipital esquerda, de bordos irregulares, sem infiltração sanguínea dos bordos, horizontal com 2,1 cm de comprimento,
Laceração, na região occipital esquerda, de bordos irregulares, sem infiltração sanguínea dos bordos, horizontal com 1,8 cm de comprimento,
Laceração, na região occipital esquerda, de bordos irregulares, sem infiltração sanguínea dos bordos, oblíqua com 3,1 cm de comprimento,
Laceração com 2 por 0,3 cm de maiores dimensões, vertical, localizada na metade esquerda da região frontal, proximamente à linha média, de bordos irregulares e com infiltração sanguínea com e com pontes de tecido a interligarem os bordos (confirmada histologicamente como lesão vital),
Laceração com 5 por 1 cm de maiores dimensões, ligeiramente oblíqua, localizada na metade esquerda da região frontal, de bordos irregulares e com aparente infiltração sanguínea e com pontes de tecido a interligarem os bordos,
Laceração com 5,5 cm por 0,5 cm de maiores dimensões, na região parietal direita, de bordos irregulares e com aparente infiltração sanguínea e com pontes de tecido a interligarem os bordos,
Laceração de bordos irregulares, sem infiltração sanguínea dos bordos, com 2,5 cm de comprimento na região retro-auricular esquerda,
Externamente, desvio da pirâmide nasal para a esquerda (Fotografia 2), internamente, fratura multicominutiva da pirâmide nasal sem infiltração sanguínea dos bordos.

«12. Da provocação, por conduta de natureza contundente do Arguido, das lesões na cabeça de NN que caiu desamparada no chão da sala da sua residência, ali permaneceu até à sua morte por evolução clínica daquelas.

«13. Agindo do modo que se descreveu o Arguido quis ofender a integridade física de NN, o que conseguiu fazendo perigar a vida dela pelo modo descrito com o qual o Arguido produziu a morte de NN por tal evolução das lesões da conduta contundente na cabeça dela,

«14. Como o Arguido executou apesar de não ignorar que conduta contundente na cabeça daquela podia produzir a sua morte com a qual ele não se conformou.»

     O Tribunal da Relação do Porto consignou um facto não provado e eliminou teores de FP e FNP, por inteiro, ou apenas segmentos, nestes termos:

      «Congruentemente, para se precludir o vício «contradição insanável…» do art 410-2-b do CPP:


Julga-se «não provado» que o Arguido tivesse querido e conseguido tirar a vida de NN mediante pegar numa almofada, sua compressão sobre a face da tia de modo que a mesma não conseguisse respirar e manutenção de tal compressão até que a mesma deixasse de oferecer resistência por provocação de fractura do corno superior esquerdo da cartilagem tiróide e sequente morte de NN por asfixia - em condensação do teor dos factos a quo julgados provados sob 10 a 12 e 14 ;


Assim, elimina-se o teor dos factos a quo julgados provados 65, 66 e 72 segmento «… nessa altura, optou por matar a tia com as próprias mãos, sendo que,…»;


Elimina-se o segmento «…o arguido pegou numa almofada e comprimiu-a sobre a face daquela (...) de modo a que não conseguisse respirar, o que “resultou”, além de vários ferimentos, na morte de NN» do teor do FPV 58;


Elimina-se o teor dos FNP 18, 20, 21, 55 e 56 para prevenir o sobredito vício; e,


Elimina-se o teor dos factos a quo julgados provados sob 13 e 20 por seu teor já se mostrar reflectido na redacção ora conferida ao facto provado 11».

      Assim ficou arrumada a matéria de facto dada por provada e por não provada.


                                       *******

Apreciando. Fundamentação de direito.

      Questão Prévia – (I)legitimidade e (falta de) interesse em agir das assistentes

      O arguido na resposta apresentada ao recurso interposto pelas assistentes não suscitou a questão da inadmissibilidade de tal recurso e no despacho de admissão de fls. 2846 também não se coloca óbice a tal interposição.

      Apenas o Exmo. PGA junto do Tribunal da Relação do Porto, na resposta ao recurso das assistentes, de fls. 2915 verso a 2916 verso, suscita a questão prévia da ilegitimidade/falta de interesse em agir, defendendo a rejeição do recurso.

      No despacho preliminar de fls. 29… , o recurso foi admitido, com a aposição da nota de que se voltaria ao tema nesta sede.

      Na verdade, há que ter em conta o decidido no acórdão n.º 2/95, de 16-05-1995, publicado no Diário da República, n.º 135, de 12-06, no sentido de que “as decisões genéricas declarando a legitimidade não têm valor de caso julgado formal, podendo tal questão ser reapreciada até final.” Aí se considerou que “A decisão judicial genérica transitada e proferida ao abrigo do art. 311.º do CPP, sobre legitimidade do Ministério Público, não tem valor de caso julgado formal, podendo até final ser dela tomado conhecimento”.

      Vejamos.   

      Estabelece o artigo 69.º do CPP (redacção da Lei n.º 26/2010, de 30 de Agosto):

“1. Os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei.

2. Compete bem especial aos assistentes:

c) Interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito, dispondo, para o efeito, de acesso aos elementos processuais imprescindíveis, sem prejuízo do regime aplicável ao segredo de justiça”.

     Por seu turno, estabelece o artigo 401.º, n.º 1, alínea d), do CPP:

1 - Têm legitimidade para recorrer

b) O arguido e o assistente, das decisões contra eles proferidas.

2 – Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir.

    Ressalvadas as excepções da lei, o assistente é um colaborador, mas um colaborador subordinado.

    Sendo assim, face a este paradigma de subordinação, perguntar-se-á quando, como, com que parâmetros, poderá o assistente (se o puder) ser/ousar ser efectivamente autónomo, fazer despontar e assumir um rasgo de asa, de forma a expor pretensão, embora “colaborante”, mas efectivamente, e de modo incontornável, autónoma, num exercício de real e efectivo distanciamento, que a autonomia (não apenas a formal) não pode deixar de pressupor.

     Consabida a sucessiva ampliação do leque de entidades a quem é reconhecida a faculdade de constituição de assistente em consequência da evolução de reconhecimento de certos direitos, como o direito da vítima em casos de violência doméstica, passando a outros parâmetros, que conduzem à admissão como assistente da Administração Tributária (IGFSS - Acórdão n.º 2/2005), ou antes, da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), à acção popular penal, e vários outros casos, o estatuto do ofendido/lesado/vítima, base da figura de assistente, tem sofrido uma evolução notável, desde o reconhecimento dessa importância com o aditamento do n.º 7 do artigo 32.º da CRP introduzido na 4.ª Revisão Constitucional, operada pela Lei Constitucional n.º 1/1997. (Sobre essa evolução pode ver-se o acórdão proferido no processo n.º 3490/07).

     José Damião da Cunha, A participação dos particulares no exercício da acção penal (Alguns aspectos), Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 8, Fasc. 4 (Outubro-Dezembro 1998), págs. 593 a 660, aborda a questão que ora nos ocupa, a págs. 646, distinguindo o problema da legitimidade para recorrer e o problema do interesse em agir, definindo o interesse em agir como “um pressuposto decorrente da actividade exercida pelo assistente”, e considerando “Neste caso, o assistente apenas pode recorrer de decisões em que activamente tenha participado e em que tenha formulado uma qualquer «pretensão», não tendo essa «pretensão» merecido acolhimento na decisão – ou seja: a decisão foi proferida contra as expectativas do assistente”.

     Esclarece o Autor que o conceito de «interesse em agir» é um conceito mais geral, na medida em que se refere a qualquer tipo de decisão processual – não se refere, pois, apenas às decisões finais – e por outro lado, aplica-se a todos os sujeitos processuais (seja ao Ministério Público, seja ao arguido).

    Conclui, a págs. 647, que “o assistente pode interpor recurso restrito à questão da medida da pena, quando durante a audiência de julgamento ele tenha formulado uma qualquer pretensão sobre tal matéria que não tenha merecido acolhimento na decisão final”.

    Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2000, págs. 328 e 332, refere que «decisão proferida contra o assistente é a decisão proferida contra a posição que ele tenha tomado no processo» e frisando ser «preciso entender esta posição em termos amplos», conclui que o assistente tem interesse em agir «quando o arguido for absolvido», sem fazer depender esse interesse da dedução de acusação. 

    Cláudia Cruz Santos, Assistente, recurso e espécie e medida da pena, RPCC, Ano 18, n.º 1 (Janeiro-Março 2008), págs. 137 a 166, comentando acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-12-2007, a págs. 160 afirma: “Se tanto a questão da culpa como a questão da pena se incluem no exercício do ius punendi do Estado, a solução relativa à possibilidade de o assistente delas recorrer deverá ter idêntico sentido” e a págs. 165 refere que o ofendido “enquanto assistente, ele tem o poder de procurar conformar a resposta à questão penal, que engloba quer a questão da culpa, quer a questão da pena”.

     “O assistente pode, pois, recorrer da espécie e/ou da medida da pena se a decisão tiver sido contra ele proferida e se tiver interesse em agir. O que ocorre quando se dá à questão do quantum ou da espécie da pena uma resposta contrária a pretensões fundadamente manifestadas pelo assistente durante o processo e quando essa resposta ofender de forma não insignificante o seu interesse na determinação de uma sanção para o agente que considere justa” (itálicos do texto).

    A Autora retoma a posição em A “redescoberta” da vítima e o direito processual penal português, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, 2010, III volume, pág. 1133, reafirmando que o ofendido enquanto assistente “tem o poder de procurar conformar a resposta à questão penal, que engloba quer a questão da culpa, quer a questão da pena”.

    Paulo Albuquerque, Código de Processo Penal Comentado, UCE, 4.ª edição actualizada, 2011, pág. 221, em anotação ao artigo 69.º, de entre os direitos de sindicância e de impugnação elenca o direito de recorrer autonomamente das decisões que o afectem (artigos 69.º, n.º 2, al. c) e 401.º, n.º 1, al.ª b), incluindo o direito de interpor recurso da absolvição, do despacho de não pronúncia ou da condenação em pena cuja espécie ou medida ele considera insuficientes, dos despachos sobre medidas de coacção e de garantia patrimonial, devendo ter acesso aos elementos processuais indispensáveis, sem prejuízo do regime do segredo de justiça.

    Reforça a posição, a págs. 224, no n.º 8, referindo que a determinação da espécie e da medida da sanção criminal (...) redunda numa verdadeira questão de direito, sendo defendidas diversas concepções sobre a mesma (…). Ora, o assistente pode não perfilhar a mesma concepção do tribunal sobre esta questão de direito. Por isso, o recurso do assistente sobre a determinação da espécie e da medida das sanções criminais não é uma vindicta privada, mas uma actividade verdadeiramente conformadora do direito.

    Henriques Gaspar, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, págs. 246, assinala que “Apenas em situações específicas expressamente previstas na lei pode haver excepções à subordinação; em tais casos, a actuação do assistente e a prossecução processual de interesses, próprios ou assumidos, não está subordinada às posições do MP: Os espaços de divergência em relação à actividade do MP estão previstos nas alíneas b) e c), concretizados nos artigos 284.º, n.º 1 (autonomia na indicação da prova a produzir), 284.º, n.º 2, alínea b) e 401.º, n.º 1, alínea b), (…), podendo requerer a abertura da instrução”.

 

    A propósito do direito ao recurso do assistente já se pronunciou este STJ em termos de fixação de jurisprudência, como, no Assento n.º 8/99, de 30 de Outubro de 1997, publicado no Diário da República, 1.ª Série-A, de 10 de Agosto de 1999, e BMJ n.º 470, pág. 39, onde se firmou o seguinte entendimento:

    “O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir”.

    O assento pronunciou-se em situação de condenação em que estava em causa apenas a aplicação de pena. 

    A distância temporal entre a data da prolação do acórdão e publicação tem a ver com o facto de ter sido arguida nulidade do assento, sobre a mesma recaindo o acórdão de 12-03-1998, e formulado posteriormente pedido de aclaração, sobre o mesmo veio a recair o acórdão de 2-07-1998, tendo ainda sido interposto recurso para o Tribunal Constitucional, que não conheceu do respectivo objecto.

    Mais recentemente, permite-se que o assistente também controle a actuação do Ministério Público.

    O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2011, de 9 de Fevereiro de 2011, proferido no processo n.º 148/07.0TAMBR, da 5.ª Secção, publicado no Diário da República, 1.ª Série, n.º 50, de 11 de Março de 2011, fixou jurisprudência no sentido seguinte:

    «Em processo por crime público ou semi-público, o assistente que não deduziu acusação autónoma nem aderiu à acusação pública pode recorrer da decisão de não pronúncia, em instrução requerida pelo arguido, e da sentença absolutória, mesmo não havendo recurso do Ministério Público».  

    Abordado caso particular de não pronúncia em que se analisa a legitimidade do assistente para interpor recurso nas situações em que a decisão que se impugna julga extinto o direito de queixa.

    O acórdão de 29-03-2000, processo n.º 628/99-3.ª, CJSTJ 2000, tomo 1, pág. 234, pronunciou-se em caso de denúncia caluniosa, considerando ser de admitir-se a constituição de assistente à pessoa visada com a denúncia, quando a falsa imputação for lesiva do seu bom nome e honra, adiantando que o assistente tem legitimidade e interesse em agir, por terem sido proferidas contra si e o afectarem, das decisões absolutórias relativas a crimes pelos quais deduziu acusação, directamente ou por adesão ao M.º P.º, mesmo que este não tenha impugnado aquela.

    Segundo o acórdão de 9-01-2002, processo n.º 2751/01-3.ª CJSTJ 2002, tomo 1, pág. 160: “O assistente tem legitimidade para recorrer desacompanhado do MP, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, quando demonstre um concreto e próprio interesse em agir.

    Não tem interesse em agir o assistente que assumiu no processo uma posição passiva e de total alheamento no que toca à sua vertente criminal, não tendo deduzido acusação, nem, sequer, aderido à acusação pública, antes se limitando a deduzir pedido indemnizatório”.

    Como se extrai do acórdão de 1-3-2006, processo n.º 113/06-3.ª, CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 196, tem interesse em agir para efeitos de recurso quem tiver necessidade desse meio de impugnação para defender um direito seu. Actuando os assistentes em representação dos filhos menores do arguido e da vítima, sua mulher, os mesmos tem interesse em agir (recorrer) relativamente ao acórdão que, considerando verificados os elementos objectivos do crime de homicídio qualificado, declarou o arguido inimputável. 

    Segundo o acórdão de 30-04-2008, processo n.º 687/08-3.ª, CJSTJ 2008, tomo 2, pág. 217, o assistente tem legitimidade para recorrer da decisão, desacompanhado do Ministério Público, no tocante à alteração do prazo de suspensão de execução da pena de 3 para 5 anos e ao consequente alargamento da condição de pagamento da indemnização naquele período, porquanto tal alargamento o afecta directamente.

     O interesse em agir é a necessidade concreta de recorrer à intervenção judicial, à acção, ao processo e, em regra, o assistente só pode reagir à afectação do seu direito mediante a interposição de recurso.

     Temos assistido, e a nosso ver, bem, a um reforço da posição processual do assistente, a partir de novo enfoque sobre a figura do ofendido/lesado, olhando a outra margem do crime, ao nível do resultado, do ofendido, não apenas do seu autor, mas da vítima.

     Revertendo ao caso concreto. 

     A pretensão recursiva das assistentes restringe-se a questões estritamente penais, pois que a condenação na componente cível permaneceu com os mesmos montantes, se bem que com diversa “causa de pedir” face à alteração da matéria de facto e requalificação do crime de homicídio qualificado para crime diverso menos grave.

     (Manteve-se o reconhecimento do pedido de indemnização, no total de 40.000,00 €, abrangendo dano morte ou perda do direito à vida - € 30.000,00 - e danos não patrimoniais próprios de cada uma das demandantes, filhas da vítima (€ 5.000,00 + € 5.000,00).

 

     Analisando a conduta processual das assistentes, verifica-se que as mesmas manifestaram o seu ponto de vista jurídico sobre o objecto do processo e sempre foi reconhecida a sua legitimidade, pois nenhum obstáculo foi colocado ao exercício dos direitos inerentes a essa assistência, não sendo questionada pelo interessado directo a interposição do recurso.

     As assistentes intervêm num quadro em que o acórdão recorrido alterou a facticidade apurada, qualificou de modo substancialmente diverso o que a assistente Diana defendeu no RAI (quanto a este apenas a assistente BB, como vimos), intervindo no julgamento, como consta das actas, subscrevendo requerimento de produção de prova do M.º P.º, a fls. 1819, apresentando resposta ao recurso do arguido para a Relação, quer quanto ao despacho (fls. 2338-2352), quer do acórdão (fls. 2353-2419) e finalmente na resposta na sequência de notificação nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP.

     Com a alteração da matéria de facto, foi afastada a certificação da intenção de matar, falhando o elemento subjectivo do homicídio, sendo o arguido condenado por crime diverso, atentatório não directamente da vida humana, antes da integridade física, se bem que, a final, se verifique o resultado morte.

     Evidente é que a posição assumida pelo acórdão recorrido contrariou de forma relevante a posição processual assumida pela assistente BB, a qual mereceu inteiro acolhimento no despacho de pronúncia, que passou a delimitar o campo temático do processo e de igual modo na decisão da primeira instância, apenas com a diferença de se não ter dado por verificado o exemplo padrão da alínea f), a frieza de ânimo.  

     No concreto caso, as assistentes não deduziram acusação própria - mera faculdade, de acordo com o artigo 284.º do CPP -,  mas também não aderiram à acusação pública, que imputou ao arguido a prática de um homicídio simples.

     A assistente BB, não se quedando pela “inércia”, no exercício de “autonomia” como colaboradora em relação ao MP (artigo 69.º, n.º 1) ousando ir mais além, não obstante o carácter subordinado de sua intervenção em relação ao MP (mesmo preceito), no exercício de alguma autonomia em relação ao Ministério Público, de quem é colaboradora, requereu abertura de instrução, pugnou por qualificação agravada e conseguiu-o, intrometendo uma alteração substancial de factos, alterando-se o thema probandum e decidendum, albergando a verificação de um quadro de especial censurabilidade e perversidade (indiciadora de um tipo de culpa agravada conforme jurisprudência uniforme), ausente na formulação do libelo público; a posição processual da assistente Diana representa um plus em relação à posição do Ministério Público.

    De acordo com o artigo 287.º, n.º 1, do CPP, o assistente pode requerer abertura de instrução se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.

    Foi o caso.

    No acórdão da primeira instância foram dados por provados muitos dos factos propostos no requerimento de abertura de instrução.

    O acórdão recorrido adoptou solução diversa da acolhida em primeira instância, contra a concreta posição processual acolhida pelas assistentes e por que pugnaram ao longo do processo.

    No presente recurso pugnam por alteração da matéria de facto provada, com invocação de erro notório na apreciação da prova no que se refere ao iter criminis, à causa da morte e à intenção de matar, com vista à manutenção da factualidade dada por provada e não provada na primeira instância e reposição da qualificação do homicídio como qualificado e medida da pena.

    A aferição da legitimidade e interesse em agir terá de ancorar-se no que é invocado pelas recorrentes, independentemente da bondade dos argumentos e do provimento da pretensão recursória.    

    Por todo o exposto, atendendo à intervenção processual pretérita das assistentes, considera-se preenchido o pressuposto da legitimidade e do interesse em agir, não sendo caso de rejeição.

                                           *******

       Apreciando as questões suscitadas nos recursos.

      

       Questão I – Nulidade por não notificação de documento junto em audiência

    A questão fora colocada pelo arguido no anterior recurso na conclusão 3.ª (fls. 2221) e é suscitada de novo no presente recurso nas conclusões 1.ª a 3.ª. 

    O acórdão ora recorrido abordou a questão de fls. 2526 verso a fls. 2529, em termos fundamentados e convincentes, concluindo pela improcedência da arguição, o que não merece censura, nem demanda grandes desenvolvimentos.

    Apenas se dirá que a junção do documento em causa foi anunciada na audiência de 24-10-2013.

    Como consta da acta, a fls. 1853, pelo Presidente “foi dado conhecimento (…) da junção do original de um documento já existente nos autos pela CGD referente à localização dos levantamentos de multibanco”.

    O arguido e o Exmo. Mandatário estavam presentes e é justamente nessa sessão, que é proferido despacho a consentir na produção de prova requerida pelo M.º P.º, logo arguido de ilegal e inconstitucional.

    Não foi arguida a falsidade da acta.

    O documento narrativo de fls. 1884 não enuncia algo de completamente novo, pois que reportado a “um documento já existente nos autos” junto pela mesma CGD, conforme fls. 1714 a 1718, tendo sido junto em 1 de Outubro de 2013 - fls. 1713. 

    Irregularidade que houvesse, e não há, estaria sanada.

    Por fim, realçar que a informação foi atendida pelo Colectivo julgador, por ser mais favorável ao arguido do que uma outra anterior.

    Sem necessidade de considerações outras, julga-se improcedente a arguição de nulidade.

      Questão II – Nulidade - Reconstituição de facto

    

    Previamente colocar-se-á a questão da inadmissibilidade do recurso neste segmento.

Recurso interlocutório  

    Em causa o despacho proferido na audiência de julgamento de 24 de Outubro de 2013, no qual foi indeferida a nulidade arguida pelo arguido (na sessão de 9-10-2013, a fls. 1819/1820) e ordenada a visualização e leitura da reconstituição, requerida pelo Ministério Público na sessão anterior.         

    Relembrando a sequência e termos da questão.

    Na sessão da audiência de julgamento de 9-10-2013 foi apresentado pelo Ministério Público, para efeitos do disposto no artigo 355.º do C.P.P., requerimento de realização de diligência de prova consistente em exame e visualização em audiência da filmagem da reconstituição do facto indicada como prova nos autos, por duas vias:

1.ª - Visualização de toda a filmagem feita com o arguido, som incluído, se houvesse acordo nisso de todos os sujeitos processuais, nos termos do artigo 356.º, n.° 2, alínea b), do CPP;

2.ª - Visualização de tal filmagem, a não haver o acordo anterior, mas sem som, “o que nos parece permitido e não impeditivo pelo n.º 8 do referido artigo 356.°, uma vez que este se reporta a actos processuais com obrigatoriedade legal de elaboração do respectivo auto e segundo interpretamos, nada na lei obriga a que o acto processual reconstituição seja documentado, obrigatoriamente por lei em auto, conferir artigo relativo à reconstituição do facto, conjugado com os art.s 94° e 99° do mesmo Código de Processo Penal”.

    A tal requerimento, opôs-se o arguido, conforme fls. 1818/1820.

    Na sessão de 24-10-2013 foi proferido despacho sobre o requerido pelo Ministério Público, deferindo-o e determinando a reprodução do auto de reconstituição vídeo e escrito para contraditório em audiência - fls. 1853/4 - e tendo então o ora recorrente arguido a nulidade e inconstitucionalidade de tal despacho, foi proferido novo despacho a indeferir a arguida nulidade ou inconstitucionalidade, como consta de fls. 1854/6.

    O arguido em devido tempo interpôs recurso de tal despacho – fls. 1937 a 1951 – e aquando da interposição do recurso do acórdão final, cumprindo o disposto no artigo 412.º, n.º 5, do CPP, manifestou interesse na manutenção dessa pretensão recursiva, como consta a fls. 2240. 

    No presente recurso o recorrente pretende a reapreciação do decidido relativamente a esta matéria, o que leva às conclusões 4.ª a 15.ª.

    A questão colocada consiste no seguinte:

    Segundo o recorrente, estar-se-ia perante prova proibida, porque tendo-se remetido ao silêncio ao longo de toda a audiência de julgamento, o deferimento da pretensão do Ministério Público traduzir-se-ia numa forma de contornar a dificuldade e impedimento de proibição de valoração de declarações por si prestadas em sede de inquérito.

    O despacho recorrido proferido pelo Juiz Presidente do Colectivo, após deliberação do Colectivo, é o constante de fls. 1853/4, complementado pelo de fls. 1855/6.

    Como vimos no relatório supra, na sessão de 24-10-2013, foi proferido despacho sobre requerimento do Ministério Público, deferindo o requerido, determinando a reprodução do auto de reconstituição vídeo e escrito para contraditório em audiência - fls. 1853/4 - e tendo o ora recorrente arguido a nulidade e inconstitucionalidade de tal despacho, foi proferido novo despacho a indeferir a arguida nulidade ou inconstitucionalidade - fls. 1854/6 (8.º volume).

    O acórdão ora recorrido abordou a questão em quatro segmentos, que numa técnica que não ajuda à clareza, foi intercalando o recurso interlocutório a par do recurso principal, abrindo com o “Relatório atinente ao recurso interlocutório”, de fls. 2474 a 2487, após o que se segue “Relatório atinente ao recurso da decisão final”, de fls. 2487 a 2499, seguindo-se “Relatório comum aos dois recursos”, a fls. 2499, voltando de novo ao recurso interlocutório, a fls. 2499 verso e 2500, intrometendo-se de novo recurso principal, a fls. 2500 e verso, e de novo volta ao recurso interlocutório, de fls. 2500 verso a 2501 verso, a que se segue novamente recurso principal, de fls. 2501 verso a 2516 verso, e a seguir, “Apreciação do recurso interlocutório…”, de fls. 2517 a 2526 verso, terminando no dispositivo, a fls. 2549, negando provimento ao recurso.

      Questão Prévia da (in)admissibilidade do recurso

    Em causa na decisão recorrida está o segmento do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11 de Junho de 2014, que conhecendo do recurso interlocutório, confirmou o despacho de primeira instância.

    Como se viu supra, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal opinou no sentido da irrecorribilidade do acórdão da Relação do Porto neste segmento, para tanto invocando o artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, por o Tribunal da Relação ter apreciado, em recurso, questão que extravasa o objecto do processo.

    No caso sujeito impõe-se indagar da admissibilidade deste segmento do recurso, interposto para o STJ, visando impugnar o acórdão da Relação na parte em que é confirmativo de despacho proferido por Juiz Presidente do Colectivo, após deliberação em audiência de julgamento, no sentido de deferir a requerida diligência de prova.

    Vejamos.                                        

                                            

    O princípio geral em termos de recorribilidade é o de que as decisões judiciais em processo penal são recorríveis, pois como estabelece o artigo 399.º do Código de Processo Penal “É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei”.

   

    A delimitação das possibilidades de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça consta, de forma taxativa, do artigo 432.º do Código de Processo Penal, que na versão originária de 1987 (emergente do Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro (rectificado), entrado em vigor em 1 de Janeiro de 1988) estabelecia:
    (Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça)
Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:
a) De decisões das relações proferidas em primeira instância;
b) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri;
c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo;
d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores;
e) Noutros casos especialmente previstos na lei.

   O preceito na versão da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto (Diário da República I – A Série, n.º 195/98, da mesma data), que alterou o CPP, entrada em vigor em 1 de Janeiro de 1999 (artigo 10.º), passou a estabelecer:
Artigo 432.º (Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça)
1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:
a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância;*
b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;
c) [Anterior alínea b).] De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri;
d) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito;
e) [Anterior alínea d).]. De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores;
 * (Esta alínea foi a única inalterada em 1998, surgindo no texto republicado a expressão “1.ª instância”, no lugar de “primeira instância”).

    A Lei n.º 48/07, de 29 de Agosto (rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 100-A/2007, Diário da República, I Série, n.º 207, Suplemento, de 26 de Outubro, por seu turno, rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 105/2007, Diário da República, I Série, n.º 216, de 9 de Novembro de 2007), que procedeu à 15.ª alteração do CPP e republicou o Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, introduziu as seguintes alterações: 
Artigo 432.º (……………………)
1 – ………………………………………………………………………………………...
a) ………………………………………………………………..………………………..
b) ………………...……………………………………………………………………….
c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou do tribunal colectivo, que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito;
d) [Anterior alínea e)].
2 – Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º

    (Esta redacção permaneceu intocada nas subsequentes modificações do Código de Processo Penal, operadas pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, pela Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, pela Lei n.º 115/09, de 12 de Outubro, pela Lei n.º 26/2010, de 30 de Agosto, e pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro de 2013, que introduziu a vigésima alteração ao CPP).

    Por seu turno, estabelecia o artigo 400.º do Código de Processo Penal, na versão originária de 1987, sob a epígrafe (Decisões que não admitem recurso):
1 – Não é admissível recurso:
a) De despachos de mero expediente;
b) De decisões que ordenam actos dependentes da livre resolução do tribunal;
c) De decisões proferidas em processo sumaríssimo;
d) De acórdãos das relações em recursos interpostos de decisões proferidas em primeira instância;
e) Nos demais casos previstos na lei.
2 – ………………………………………………………………………………………...

    A reforma de 1998 manteve inalterada a redacção das alíneas a) e b) do n.º 1, alterando a redacção de outras [alíneas c), d), e), f) e g), a qual passou a ser a “Anterior alínea e)], e, inovando, introduziu na alínea c) o seguinte teor:
    c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não ponham termo à causa.

   A Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, alterou as alíneas c), e) e f), daí resultando:
                                                         Artigo 400.º
                                                                 […]
1 – ……………...…………………………………………..……………….……………
a) ……….…………………………………………………………….………………… ;
b) ……………………………………………………………………….……………..... ;
c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final, do objecto do processo.
d) ………...………………………………………………………………………………;
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade;
f) De acórdãos condenatórios proferidos em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;
g) ………………………………….……………...……………………………………....
2 – ………………………………………………………….………………………..……
3 – Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil.

    O preceito veio a ser alterado pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, que operou a 20.ª alteração ao CPP, embora sem interesse para o ponto que nos ocupa, dando nova redacção às alínea d) e e) do n.º 1, que passaram a estabelecer:                                                   
d) De acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, exceto no caso de decisão condenatória em 1.ª instância em pena de prisão superior a 5 anos;

d) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos.

                                                             ********

    A questão a dilucidar é a de saber se o acórdão da Relação do Porto, na parte em que julgou improcedente o recurso interlocutório, é ou não, recorrível.

    O despacho proferido na primeira instância pelo Presidente do Colectivo, após deliberação do Tribunal, bem como o acórdão da Relação que o confirmou, tiveram em vista a concessão de aproveitamento como prova válida da visualização da reconstituição de facto feita em sede de inquérito, o que o recorrente entende ser prova proibida.

    Aqui e agora, coloca-se a questão de saber se o acórdão confirmativo do despacho de indeferimento de nulidade com a consequente manutenção de diligência probatória é, ainda, sindicável por este Supremo Tribunal. 
          *******

    É abundante a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça a propósito da interpretação a dar à antiga expressão “por termo à causa”, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, na versão de 1998, e da irrecorribilidade das denominadas decisões interlocutórias ou intercalares, quer o recurso tenha sido interposto para a Relação de forma autónoma ou isolada, ou no seio de recurso da decisão final.

    Como se pronunciou o acórdão de 08-07-2004, proferido no processo n.º 2238/04-5.ª «Decisão que põe termo à causa é a que tem como consequência o arquivamento ou encerramento do objecto do processo, mesmo que não se tenha conhecido do mérito. Tanto pode ser um despacho como uma sentença (ou acórdão). Nem sempre é uma “decisão final” (decisão que, após audiência e conhecendo do mérito, põe termo à causa) mas a “decisão final” é sempre uma “decisão que põe termo à causa”.

    Por isso, no caso dos autos, “decisão que pôs termo à causa” foi o acórdão absolutório, pois foi aí que se apreciou a “causa”, isto é, o objecto do processo definido pela acusação/pronúncia. E como essa decisão apreciou o mérito, após audiência, trata-se, também, de uma “decisão final”.

    O acórdão da Relação que rejeitou o recurso do acórdão final, por tê-lo julgado extemporâneo, não foi, portanto, uma decisão que pôs termo à causa, mas uma decisão processual posterior ao termo da causa.

    Posta a questão no seu devido lugar, há então que aplicar o disposto no art. 400.º al. c) do CPP, isto é, há que declarar irrecorrível o acórdão da Relação, pois não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não ponham termo à causa.».

    No mesmo sentido, o acórdão de 26-01-2005, processo n.º 4438/04-3.ª, onde se refere: «A decisão que põe termo à causa é a decisão que faz terminar a causa de modo substancial, que julga e determina o direito do caso e decide o objecto do procedimento criminal, definindo a existência ou a inexistência de responsabilidade criminal, e, quando for o caso, a culpabilidade e a pena.

    Não constitui, assim, decisão final aquela que se não refira, funcional e estruturalmente, à matéria da causa e ao objecto do processo, mas apenas a incidências estritamente processuais, próprias do desenvolvimento e da ordenação sequencial do processo, como são os despachos proferidos nos limites estritamente processuais da discussão sobre os pressupostos da admissibilidade de um recurso, como é o caso dos autos».

   Como se pode ler no acórdão de 20-12-2006, processo n.º 3043/06-3.ª, em caso em que na Relação se julgara improcedente arguição de nulidade de escutas: «Apesar de o acórdão recorrido conter outras decisões que puseram termo à causa, em princípio susceptíveis de recurso para o STJ, tratando-se de uma questão interlocutória, a circunstância de não ter sido objecto de recurso autónomo não lhe confere recorribilidade, a reboque de algumas das restantes poderem ser objecto de recurso para este Tribunal, tanto mais que a hipótese não configura a excepção prevista na alínea e) do artigo 432º do CPP. Embora o problema das escutas acompanhe a decisão final, pode e deve ser dela cindida, sendo que sobre ela até já se formou dupla conforme. Este entendimento, além de respeitar a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição, está em perfeita consonância com o regime traçado na Reforma de 1998 para os recursos para o STJ, a qual obstou, de forma clara, ao segundo grau de recurso, terceiro grau de jurisdição relativo a questões processuais ou que não tenham posto termo à causa».

    Em registo semelhante, o acórdão de 15-03-2006, proferido no processo n.º 2787/05-3.ª, onde se diz: «O STJ só conhece dos recursos das decisões interlocutórias de 1.ª instância que devam subir com o da decisão final, quando esse recursos sejam directos para o STJ e não quando tenham sido objecto de recurso decidido pelas Relações. Compreende-se que assim seja, já que estão em causa meras questões procedimentais, não se justificando no sistema de recurso para o STJ, um 3.º grau de jurisdição para questões que não se referem directamente ao objecto do processo, não se vislumbrando que tal entendimento colida com as garantias do processo criminal contempladas no artigo 32.º da CRP».

   No acórdão de 06-04-2006, processo n.º 805/06-5.ª, in CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 159, com citação de vários arestos, afirma-se que por termo à causa significa que a questão substantiva, que é o objecto do processo, fica definitivamente decidida.

    Este Supremo Tribunal afirmou que o preceito em causa, na anterior versão, ao estabelecer a inadmissibilidade de recurso relativamente a acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, que não punham termo à causa, abrangia todas as decisões interlocutórias, independentemente da forma como o respectivo recurso era processado e julgado pela Relação, ou seja, quer o recurso fosse autónomo quer fosse inserido em impugnação da decisão final - acórdãos de 02-02-2005, processo n.º 4046/04-3.ª, in CJSTJ 2005, tomo 1, pág. 188 (acórdão da Relação que anule o julgamento em 1.ª instância e determine a sua repetição é irrecorrível); de 22-09-2005, processo n.º 1752/05-5.ª (embora a questão interlocutória acompanhe a decisão final, pode e deve dela ser cindida, sendo que sobre ela até já se formou dupla conforme); de 11-01-2006, processo n.º 4301/04-3.ª; de 02-02-2006, processo n.º 4224/05-5.ª, in CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 180 (o despacho que revogou o perdão de penas aplicado na decisão final, não põe termo à causa, antes é uma decisão posterior ao termo da causa e, como tal, irrecorrível para o STJ); de 28-06-2006, processo n.º 1589/06-3.ª, de 20-12-2006, processo n.º 3043/06-3.ª; de 16-05-2007, processo n.º 1239/07-3.ª; de 05-07-2007, processo n.º 2054/07-5.ª (a decisão intercalar da Relação que apreciou, em recurso, a questão da legalidade das escutas telefónicas é irrecorrível para o STJ. Tal decisão não põe termo à causa - cf. art. 400º, 1. f)); de 05-07-2007, processo n.º 1887/07-5.ª; de 12-07-2007, processo n.º 1771/07-5.ª.

    Sobre o sentido e alcance da nova redacção dada à alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º pela reforma de 2007, pronunciaram-se os acórdãos de 14-11-2007, processo n.º 3249/07-3.ª; de 05-12-2007, processo n.º 3169/07-3.ª; de 09-01-2008, processo n.º 2793/07-3.ª (No presente caso, trata-se de uma decisão que não põe termo à causa, isto é, que não conhece do objecto do recurso. A decisão de que se pretende recorrer é um acórdão proferido em recurso pela Relação, que não pôs termo à causa. Na verdade, o segmento da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, que declarou válido e legal a valoração do depoimento da vítima não pôs termo à causa, ou seja, não conheceu do objecto do processo. Sendo aquela decisão irrecorrível, deve o recurso na parte em que a impugna ser rejeitado, nos termos dos artigos 420º, nº 1 e 414º, nº 2 do CPP); de 23-01-2008, processo n.º 4570/07-3.ª; de 31-01-2008, processo n.º 4843/07-5.ª; de 05-03-2008, processo n.º 220/08-3.ª, afirmando-se neste que a actual redacção se aproxima do artigo 432.º, alínea c), do CPP, onde se faz menção à recorribilidade para o STJ de acórdãos finais do colectivo ou do tribunal do júri (no nosso caso, em causa está um despacho de juiz singular); de 26-03-2008, processo n.º 820/08 e ainda os de 18-12-2008, processo n.º 3065/08, de 25-11-2009, processo n.º 529/09.5YFLSB, e de 02-06-2010, processo n.º 1987/09.3TAFAR-A.E1.S1, sendo os últimos quatro todos da 3.ª Secção e do mesmo relator, onde se pondera:
    «Decisão que não conheça, a final, do objecto do processo, é toda a decisão interlocutória, bem como a não interlocutória que não conheça do mérito da causa.
    O texto legal ao aludir a decisão que não conheça, a final, abrange todas as decisões proferidas antes da decisão final;
    Ao mencionar o objecto do processo refere-se, obviamente, aos factos imputados ao arguido, pelos quais o mesmo responde, ou seja, ao objecto da acusação (ou da pronúncia), visto que é esta que define e fixa, perante o tribunal, o objecto do processo, condicionando o se da investigação judicial, o seu como e o seu quantum, pelo que contempla todas as decisões que não conheçam do mérito da causa.
   O traço distintivo entre a actual e a anterior redacção reside na circunstância de anteriormente serem susceptíveis de recurso todas as decisões que pusessem termo à causa, sendo que actualmente só são susceptíveis de recurso as decisões que põem termo à causa quando se pronunciem e conheçam do seu mérito.
    Assim, são agora irrecorríveis as decisões proferidas pelas Relações, em recurso, que ponham termo à causa por razões formais, quando na versão pré – vigente o não eram, ou seja, o legislador alargou a previsão da al. c) do n.º 1 do art. 400.º do CPP, ampliando as situações de irrecorribilidade relativamente a acórdãos proferidos, em recurso, pelo Tribunal da Relação»

    Podem ver-se ainda sobre o tema os acórdãos de 23-04-2008, processo n.º 899/08-3.ª; de 24-04-2008, processo n.º 3057/06-5.ª (É irrecorrível o acórdão da Relação que confirmou um despacho proferido em 1.ª instância, em que foi ordenada a junção aos autos da acta de uma sessão de julgamento. Na verdade, são irrecorríveis as decisões proferidas em recurso pela Relação «que não ponham termo à causa» ou, como se estipulou depois da entrada em vigor da Lei 48/2007, de 29-08, «que não conheçam, a final, do objecto do processo» (art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP); de 21-05-2008, processo n.º 106/08-3.ª; de 04-06-2008, processo n.º 1306/08-3.ª; de 12-06-2008, processo n.º 1782/08-3.ª, onde se considera que a Lei n.º 48/2007 introduziu um fundamento novo de irrecorribilidade das decisões da Relação que não ponham termo à causa, ampliando o âmbito da irrecorribilidade das decisões da Relação que não conheçam, a final, do objecto do processo, ou seja, do mérito da causa; de 19-06-2008, processo n.º 2043/08-5.ª; de 25-06-2008, processo n.º 449/08-3.ª e da mesma data em incidente de recusa de juiz n.º 4842/07-3.ª; e ainda de 10-07-2008, processo n.º 2142/08-3.ª e de 10-09-2008, processo n.º 1959/08-3.ª, do mesmo relator, que confirmando entendimento anterior, afirma: “a inadmissibilidade de recurso relativamente a acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objecto do processo, abrange todas estas decisões (processualmente denominadas de interlocutórias), independentemente da forma como o respectivo recurso é processado e julgado pela Relação, isto é, quer o recurso seja autónomo, quer seja inserido em impugnação da decisão final. A decisão da Relação que apreciou, em recurso, a invalidade da prova por reconhecimento e decidiu no sentido da validade da mesma não conheceu, a final, do objecto do processo, pelo que é irrecorrível”; de 25-09-2008, processo n.º 809/08-5.ª; de 12-11-2008, processo n.º 709/00.9JASTB.S1-3.ª; de 10-12-2008, processo n.º 3638/08-3.ª; de 18-02-2009, processo n.º 109/09, desta Secção “a decisão que conhece de contingências sobre a relação processual ou sobre uma questão avulsa, sobre incidências meramente processuais, próprias do desenvolvimento da relação processual, escapa ao conceito de decisão final e poderá, quando muito, constituir decisão que ponha termo ao processo”; de 25-02-2009, processo n.º 101/09-3.ª (O recurso interlocutório é um recurso autónomo relativamente ao recurso interposto do acórdão final condenatório. A circunstância de ter subido com o recurso interposto do acórdão final e, por isso, de ter sido conhecido juntamente com aquele - oportunidade ditada apenas por razões de economia processual -, não é susceptível de lhe retirar aquela autonomia formal e, consequentemente, de alterar as regras de (ir)recorribilidade que lhe são próprias. Assim, a pronúncia da Relação sobre os reconhecimentos – questão que era objecto de recurso interlocutório – é uma decisão que não conheceu, nessa parte, do objecto do processo, que por isso não faz parte da decisão condenatória e, como tal, não é susceptível de recurso para o STJ – cfr. a propósito de arguição de eventual nulidade, questão aqui versada, o acórdão de 07-07-2010, proferido no processo n.º 156/00.2IDBRG.S1-5.ª); de 10-12-2009, processo n.º 326/04.4IDBRG.S1-5.ª, (Com a actual redacção do art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP, introduzida pela Lei n.º 48/2007, o legislador pretendeu negar um duplo grau de recurso a decisões que se não tenham pronunciado quanto ao mérito; ou seja, mesmo que ponham fim à causa, se não conhecerem do objecto do processo, as decisões não são recorríveis; deste modo, é sempre irrecorrível a decisão da Relação que confirmou o despacho interlocutório proferido em 1.ª instância respeitante à questão da incompetência material do tribunal penal para se debruçar sobre a indemnização cível em que o recorrente foi condenado); de 02-06-2010, processo n.º 1987, CJSTJ 2010, tomo 2, p. 213 (versando segredo profissional e bancário – sobre o tema, em sentido contrário, com voto de vencido do relator do anterior, os acórdãos de 09-02-2011, processo n.º 12153/09.8TDPRT-A.P1.S1, in CJSTJ 2011, tomo 1, p. 196 e de 24-03-2011, processo n.º 106/04.7TALMG-B.P1.S1, com os mesmos intervenientes); de 07-07-2010, processo n.º 156/00.2IDBRG.S1-5.ª (Considerou-se que a questão atinente à falta de pronúncia do tribunal de 1.ª instância sobre  a validade das escutas e intercepções, antes do acórdão final, não era recorrível para o STJ; o recurso foi rejeitado por se tratar de questão interlocutória, para a qual há apenas um grau de recurso, e é o bastante. Pondera ainda que “Não sendo tais questões susceptíveis de recurso para o STJ , não seria a mera invocação de nulidade por omissão de pronúncia que iria tomar a decisão recorrível. A nulidade, a existir, teria de ser arguida pelo interessado no próprio tribunal que proferiu a decisão – a propósito de arguição de nulidade, cfr. o acórdão de 25-02-2009, proferido no processo n.º 101/09-3.ª); de 29-09-2010, processo n.º 520/00.7TBABT-A.S1-3.ª (acórdão proferido em recurso de revisão visando despacho que revoga a suspensão da execução da pena de prisão, onde se refere que segundo a jurisprudência pacífica e constante do STJ, a decisão que põe fim ao processo é a decisão final, ou seja, a sentença, a qual em regra conhece da relação substantiva ou mérito da causa, bem como a que, proferida antes da sentença, tem como consequência o arquivamento ou o encerramento do processo); de 6-10-2010, processo n.º 1131/01.5TASTS.S1-3.ª (estando em causa despacho proferido por juiz singular); de 13-10-2010, processo n.º 200/06.0JAAVR.C1.S1-3.ª (tratando-se de uma questão interlocutória, a circunstância de não ter sido objecto de recurso autónomo não lhe confere recorribilidade fundamentada na circunstância de as restantes poderem ser objecto de recurso para o STJ. A reforma de 2007 consagra no art. 432.º, n.º 1, al. d), a regra de que as decisões interlocutórias que devem ser apreciadas pelo STJ são unicamente as que devam subir com as als. b) e c)); de 27-10-2010, processo n.º 2519/06.0TAVCT.G1.S1-3.ª; de 26-01-2011, processo n.º 1349/06.4TBLSD.P1.S1-3.ª; de 09-06-2011, processo n.º 4095/07.8TPPRT.P1.S1-5.ª (distinguindo entre decisões proferidas “no recurso” e proferidas “em recurso”, admite o recurso quanto a questões interlocutórias, intermédias, por na espécie, a Relação ter conhecido delas “ex novo”); de 26-10-2011, processo n.º 29/04.0JDLSB.L1.S1-3.ª; de 17-11-2011, processo n.º 2235/09.1PBGMR.G1.S1-5.ª (de acordo com o art. 400.º, n.º 1, al. c) do CPP, o STJ não conhece da arguição de nulidade, por omissão de diligência posterior ao inquérito reputada essencial para a descoberta da verdade, quando o acórdão recorrido já se pronunciou sobre a questão, em termos que não merecem qualquer reparo, recusando a nulidade agora novamente arguida); de 21-12-2011, processo n.º 978/99.5TBPTM-A.S1-3.ª, proferido em processo de revisão, onde se pode ler “segundo a jurisprudência pacífica e constante do STJ, a decisão que põe fim ao processo é a decisão final, ou seja, a sentença, a qual em regra conhece da relação substantiva ou mérito da causa, bem como a que, proferida antes da sentença, tem como consequência o arquivamento ou o encerramento do processo”; de 31-01-2012, processo n.º 171/05.0TAPDL.L2.S1-3.ª; de de 22-02-2012, processo n.º 371/07.8TAFAF.G1.S1-3.ª; de 21-03-2012, processo n.º 804/03.2TAALM.L1.S1-5.ª e de 18-04-2012, processo n.º 660/10.4TDPRT.P1.S1-3.ª “Ponderando o estabelecido pelos artigos 432.º, n.º 1, al. d) e 400.º, n.º 1, al. c), do CPP, o STJ só conhece dos recursos das decisões interlocutórias do tribunal de 1.ª instância que devam subir com o da decisão final, quando esses recursos (do tribunal de júri ou tribunal colectivo) sejam directos para o STJ e não quando tenham sido objecto de recurso decidido pelas relações

    É irrecorrível, conforme estabelece a al. c) do n.º 1 do art. 400.º, por referência à al. b) do artigo 432.º, ambos do CPP, a decisão da Relação tomada em recurso que, tendo absoluta autonomia relativamente às demais questões suscitadas, não pôs termo à causa por não se ter pronunciado sobre a questão substantiva que é o objecto do processo, sendo que para efeito da recorribilidade, mostra-se indiferente a forma como o recurso foi processado e julgado pela Relação, isto é, se o recurso foi processado autonomamente ou se a decisão se encontra inserida em impugnação da decisão final. 
    O recurso interlocutório (interposto do despacho que considerou que a consulta dos autos fora da secretaria está sujeita a tributação) versava exclusivamente uma decisão de natureza interlocutória e não uma decisão que pusesse termo à causa, pelo que, por inadmissível legalmente, não pode, nem deve, ser conhecido pelo STJ”.
    Segundo o acórdão de 26-04-2012, proferido no processo n.º 438/07.2PBVCT.G1.S1-5.ª “Não é admissível recurso directo para o STJ de decisões interlocutórias proferidas pela 1.ª instância, quando da decisão final da 1.ª instância não é admissível recurso directo para este tribunal (cfr. als. c) e d) do n.º 1 do artigo 432.º do CPP, a contrario). Como a relação apreciou e decidiu o recurso intercalar, o mesmo está definitivamente decidido, sendo infrutífera a tentativa do recorrente, no sentido de renovar, quando nem sequer é admissível recurso para o STJ da decisão da relação que dele conheceu (cfr al. c) do art. 400.ºdo CPP). A relação ao apreciar o recurso constituído por questões interlocutórias não conheceu, a final, do objecto do processo, não julgou o mérito da causa”; cfr. ainda o acórdão de 09-05-2012, processo n.º 418/08.0PAMAI.S1-3.ª; de 19-12-2012, processo n.º 1140/09.6JACBR.C1.S1-3.ª; de 30-10-2013, processo n.º 40/11.4JAAVR.C2.S1-3.ª, onde se refere: “O STJ só conhece dos recursos das decisões interlocutórias do tribunal de 1.ª instância que devam subir com o da decisão final, quando esses recursos sejam directos para o STJ e não quando tenham sido objecto de recurso decidido pelas relações. A circunstância do recurso interlocutório ter subido com o interposto da decisão final não altera em nada a previsão legal, como não altera a circunstância de ter sido apreciado e julgado na mesma peça processual em que foi o principal”; de 20-11-2013, processo n.º 14217/02.0TDLSB-AM.L1.S1-3.ª e de 4-06-2014, processo n.º 298/12.1JDLSB.L1.S1).

    Ademais, da conjugação dos artigos 400.º, 427.º e 432.º, todos do CPP, retira-se que decisões de natureza processual ou que não ponham termo ao processo não são recorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça: pressuposto do recurso para este Tribunal (salvo os casos específicos que a lei especialmente preveja – artigo 433.º – como quando o Supremo Tribunal funciona como primeira instância de recurso, como ocorreu no processo n.º 14/07.0LSB.L1.S1-3.ª, em que no acórdão de 14-06-2014 se apreciou impugnação de matéria de facto e recurso interlocutório) é a natureza da decisão de que se recorredecisões finais - e não decisões que incidem sobre questões processuais avulsas (exceptua-se, aqui, o caso de recurso de decisão interlocutória que suba com recurso para cuja apreciação é competente o Supremo Tribunal – artigo 432.º, alínea e) - actual alínea d) - do Código de Processo Penal).  
    “O artigo 400.º, n.º 1, alínea c) abrange todas as decisões interlocutórias, subtraindo-as à competência do Supremo Tribunal (com a excepção supra indicada, da alínea d) do artigo 432.º): a competência em razão da hierarquia para proferir decisões que não ponham termo à causa cabe ao Tribunal da Relação, que decide, em matérias interlocutórias, em última instância” – neste sentido os acórdãos de 20-12-2006, processo n.º 4546/06-3.ª e de 09-05-2007, processo n.º 1242/07-3.ª. (Sobre a última asserção, cfr. o acórdão deste STJ de 22-07-2004, em trecho citado no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 686/04, infra referido, publicado no Diário da República, II Série, de 18-01-2005 e em Acórdãos do Tribunal Constitucional (ATC), volume 60, pág. 665).

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    Como refere Paulo Pinto de Albuquerque em Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 2007, nota 4, pág. 1002 (pág. 1042, na 4.ª edição actualizada reportada a Abril de 2011), o propósito da Lei n.º 48/2007 foi o de ampliar este fundamento de irrecorribilidade, alargando-a a todos os acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações que ponham termo à causa, mas não conheçam do objecto do processo, do mérito do pleito, o que a redacção anterior de 1998 não incluía.

      

    A jurisprudência constitucional tem apontado a exigência do duplo grau de jurisdição apenas no que tange a decisões penais condenatórias e a decisões de privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais do arguido, e não tanto “com o cumprimento das regras procedimentais ou processuais a que o legislador subordine as decisões judiciais sobre tais matérias” – cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 265/94, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27.º Volume, págs. 751 e ss.; n.º 30/01, de 30-01-2001, processo n.º 469/00 (1.ª Secção), publicado no Diário da República, II Série, de 23-03-2001 e n.º 390/04, de 02-06-2004, processo n.º 651/03 (2.ª), in Diário da República, II, de 07-07-2004 e Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 59, pág. 543.

   Por outro lado, a “garantia do recurso” introduzida na 4.ª revisão constitucional, pela Lei Constitucional n.º 1/1997, publicada in Diário da República, I-A, de 20-09-1997, conferindo nova redacção ao artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, não demanda a previsão de recurso até ao Supremo Tribunal para decisões quanto a questões processuais intermédias que não definem o direito do caso, mas apenas determinam um certo modo de ordenação e sequência processuais.

    Da Constituição da República não se retira a plena recorribilidade de todos os actos praticados pelo juiz ao longo do processo penal ainda que sejam susceptíveis de afectar o arguido, tendo a questão sido abordada em alguns arestos do Tribunal Constitucional.

    Com efeito, o Tribunal Constitucional tem reiterado que o exercício das garantias de defesa, onde se inclui o direito de recurso, por parte do arguido condenado, não comporta, nem um acesso irrestrito ao Supremo Tribunal de Justiça, nem que sejam assegurados todos os graus de recurso abstractamente configuráveis nem, por fim, a sistemática garantia de um triplo grau de jurisdição corporizado, sempre e necessariamente, num reexame da decisão condenatória, sucessivamente, pelas Relações e Supremo Tribunal de Justiça

    O acórdão n.º 221/2000, de 05-04-2000, no processo n.º 753/99, publicado in Diário da República, II Série, de 31-10-2000, proferido no âmbito do artigo 566.º, § 1.º, do Código de Processo Penal de 1929, enunciou as seguintes asserções:

1 - O artigo 32.º, n.º 1 da CRP ao dispor que o processo penal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso, não atribui um direito ilimitado de impugnação de toda e qualquer decisão judicial proferida no processo penal.

O direito ao recurso no processo penal garante-o a Constituição quanto às decisões condenatórias e relativamente àquelas que privem ou restrinjam a liberdade ou quaisquer direitos fundamentais do arguido.

2 - Sempre o Tribunal Constitucional julgou compatíveis com a Constituição várias normas do processo penal que recusam ao arguido a possibilidade de recorrer de determinados despachos interlocutórios.

3 - Não é possível pretender inferir do direito ao recurso, a regra da irrestrita recorribilidade de todas as decisões interlocutórias do juiz ao longo do processo penal, incluindo meras decisões preliminares ou provisórias.

Como se extrai do acórdão n.º 375/2000, de 13-07-2000, proferido no processo n.º 633/99, in Diário da República, II Série, de 16-11-2000, «a jurisprudência do Tribunal apenas reconhece a aplicabilidade do princípio de recorribilidade às decisões condenatórias e àquelas que impliquem privação ou restrições da liberdade ou de outros direitos fundamentais do arguido. Por isso, o Tribunal não julgou inconstitucionais normas processuais penais que denegam a possibilidade de o arguido impugnar determinados despachos interlocutórios do juiz, que se limitam a fazer prosseguir o processo (Ac. 353/91, Acs. Tribunal Constitucional, 19.º volume)».

No acórdão n.º 597/2000, de 20-12-2000, no processo n.º 643/00, Diário da República, II Série, de 25-01-2001, foi julgada inconstitucional a interpretação do artigo 400.º, n.º 1, alínea c), segundo a qual não são susceptíveis de recurso para o STJ os acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações que versem sobre questões de direito processual penal.

No caso apreciado no acórdão ora citado estava em causa rejeição do recurso, não chegando a ser censurada pelo Tribunal da Relação a sentença condenatória em pena de prisão efectiva, tendo nesse caso o acórdão recorrido ditado o termo do processo, fazendo transitar irremediavelmente a condenação da 1.ª instância, estando-se face a decisão final.

    Fazendo aplicação da doutrina deste acórdão e admitindo o recurso, o acórdão de 14-01-2009, por nós relatado, no processo n.º 2494/08, onde se decidiu: “No nosso caso a decisão recorrida é recorrível, pois que rejeitando o recurso interposto pelo arguido, com a invocação do caso julgado, considerando o recurso inadmissível, não conhecendo, por prejudicadas face à solução, as questões colocadas pelo arguido, põe termo ao processo, “reconfirmando”a pena de prisão aplicada.

Tal decisão implica, sem dúvida, a privação de liberdade do arguido.

Conclui-se, pois, pela admissibilidade do presente recurso.”.

    Como se dizia no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 44/2005, de 26-01-2005, processo n.º 950/04-1.ª Secção, publicado no Diário da República, II Série, de 13-02-2006, pronunciando-se sobre a alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, e seguindo o afirmado no acórdão n.º 49/2003, de 29 de Janeiro, proferido no processo n.º 81/2002, da 3.ª Secção, publicado no Diário da República, II Série, de 16-04-2003 e em ATC, volume 55 “…estando cumprido o duplo grau de jurisdição, há fundamentos razoáveis para limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição, mediante a atribuição de um direito de recorrer de decisões condenatórias. Tais fundamentos são a intenção de limitar em termos razoáveis o acesso ao STJ, evitando a sua eventual paralisação (…). Não se pode, assim, considerar infringido o n.º 1 do artigo 32.º da Constituição (…) já que a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto tutela de forma suficiente as garantias de defesa constitucionalmente consagradas”, no mesmo sentido se pronunciando, entre vários outros, o acórdão n.º 390/2004, de 02-06-2004, proferido no processo n.º 651/03-2.ª Secção.

    O acórdão n.º 589/2005, de 2-11-2005, proferido no processo n.º 240/05, da 1.ª Secção (ATC, volume 63.º, pág. 889, sumário), não julgou inconstitucionais as normas conjugadas da alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º e da alínea b) do artigo 432.º do CPP, interpretadas no sentido de considerarem irrecorrível, por não pôr termo à causa, a decisão do incidente de prestação de depoimento com quebra de segredo profissional, prevista no n.º 3 do artigo 135.º do mesmo Código.

O acórdão n.º 219/2009, de 5 de Maio, da 3.ª Secção, confirmou decisão sumária que não julgou inconstitucional a norma constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na interpretação que considera que nela estão incluídos os acórdãos do Tribunal da Relação que decidam não conhecer dos recursos interlocutórios (ATC, volume 75, pág. 738, sumário).

As soluções contrárias surgem por razões de conformidade constitucional com a garantia de defesa que o recurso constitui nos casos em que está directamente em causa a afectação imediata de direitos fundamentais, como as decisões relativas a aplicação de medidas de coacção privativas de liberdade, ou a possibilidade de sindicância da própria condenação, como aconteceu no caso do citado acórdão n.º 597/00.

No acórdão n.º 686/2004, de 30-11, proferido no processo n.º 843/04, da 2.ª Secção, publicado no Diário da República, II Série, de 18-01-2005 e em Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 60, pág. 663, foi julgada inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, interpretada no sentido de ser irrecorrível uma decisão do Tribunal da Relação que se pronuncie pela primeira vez sobre especial complexidade do processo, declarando-a. 

E ainda o acórdão n.º 107/2012, de 06-03-2012, proferido no processo n.º 859/2011, da 3.ª Secção, julgou inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, a norma em causa, interpretada no sentido de não haver recurso para o STJ de acórdão da Relação que, sem prévio contraditório, considera intempestivo o recurso, admitido na 1.ª instância, de decisão que condena o arguido em pena de prisão igual ou superior a oito anos de prisão.

Abordando a mesma questão, colocada no mesmo processo de arguido preso, o acórdão n.º 191/2012, proferido no processo n.º 872/11, da 1.ª Secção, decidiu estender o efeito de caso julgado da decisão proferida ao caso que julgou.

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    No presente caso, a decisão de que se pretende recorrer é um acórdão proferido em recurso pela Relação, que pondo termo à causa, o faz por razões substantivas, mas que no aspecto focado, nele inserido, por força da anterior retenção, não poria termo ao processo, por estar em causa questão meramente processual, pois através dela não conheceria do objecto do processo, nada diria sobre o mérito da causa.

    Ao confirmar um despacho que indeferiu arguição de nulidade, o acórdão ora recorrido não consubstancia uma decisão de fundo, uma apreciação de mérito, não tendo nesse segmento a natureza de decisão final, antes corresponde a uma decisão que não conhece do objecto do processo, nada tendo decidido, por essa via, em definitivo em termos substantivos, antes revestindo o carácter de decisão no plano processual.

   Trata-se de uma decisão interlocutória, intermédia, incidental, versando sobre questão processual avulsa que não põe termo à causa, e como tal, abrangida pela irrecorribilidade constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º, do Código de Processo Penal.

    Sendo o acórdão recorrido irrecorrível nesta parte, deve o presente recurso ser rejeitado, nos termos dos artigos 420.º, n.º 1, alínea b) e 414.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.


    Questão III – Vícios decisórios e erro de julgamento

    Estes fundamentos do recurso estão condensados nas conclusões 15.ª a 33.ª e 36.ª a 38.ª do recurso do arguido, estando presente no recurso das assistentes a invocação do erro notório na apreciação da prova.

    Como questões prévias a esta questão, abordar-se-ão 

    A Impossibilidade de invocação dos vícios decisórios – Artigo 410.º, n.º 2, do CPP – como fundamento do recurso

    B Errada valoração de prova

    Como se expôs supra nas Questões propostas a apreciação, a Questão III incide sobre Vícios decisórios e erro de julgamento, fundamentos que o recorrente convoca nas conclusões 15.ª a 33.ª e 36.ª a 38.ª.

    O recorrente alude concretamente aos vícios decisórios previstos no artigo 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, respectivamente, nas conclusões 15.ª, 33.ª e 38.ª.

    Convoca de forma expressa o artigo 127.º do CPP nas conclusões 30.ª e 36.ª   

    Amiúde discute a prova e a convicção das instâncias, afirmando que o que da prova produzida em audiência de julgamento resulta é …, como nas conclusões 26.ª, 29.ª e 37.ª (“resulta de forma evidente…”).

    Refere a ausência total de prova na conclusão 27.ª, ou a existência nos autos de “prova abundante e objectiva em sentido inverso”, como na conclusão 32.ª

    E na conclusão 44.ª refere “Não se tendo produzido qualquer prova sobre o elemento subjectivo”.

    Fossem estes apenas os fundamentos dos recursos e mais do que votados ao fracasso, os recursos não seriam apreciados, pois seriam rejeitados.

    O arguido e as assistentes também, parece olvidarem que o ciclo da matéria de facto se encerra na Relação e que o STJ apenas reexamina o decidido a nível de matéria de direito.

    A menos que o acórdão recorrido padeça de vícios ao nível da confecção no plano fáctico que justifique e imponha intervenção oficiosa.

    Como se referiu supra, o recorrente invocou, expressamente, a verificação dos vícios previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP e as recorrentes o vício de erro notório na apreciação da prova.

    Estando-se perante um acórdão da Relação, que no concreto apreciou recurso interposto pelo arguido, e que subsequentemente procedeu a substanciais alterações no quadro fáctico, há que dizer desde já, que não é possível deduzir esta forma de impugnação de matéria de facto, mitigada embora, em recurso dirigido ao Supremo, o que ocorre, aliás, seja ele interposto de acórdão final de tribunal colectivo, seja de acórdão da Relação.

     

    Em causa está averiguar da legitimidade de arguição deste tipo de vícios no presente recurso, consabido sendo que com a decisão da Relação se encerra o ciclo da matéria de facto.

    Segundo os acórdãos deste Supremo Tribunal de 22 de Outubro de 1997, proferido no processo n.º 612/97-3.ª (Sumários STJ, n.º 14, pág. 155) e de 5 de Novembro de 1997, proferido no processo n.º 549/97-3.ª (Sumários, n.ºs 15 e 16, págs. 150/1 e CJSTJ 1997, tomo 3, pág. 222), “Os vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do CPP, são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto - implicam erro de facto - que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. Enquanto subsistirem, a causa não pode ser decidida, determinando o reenvio do processo para novo julgamento (art. 426 do CPP)”.

    Vícios da decisão, não do julgamento, como se exprime Maria João Antunes na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 4, Fasc. 1 - Janeiro-Março 1994, pág. 121, em anotação a acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6 de Maio de 1992, publicado na Colectânea de Jurisprudência, 1992, tomo 4, pág. 5.

    Adianta a Autora, a págs. 121/3: “Nesta disposição legal, estamos em face de vícios da decisão recorrida, umbilicalmente ligados aos requisitos da sentença previstos no artigo 374.º, n.º 2, do CPP, concretamente à exigência da «fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal»”. (Texto presente nos acórdãos de 13-10-2010, processo n.º 200/06.0JAAVR.C1.S1-3.ª, e do mesmo relator, o de 09-02-2012, processo n.º 233/08.1PBGDM.P3.S1).

    “O artigo 374.º, n.º 2, impõe a fundamentação das decisões de facto e de direito, sob pena de nulidade da sentença (…), enquanto o artigo 410.º, n.º 2, concede ao tribunal «ad quem» os poderes de cognição em matéria de facto permitidos pelo texto da decisão recorrida, com o objectivo de assim ser controlado o conteúdo da própria fundamentação. O artigo 410.º, n.º 2, não serve, pois, para verificar a existência ou não da fundamentação da sentença, nos termos previstos no artigo 374.º, n.º 2 – isso é feito através do mecanismo da arguição da nulidade –, mas para controlar se a matéria de facto provada é suficiente para a decisão de direito tomada, se não há contradição insanável da fundamentação e se não há erro notório na apreciação da prova, podendo assim dizer-se que estes são requisitos da fundamentação e consequentemente da própria decisão”.

    Conclui a Autora que, por serem vícios que contendem directamente com «a boa decisão da causa», tendo o tribunal de recurso o poder-dever de fundar a «boa decisão de direito» numa «boa decisão de facto», o seu conhecimento é oficioso. (Realces nossos).

    Segundo o acórdão de 20 de Junho de 2002, proferido no processo n.º 4250/01-5.ª, os vícios do artigo 410.º são vícios da sentença final, e só, da matéria de facto.

    Como decidiu o acórdão de 8 de Novembro de 2006, proferido no processo n.º 3102/06-3.ª, os vícios elencados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, pertinem à matéria de facto; são anomalias decisórias ao nível da confecção da sentença, circunscritos à matéria de facto, apreensíveis pelo seu simples texto, sem recurso a quaisquer outros elementos a ela estranhos, impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito.

    No dizer do acórdão de 3 de Março de 2010, proferido no processo n.º 242/08.0GHSTC.S1-3.ª, são vícios graves de confecção técnica da sentença, impeditivos de bem se decidir no plano objectivo e subjectivo, viciando as premissas decisórias, inclusive a conclusão de direito, comprometendo a eficácia das decisões ante os seus destinatários directos e até os mais remotos, sendo por isso de conhecimento oficioso.     

    Como referia o acórdão do STJ de 29 de Novembro de 1989, proferido no processo n.º 40.255, Actualidade Jurídica, n.º 4 e BMJ n.º 391, pág. 475, as novas vias abertas pelo Código de Processo Penal não são ilimitadas; designadamente não permitem a apreciação directa pelo Supremo Tribunal de Justiça de prova não vinculada, sendo tais vias tão somente as taxativamente indicadas nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º e eventualmente em outras disposições, como, por exemplo, requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada. 

    Como se referiu na fundamentação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2012, de 8 de Março de 2012, publicado no Diário da República, I Série, n.º 77, de 18 de Abril de 2012, pág. 2081 “Em tal tipo de intervenção o objecto da reapreciação é a decisão, o texto da decisão, e não o julgamento”.

    Perante a presente arguição de vícios decisórios, quer por parte do arguido para mais correspondendo a sua invocação a uma reedição da arguição feita no recurso anterior para a Relação, quer das assistentes, estas em primeira mão e cingindo-se ao erro notório na apreciação da prova, é de colocar a questão de saber se o Supremo Tribunal de Justiça pode deles conhecer em recurso interposto de decisão do Tribunal da Relação e no caso de repetição se o conhecimento da Relação opera a preclusão dessa possibilidade.

    A especificidade do caso está em o arguido recorrente ter impugnado a matéria de facto, invocando a ocorrência destes vícios, cuja detecção apenas por via da análise do texto pode ser alcançada, para além de esgrimir com alegada errada valoração das provas e violação do princípio in dubio pro reo, manifestando a sua divergência com o acervo factual dado por assente.

    Perante a presente arguição de vícios decisórios é de colocar a questão de saber se o Supremo Tribunal de Justiça pode deles conhecer em recurso interposto de decisão do Tribunal da Relação.

     

    Como é sabido, a partir de 1 de Janeiro de 1999, na sequência da reforma do CPP, operada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, deixou de ser possível interpor recurso para o STJ com fundamento na verificação dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, isto é, a incursão do STJ no plano fáctico da forma restrita consentida por esse preceito não é já possível face a questão colocada pelo interessado, ou seja, como fundamento do recurso, a pedido do recorrente, mas tão-só por iniciativa própria deste Supremo Tribunal, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em erro de apreciação, ou assente em premissas contraditórias detectadas pelo STJ, ou seja, se concluir que por força da existência de qualquer dos vícios não pode chegar a uma correcta solução de direito e devendo sempre o conhecimento oficioso ser encarado como excepcional, surgindo como último remédio contra tais vícios, conforme é jurisprudência corrente.

    Nada impede o STJ, em tais casos, de conhecer oficiosamente dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. E compreende-se que assim seja. Para proceder a uma adequada revisão da matéria de direito, é necessário que a matéria de facto se encontre perfeitamente estabilizada.

    A intervenção oficiosa justificar-se-á, mesmo que não haja uma impugnação da matéria de facto, isto é, mesmo que se esteja perante recurso restrito a matéria de direito.

    Posto que estes vícios não possam servir de fundamento ao recurso dirigido ao Supremo Tribunal, quer directo, quer em recurso de acórdãos das Relações, o seu conhecimento oficioso é sempre possível, segundo jurisprudência sedimentada e uniforme, no sentido de que esse conhecimento pode partir da iniciativa do Supremo Tribunal de Justiça, de que são exemplo os acórdãos de 22 de Setembro de 1999, proferido no processo n.º 585/99, publicado no BMJ n.º 489, pág. 242 (Só porque a parte recorrente achou que era correcta a factualidade não significa que o Supremo fique manietado e impossibilitado de analisar os factos em conformidade com a 2.ª parte da alínea d) do artigo 432.º e o disposto no artigo 434.º do mesmo diploma – Seria absurdo por exemplo que o Supremo Tribunal deparasse com um erro notório na apreciação da prova ou com uma falta de matéria de facto necessária para a aplicação do direito e tivesse de ficar de braços cruzados e construir uma solução de direito assente na matéria de facto que a viciaria de raiz); do mesmo relator, o acórdão de 13 de Outubro de 1999, proferido no processo n.º 739/99, publicado no BMJ n.º 490, pág. 170 (o STJ pode e deve espontaneamente, de modo oficioso, pronunciar-se sobre os vícios do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, para não pactuar com uma decisão de facto errónea); de 29 de Setembro de 1999, processo n.º 747/99, BMJ n.º 490, pág. 253; de 17 de Janeiro de 2001, processo n.º 2821/00 - 3.ª; de 25 de Janeiro de 2001, processo n.º 3306/00 - 5.ª e de 22 de Março de 2001, processo n.º 363/01 - 5.ª, publicados em CJSTJ 2001, tomo 1, págs. 210, 222 e 257, respectivamente; acórdão de 4 de Outubro de 2001, processo n.º 1801/01 - 5.ª, em CJSTJ 2001, tomo 3, pág. 182 (aqui se esclarecendo que o Tribunal de recurso tem o poder-dever de fundar a “boa decisão de direito” numa “boa decisão de facto”, ou seja, numa decisão que não padeça de insuficiências, contradições insanáveis da fundamentação ou erros notórios na apreciação da prova); de 30 de Janeiro de 2002, processo n.º 3739/01-3.ª; de 16 de Maio de 2002, processo n.º 1072/02-5.ª, CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 202; de 20 de Março de 2003, processo n.º 397/03-5.ª, CJSTJ 2003, tomo 1, pág. 232 (afirmando não haver qualquer contradição nesta posição, e seguindo interpretação que colheu a concordância de Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2.ª edição, revista e actualizada, pág. 371); de 24 de Março de 2003, processo n.º 1108/03 - 5.ª, em CJSTJ, 2003, tomo 1, pág. 236; de 27 de Maio de 2004, processo n.º 766/04 - 5.ª, em CJSTJ, 2004, tomo 2, pág. 209 (como regra, está vedado ao STJ o conhecimento da matéria de facto, só podendo (devendo) conhecer os vícios a que se alude no art. 410.º , n.º 2, do CPP, se concluir que, por força da existência de qualquer deles, não pode chegar a uma correcta solução de direito); de 30 de Março de 2005, no processo n.º 136/05; de 3 de Maio 2006, nos processos n.ºs 557/06 e 1047/06; de 18 de Maio de 2006, nos processos n.º s 800/06 e 1293/06, todos da 3.ª Secção; de 20 de Dezembro de 2006, processo n.º 3505/06 - 3.ª, em CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 248; de 4 de Janeiro de 2007, no processo n.º 2675/06-3.ª; de 8 de Fevereiro de 2007, no processo n.º 159/07 - 5.ª; de 15 de Fevereiro de 2007, nos processos n.ºs 15/07 e 513/07 (defendendo-se neste o conhecimento oficioso dos vícios como preâmbulo do conhecimento do direito), ambos da 5.ª Secção; de 21 de Fevereiro de 2007, no processo n.º 260/07 - 3.ª; de 8 de Março de 2007, processo n.º 447/07; de 15 de Março de 2007, processo n.º 663/07; de 29 de Março de 2007, processo n.º 339/07; de 2 de Maio de 2007, nos processos n.ºs 1017/07, 1029/07 e 1238/07, todos da 3.ª Secção; de 24 de Maio de 2007, processo n.º 1409/07-5.ª, em CJSTJ, 2007, tomo 2, pág. 200; de 12 de Setembro de 2007, processo n.º 2583/07; de 10 de Outubro de 2007, no processo n.º 3315/07; de 24 de Outubro de 2007, processo n.º 3238/07; de 13 de Dezembro de 2007, processo n.º 1404/07-5.ª (a não impugnação da matéria de facto pelo recorrente não impede o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, de conhecer oficiosamente dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. É o que resulta do disposto no art. 434.º do referido Código. E compreende-se que assim seja. Para proceder a uma adequada revisão da matéria de direito, é necessário que a matéria de facto se encontre perfeitamente estabilizada. Por isso, se o tribunal de revista, analisando a decisão, conclui pela existência de insuficiências na matéria de facto (…), outra solução não lhe resta senão a de determinar o reenvio do processo, para colmatar o vício); de 17 de Janeiro de 2008, processo n.º 2696/07-5.ª, CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 206; de 13 de Fevereiro de 2008, processo n.º 4729/07; de 12 de Março de 2008, processo n.º 112/08; de 26 de Março de 2008, processo n.º 4833/07; de 21 de Maio de 2008, processo n.º 678/08; de 12 de Junho de 2008, processo n.º 4375/07; de 2 de Julho de 2008, processo n.º 3861/07, todos da 3.ª Secção; de 27 de Janeiro de 2009, processo n.º 3978/08-3.ª, in CJSTJ 2009, tomo 1, pág. 208; de 27 de Maio de 2009, processo n.º 145/05-3.ª; de 17 de Setembro de 2009, processo n.º 421/07.8JACBR.S1-3.ª; de 23 de Setembro de 2009, processo n.º 426/08-5.ª (a possibilidade de conhecimento oficioso mais não constitui do que uma válvula de escape do sistema, através da qual se assegura que o Supremo não tenha que decidir o direito quando os factos são manifestamente insuficientes, contraditórios ou errados); de 14 de Outubro de 2009, processo n.º 101/08.7PAABT.E1.S1-3.ª; de 13 de Janeiro de 2010, processo n.º 274/08.9JASTB.L1.S1-3.ª; de 24 de Fevereiro de 2010, processo n.º 3/05.9GFMTS-3.ª; de 3 de Março de 2010, processo n.º 242/08.0GHSTC.S1-3.ª; de 7 de Abril de 2010, processos n.º 138/09.9JAFAR.S1 e 2792/05.1TDLSB.L1.S1, ambos da 3.ª Secção; de 27 de Maio de 2010, processo n.º 11/04.7CABT.C1.S1-3.ª; de 9 de Setembro de 2010, processo n.º 312/05.7GAEPS.S1-5.ª; de 6 de Outubro de 2010, processo n.º 936/08.0JAPRT.P1.S1-3.ª (Nos termos do art. 434.º do CPP, o STJ conhece dos vícios do art. 410.º, n.º 2, ainda referidos à matéria de facto, como questão necessariamente prioritária e precedente ao reexame da matéria de direito); de 17 de Novembro de 2010, processo n.º 680/06.3JDLSB.L1.S1-3.ª; de 2 de Fevereiro de 2011, processo n.º1375/07.6PMMTS.P1.S2-3.ª; de 27 de Abril de 2011, processo n.º 7266/08.6TBRG.G1.S1-3.ª; de 22 de Junho de 2011, processo n.º 3776/05.5TALRA.S1-3.ª; de 7 de Setembro de 2011, processo n.º 498/09.1JALRA.C1.S1-3.ª; de 20 de Outubro de 2011, processo n.º 36/06.8GAPSR.L4.S4-3.ª; de 14 de Novembro de 2011, processo n.º 123/01.9TASRT.C2.S1-3.ª; de 9 de Fevereiro de 2012, processo n.º 233/08.1PBGDM.P3.S1-3.ª; de 11 de Março de 2012, processo n.º 434/10.2GCBNV.L1.S1-5.ª; de 26 de Abril de 2012, processo n.º 293/10.5JALRA.C1.S1-5.ª (após a revisão do processo penal de 1998, a possibilidade do STJ conhecer oficiosamente dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, conforme se prevê no art. 434.º, constitui uma válvula de segurança para os casos em que a matéria de facto, tal como foi fixada pelas instâncias, não é base segura para a aplicação do direito); de 10 de Maio de 2012, processo n.º 1164/09.3JDLSB.L1.S1-5.ª e n.º 39/94.3JAAVR.L1.S1-5.ª; de 17 de Maio de 2012, processo n.º 733/07.0TAOAZ.P1.S1-5.ª; de 11 de Julho de 2012, processo n.º 123/10.8GAVLP.P1.S1-5.ª; de 12 de Julho de 2012, processo n.º 350/98.4TAOLH.E1.S1 “Em suma, o STJ conhece oficiosamente desses vícios quando, num recurso restrito exclusivamente à matéria de direito, constate que, por força da inquinação da decisão recorrida por algum deles, não possa conhecer de direito sob o prisma das várias soluções jurídicas que se apresentem como plausíveis”; de 11 de Outubro de 2012, processo n.º 241/10.2JAFAR.E1.S1-5.ª, CJSTJ 2012, tomo 3, pág. 194; de 15 de Novembro de 2012, processo n.º 5/04.2TASJP.P1.S1-3.ª; de 11 de Dezembro de 2012, processo n.º 951/07.1GBMTJ.E1.S1-3.ª; de 14 de Março de 2013, processo n.º 43/10.6GASTC.E1.S1-3.ª e n.º 1759/07.0TALRA.C1.S1-3.ª; de 11-07-2013, processo n.º 631/06.5TAEPS.G1.S1-5.ª; de 20-11-2013, processo n.º 2047/05.1TASTB.E1.S2-3.ª; de 14 de Junho de 2014, processo n.º 14/07.0TRLSB.S1.3.ª; de 10-09-2014, processo n.º 1027/11.2PCOER.L1.S1.

     Explicam Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, 2.ª edição, II volume, pág. 967, citado no referido acórdão de 25 de Janeiro de 2001, que: “O considerar-se que não podem invocar-se os vícios do nº 2 do art. 410º como fundamento do recurso directo para o STJ de decisão final do tribunal colectivo, não significa que este Supremo Tribunal não os possa conhecer oficiosamente, como ocorre no processo civil, e é jurisprudência fixada pelo STJ (…)”.

         

     Na fundamentação do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 10/2005, de 20-10-2005, in Diário da República, Série I-A, de 07-12-2005, refere-se que a indagação dos vícios faz-se “no uso de um poder-dever, vinculadamente, de fundar uma decisão de direito numa escorreita matéria de facto”.

     Por outro lado, continua em vigor o Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ n.º 7/95, de 19-10-1995, in Diário da República, Série I-A, n.º 298, de 28-12-1995, que, no âmbito do sistema de revista alargada, decidiu ser oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.

     Em suma, o STJ conhece oficiosamente desses vícios quando, num recurso restrito exclusivamente à matéria de direito, constate que, por força da inquinação da decisão recorrida por algum deles, não possa conhecer de direito sob o prisma das várias soluções jurídicas que se apresentem como plausíveis.

    

    No caso de recurso interposto de acórdão da Relação, como ora ocorre, porém, o recurso – agora puramente de revista – terá de visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em matéria de direito, com exclusão dos eventuais vícios, processuais ou de facto, do julgamento da 1.ª instância, admitindo-se que o Supremo se possa abster de conhecer do fundo da causa e ordenar o reenvio nos termos processualmente estabelecidos em certos casos.

     É que, mesmo nos recursos interpostos directamente deixou de ser possível recorrer-se com fundamento na existência de qualquer dos vícios constantes das três alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, o mesmo se passando com os recursos interpostos da Relação, sendo jurisprudência constante e pacífica deste Supremo Tribunal que no recurso para este Tribunal das decisões finais do tribunal colectivo já apreciadas pelo Tribunal da Relação, está vedada a arguição dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, posto que se trata de matéria de facto, ou seja, de questão que se não contém nos poderes de cognição do STJ, o que significa que está fora do âmbito legal dos recursos a reedição dos vícios apontados à decisão de facto da 1.ª instância, em tudo o que foi objecto de conhecimento/decisão pela Relação – cfr. acórdãos de 11-12-2003, processo n.º 3399/03 - 3.ª, de 22-04-2004 e de 01-07-2004, CJSTJ 2004, tomo 2, págs. 165 e 239, de 08-02-2007, processo n.º 159/07 - 5.ª, de 21-02-2007, processo n.º 260/07 - 3.ª, de 28-02-2007, processo n.º 4698/06 - 3.ª, de 08-03-2007, processos n.ºs 447/07 e 649/07 - 5.ª, de 15-03-2007, processos n.ºs 663/07 e 800/07 - 5.ª, de 29-03-2007, processos n.ºs 339/07 e 1034/07 - 5.ª, de 19-04-2007, processo n.º 802/07 - 5.ª, de 03-05-2007, processo n.º 1233/07 - 5.ª.

     Como consta do acórdão de 4-12-2008, processo n.º 3456/08-3.ª, in CJSTJ 2008, tomo 3, pág. 239 “Após a reforma do CPP de 1998, que pôs termo ao recurso de “revista alargada” para o STJ, criando em sua substituição um recurso em matéria de facto para a Relação, os vícios indicados no n.º 2 do artigo 410.º do CPP deverão ser impugnados junto da Relação, que decide nessa matéria em última instância, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos mesmos pelo STJ, quando detectados, nos termos do artigo 434.º do CPP”.

     E conforme o acórdão de 14-05-2009, processo n.º 1182/06.3PAALM.S1-3.ª, está vedado aos sujeitos processuais erigir o seu recurso para o STJ tendo por fundamento a ocorrência de qualquer dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP.

     E segundo o acórdão de 07-04-2010, processo n.º 2792/05.1TDLSB.L1.S1-3.ª, não é da competência do STJ conhecer dos vícios aludidos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, uma vez que o conhecimento de tais vícios, sendo do âmbito do recurso de matéria de facto, é da competência do Tribunal da Relação (arts. 427.º e 428.º do CPP). O STJ, como tribunal de revista, apenas conhece de tais vícios oficiosamente, se os mesmos se perfilarem no texto da decisão recorrida ainda que em conjugação com as regras da experiência comum, uma vez que o recurso interposto para o STJ visa exclusivamente o reexame da matéria de direito (art. 434.ºdo CPP). O recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova expressa no art. 127.º do CPP. 

    Neste sentido, ainda os acórdãos de 27-05-2009, processo n.º 145/05-3.ª, de 3-03-2010, processo n.º 138/02.0PASRQ.L1-3.ª, de 27-05-2010, processo n.º 11/04.7GCABT.C1.S1, de 19-01-2011, processo n.º 376/06.6PBLRS.L1.S1, de 15-02-2012, processo n.º 951/07.1GBMTJ.E1.S1-3.ª (primeiro recurso neste processo, onde se referiu que o “conhecimento daqueles vícios, constituindo actividade de sindicação da matéria de facto, excede os poderes de cognição do STJ, enquanto tribunal de revista, ao qual apenas compete, salvo caso expressamente previsto na lei, conhecer da matéria de direito – art. 33.º da LOFTJ.), de 21-03-2012, processo n.º 434/10.2GCBNV.L1.S1-5.ª

      

     Como vimos, todavia, a incursão no plano fáctico é ainda possível, não já face a questão colocada pelo interessado, mas por iniciativa própria do Supremo Tribunal de Justiça.

     Só com o âmbito restrito consentido pelo artigo 410.º, n.º 2, do CPP, com o incontornável pressuposto de que o vício há-de derivar do texto da decisão recorrida, e apenas dele, o STJ poderá avaliar da subsistência dos vícios da matéria de facto, o que é aplicável a recurso interposto de acórdão proferido pela Relação.

     Nos acórdãos de 08-02-2006, processo n.º 98/06 - 3.ª; de 15-02-2006, processo n.º 4412/05 - 3.ª; de 15-03-2006, processo n.º 2787/05 - 3.ª; de 22-03-2006, processo n.º 475/06 - 3.ª; de 08-02-2007, processo n.º 159/07 - 5.ª; de 21-02-2007, processo n.º 260/07 - 3.ª; de 15-03-2007, processos n.ºs 663/07 e 800/07, ambos da 5.ª Secção; de 02-05-2007, processo n.º 1238/07 - 3.ª e de 21-06-2007, processo n.º 1581/07 - 5.ª; de 28-05-2008, processo n.º 1147/08 - 3ª; de 12-06-2008, processo n.º 4375/07-3.ª; de 13-07-2009, processo n.º 32/05.2TAPCV.C1.S1-5.ª; de 17-09-2009, processo n.º 169/07.3GCBNV.S1-5.ª; de 10-03-2010, processo n.º 112/08.2GACDV.L1.S1-3.ª; de 25-03-2010, processo n.º 427/08.0TBSTB.E1.S1-3.ª; de 15-04-2010, processo n.º 18/05.7IDSTR.E1.S1-3.ª; de 27-05-2010, processo n.º 18/07.2GAAMT.P1.S1-3.ª; de 06-10-2010, processos n.ºs 936/08.0JAPRT.P1.S1-3.ª e 77/07.8TAPTB.G2:S1-3.ª; de 17-11-2010, processo n.º 18/09.8JAAVR.C1.S1-3.ª; de 02-12-2010, processo n.º 16/09.1JAPRT.P1.S1-5.ª; de 19-01-2011, processo n.º 376/06.6BLRS.L1.S1-3.ª; de 31-03-2011, processo n.º 117/08.3JAFAR.E2.S1-3.ª (Independentemente de o recorrente, no recurso para o STJ não poder, segundo a jurisprudência corrente, sindicar os vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP, a verdade é que este Tribunal pode/deve deles conhecer oficiosamente, nos termos dos arts. 434.º do CPP e 729.º, n.º 3, do CPC); de 07-04-2011, processo n.º 450/09.7JAAVR.P1.S1-3.ª; de 27-04-2011, processo n.º 7266/08.6TBBRG.G1.S1-3.ª; de 27-11-2013, processo n.º 37/12.7JACBR.C1.S1-3.ª; de 27-11-2013, processo n.º 2239/11.4JAPRT.P1.S1 (do mesmo relator, em que estão em causa vícios do acórdão da Relação e se determina o reenvio do processo para novo julgamento) admite-se o conhecimento oficioso dos vícios por parte do Supremo, mesmo nos casos em que o recurso vem interposto de acórdão da Relação.

     Como se extrai do acórdão de 26 de Fevereiro de 2004, processo n.º 267/04 - 5.ª Secção, está fora do âmbito legal do recurso para o Supremo a reedição dos vícios apontados à decisão de facto da 1.ª instância, em tudo o que foi objecto de conhecimento pela Relação, sem prejuízo de o tribunal de revista, por sua iniciativa, conhecer daqueles vícios porventura patenteados no acórdão da Relação.

     Como se consignou nos acórdãos de 05-12-2007, processo n.º 3406/07, de 30-04-2008, processo n.º 4723/07, de 22-10-2008, processo n.º 215/08, de 14-07-2010, processo n.º 149/07.9JELSB.E1.S1, de 20-10-2011, processo n.º 36/06.8GAPSR.L4.S4, de 15-12-2011, processo n.º 17/09.0TELSB.L1.S1, de 12-07-2012, processo n.º 350/98.4TAOLH.E1.S1, de 11-12-2012, processo n.º 951/07.1GBMTJ.E1.S1, por nós relatados, nestes casos de recurso de acórdão da Relação para o Supremo, em que o recurso é puramente de revista, cingindo-se a matéria de direito, é de admitir, exactamente pelas mesmas razões supra-expostas que sustentam a cognição oficiosa – razões de necessidade de certificação de substrato fáctico bastante, congruente, compatível, harmonioso e válido para suportar a decisão de direito – o exame oficioso da existência ou não dos vícios decisórios ao nível do assentamento da facticidade relevante.

     Tal possibilidade ocorrerá ainda nos casos em que o acórdão da Relação conclui de forma diversa, nas situações em que, reapreciando acórdão de Colectivo que absolvera o arguido, modifica a matéria de facto, conduzindo a decisão contrária de condenação.

     Concluiu-se ser inadmissível a invocação pelos interessados de vícios da decisão previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, sem que isso obste a que o STJ deles conheça oficiosamente, se o traçado quadro fáctico no concreto caso assim o impuser, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em erro de apreciação, ou assente em premissas contraditórias detectadas por iniciativa do STJ, ou seja, se concluir que por força da existência de qualquer dos vícios não pode chegar a uma correcta solução de direito e devendo sempre o conhecimento oficioso ser encarado como excepcional, surgindo como último remédio contra tais vícios.

     Concluindo: ambos os recursos são de rejeitar enquanto invocados são os referidos vícios decisórios como fundamento de recurso.

    B Errada valoração de prova

    Como resulta do já exposto, é patente que o arguido ao pretender impugnar a matéria de facto, por um lado, parece olvidar que decisão recorrida é o acórdão da Relação e não o da 1.ª instância, e daí as referências ao artigo 127.º do CPP, nas conclusões 30.ª e 36.ª a “prova produzida em audiência”, discutindo a prova e a convicção dos julgadores, afirmando que “o que da prova produzida em audiência de julgamento resulta é …”, como nas conclusões 26.ª e 29.ª e na 37.ª que “resulta de forma evidente…”.

    Refere a ausência total de prova na conclusão 27.ª, ou a existência nos autos de “prova abundante e objectiva em sentido inverso”, como na conclusão 32.ª

    E na conclusão 44.ª refere “Não se tendo produzido qualquer prova sobre o elemento subjectivo”.

     Por outro lado, estamos perante uma nítida confusão entre o erro notório na apreciação da prova, vício decisório previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP, e o erro de julgamento.

    Como se referiu nos acórdãos de 22 de Outubro de 2008, 10 de Março de 2010, 25 de Março de 2010, 27 de Maio de 2010, 14 de Julho de 2010, 26 de Setembro de 2012, de 14 de Junho de 2014 e de 10-09-2014, proferidos nos processos n.º 215/08, 112/08.2GACDV.L1.S1, in CJSTJ 2010, tomo 1, pág. 212, 427/08.0TBSTB.E1.S1, 18/07.2GAAMT.P1.S1, 149/07.9JELSB.E1.S1, 460/10.1JALRA.C1.S1, 14/07.0TRLSB.S1 e 1027/11.2PCOER.L1.S1, desta Secção, por nós relatados, o erro-vício previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida.

    Tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências.

    Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do erro vício se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto, só este sendo susceptível de apreciação.

    Por outras palavras. Uma coisa é o vício de erro notório na apreciação da prova, outra é a valoração desta, o resultado da prova, que o recorrente pode considerar não correcta, dela divergir, afrontá-la, só que a manifestação desta divergência, este confronto não é passível de enquadramento em estratégia recursiva atendível (não cabe no plano da impugnação da matéria de facto possível nos quadros restritos consentidos pelo artigo 410.º, n.º 2, como extravasa os limites da mais ampla, mas nem por isso de contornos ilimitados, impugnação nos termos do artigo 412.º, n.º 3 e 4, do CPP).

    Enquanto a valoração da prova, que compete aos julgadores, e só a eles, obedece ao regime do artigo 127.º do CPP e é necessariamente prévia à fixação da matéria de facto, o vício da alínea c), bem como os demais constantes das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, só surge perante o texto da decisão proferida em matéria de facto, que resultou daquela valoração da prova.

    Estamos perante duas realidades que correspondem a dois passos distintos, sequenciais, tendo uma origem na outra: o de aquisição processual em resultado do julgamento; um outro, posterior, de consignação do que se entendeu ter ficado provado e não provado, no exercício final de um juízo decisório que se debruçou sobre a amálgama probatória carreada para os autos e dissecada/ponderada/avaliada após o exame crítico das provas, no seu conjunto e interligação, no jogo dialéctico das conexões, proximidades, desvios, disfunções, antagonismos.

    A primeira relaciona-se com a actividade probatória que consiste na produção, exame e ponderação crítica dos elementos legalmente admissíveis - excluídas as provas proibidas - a habilitarem o julgador a formar a sua convicção sobre a existência ou não de concreta e determinada situação de facto.

    O erro vício será algo detectável, necessariamente a juzante desse iter cognoscitivo/deliberativo, lançado no texto da decisão, cujo sentido e conformação resultou da convicção assumida, que tem a natureza intrínseca de um “produto” de uma reflexão sobre dados adquiridos em oralidade e imediação e que a partir daí ganha alguma cristalização.

    Será, se assim quisermos apelidar, no processo cognoscitivo/decisório da matéria de facto, um “produto de terceira geração”, sendo o primeiro passo a aquisição processual com a produção das provas em julgamento; em segundo lugar, a avaliação crítica do acervo probatório adquirido; por último, a formulação do juízo integrativo ou não.

    Ainda sobre esta distinção pode ver-se o acórdão de 14-10-2009, processo n.º 101/08.7PAABT.E1.S1-3.ª, dizendo não se poder confundir o vício de erro notório na apreciação da prova com a valoração desta. “Enquanto que esta obedece ao regime do art. 127.º do CPP e é prévio à fixação da matéria de facto, aquele – bem como os demais vícios constantes das alíneas do n.º 2 do art.º 410.º do CPP – só surgem perante o texto da decisão em matéria de facto que resultou daquela valoração da prova”.

    Conclui o acórdão inexistir o apontado vício por não ressaltar da decisão qualquer erro ou situação contrária à lógica e às regras da experiência comum, detectável por qualquer cidadão de formação cultural média que leia a decisão. 

    E de igual modo no acórdão de 27-04-2011, processo n.º 7266/08.6TBBRG.G1.S1-3.ª, onde se pode ler: “O erro notório na apreciação da prova é um conceito jurídico processual, técnico legal, que ao subsumir-se ao disposto na alínea c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, apenas tem a ver com o texto da decisão recorrida, perspectivado na matéria de facto provada e não provada e respectiva fundamentação, sendo o erro detectável por qualquer pessoa que entenda a decisão, ao lê-la, ainda que em conjugação com as regras da experiência comum, não se confundido com a valoração prévia das provas que convenceram o tribunal e que gerou esse texto descritivo e expositivo, exclusivamente factual”.

    “A apreciação da prova é um juízo valorativo, de raciocínio objectivo, de ponderação do que é revelado por cada prova produzida, e em conjugação com as demais, e eventual erro que daqui derive é um erro de julgamento na credibilidade de determinada prova, cuja impugnação é feita através do recurso em matéria de facto, nos temos do art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP”.

    Ainda neste sentido pode ver-se o acórdão de 30-10-2013, proferido no processo n.º 40/11.4JAAVR.C2.S1, desta Secção, donde se extrai que “O erro notório na apreciação da prova supõe factualidade contrária à lógica e às regras da experiência comum, detectável por qualquer cidadão de mediana formação cultural. Enquanto a valoração da prova obedece ao art. 127.º do CPP e é prévia à fixação da matéria de facto, o vício do erro notório na apreciação da prova só surge perante o texto da decisão em matéria de facto, ainda que em conjugação com as da experiência comum”.

    A forma de impugnação utilizada pelo ora recorrente nada tem a ver com o erro notório, não se cingindo ao texto da decisão, que aliás jamais convoca, traduzindo-se num enorme esforço argumentativo que afasta qualquer ideia de notoriedade.

    Todo o discurso argumentativo traduz-se em esgrimir com o que foi produzido em audiência de julgamento e não só.

    Ao longo das aludidas conclusões o que o recorrente faz é manifestar a sua discordância quanto à avaliação e apreciação das provas feita pelo Colectivo de Vila Nova de Famalicão, como se fosse o acórdão por este produzido o acórdão ora recorrido, procurando impor os seus pontos de vista.

    A errada valoração da prova, ou o que é o mesmo, o erro de julgamento da matéria de facto é insindicável pelo STJ e pelas mesmas razões escapa aos poderes de cognição da Relação a apreciação da prova produzida em audiência segundo as regras da experiência comum e de acordo com a sua livre convicção, como manda o artigo 127.º do CPP, a menos que seja requerida a reapreciação da prova gravada, mas ainda aí com limitações e desde logo por não ser um segundo julgamento.

    (Anote-se que o recorrente, a fls. 2126, invocou o artigo 412.º, n.º 3, alínea b) e n.º 4 do CPP, procedendo na motivação a longas transcrições de passagens de depoimentos prestados na audiência, como o de fls. 2129 a 2137, a propósito da impugnação do facto provado 6; de fls. 2140/1, 2143/5, 2149 /52, com respeito às conclusões 7, 9, 19, 24, 25, 26, 42, 43, 45, 48, 49, 53, tendo junto inclusive longa transcrição da prova, fazendo fls. 2245 a 2318, no final do 9.º volume, sendo a junção anotada no acórdão recorrido, que referiu inclusive o artigo 412.º, n.º 6, do CPP, o que indiciaria uma reapreciação nos termos amplos consentidos pelo preceito, mas a verdade é que o recorrente não levou este tipo de impugnação às conclusões, como devia, acrescendo que no presente recurso nem uma palavra sobre o tema consta do manifesto recursivo).    

    A discordância nesse caso tem que ser veiculada, ancorada na análise da prova gravada.

    Fora deste quadro, e da invocação de vícios decisórios, a manifestação de divergência com o decidido, sem outra forma, válida, de impugnação, conduz a manifesta improcedência do recurso e sua rejeição.   

    Não integra o vício a invocação do erro na apreciação da prova produzida, quando se alega que a matéria de facto considerada provada e/ou não provada não corresponde à realidade nem à prova feita, tecendo o impugnante considerações que traduzem a sua interpretação da prova produzida em julgamento, quando pretende sobrepor o seu juízo sobre a prova produzida ao processo de formação da convicção do tribunal, esquecendo-se que se trata de um domínio em que o Colectivo julga segundo a sua livre convicção.

    Fora dos dois quadros possíveis de impugnação, e desde que não se esteja perante prova vinculada, e a facticidade apurada não se tenha baseado em meios de prova legalmente proibidos, a manifestação de divergência com o decidido, a desconformidade entre a decisão do julgador e a do próprio recorrente é irrelevante, podendo conduzir a manifesta improcedência e rejeição do recurso. 

    Quando assim acontece o recorrente expressa uma manifestação de divergência com o acervo fáctico adquirido na primeira instância, pretendendo, afinal, discutir as provas, no fundo atacar o concreto desempenho do princípio da liberdade de apreciação ou da livre convicção dos julgadores estabelecido no citado artigo 127.º, procurando impor o seu ponto de vista. Nesses casos o que na realidade o impugnante faz é manifestar a sua discordância com o decidido ao nível do assentamento da facticidade dada como apurada, pretendendo discutir de novo a prova, suscitar a questão da sua valoração, procurando impugnar a convicção adquirida pelos julgadores sobre os factos pertinentes à imputação do(s) crime(s) por que foi condenado, visando a alteração da matéria de facto assente, tendo como objectivo final a sua absolvição.

    Neste aspecto da valoração das provas, dir-se-á que na análise a efectuar há que ter em conta que a fixação da matéria de facto teve na sua base uma apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127.º do CPP.

    A divergência do recorrente quanto à avaliação e valoração das provas feitas pelo tribunal é irrelevante, de acordo com jurisprudência há muito firmada.

    Fazendo aplicação destes princípios, podem ver-se ainda os acórdãos deste Supremo Tribunal, de 05-12-2007, processo n.º 3406/07; de 12-03-2008, processo n.º 112/08; de 30-04-2008, processo n.º 4723/07; de 28-05-2008, processo n.º 1147/08; de 12-06-2008, processo n.º 4375/07; de 04-12-2008, processo n.º 2507/08; de 21-01-2009, processo n.º 2387/08; de 27-05-2009, processo n.º 484/09; de 27-05-2010, processo n.º 18/07.2GAAMT.P1.S1; de 14-07-2010, processo n.º 149/07.9JELSB.E1.S1; de 28-09-2011, processo n.º 172/07.3GDEVR.E2.S1; de 20-10-2011, processo n.º 36/06.8GAPSR.L4.S4; de 09-11-2011, processo n.º 43/09.9PAAMD.L1.S1; de 05-12-2012; processo n.º 250/10.1JALRA.E1.S1, de 11-12-2012 processo n.º 951/07.1GBMTJ.E1.S1 e de 10-09-2014, processo n.º 1027/11.2PCOER.L1.S1, por nós relatados, e de 05-06-2012, processo n.º 148/10.3SCLSB.L1.S1-3.ª Secção; de 2 de Fevereiro de 2011, processo n.º 1375/07.6PMMTS.P1.S2-3.ª; de 4-07-2013, processo n.º 39/10.8JBLSB.L1.S1-3.ª (inadmissível o recurso do arguido no segmento em que visa o reexame da matéria de facto sob a alegação de que a prova foi incorrectamente apreciada e que o acórdão da Relação enferma dos vícios do artigo 410.º, n.º 2 do CPP); de 4-07-2013, processo n.º 1243/10.4PAALM.L1.S1-3.ª ( A preferência dada na formação da convicção probatória a certos meios de prova, de livre valoração pelo tribunal, em detrimento de outros, que, segundo a defesa, impeliriam para decisão distinta, não integra o vício do erro notório na apreciação da prova).

    Do exposto resulta que as conclusões que contenham este tipo de argumentação serão tidas por processualmente inoportunas, impertinentes e irrelevantes.

    Nestes casos o recurso será de rejeitar por manifesta improcedência.

    Como se referia no acórdão do STJ de 30-03-1995, BMJ n.º 445, pág. 355, é de rejeitar o recurso por manifesta improcedência quando o recorrente se limita a discutir matéria de facto e a livre apreciação do tribunal.

    De igual sorte o acórdão de 21-06-1995, BMJ n.º 448, pág. 278: “Apresenta-se como manifestamente improcedente, e, portanto, deve ser rejeitado, o recurso cuja fundamentação se circunscreve à interpretação da prova que se diz ter sido produzida em audiência, indicando-se os factos que deveriam ter sido considerados provados, em vez dos que foram dados por provados”.

    Como se extrai do acórdão de 8-10-1997, processo n.º 897/97-3.ª, Sumários da Assessoria 1997, n.º 14, pág. 132 “Na ausência de qualquer prova vinculada, é insindicável pelo STJ a convicção formada pelo tribunal a quo, sendo por isso de rejeitar, por manifestamente improcedente, o recurso em que o recorrente pretende fazer vingar a sua convicção”.

    Segundo o acórdão de 9-10-1997, processo n.º 623/97-3.ª, ibidem, n.º 14, pág. 137 “É manifestamente improcedente, e por isso de rejeitar, o recurso no qual o recorrente aponta os vícios referidos nas alíneas a) e c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, baseando os mesmos na circunstância de valorar de forma diferente as declarações prestadas pelas testemunhas de acusação e defesa, da valoração feita pelo tribunal”.

    Diz-se no acórdão de 27-11-1997, processo n.º 1130/97-3.ª, ibidem, pág. 186 “É manifesta a improcedência do recurso, e por isso de rejeitar, quando o recorrente não concorda com a maneira como o colectivo valorou o conjunto das provas e fixou a matéria de facto, fazendo dessas provas uma leitura e avaliação diferentes”.

    No mesmo sentido, o acórdão de 27-11-1997, processo n.º 291/97, 3.ª, ibidem, pág. 188: “É manifestamente improcedente o recurso interposto pelo recorrente quando este se limita a discordar do processo lógico usado pelo Colectivo para formar a sua convicção. O recurso é de rejeitar por manifestamente improcedente”.

    O acórdão de 19-05-2004, proferido no processo n.º 904/04 - 3.ª pronunciou-se nestes termos: «A recorrente apenas suscita questões relativamente à matéria de facto, discute depoimentos e o modo como a prova foi apreciada, designando como erro notório na apreciação da prova apenas a circunstância de a conclusão probatória do tribunal da Relação ser diversa daquela que, na sua apreciação, deveria ter sido a decisão sobre os factos.

    Ora, nos termos do art. 434.º do CPP, o recurso interposto para o STJ visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo da apreciação oficiosa dos vícios do art. 410.º do CPP.

    Sendo tal apreciação, por oficiosa, apenas do critério do Supremo Tribunal, quando considere que há motivos para conhecer dos referidos vícios, a invocação destes não pode constituir fundamento de recurso.

   E, de qualquer modo, também não vem invocado no recurso qualquer fundamento que se possa integrar em alguma das categorias que a lei de processo enuncia no referido artigo 410.º, n.º 2, do CPP.

  Discutindo apenas matéria de facto, o recurso é, assim, manifestamente improcedente, e deve ser rejeitado, como determina o art. 420.º, n.º 1 do CPP».

    Como se extrai do acórdão do STJ, de 22-11-2006, processo n.º 4084/06-3.ª “A manifesta improcedência constitui um fundamento de rejeição do recurso de natureza substancial, visando os casos em que os termos do recurso não permitem a cognição do tribunal ad quem, ou quando, versando sobre questão de direito, a pretensão não estiver minimamente fundamentada ou for claro, simples, evidente e de primeira aparência que não pode obter provimento. Será o caso típico de invocação contra a matéria de facto directamente provada, de discussão processualmente inadmissível sobre a decisão em matéria de facto, ou de o recurso respeitar à qualificação e à medida da pena e não ser referida nem existir fundamentação válida para alterar a qualificação acolhida ou a pena que foi fixada pela decisão recorrida”. (sublinhado nosso).

    Citando o anterior pode ver-se o acórdão de 07-04-2010, proferido no processo n.º 2792/05.1TDLSB.L1.S1-3.ª, onde se refere que “o entendimento crítico do recorrente sobre a valoração da prova efectuada nas instâncias é matéria específica de duplo grau de jurisdição em matéria de facto, estranha aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, sendo certo que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento na 2.ª instância, mas dirige-se somente ao exame dos erros de procedimento ou de julgamento que lhe tenham sido referidos em recurso e às provas que impõem decisão diversa e não indiscriminadamente a todas as provas produzidas em audiência”.

    A rejeição, por manifesta improcedência, impor-se-á ainda quando, através de uma avaliação sumária dos fundamentos do recurso, se puder concluir, sem margem para dúvidas, que o mesmo será claramente votado ao insucesso, que os seus fundamentos são inatendíveis – assim, acórdãos de 17-10-1996, processo n.º 633/96; de 06-05-1998, processo n.º 113/98; de 05-04-2000, processo n.º 47/00, ou como se diz no acórdão de 18-04-2002, processo n.º 1082/02, é manifestamente improcedente o recurso quando é clara a sua inviabilidade “quando no exame necessariamente perfunctório a que se procede no visto preliminar, se pode concluir, face à alegação do recorrente, à letra da lei e às posições da jurisprudência sobre as questões suscitadas, que aquele recurso está votado ao insucesso”. 

    Podem ver-se aplicações concretas nos acórdãos de 21-05-2008, processo n.º 678/08; de 28-05-2008, processo n.º 1147/08; de 4-12-2008, processo n.º 2507/08; de 21-01-2009, processo n.º 2387/08; de 14-07-2010, processo n.º 149/07.JELSB.E1.S1; de 28-09-2011, processo n.º 172/07.3GBEVR.E2.S2; de 09-11-2011, processo n.º 43/09.9PAAMD.L1.S1; de 15-12-2011, processo n.º 17/09.0TELSB.L1.S1; de 26-09-2012, processo n.º 460/10.1JALRA.C1.S1, de 5-12-2012, processo n.º 250/10.1JALR.E1.S1, todos por nós relatados.

    O recorrente no fundo, pretende impugnar a convicção dos julgadores, o que não é permitido face ao princípio plasmado no artigo 127.º do CPP, que nesta interpretação não padece de inconstitucionalidade.

    Concluindo.

    Neste segmento estamos perante recurso que se apresenta como manifestamente improcedente, o que é causa de rejeição, com este fundamento.

     Destarte, rejeita-se o recurso interposto pelo arguido, no segmento em que invoca erro de julgamento e violação do princípio da livre apreciação da prova.

         Questão IV – Omissão de pronúncia

   O recorrente nas conclusões 34.ª e 35.ª assaca ao acórdão recorrido o vício de omissão de pronúncia, que, a confirmar-se, conduzirá (ia) a nulidade.

   Relembremos o teor das aludidas conclusões:

34. Aliás, quanto às contradições insanáveis suscitadas pelo arguido no recurso para o Tribunal da Relação do Porto este apenas se pronunciou quanto à contradição relativa à forma como ocorreu a morte – fls. 111 e seguintes, o que leva à omissão de pronúncia quanto às restantes questões arguível nos termos do artigo 668.° do Código de Processo Civil, aplicável nos termos do artigo 4.° do CPP.
35. Padece o acórdão de que ora se recorre de nulidade por omissão de pronúncia, por não ter apreciado concretamente as questões mencionadas pelo arguido no recurso, havendo assim uma omissão de pronúncia em desfavor do arguido, violando os artigos 97.°, n.°4, 374° n° 2, 379°, n.° 1, alínea a), b) e c) do CPP bem como artigo 202.° e 205°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa, o que deverá ser declarado com as legais consequências.

    Vejamos se se verifica a arguida omissão de pronúncia.   

 

    Constitui princípio geral do direito processual que o tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, como decorre da primeira parte do n.º 2 do artigo 660.º do Código de Processo Civil (actualmente, artigo 608.º, mantendo-se inalterada a redacção do n.º 2 antigo), aplicável ex vi do artigo 4.º do Código de Processo Penal.

    Omitindo o tribunal este dever de julgamento, quando o juiz/tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, a respectiva decisão é nula – artigo 668.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil [actualmente, artigo 615.º, mantendo a alínea d) a redacção da antiga alínea)] e artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal.   

    A omissão de pronúncia significa, na essência, ausência de posição ou de decisão do tribunal em caso ou sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa sobre questões que lhe sejam submetidas, ou que o juiz oficiosamente deve apreciar. Por sua vez, o excesso de pronúncia significa que o tribunal conheceu de questão de que não lhe era lícito conhecer.

    Neste sentido, o acórdão de 27 de Outubro de 2010, proferido no processo n.º 70/07.0JBLSB.L1.S1, em que interviemos como adjunto.    

    O Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou pela verificação de nulidade de acórdão da Relação por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), aplicável por força do artigo 425.º, n.º 4, do Código de Processo Penal. Havendo norma específica no CPP, não há necessidade de invocar a nulidade prevista no artigo 668.º do CPC, como faz o recorrente na conclusão 34.ª. De resto, na conclusão seguinte a invocação é já a correcta

    Como se extrai do acórdão de 11 de Outubro de 2007, proferido no processo n.º 3330/07-5.ª Secção, a não apreciação da questão de facto devidamente suscitada constitui omissão de pronúncia.

     Resta indagar se a questão foi devidamente suscitada.

     O recorrente aborda em conjunção a contradição insanável entre fundamentação e decisão e omissão de pronúncia, o que faz a fls. 2758 a 2763 na motivação, levando à conclusão 34.ª, o § 5.º de fls. 2761 e à conclusão 35.ª, o § 2.º, de fls. 2762.

      O recorrente conexiona directamente o vício decisório da contradição insanável previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do CPP, com a omissão de pronúncia, o que traz pressuposto que tenha sido invocado exactamente o vício qua tale, em termos correctos, e não a expressão de uma diversa convicção própria, caso em que se estaria perante invocação de erro de julgamento

      Os termos em que as questões são colocadas esclarecem de imediato que o que está em causa não é o vício decisório, mas o erro julgamento.

      O recorrente coloca, a fls. 2760, as seguintes questões:

   - A reconstituição de facto que vai em sentido contrário ao da globalidade da prova produzida em julgamento;

- Contradições relativas à ida do arguido a Joane no dia 29-03-2012, por dos autos existir prova abundante e objectiva em sentido inverso, nomeadamente localizações celulares, registo de chamadas/sms, registo de passagem nas auto-estradas e registo de levantamento bancário de fls. 1848 bem como prova testemunhal.

      É patente que o recorrente invoca algo que se não cinge ao texto, antes se socorre de elementos estranhos ao mesmo, expressando a sua própria convicção.

     Como se extrai dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29-02-1996, processo n.º 46 740, BMJ n.º 454, pág. 545, de 11-12-1996, processo n.º 900/96, BMJ n.º 462, pág. 207, e de 12-11-1997, processo n.º 32507, característica comum a todos os vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º, do CPP, a fim de fundamentarem o reenvio do processo para novo julgamento quando insanáveis no tribunal da recurso, é que resultem do texto da decisão recorrida, por si só, sem influência de elementos exteriores àquela, a não ser as regras da experiência comum.

     A indagação possível terá sempre presente o incontornável pressuposto de que o vício há-de derivar do texto da decisão recorrida, e apenas dele ou conjugado com as regras da experiência comum - acórdãos de 12 de Junho de 2008, processo n.º 4375/07 (Nesta forma de impugnação os vícios da decisão têm de emergir, resultar do próprio texto, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão como peça autónoma); de 22 de Outubro de 2008, processo n.º 215/08; de 27 de Maio de 2010, processo n.º 18/07.2GAAMT.P1.S1; de 14 de Julho de 2010, processo n.º 149/07.9JELSB.E1.S1; de 15 de Dezembro de 2011, processo n.º 17/09.0TELSB.L1.S1; de 12 de Julho de 2012, processo n.º 350/98.4TAOLH.E1.S1, de 14 de Março de 2013, proferido no processo n.º 1759/07.0TALRA.C1.S1, e de 14 de Junho de 2014, proferido no processo n.º 14/07.0LSB.L1.S1, todos da 3.ª Secção.

     O acórdão do Tribunal Constitucional n.º 573/98, de 13 de Outubro de 1998, proferido no processo n.º 166/98, tirado em Plenário, publicado no Diário da República – II Série, n.º 263, de 13 de Novembro de 1998, não julgou inconstitucionais as normas resultantes da conjugação do artigo 433.º do CPP com o corpo do n.º 2 do artigo 410.º do mesmo Código, na medida em que limitam os fundamentos do recurso a que o vício resulte do texto da decisão recorrida por si ou conjugada com as regras da experiência comum.

     Pela sua especificidade este vício, constando necessariamente apenas do texto e contexto, e a ele se confinando, sem possibilidade de apelo a qualquer elemento estranho a ele texto, não permite, para se concluir pela sua existência, a invocação das regras da experiência comum – neste sentido, os acórdãos do STJ de 31 de Maio de 1991, processo n.º 41925, Colectânea de Jurisprudência 1991, tomo 3, pág. 23, e BMJ n.º 407, pág. 377; de 16 de Outubro de 1991, processo n.º 41587, BMJ n.º 410, pág. 610 “Quanto à conjugação das regras de experiência comum com o que consta da decisão, tais regras podem ser invocadas para se concluir pela insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada, não podendo sê-lo para se concluir pela contradição insanável da fundamentação, já que esta só pode resultar do próprio texto da decisão”; de 13 de Janeiro de 1998, processo n.º 1169/97; de 9 de Abril de 2008, processo n.º 999/08 e de 12 de Julho de 2012, processo n.º 350/98.4TAOLH.E1.S1, da 3.ª Secção e segundo Simas Santos-Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7.ª edição, págs. 81/2, as regras da experiência comum não podem ser invocadas quando se trate deste vício, “porque essa contradição só pode resultar do próprio texto da decisão, como é óbvio”.

       No entanto, surpreende-se a referência, para detecção do vício em análise, a recurso às regras da experiência comum, em dois acórdãos de 2-10-1997, proferidos nos processos n.º 628/97-3.ª e n.º 558/97-3.ª (Sumários, n.º 14, págs. 128 e 130), no acórdão de 08-10-1997, processo n.º 411/97-3.ª e no acórdão de 15-01-1998, processo n.º 1212/97.

     Ora, não estando em causa a alegação de um autêntico vício de contradição insanável não pode haver omissão de pronúncia sobre algo que verdadeiramente não existe.

      Não obstante, a verdade é que o acórdão recorrido não se pronunciou apenas sobre a forma como ocorreu a morte, sendo abordada oficiosamente a questão dos vícios “quanto à conduta criminosa”, III Questão, o que faz a partir de fls. 111 do acórdão e 2529 dos autos até fls. 2535, terminando com a nova qualificação, mas aborda igualmente a impugnação dos factos atinentes ao devir da conduta, “os momentos anteriores e os posteriores, que se prendem com os registos bancários e celulares e automóveis para des/localização do Arguido de/em Joane”, o que faz Na IV Questão de fls. 2535 a 2536. 

      Daqui resulta que houve efectiva pronúncia sobre os pontos focados, não se verificando nulidade.

      Julga-se, pois, improcedente a arguição de nulidade. 

      Sem embargo, dir-se-á que a propósito da questão dos registos de localização celular que colocariam o arguido noutro local, mais concretamente, na área da sua residência estudantil, em Gandra, o Tribunal de primeira instância, em entendimento sufragado pelo Tribunal da Relação do Porto, tem por certo que “esses registos (…) remetem todas as chamadas desse período para essa zona, excetuando a do dia 2.4.2012, em que o arguido se deslocou novamente a Joane. Decorre também de abundante prova acima citada, que esse número de telefone estaria atribuído ao arguido e seria por ele utilizado habitualmente”. E após expressar as razões do seu não convencimento quanto a que fosse o arguido a utilizá-los, afirma-se: “sendo mais plausível que esse telefone, tal como o carro do arguido, possam ter sido usados por terceiros nesses momentos, sendo os testemunhos dos colegas dos arguidos (SIC) demasiado vagos, incertos e, em alguns casos, interessados para levar a outra convicção”.  

      Temos, assim, firmado um juízo de plausibilidade de uso de bens do arguido por parte de terceiros contra a afirmação de habitualidade do uso por parte do arguido, quando parece que competiria à acusação a prova de que o telemóvel e o carro não tinham sido usados pelo proprietário.



                                            **************

      Antes de entrarmos na análise da última questão que abordaremos de modo oficioso, até porque então se terá em conta o que foi dado por provado e por não provado passaremos em revista o que foi consignado nas instâncias como provado e não provado numa outra perspectiva.

 
Analisando.

   

      As demandantes não aderiram à acusação pública, mas no pedido de indemnização civil dão por “integralmente reproduzida” tal peça processual, conforme artigo 3.º do articulado peticional, a fls. 1028.

      Tal posição, em si mesma não perfeitamente compatível com a dedução do RAI por parte da assistente BB, conduziu a zonas de sobreposição de definição factual, não apenas do constante daquelas duas peças processuais, como ainda do emergente do RAI, este, por sua vez, com pontos de confluência (tese da asfixia) e em registo de convivência pacífica, de divergência (uso de objecto de natureza contundente) em relação ao libelo acusatório, sobre o modo de execução do crime, versões que se sobrepõem, por vezes, mostrando-se convergentes, por outras, conflituantes, geradoras de contradições e falhas de compreensão lógica, não se podendo olvidar que a análise do campo temático terá de abranger os factos dados por provados e por não provados, não como se fossem compartimentos estanques, sem ligação, assente que deve ser produzido e composto um texto, que operando a integração e interligação de matérias provenientes de diversas fontes, na sua globalidade deve mostrar-se coerente, consistente, congruente, fluido, harmonioso, de narrativa sequencial, se possível sem soluções de continuidade.

      Esta “trilogia” inicial acabou por gerar contradições e falhas de compreensão, estando ausente do acórdão de Vila Nova de Famalicão qualquer ideia de condensação, que no caso, obviamente, se impunha, de modo a evitar a amálgama apresentada, para mais, base de uma condenação em 20 anos de prisão.

      Tomemos em consideração os pontos que apresentam alguma dificuldade de compreensão.

      A motivação do arguido

      Que determinou o arguido a agir?

      Que determinou Armindo a matar NN, ou a infligir-lhe agressões, que “por evolução clínica” resultaram na sua morte?

      A tese da acusação partiu de um pressuposto fáctico assente em relacionamento pessoal e familiar que teria despoletado a ida do arguido a Joane no dia de aniversário da tia.

      A acusação arregimentou uma série de factos e episódios narrados ao longo dos §§ 3.º a 11.º, a fls. 837, 3.º volume, os quais, concatenados entre si, enformariam um quadro justificativo da “visita” à Tia.

      Abrir-se-á aqui um parêntesis para referir alguma discrepância na exposição da sequência temporal dos sucessos, tal como alinhados na acusação. 

      Na tese da acusação o arguido teria ido a casa da tia e ter-se-ia deslocado às Finanças com a mesma durante o ano de 2009.

      O telefonema de NN a LL a insultar esta (ladra, mulher de má vida, que se havia “posto debaixo” do seu irmão para ter o filho) teria tido lugar passados uns meses da deslocação às Finanças, ou seja, ainda durante o ano de 2009 ou já em 2010 (tudo dependendo da data da deslocação e do número de meses), tendo então nascido dentro do arguido um sentimento de revolta para com a tia.

      Mas seguindo o mesmo fio condutor, deixaram de ter qualquer contacto, situação que se manteve até Março de 2012, desconhecendo-se por completo o que terá ocorrido durante mais de um ano.

 

      O relacionamento anterior e contactos do arguido com a tia NN

      De acordo com a acusação, o relacionamento entre tia e sobrinho não era bom, descrevendo-se factos do § 3.º ao § 11.º, que justificariam a deslocação do arguido a casa da tia, dizendo-se no § 12.º que “Foi dentro deste quadro” que no dia 29 de Março de 2012 o arguido se dirigiu ao Edifício da Rotunda…

     A esmagadora maioria daquele elenco de factos foi dada por não provada.

       

     Foi dado por não provado:


66.  Que a relação entre LL e o falecido MM nunca foi aceite pela família deste além da NN.

(Reporta a matéria do § 3.º da acusação. Restringe a não aceitação da relação dos pais do arguido à tia, que não a toda a família do pai. Em consonância com o FP 3).


67.  Em consequência disso o arguido nunca teve contacto com a sua família paterna, à exceção dos últimos cinco anos, período em que iniciou contacto [com] a NN.

 (Texto da acusação - § 4 - que não continha sublinhados).


68.  Os contactos entre o arguido e a sua tia prendiam-se com a gestão de negócios relativos à herança da família, designadamente venda de terrenos e pagamentos dos respectivos impostos.

(A acusação no § 5 referia “os contactos entre o arguido e seus pais com a sua tia”. De igual modo no facto 3 proposto no RAI a fls. 1064. Em consonância, no FP 4 ficou provado apenas: “Os contactos entre os pais do arguido e a sua tia prendiam-se com a gestão de negócios relativos à herança da família, designadamente terrenos”). Por outras palavras, o arguido ficou excluído dos contactos com a tia.


69.  O arguido foi a casa da tia NN uma ou duas vezes tratar dos assuntos acima indicados e chegou a deslocar-se com a mesma às Finanças para o mesmo efeito (isto, durante o ano de 2009).

(Texto presente no § 6 da acusação e no ponto 4 do RAI, a fls. 1064).


70.  Passados uns meses desta ocasião a NN telefonou a LL (mãe do arguido), acusando-a de ser uma ladra e de ter vendido madeira de um terreno que pertencia à herança, sem prestar contas.

(Texto presente no § 7 da acusação e no ponto 5 do RAI, a fls. 1064).


71.  Durante esse telefonema a NN acusou JJ (..., certamente) de ser uma mulher de má vida e de se ter “posto debaixo” do seu irmão para ter o filho (o aqui arguido).

(Texto presente no § 8 da acusação e no ponto 6 do RAI, a fls. 1064/5).


72.  LL transmitiu tais impropérios ao seu filho o que fez nascer dentro deste um sentimento de revolta para com a sua tia NN.

(Texto presente no § 9 da acusação e em parte no ponto 7 do RAI, a fls. 1065, onde constava “LL transmitiu o teor dessa conversa ao filho, aqui arguido”).


73.  Nessa sequência arguido e sua mãe não mantiveram qualquer contacto com NN até Março de 2012, altura que aquela decidiu ligar a esta, para saber se era necessário contribuir com qualquer quantia para os impostos devidos pelos terrenos da herança da família.

(Texto presente no § 10 da acusação e no ponto 8 do RAI, a fls. 1065).


74.  Como não conseguiu contactar com NN, LL insistiu com o arguido para que fosse a casa de sua tia tentar saber se esta ainda lá morava.

(Texto presente no § 11 da acusação e no ponto 9 do RAI, a fls. 1065, que reproduz aquele até “ tia”).

 De igual modo as demandantes no PIC, artigo 8.º, a fls. 1029, alegaram: “O arguido foi a casa da tia, aqui vítima, a pedido da mãe, na “última semana de Março” de 2012 para “tentar saber se esta ainda lá morava”, depois de esta não ter conseguido falar com ela por telefone”. Tal facto foi dado por não provado no segmento Pedidos Cíveis, n.º 53, a fls. 1889 e 1890.


75.  Foi dentro deste quadro que no dia 29 de Março de 2012 o arguido se dirigiu ao Edifício da Rotunda, Bloco 6, 2.º Esq., em Joane, Vila Nova de Famalicão.

(Sublinhado do acórdão. Texto presente no § 12 da acusação, sem sublinhado, e no ponto10 do RAI, a fls. 1065, que adita identificação do veículo que teria sido usado na deslocação).


76.  Que a conversa que o arguido iniciou então com a sua tia fosse a propósito de questões patrimoniais e familiares.

(Sublinhado do acórdão. Texto presente no § 15 da acusação, sem sublinhado, e no ponto 16 do RAI, a fls. 1066. Em consonância a fixação restritiva constante do FP 8).


77.  A determinada altura a conversa tomou proporções de discussão, tendo o arguido dito à ... para não voltar a insultar a sua mãe.

(Texto presente no § 16 da acusação).


78.  Durante a discussão a NN disse ao arguido que a mãe deste era uma puta e que só queria o dinheiro da família.

(Texto presente no § 17 da acusação).


79.  Tai[s] palavras fizeram crescer o sentimento de revolta do arguido, que foi ficando cada vez mais nervoso e perturbado com o rumo que a conversa levava.

(Texto presente no § 18 da acusação).

    Por outro lado

    Na contestação à acusação, a fls. 1326/7, o arguido alegara:

28 – Não podemos olvidar que o arguido não mantinha um relacionamento habitual com a vítima, não se coadunando assim com o medo de viver sozinha (…).

29 – Resulta amplamente dos autos que o arguido e a vítima, não obstante os laços familiares que os uniam, não mantinham qualquer relação de proximidade e/ou amizade (…)

    Tais factos foram dados por não provados no segmento Contestação, a fls. 1889.

    Assim:

50. O arguido não mantinha um relacionamento habitual com a vítima.

51. O arguido e a vítima não mantinham qualquer relação de proximidade e/ou amizade

(Sublinhado do acórdão).

      

    Por outra via

 

    No segmento Pedidos Cíveis foi dado por provado o constante do artigo 9 do PIC, a fls. 1029, sendo encastoada justificação espúria para o arguido conhecer a data de aniversário da tia, como se para saber a data de aniversário fosse necessário estar em curso a resolução de questões referentes à herança dos avós…

    Consta do FP n.º

60. O arguido escolheu a data de 29 de Março de 2012, pois a sua tia fazia anos – sendo que, estando em curso a resolução das questões referentes à herança aberta pelo óbito dos avós paternos, o arguido tinha acesso a tal informação.

    Reportando a mesma fonte, isto é, o artigo 9 do PIC, foi dado por não provado que isso tenha constituído desculpa que terá permitido ao arguido ir a casa da tia e ser por ela recebido, conforme resulta do FNP n.º 54, a fls. 1890, o qual contém certamente lapso de escrita, pois, e transcrevendo-se, ficou consignado no lote dos Factos Não Provados – Pedidos Cíveis:

 54 – Que o referido em 2.1.61., 2.ª parte, supra (SIC), serviu como desculpa que terá permitido ao arguido ir a casa da tia e ser por ela recebido.

 

    Ademais

    Foi dado por provado no ponto 57. Enquadramento Social, Subsegmento II – Condições sociais e pessoais, no § 3.º, a fls. 1881 (ponto 57-2, na versão do acórdão recorrido):

    Com a família paterna o arguido estabelecia um relacionamento distante e ocasional, iniciado só após o casamento dos pais, relacionamento que foi sendo motivado por questões patrimoniais, já que a mãe assumia um papel ativo na gestão das obrigações do património comum herdado pelo marido e a sua irmã, substituindo-o devido à sua incapacidade, por doença.

    Todo o quadro traçado (tese do Ministério Público – § 12 da acusação – e da assistente BB – artigo 10 do RAI) resultou não provado, como os insultos à mãe do arguido (ladra, mulher de má vida, § 17 - puta, que só queria o dinheiro da família), que a mãe lhe tivesse transmitido esses impropérios, que o arguido tivesse ido uma ou duas vezes a casa da tia e que em 2009 a tivesse acompanhado às Finanças, que tivesse sido a mãe a pedir-lhe para que fosse ter com a tia, que tivesse tido lugar discussão no próprio dia 29 de Março de 2012, por razões patrimoniais e familiares, que o arguido tivesse criado sentimento de revolta, que tivesse ficado nervoso e perturbado.

    O quadro factual vertido na pronúncia, proveniente da acusação e do RAI, compreendendo comportamentos, relacionamentos, palavras e sentimentos ocorridos até 29 de Março de 2012, que seria “justificativo” da atitude do arguido, naufragou; do conjunto dos factos alinhados que conjugados entre si explicariam a razão de ser da conduta adoptada, nenhum logrou certificação de provado.

     Posto isto, restará saber que motivação o arguido teria para matar ou molestar gravemente a tia, de modo a vir causar-lhe a morte.

     Sobre esta questão a primeira instância disse nada e pelo acórdão ora recorrido não perpassa a mínima alusão ao ponto.

     Versão da morte (modo de execução)

     Na acusação pública a versão do modo como ocorreu a morte de NN consta dos §§ 20 a 25, vertida em parte nos FP 9 a 14 (Destes apenas se manteve a redacção do FP 9, pois o acórdão recorrido deu nova redacção aos restantes). 

     O arguido desloca-se a Joane, e após ter entrado na casa da tia NN, fica pela sala e inicia uma conversa com a tia.

     Face ao conjunto dos factos dados por não provados, certo é que:

     A conversa não incidiu sobre questões patrimoniais e familiares.

     Nem tomou proporções de discussão, tendo o arguido dito à tia para não voltar a insultar a mãe.

     A tia não disse que a mãe era uma puta e que só queria o dinheiro da família, nada havendo que fizesse crescer o sentimento de revolta do arguido, de modo a ficar cada vez mais nervoso e perturbado com o rumo que a conversa levava.

     A dada altura da conversa, supostamente pacata, porque sem a presença dos contornos expurgados, o arguido desfere um empurrão na sua tia.

     Fica por explicar a razão do empurrão na tia no dia de aniversário desta.

     Na lógica narrativa da acusação o empurrão fazia sentido, pois que segundo o § 19, “a dada altura” o arguido quis ir embora, tendo a tia bloqueado a porta de saída com o seu corpo, o que foi dado por Não provado no ponto 17, a fls. 1887.

     Com o empurrão (um e não “pelo menos um”, pois que se o empurrado cai com um não é necessário outro), a tia cai desamparada no chão e o arguido com uma almofada comprime a mesma sobre a face da tia, de modo a que NN não conseguisse respirar, mantendo tal compressão até que deixasse de oferecer resistência. A conduta do arguido resultou na morte de NN por asfixia.

     A conduta do arguido provocou ainda fractura do corno superior esquerdo da cartilagem tireoide – FP 12 – e ainda lesões na cabeça da NN: uma laceração com 2 por 0,3mm (de forma correcta 0,3 cm), na metade esquerda da região frontal, próxima à linha média, de bordos irregulares e com infiltração sanguínea – FP 13.  

     A tese da acusação mereceu acolhimento quase total no acórdão de primeira instância, sendo vertidos nos FP 9 a 14, respectivamente, os factos alinhados na acusação nos §§ 20 a 25, com uma única diferença de não ter ficado provada uma outra lesão na cabeça da vítima e que constava do § 24, ou seja, “uma laceração com 5 cm por 1 cm, ligeiramente oblíqua, localizada na metade esquerda da região frontal, de bordos irregulares e com aparente infiltração sanguínea”, o que foi dado por não provado no segmento específico Factos Não Provados – Acusação pública, no ponto 18, a fls. 1887.

     A NN morreu por asfixia, tendo sido causadas lesões – uma fractura e uma laceração na cabeça –, actuando o arguido apenas com as mãos.

     Ora, tendo sido consagrada a tese de morte por asfixia, por compressão da face com uma almofada após um empurrão, estando presente ainda uma fractura do corno superior esquerdo da cartilagem tireoide e uma lesão localizada na cabeça “uma laceração…”, o acórdão de primeira instância albergou no seu seio uma outra versão.

    

     Uma outra versão sobre o modo de execução emergente agora do vazado no requerimento de abertura de instrução (RAI) da assistente BB, maxime, números 17) a 22) do artigo 44.º, a fls. 1066/7, intromete novos elementos, prescindindo do inicial empurrão (a tia teria caído desamparada no chão por efeito de pancada ou golpe na cabeça, sem especificação de instrumento – n.º 17), repescando o uso da almofada, depois de referir a utilização de um objecto contundente já com a tia no chão e descrevendo uma fractura e sete lacerações.

     Assim, o arguido, apanhando a tia de surpresa, deu-lhe, pelo menos, um golpe ou pancada na cabeça, sem se explicar como e com quê, fazendo com que caísse desamparada no chão.

     Com a tia caída da no chão, desferiu-lhe mais e vários golpes ou pancadas na cabeça, com um objecto de natureza contundente ou actuando como tal, sendo projectados salpicos de sangue na porta da sala, tendo acto contínuo pegado numa almofada, passando a repetir a versão da acusação neste particular, dela se afastando apenas quanto ao número de lesões, no fundo atribuindo a morte a asfixia.

     A referência a utilização do objecto de natureza contundente ou actuando como tal só surge já com a tia no chão.

     Os pontos referentes ao uso da almofada já adquiridos nos FP 10 a 13 continham a narrativa das duas peças processuais, de modo que o FP 10 alberga os factos narrados no § 21 da acusação e artigo 19 do RAI, o FP 11 contém os factos vertidos no § 22 da acusação e no artigo 20 do RAI e o FP 12 consagra os factos narrados no § 23 da acusação e no artigo 21 do RAI.

     Diferentes, o modo de execução, o instrumento de agressão e as consequências a nível de lesões.

     Como vimos, na tese do RAI, NN não teria caído por força de empurrão, mas de golpe ou pancada na cabeça, sem explicitar como e com quê.

     O acórdão de Vila Nova de Famalicão não deu por provada a pancada ou golpe inicial e que NN tivesse caído por força dessa pancada ou golpe na cabeça.

     Não o fez de forma expressa levando ao campo dos FNP que “o arguido deu, pelo menos, um golpe ou pancada na cabeça da sua tia, fazendo com que esta caísse desamparada no chão”, como constava do artigo 17 do RAI.

     Fê-lo, porém, de forma implícita, e a nosso ver, suficiente, pois no FP 19, fez consignar “Já com a tia caída no chão (conforme acima exposto) …”, o que significa que NN caiu por efeito de empurrão, de acordo com os FP 9 e 10, e não de pancada ou golpe com objecto contundente.

     O FP 19 alberga a descrição de um outro modo de execução do crime, pois ficou provado que:

“19. Já com a tia caída no chão (conforme acima exposto), o arguido desferiu-lhe golpe ou pancada na cabeça, com um objecto de natureza contundente ou actuando como tal, tendo sido projectados salpicos de sangue na porta da sala”.

     O acórdão não deu por provado o constante do artigo 18 do RAI, que o arguido tivesse desferido “mais e vários golpes ou pancadas na cabeça”, constando como FNP no segmento próprio, a fls. 1887:

“20. Que o arguido desferiu à NN mais do que um golpe ou pancada na cabeça”.

     O leque das lesões passou a ser descrito de forma diversa do que o dado por provado em relação à matéria da acusação, pois segundo o

FP 20. A conduta do arguido resultou nas seguintes lesões localizadas na cabeça da NN: uma laceração (já referida supra em 13. e 19.) com 2 por 0,3 cm de maiores dimensões, vertical, localizada na metade esquerda da região frontal, próxima à linha média, de bordos irregulares e com infiltração sanguínea" e com pontes de tecido a interligarem os bordos (confirmada histologicamente como lesão vital) e (com o apurado em 11.) uma fratura multicominutiva da pirâmide nasal sem infiltração sanguínea dos bordos.

     A laceração com 2 por 0,3 mm (assim consta na acusação) vertida no FP 13, pois que se diz “já referida supra em 13”, embora não se entenda a referência a 19., passa a ser descrita com outros contornos, tendo em relação à descrição do FP 13 as seguintes diferenças:

     Passa a laceração com 2 por 0,3 cm (assim no artigo 22 do RAI) com os seguintes aditamentos:

     A seguir a 0,3 cm, adita “de maiores dimensões, vertical, localizada”, seguindo-se a já referida “na metade esquerda da região frontal, (só aqui sublinhada) próxima à linha média, de bordos irregulares e com infiltração sanguínea”, agora aditando “e com pontes de tecido a interligarem os bordos (confirmada histologicamente como lesão vital) e (com o apurado em 11.)

     (O acórdão recorrido versou este ponto na nota de rodapé 106, a fls. 2529 verso, mas não procedeu a correcção, o que foi feito acima, imediatamente antes da exposição da matéria de facto).

     E deu por não provadas as restantes seis lacerações constantes do artigo 22.º do RAI (incluída a de 5 cm por 1 cm já dada por não provada relativamente à acusação – FNP 18, igualmente a fls. 1887), como consta do FNP 21, a fls. 1887, do seguinte teor:

21. A conduta resultou ainda nas seguintes lesões localizadas na cabeça da NN: “Uma laceração de 5 cm por 1cm” de maiores dimensões, “ligeiramente obliqua, localizada na metade esquerda da região frontal, de bordos irregulares e com aparente infiltração sanguínea” e com pontos de tecido a interligarem os bordos; uma laceração com 5,5 cm por 0,5 cm de maiores dimensões, na região parietal direita, de bordos irregulares e com aparente infiltração sanguínea e com pontes de tecido a interligarem os bordos; três lacerações, na região occipital esquerda, de bordos irregulares, sem infiltração sanguínea dos bordos, duas horizontais com 2,1 cm e 1,8 cm de comprimento e outra oblíqua com 3,1 cm de comprimento; laceração de bordos irregulares, sem infiltração sanguínea dos bordos, com 2,5 cm de comprimento na região retro-auricular esquerda.

     Na versão da assistente BB, o arguido fizera uso de um objecto contundente, o que foi dado por provado no FP 19.

     No artigo 28 do RAI alegara que “Munido da bolsa e do objecto contundente antes referido, o arguido abriu a porta de casa, saiu, bateu a porta e desceu pelas escadas do prédio”. (fls. 1068).

     Foi dado por provado no FP 25: “Munido da bolsa antes referida, o arguido abriu a porta de casa, saiu, bateu a porta e desceu pelas escadas do prédio”.

    No que toca ao objecto contundente, no FNP 25, a fls. 1888, foi dado por não provado:

 “25. Que o arguido abandonou a morada da vítima munido do referido objecto contundente antes referido”.

     Ora, se o objecto contundente foi usado (FP 19) e não foi levado pelo arguido (FNP 25), como ninguém entrou em casa de NN durante os referidos treze dias, parece seguro que o dito objecto estaria por lá, facto que a confirmar-se, não terá sido detectado pela investigação.

 

     Uma outra versão é dada pelo pedido cível de indemnização deduzido pelas assistentes demandantes (PIC), contendo uma narrativa que vai ao elenco dos factos dados por provados (FP), a partir do FP 58, versão que abarca o uso de objecto não identificado.

     Nesta peça processual, no artigo 2.º, a fls. 1027, as demandantes incorrem em equívoco, referindo “a prática dos crimes referidos na douta pronúncia”, quando não havia pronúncia, mas apenas acusação com a qual pelo menos a assistente BB não concordou, de modo que veio a requerer abertura de instrução.

     Ao tempo da dedução do pedido cível em 6-02-2013, apenas havia acusação e o requerimento para abertura de instrução sobreveio a 8 seguinte.

     Daí, fazer sentido a referência no artigo 3.º à acusação que se dá por integralmente reproduzida (fls. 1028), embora depois se apresente uma versão própria da actuação do arguido (extraída de elementos resultantes de consulta do processo, como auto de inquirição da mãe do arguido, relatório de autópsia, informações de serviço e fotografias), em que se chega a referir o uso de uma faca (artigo 11).

     Desta sobreposição parcial resultou o vertido no FP 58, que de forma escusada, repete o que constava já dos FP 5, 9, 10, 11 e 12, este de forma sincopada, e omite o que consta do FP 13, necessário complemento do descritivo anterior.

     Nesta nova versão, que teve por base o vertido no artigo 3.º do PIC, o uso da almofada deixa de ser causa de asfixia que determina a morte. Só mais à frente se refere a morte por asfixia, no FP 66, aqui se condensando em parte o que já constava dos FP 11 e 12, oriundos da acusação pública.

     Mais. Segundo o FP 58 a conduta do arguido resultou, além de vários ferimentos, na morte de NN.     

     Mas, o que entender por “vários ferimentos”, quando na versão inicial estava presente uma “fractura do corno superior esquerdo da cartilagem tireoide” – FP 12 – (a qual só vem a surgir no FP 65, agora cartilagem tiróide) e ainda lesões na cabeça da NN: uma laceração com 2 por 0,3mm, na metade esquerda da região frontal, próxima à linha média, de bordos irregulares e com infiltração sanguínea – FP 13.

     Da concretização inicial, descambou-se para uma categoria indefinida, conduzindo a uma contradição assinalável.

     Incorporando parte do alegado no artigo 8.º do PIC dá-se por provado no FP 59 que “O arguido foi a casa da tia, aqui vítima, na última semana de Março de 2012”.

     Referência absolutamente dispensável, adquirido que estava que a visita teve lugar no dia 29 desse mês.

     “Ultrapassando” a versão da dita reproduzida acusação, o artigo 10.º do PIC continha outras consequências da agressão que vieram a ser vertidas no FP 61, onde ficou consignado:

«61. A vítima: - por um lado, tinha ferimentos na parte frontal da cabeça, e uma fratura multicominutiva da pirâmide nasal, isto é existiam vários fragmentos; por outro, o cadáver encontrava-se em decúbito dorsal, cabeça na direção da porta, pernas estendidas e paralelas, e por último, na porta, junto à cabeça, foi possível verificar a presença de alguns salpicos de sangue, que em altura não ultrapassavam os trinta centímetros».

     Esta nova versão apresenta como novidade o facto de a vítima ter “ferimentos na parte frontal da cabeça”, que se não especificam.

     À presença de lacerações (FP 13 e 20), disse nada.

     Por outro lado, dá-se de novo como assente uma fratura multicominutiva da pirâmide nasal, já presente no FP 20, mas sem a expressão “sem infiltração sanguínea dos bordos”, referindo-se a existência de vários fragmentos (?).

     O que sejam os vários fragmentos desconhece-se.

     Por outro lado, o artigo 10.º refere ferimentos, para além dos presentes na parte frontal da cabeça, na região parietal direita e na região occipital esquerda.

     Quanto a estes dois não foram dados por provados, nem por não provados, não havendo pronúncia expressa sobre a sua verificação ou não. 

     Os salpicos de sangue na porta da sala estão presentes no FP 19, voltam no FP 61 e de novo no FP 62.

     A causa dos salpicos – O instrumento, objecto, usado

 

     No FP 19 (proveniente do enunciado no número 18) do artigo 44.º do requerimento de abertura de instrução, apresentado, a solo, pela assistente BB, em 8 de Fevereiro de 2013), foi dado por provado que o arguido desferiu golpe ou pancada na cabeça da tia com um objecto de natureza contundente ou actuando como tal.

     No FP 62 (proveniente do enunciado no artigo 11.º do PIC, deduzido em 6 de Fevereiro de 2013, que, como vimos, deu por reproduzida a acusação pública - única peça processual então existente no terreno e conformadora do thema), foi dado por provado que “O arguido empurrou a tia [aqui em perfeita consonância com a tese da acusação pública] e já no chão, bateu-lhe com algum objeto na cabeça [aqui expressando nítida e diversa diferença de conteúdo narrativo e sequencial, se comparado com a tese da acusação], usando naquele empurrão de força, o que lhe provocou uma queda, acabando por embater no chão com a cabeça e as costas.

    Ao atingi-la com esse objeto [aqui novamente em contraponto com a versão da acusação pública, para a qual não houve uso de qualquer objecto para além da proscrita, na tese da Relação do Porto, almofada] lacerou a parte frontal da cabeça da tia, tendo sido projectados salpicos de sangue na porta da sala”. (Realces nossos).

     As demandantes aventaram mesmo o uso de uma faca – referido artigo 11 do PIC, a fls. 1030 – o que não foi dado por provado, nem por não provado.

     Ficamos assim sem saber que objecto de agressão terá sido usado, mas sabemos que o arguido não o levou consigo, conforme o consignado no FNP 25, de modo que, a ter sido usado tal objecto, o mesmo deveria estar lá por casa, ou seja, na cena do crime, ao que a investigação disse, rigorosamente, zero.

     Mas depois de ter empurrado a tia com força (o empurrão é referido por cinco vezes, mas sempre o mesmo e único, no FP 9 – tese da acusação, e FP 58, 62, 64 e 72, todos provenientes do PIC) e batido com o objecto, o arguido foi buscar a almofada - FP 65 (aqui repetindo o FP 58) -, comprimindo-a de forma tal, que resultou na morte por asfixia - FP 66. 

     Fica pouco congruente o que consta por um lado do FP 58, em consonância com a tese da acusação, em que a morte teria resultado de asfixia (FP 9 a 13), e por outra a “adição” da narrativa de actuação do arguido, mais compreensiva/abrangente, composta pelo FP 19-20, em que para além do uso de almofada, há agressão com objecto de natureza contundente ou actuando como tal, ou com objecto simples, igualmente não identificado, no FP 62.

     Por outro lado, o arguido já com a tia caída no chão “conforme acima exposto” - o que só pode significar por força do empurrão, conforme FP 9 -, bateu na cabeça da tia FP 19, sendo que no FP 58, também, em primeiro lugar, surge o empurrão, sendo igualmente certo que outra versão é apresentada no FP 64 (proveniente do artigo 13 do PIC) em que esta ordem é efectivamente alterada, pese a afirmação do contrário.

     Foi dado por provado no FP 64:

 «64.(pela ordem acima apurada) O arguido, bateu na tia com a força que um homem alto e pesado com 26 anos tem face a uma mulher de 73 anos, e deu-lhe um empurrão fazendo com que esta caísse desamparada no chão»

     Perguntar-se-á: se o arguido primeiro empurrou a tia e depois, já com a tia no chão, lhe bateu, ou se primeiro bateu com força na tia e depois a empurrou. E se ao bater-lhe com força se o fez com as mãos apenas, ou usando algum objecto e neste caso, qual e em que parte do corpo bateu.

     A simulação de assalto

    Esta tese está presente nos artigos 15 e 19 do PIC, retomada dois dias depois pela assistente Diana no RAI, a qual, embora aqui sem nada de concreto narrar de semelhante ao ali referido, imputou a prática ao arguido de um crime de simulação de crime, p. e p. pelo artigo 366.º, n.º 1, do Código Penal.

    A decisão instrutória foi no sentido de não pronúncia por tal crime, mas o acórdão não deixou de consignar como assente:

«67. Mais, enquanto a sua tia se encontrava no chão, o arguido andou a passear pela casa e tentou simular um roubo ou um assalto e retirou as chaves e levantou o auscultador do telefone».

«74. Tempo esse durante o qual alguns indícios probatórios, foram desaparecendo, pelo decorrer do tempo ou pela atuação livre e consciente do arguido, simulando um assalto e fazendo desaparecer provas como a bolsa da vítima».

    Anota-se que no FP 67 foi dado por provado que o arguido “tentou simular um roubo ou um assalto” e no FP 74 foi consignado “simulando um assalto”.

    As tentativas de utilização do cartão Multibanco e o regresso a Vila Nova de Famalicão

    Segundo os FP 31, 32, 35, 36 e 44, o arguido, na noite do dia 30 de Março de 2012, munido do cartão multibanco da tia NN, fez duas tentativas de uso de tal cartão, pelas 02h 15m e pelas 02h 16 m, conforme FP 31 e 32, e de forma mais precisa descrita no FP 44 (oriundo da contestação), pelas 02:15:17 e pelas 02:16:06 horas, e ainda uma terceira tentativa, pelas 10h05, do mesmo dia 30 de Março de 2012.

    As duas primeiras tentativas foram efectuadas na mesma caixa ATM, na rua ..., em Joane, como precisa o FP 44 e a terceira no Campo Mouzinho Albuquerque Antas, em Vila Nova de Famalicão, conforme documentos de fls. 221/2, quanto a Joane, e fls. 223/4/5, do 1.º volume, quanto à última, elementos probatórios referenciados no texto do acórdão, em notas de rodapé 15, 16 e 17, a fls. 1876/7 do 8.º volume.

    O tema das tentativas de levantamento de dinheiro com o referido cartão volta mais à frente nos FP 68 e 69, provenientes dos artigos 15 e 16 do PIC, repetindo os FP 31 e 32, relativos às duas primeiras tentativas, e os FP 35 e 36, relativos à terceira tentativa (provenientes dos números 34) e 35) e 39) e 41) do artigo 44.º do RAI) e FP 44 (proveniente da contestação), tratando-se de uma repetição desnecessária e não só.

    Para além do lapso de escrita da data do ano – 2012 e não 2013 – o acrescento veio criar incongruências. 

    Foi dado por provado:

«68. No dia 30.3.2013, foi a várias caixas de multibanco fazer tentativas (as acima referidas) de utilização do cartão multibanco que retirou da casa da vítima».

«69. Nesse mesmo dia 30.3.2013, cerca das 10 horas, conforme acima concretizado, o arguido voltou a, em Vila Nova de Famalicão, tentar utilizar o referido cartão nos termos acima descritos».

    Ora, as duas primeiras tentativas foram efectuadas na mesma caixa, na mesma agência na rua ..., conforme FP 44 e documento de fls. 221 e 222, não se tendo o arguido dirigido a várias caixas, como consta do artigo 15 do PIC, bastando atentar aos tempos das tentativas, pois a primeira teve lugar pelas 02:15:17 e a segunda, imediatamente a seguir, a menos de um minuto, pelas 02:16:06 horas.

    Por seu turno, o FP 69 repete o que constava já dos FP 35 e 36 e 44.

    O regresso do arguido a Vila Nova de Famalicão é introduzido pela assistente BB no RAI e pelas demandantes no PIC (temporalmente a ordem de apresentação das peças é inversa, mas seguimos esta por ser a adoptada no acórdão e ser de mais fácil compreensão nessa lógica).

    Na tese do RAI, após as duas tentativas da noite já no dia 30 de Março de 2012, o arguido teria seguido no sentido Vila Nova de Famalicão, Póvoa de Varzim e depois para Gandra, evitando portagens, tendo regressado no dia 30, durante a manhã, para efectuar mais uma tentativa de levantamento e após a retenção do cartão regressou a Gandra. (Números 36) a 42) do artigo 44.º). 

    Na versão do PIC – artigo 16 (fls. 1032 e 1045 verso) – no dia a seguir, ou seja, no dia 30, depois de dormir e da suposta raiva ou revolta passar, o arguido voltou a Joane para tentar novamente levantar dinheiro com um dos cartões.

    Quanto a esta alegação não ficou provado que tivesse voltado a Joane, conforme FNP 62, pois em Joane tiveram lugar apenas as duas primeiras tentativas de levantamento e a terceira em Vila Nova de Famalicão, conforme FP 35/36, 44 e 69.

    Os regressos a Gandra foram dados por não provados.

    Aqui com relevo o primeiro regresso, naturalmente.

    Mas porque assim é, porque não ficou provado o regresso do arguido a Gandra na noite de 30 de Março, já depois das 2 h e 16m, fica por explicar o regresso a Vila Nova de Famalicão na manhã seguinte.

    Os passos do arguido a seguir a sair de casa de NN são descritos no RAI nos pontos 31) a 42) do artigo 44.º (fls. 1068/9), dos quais emergiram os factos provados FP n.º 28 a 36, sendo remetidos para o lote dos Factos Não Provados os constantes dos FNP n.º 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33 e 34, a fls. 1888, sendo que no FNP n.º 31 (proveniente do n.º 39) do artigo 44.º), a consignação do não provado deve referir-se apenas à expressão “no dia seguinte”, porque na realidade a terceira tentativa foi no mesmo dia das anteriores, sendo que efectivamente foi efectuada mais uma tentativa de levantamento, como foi dado por provado no FP 35.

    Sabendo-se que o arguido à data dos factos encontrava-se a tirar o curso de Ciências Forenses e Criminais, como decorre do FP 42, no Instituto Superior de Ciências da Saúde, em Gandra, como se alcança do FP 48, vivendo então em Gandra, tendo-se deslocado a Joane em 29-03-2012, cerca das 21 horas, e tendo-se dirigido, após os factos ocorridos em casa da tia, no sentido Vila Nova de Famalicão (FP 28), fez duas tentativas de levantamento com o cartão multibanco da tia, por volta das duas horas do dia 30, ambas na mesma ATM, em Joane, na Rua Mato Senra, como resulta dos FP 31, 32 e 44.

    Após a segunda tentativa – FP 33 – “regressou ao seu veículo e conduziu para a EN 206, no sentido de Vila Nova de Famalicão”, tendo durante o percurso atirado a bolsa para uma zona de mato como consignado no FP 34.

    Mas de seguida, no FP 35 dá-se por provado que “No mesmo dia 30 de Março de 2012, durante manhã, regressou a Vila Nova de Famalicão para efetuar mais uma tentativa de levantamento com o cartão multibanco que tinha retirado de casa de NN”.

    Anota-se que conforme FP 69 o arguido voltou a Vila Nova de Famalicão, a tentar utilizar o cartão.

    Ora, se o arguido se dirigiu no sentido de Vila Nova de Famalicão (FP 33), como explicar o regresso a Vila Nova de Famalicão?

    (Verdade é que a direcção em certo sentido não significa exactamente o destino, podendo outros sentidos serem tomados depois. Segundo o FP 28 seguiu no sentido VNF, mas as tentativas tiveram lugar em Joane).

    O regresso a Vila Nova de Famalicão só fará sentido se depois das duas tentativas de levantamento de dinheiro em Joane, o arguido tivesse ido para Gandra e então, aí, sim, faria sentido regressar a Vila Nova de Famalicão.

    A aceitação da tese das assistentes vertida no artigo 38 do RAI, segundo a qual o arguido teria regressado a Gandra – e agora independentemente de ter evitado ou não vias com portagens – explicaria o regresso a Vila Nova de Famalicão.

    O regresso a Gandra, agora já depois da terceira tentativa, na manhã do dia 30, foi referido no artigo 42 do RAI.

    Estes regressos a Gandra foram dados por não provados nos FNP 30 e 34.

    Mas se o arguido não regressou a Gandra, para onde teria ido, por onde terá andado, para mais de sete horas depois, regressar a Vila Nova de Famalicão?

    Note-se que entre a segunda tentativa de levantamento em Joane, que teve lugar pelas 02:16:06 e a terceira, agora no Banco ... verificada na manhã do dia 30 de Março, pelas 10:05:10, decorreram 7 horas, 49 minutos e 4 segundos.  

    Mas mais.

    Porquê regressar a Vila Nova de Famalicão, menos de oito horas depois da segunda tentativa, para usar a ATM do ... em Vila Nova de Famalicão?

    Porque não tentar o acerto em qualquer outro local?

    Não havia qualquer necessidade de regressar a Vila Nova de Famalicão.

    O cartão da falecida poderia ser usado em outro local, mais ou menos longínquo (porque não em Gandra, a 55 km?), sem necessidade de qualquer regresso a Vila Nova de Famalicão, sendo que o regresso nem deu para acertar no número de código.

    Mais. Sabido que o arguido não sabia o código, porque não terá encetado as três tentativas seguidas, voltando horas depois para tentar a terceira?

    O FP 47 – Simultaneidade e ubiquidade

    Foi dado por assente no FP 47:

«47. Aquando da tentativa de uso na agência do ... de Vila Nova de Famalicão (30. 3.2012), pelas 10:05:10, foi efetuada uma chamada às 10:13:50, do seu número ... para o número ..., que ativa a localização de BTS de Campo, no concelho de Paredes, à uma distância aproximada daquela».

    Este FP foi extraído do artigo 15 da contestação, a fls. 1324, na sequência do alegado no artigo 14, dado por provado, no essencial, no FP 46, e cujo teor é o seguinte:

    “O mesmo se diga quanto à tentativa de levantamento na agência do ... de Vila Nova de Famalicão, pelas 10:05:10, quando o arguido realizou uma chamada às 10:13:50 do seu número ... para o número ..., que activa a localização de BTS de Campo, no concelho de Paredes, à mesma distância de cerca de 45 km”.

    Na sequência do afirmado no anterior artigo de que não era possível estar em dois sítios diferentes e distantes num espaço muito curto, o que foi consignado no FP 46 (afastando o dom da ubiquidade em termos semelhantes, veja-se a formulação conclusiva contida no FP 50), o acórdão na narrativa adoptada acaba por descontextualizar o que dá por provado, emprestando uma ideia de simultaneidade, que de todo não está no texto, tendo saído algo incongruente.

    Concretizando.

    Não se pode afirmar que um telefonema, qualquer que seja, seja feito aquando de uma tentativa de levantamento de dinheiro numa caixa, quando entre a chamada e a tentativa decorrem oito minutos e quarenta segundos.

    A chamada é realizada pelas 10:13:50, quando a tentativa de uso do cartão teve lugar pelas 10:05:10.

    Por outro lado.

    O arguido alegara no mesmo artigo 15 que efectuara uma chamada às 10:13:50 do seu número ....

    O acórdão não deu por provado que tivesse sido o arguido a fazer a chamada, como se vê do FNP 43, a fls. 1889, com erro na terminação do segundo telemóvel: 63 e não 83.

    Mas não tendo sido dado por provado que tivesse sido o arguido a fazer a chamada, como explicar a manutenção do “seu número ...”?

    Visto o FP 48 (extraído do artigo 16 da contestação), o referido telefonema das 10:13:50 situar-se-á no tempo de intervalo da aula de Farmacologia Aplicada, Turma 2.

    Assim como a terceira tentativa de levantamento pelas 10:05:10, conforme FP 49 (extraído do artigo 17 da contestação).

    De qualquer forma, manifestamente anódina a afirmação do FP 50 (extraído do artigo 18 da contestação), pois que não obstante a expurgação contida no FNP 46 (idem), não deixa de ser conclusivo afirmar-se como ali se faz que “É impossível a presença do arguido em dois sítios ao mesmo tempo, sendo que entre estes, distam mais de 40 km”.  

     A posição do Tribunal da Relação do Porto

     A conduta contundente

 

     O acórdão do Tribunal da Relação do Porto procedeu a uma significativa modificação na matéria de facto, em que no fulcro afasta a intenção de matar e a tese da morte por asfixia, dando por assentes nove lesões, compreendendo fractura multicominutiva da pirâmide nasal – já constante dos FP 20 e 61 – fractura do corno superior esquerdo da cartilagem tireoide, presente no FP 12, e provocada, na tese da acusação, pela compressão da almofada, agora dada por não provada, e sete lacerações, uma já dada por provada (com 2 cm por 0,3 cm) nos FP13 e 20, sendo as restantes dadas por não provadas na primeira instância no FNP 21 e uma dessas (com 5 cm por 1cm) já constando no FNP 18.

    Baseando-se no relatório de autópsia e na perita em Anatomia Patológica, Dra. ..., a partir da consideração de “traumatismo de ofensa de natureza contundente”, avança para a consagração da tese do uso de objecto de natureza contundente ou actuando como tal - Novo FP 10 - de uma conduta de natureza contundente do arguido - Novo FP 12 - ou tão só conduta contundente na cabeça, como nos Novos FP 13 e 14.

   O acórdão recorrido afasta a asfixia, possibilidade constante do relatório de autópsia, não por específica fundamentação, mas por uma razão de necessidade de expurgação de afirmação de sinal contrário, em ordem a evitar o vício do artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do CPP.

   O Relatório de Autópsia Médico-Legal, realizada em 13-04-2012, datando o relatório de 11-09-2012, constante de fls. 599-602, apresenta as seguintes conclusões:
1. Em face dos dados necrópsicos e da informação atrás transcrita a morte de II pode ter sido devida a asfixia por obstrução externa das vias aéreas com almofada.
2. Devido ao avançado estado de decomposição cadavérica, não é possível determinar com um elevado grau de certeza a causa da morte.
3. Na hipótese de agressão, a morte poderá ter ocorrido como efeito necessário da ofensa.
4. Não foram observadas lesões traumáticas mortais.
5. As lesões traumáticas observadas, não sendo mortais, terão resultado de traumatismo contundente.

    No Relatório de Anatomia Patológica Forense, de 13-07-2012, elaborado por Dra. ..., fls. 605/6, consta como «Causa provável da morte “Asfixia por obstrução externa das vias aéreas e eventual asfixia mecânica por eventual esganadura”», apontando para a existência de uma única lesão vital, isto é, realizada alguns minutos antes da morte.

    Analisando o relatório de autópsia, retira-se que:

    Na conclusão 1, é expressa uma possibilidade – a possibilidade de a morte ter sido devida a asfixia por obstrução externa das vias aéreas com almofada.

    Na conclusão 2, afirma-se a não possibilidade de determinar com um elevado grau de certeza a causa da morte.

    Na conclusão 3, é referida uma possibilidade, mas tendo pressuposta uma hipótese, uma hipótese de agressão, afirmando-se que nessa hipótese a morte poderá ter ocorrido como efeito necessário da ofensa.

    Na conclusão 4 é expressa uma certeza – a certeza de que as lesões traumáticas observadas não são mortais.

    Na conclusão 5, repetindo a expressão daquela certeza – não sendo mortais – afirma uma possibilidade em relação à causa das lesões traumáticas e assim afirma que terão resultado de traumatismo contundente.

    O único caso de afirmação no relatório de autópsia de uma possibilidade (sem pressuposto em alguma hipótese) é a apontada em primeiro lugar, ou seja, asfixia, que é indicada no relatório de anatomia patológica de 13 de Julho de 2012 como causa provável da morte.

    Após enunciar as nove lesões descritas no relatório de autópsia, que entende dar por provadas, expende o acórdão recorrido, a fls. 2533 verso:

    “O facto de à Perita de Anatomia Patologia só ter sido possível confirmar histologicamente como sendo vital no sentido de ter sido realizada alguns minutos antes da morte apenas a lesão encontrada na «Pele e tecido subcutâneo do couro cabeludo da região “frontal E” …» por ali ter detectado «… sinais de perda de continuidade da pele e infiltração hemorrágica recente e extensa dos bordos e fundo da lesão; ausência de infiltrado inflamatório e marcação focal de células endoteliais pela selectina–P », não obsta à consideração de todas as lesões supra elencadas terem sido vitais no sentido provocadas ou produzidas como infra se precisará antes da morte de morte de ..., porque aquela Perita competentemente notou quanto aos outros tecidos colhidos do corpo de ... que « Não é possível confirmar a existência das restantes lesões suspeitas, dada a autólise tecidular acentuada» e nada se vislumbra que permita sequer indiciar que ... tenha sido pluriofendida quando já cadáver,(…).

    Adiante, como não foi possível afirmar médico-legalmente que alguma das 9 lesões supra elencadas tenha efectivamente sido causa directa e necessária da morte de ..., a «etiologia da morte» que foi possível apurar preclude a possibilidade de compreensão da execução de um «método de matar» que preclude os elementos cognitivo e volitivo do «dolo de matar» pelo que a condenação pelo crime doloso de homicídio não pode subsistir de facto e de Direito”.

    E prosseguindo, afirma:

    “Como foi possível afirmar médico-legalmente que, apesar das 9 lesões supra elencadas não serem a se de considerar como directa e necessariamente mortais, a morte poderá ter ocorrido, mercê de tais 9 lesões supra elencadas, como efeito necessário, no sentido médico-legal por ser o do exame, de traumatismo de ofensa de natureza contundente, designadamente por obstrução externa das vias aéreas, perfectibiliza-se de facto um caso de ofensa à integridade física grave por perigo de vida agravado pelo resultado morte (a questão da «qualificação» ou não é de Direito pelo que adiante será abordada no momento próprio)”. (Negrito do texto. Sublinhado nosso).

    Daí concluir que o acórdão recorrido padece do vício «Erro notório na apreciação da prova» de confecção da decisão recorrida e a partir daí segue-se aquilo que apelida de “versão condensada de factos que ficam uns «provados» e outros «não provados», dando nova redacção aos FP 10, 11, 12, 13 e 14, eliminando o teor de outros factos. 

    Vejamos.

    Da argumentação do acórdão recorrido retira-se que ponto fulcral é a consideração do “traumatismo de ofensa de natureza contundente”, mas não pode deixar de causar estranheza e perplexidade o que se segue, pois, a morte poderá ter ocorrido, mercê das 9 lesões, como efeito necessário do dito traumatismo de ofensa de natureza contundente, designadamente por obstrução externa das vias aéreas, obstrução essa que no mesmo relatório de autópsia é apontada como causa de … asfixia!, sendo que, como se viu, no Relatório de Anatomia Patológica Forense consta como causa provável da morte “Asfixia por obstrução externa das vias aéreas …”.

    O acórdão procedeu a alteração da matéria de facto, por em seu entender se verificar erro notório na apreciação da prova – perícia médico-legal –, prescindindo de determinar o reenvio dos autos para novo julgamento, nos termos do artigo 426.º do CPP, dando por provadas todas as lesões constantes do relatório de autópsia, optando pelo traumatismo contundente.

    A morte por asfixia, possibilidade integrante do juízo pericial, apontada inclusive, em primeiro lugar, é afastada sem fundamentação de fundo, não se vislumbrando a mínima preocupação em justificar-se a tomada de posição de implosão da tese do uso de almofada e asfixia, afastada “congruentemente, para se precludir o vício «contradição insanável…» do art 410-2-b do CPP”, apenas para “prevenir o sobredito vício”, para impedir a evidente contradição caso permanecesse alguma referência, afastando tudo quanto relacionado com uso de almofada, almofada que desaparece por completo do quadro factual descrito pelo Tribunal da Relação, mas que estava efectivamente presente na cena do crime. (O que faria uma almofada num quadro de conduta contundente?).

    Como dissemos, a primeira possibilidade avançada pelo relatório de autópsia foi a de a morte ter sido devida a asfixia por obstrução externa das vias aéreas com almofada.

    Como consabido, a prova pericial constitui uma das excepções ao princípio da livre apreciação da prova.

     Conforme jurisprudência assente, o juízo pericial mostra-se revestido de especial força probatória, presumindo-se o juízo subtraído à livre apreciação do julgador, que sempre que divergir do laudo, deve fundamentar a divergência nos termos do artigo 163.º do CPP (i.a., acórdão de 13-11-2013, processo n.º 33/05.0JBLSB.C1.S2-3.ª).

     Como também é assente, se o juízo não tem o sinal de certeza, como é o caso, é legítima a livre apreciação nos termos do artigo 127.º do CPP.

      Ora, no caso, não teve lugar uma apreciação, antes apenas uma composição de texto, que determinou a extirpação de tal tese, para evitar contradição.

      Ao proceder à alteração da matéria de facto, o acórdão recorrido utilizou quatro métodos: alterou a redacção de FP, eliminou teor de outros, eliminou segmentos de teor de outros ainda e deu por não provado, em jeito condensado, um acervo de factos antes dispersos.

      Assim:

      Alterou a redacção dos FP 10, 11, 12, 13 e 14;

      Julgou «não provado» um conjunto de factos;

      Eliminou o teor dos FP 65, 66, 13 e 20;

      Eliminou segmentos do teor dos FP 58 e 72;

      Eliminou o teor dos FNP 18, 20, 21, 55 e 56, para evitar o vício de contradição.      

       Ao alterar a redacção dos FP 10, 11, 12, 13 e 14, o acórdão erradica a tese da utilização da almofada, compressão na face de NN e consequente asfixia, e por último, do homicídio doloso, vertida nesses FP no acórdão de 1.ª instância, o que é complementado pela eliminação do teor dos FP 65 e 66 e ainda do segmento do FP 72, (nessa altura, optou por matar a tia com as próprias mãos), bem como do segmento do FP 58 em que se refere a compressão com a almofada e ainda pela formulação do «não provado», deste teor:
· Julga-se «não provado» que o Arguido tivesse querido e conseguido tirar a vida de NN mediante pegar numa almofada, sua compressão sobre a face da tia de modo que a mesma não conseguisse respirar e manutenção de tal compressão até que a mesma deixasse de oferecer resistência por provocação de fractura do corno superior esquerdo da cartilagem tiróide e sequente morte de NN por asfixia - em condensação do teor dos factos a quo julgados provados sob 10 a 12 e 14 ;

      O Tribunal da Relação redige um facto «não provado», não como FNP autónomo, a que não corresponde um número, mas “em condensação do teor” dos FP 10 a 12 e 14, ou seja, do teor primitivo desses factos, que na versão do Tribunal já respeitam a algo completamente diferente do texto inicial e antagónico mesmo.

     Com a alteração da redacção dos FP 10, 11, 12, 13 e 14, o Tribunal da Relação assume como causa “remota” da morte de NN as lesões produzidas por aquilo a que chama “conduta contundente”, alargando o número de lesões das provadas três (as duas fracturas e a laceração com 2cm por 0,3 cm) para nove, e porque assim é, faz sentido dar por não provado o que constava dos FP 13 e 20 (embora seja eliminado apenas o respectivo teor), no sentido em que significavam uma realidade menor e menos compreensiva da incluída no novo FP 11, o mesmo se passando com os FNP 18 e 21 e 55, todos reportados a lesões.

     Resta equacionar a “eliminação do teor” dos FNP 20 e 56, tendo como traço comum a afirmação de não provado que o arguido tivesse desferido à NN mais do que um golpe ou pancada na cabeça.

     Perguntar-se-á qual o sentido e alcance desta eliminação de teor de pontos de facto que têm de comum a (não) presença de mais do que uma agressão com objecto na cabeça da vítima.

     Compreender-se-ia no caso de se dar como provado que tivesse sido mais do que uma, a “justificar” o aumento do número de lesões, de 3 para 9, causadas por traumatismo contundente.

     NN foi agredida já caída no chão e a aposição da expressão (conforme acima exposto) só pode ter o significado de ter caído desamparada no chão por força de empurrão, facto narrado no precedente FP 9, que ficou incólume, como inalterado ficou o segmento do FP 58, que reporta esse mesmo empurrão, o qual é repetido nos FP 62 e 64 e ainda no FP 72, na parte subsistente.

     O FP n.º 12, ressalvado o devido respeito, quanto a nós suscitando alguma dificuldade de leitura (apenas de fls. 2538 verso ao alto, se retira a alusão a “provocação de perigo de vida”, tendente a integrar a alínea d) do artigo 144.º do Código Penal, o que só por si não confere clareza ao texto), introduz um factor de perturbação.

     Dá-se por provado que: 

«12. Da provocação, por conduta de natureza contundente do Arguido, das lesões na cabeça de NN que caiu desamparada no chão da sala da sua residência, ali permaneceu até à sua morte por evolução clínica daquelas».

     Pergunta-se se caiu por força do empurrão ou por força da conduta de natureza contundente.

     Relativamente ao número de pancadas ou golpes na cabeça, retirando-se o teor da afirmação de que não ficou provado que tivesse havido mais do que uma pancada ou um golpe, certo é que foi dado por provado no novo FP 10 que “Já com a tia no chão…, o arguido desferiu-lhe golpe ou pancada na cabeça …”

     Debruçando-se o acórdão recorrido longamente sobre o “método de matar”, a solução acabou por dar com um “método de agredir” com efeito letal diferido, pois foi dado por provado que: 

«13. Agindo do modo que se descreveu o Arguido quis ofender a integridade física de NN, o que conseguiu fazendo perigar a vida dela pelo modo descrito com o qual o Arguido produziu a morte de NN por tal evolução das lesões da conduta contundente na cabeça dela».

     Mas não se explicando em que teria consistido a “evolução clínica” “das lesões da conduta contundente na cabeça dela” que, em juízo pericial médico-legal, foram consideradas como não mortais.

     Mais à frente, a fls. 2537, ao abordar a subsunção dos FP como crime, o acórdão da Relação refere:

      “Julgado provado diferentemente da versão a quo que:”, começando por incluir o FP 9, o qual permaneceu inalterado.   

                                                               *******

      Fundamentação de facto - Fundamentação derivada - Nulidade do acórdão recorrido por inobservância da injunção do n.º 2 do artigo 374.° - Artigo 379.º, n.º 1, alínea a), como aquele do Código de Processo Penal.

      O acórdão proferido pelo Colectivo de Vila Nova de Famalicão, em sede de fundamentação de facto, na respectiva descrição, encontra-se dividido em “Capítulos”, denunciadores da fonte, da concreta peça processual donde foram retirados, subordinado a números, que separam, enumeram um a um, individualizando, concretizando, os diversos, todos e cada um, factos dados por provados e não provados, o que se mostra conveniente, útil, prático, mas não condensando, como devia, de modo a conduzir a uma rápida compreensão do acervo fáctico adquirido. Pelo contrário, apresenta repetições desnecessárias.

      O acórdão ora recorrido, na descrição dos factos provados, procedeu a alterações, mantendo na íntegra alguns dos que se encontravam elencados no acórdão do Colectivo de Vila Nova de Famalicão, no que concerne aos pontos de factos provados, não tendo sido claramente colocado no segmento destinado a enumeração de factos não provados, o facto condensado que deu por não provado.


*********

     Definindo os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, dispõe o artigo 434.º do CPP, que «Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito».

     Estabelece o n.º 1 do artigo 410.º do CPP que «Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida».

     O n.º 2 estatui que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou o erro na apreciação da prova, desde que qualquer dos vícios resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo tais vícios do conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso, de harmonia com o acórdão de 19-10-1995, Diário da República, I Série - A, de 28-12-1995.

     O n.º 3 prescreve, por seu turno que, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ainda ter como fundamento a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.

     A verificação de existência de nulidade, seja por via de requerimento da parte, seja por via oficiosa - actualmente, e a partir de 1 de Janeiro de 1999, com a Reforma de 1998 - possibilita a indagação por parte do tribunal superior em matéria de facto, mesmo que o recurso se circunscreva a matéria de direito, alargando-se assim o quadro de possibilidades de incursão no plano fáctico, também possível através da análise da existência de vícios decisórios.

      Para indagar da existência da invocada nulidade, importa ter em conta a factualidade certificada na decisão recorrida, impondo-se cotejar a fundamentação do acórdão da Relação e do acórdão do Colectivo sobre que incidiu a reapreciação.

    Vejamos se o acórdão sob censura está ferido de nulidade.

   

      O legislador constituinte em 1976 a respeito de fundamentação omitiu qualquer referência.

      A consagração na Lei Fundamental do dever de fundamentação das decisões judiciais veio a verificar-se com a primeira revisão constitucional operada pela Lei Constitucional n.º 1/82, de 30/09, prescrevendo então o n.º 1 do artigo 210.º que «As decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei», redacção que se manteve no n.º 1 do artigo 208.º na revisão da Lei Constitucional n.º 1/89, de 08/07, bem como na revisão da Lei Constitucional n.º 1/92, de 25/11, sofrendo alteração na 4.ª revisão constitucional - Lei Constitucional n.º 1/97, de 20/09 - passando então a dispor o n.º 1 do artigo 205.º que «As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei».

      A propósito desta alteração pode ler-se no acórdão n.º 680/98 do Tribunal Constitucional, processo n.º 456/95, de 02-12-1998, in Diário da República, II Série, de 05-03-1999: “A Constituição revista deixa perceber uma intenção de alargamento do âmbito da obrigação constitucionalmente imposta de fundamentação das decisões judiciais, que passa a ser uma obrigação verdadeiramente geral, comum a todas as decisões que não sejam de mero expediente, e de intensificação do respectivo conteúdo, já que as decisões deixam de ser fundamentadas «nos termos previstos na lei» para o serem «na forma prevista na lei». A alteração inculca, manifestamente, uma menor margem de liberdade legislativa na conformação concreta do dever de fundamentação”.

    No plano da lei ordinária e no que respeita à lei adjectiva penal, a motivação em processo penal é introduzida apenas no Código de Processo Penal de 1987, com o artigo 374.º.

    Definindo os requisitos da sentença penal dispõe o artigo 374.º, n.º 2, do CPP, na redacção actual, dada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, entrada em vigor em 1 de Janeiro de 1999, e mantido inalterado pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto e subsequentes alterações:

     «Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».

      Relativamente à versão anterior, a resultante da Reforma de 1998 apenas introduziu a necessidade do exame crítico das provas.

      No caso em reapreciação não se está perante uma fundamentação completa, como o exige o n.º 2 do artigo 374.º do CPP.

      Só a enumeração concreta e especificada dos factos alegados na acusação ou na pronúncia e, eventualmente nos casos em que existam, contestação criminal, pedido cível deduzido e contestação a este, permite ao tribunal superior, em recurso, determinar se certo facto foi efectivamente apreciado e considerado provado ou não provado, ou se, pelo contrário, nem sequer foi considerado.

     A jurisprudência do STJ firmou-se, de há muito, no sentido de que a decisão deve conter a enumeração concreta, feita da mesma forma, dos factos provados e não provados, com interesse e relevância para a decisão da causa, sob pena de nulidade, desde que os mesmos sejam essenciais à caracterização do crime em causa e suas circunstâncias, ou relevantes juridicamente com influência na medida da pena, desde que tenham efectivo interesse para a decisão, mas já não no caso de factos inócuos, excrescentes ou irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação e/ou na contestação, ou ainda a matéria de facto já prejudicada pela solução dada a outra.

     Como se extrai do acórdão de 26-05-1999, proferido no processo n.º 1488/98-3.ª “Sumários”, n.º 31, pág. 90, “de acordo com o disposto pelo art.º 374.º, n.º 2, do CPP, o tribunal tem de especificar todos e cada um dos factos alegados pela acusação e pela defesa, bem como os que tiverem resultado da discussão da causa, relevantes para a decisão, como provados e não provados”.

     A jurisprudência há muito sedimentou o entendimento já exposto, podendo ver-se neste sentido os acórdãos do STJ, de 21-06-1989, processo n.º 40076; de 28-03-1990, processo n.º 40736; de 26-09-1990, BMJ n.º 399, pág. 432; de 03-04-1991, CJSTJ 1991, tomo 2, 19; de 29-05-1991, BMJ n.º 407, pág. 361; de 05-06-1991, CJ1991, tomo 3, pág. 29; de 23-10-1991, BMJ n.º 410, pág. 622; de 18-12-1991, BMJ n.º 412, pág. 383; de 26-03-1992, BMJ n.º 415, pág. 499; de 27-05-1993, processo n.º 43973; de 10-11-93, CJSTJ 1993, tomo 3, pág. 233; de 10-03-1994 (dois), BMJ n.º 435, págs. 653 e 658; de 11-05-1994, processo n.º 46160, BMJ n.º 437, pág. 382 (o desejo da lei é criar a certeza, especialmente para o Tribunal de recurso, de que os factos, todos os factos, foram considerados, sofreram votação do colectivo. Não esclarecendo o acórdão recorrido os factos que não foram provados, impõe-se que o mesmo seja declarado nulo); de 28-09-94, CJSTJ 1994, tomo 3, pág. 206; de 10-05-1995, BMJ n.º 447, pág. 331; de 29-06-1995, CJSTJ 1995, tomo 2, pág. 254; de 25-10-1995, BMJ n.º 450, pág. 339; de 11-01-1996, processo 48474, CJSTJ 1996, tomo 1, pág. 19 e BMJ n.º 453, pág. 298; de 04-06-1996, BMJ n.º 458, pág. 169; de 09-07-96, BMJ n.º 459, pág. 178; de 15-01-1997, CJSTJ 1997, tomo 1, pág. 181; de 16-01-1997, CJSTJ 1997, tomo 1, pág. 202; de 16-10-1997, CJSTJ 1997, tomo 3, pág. 210; de 21-01-1998, BMJ n.º 473, pág. 374; de 11-02-1998, BMJ n.º 474, pág. 151; de 04-06-1998, BMJ n.º 478, pág. 7; de 07-10-98, CJSTJ 1998, tomo 3, pág. 183; de 29-03-2000, processo n.º 57/2000, SASTJ n.º 39, pág. 60; de 14-07-2008, processos n.º 1775/07 e n.º 1880/07, da 3.ª Secção.

     O tribunal no cumprimento da obrigação de fundamentação “completa”, há-de apresentar uma fundamentação que permita uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão, com referência ao que adquirido foi e o não foi em termos da facticidade apurada, se possível com explicitação diferenciada do que resultou da acusação, ou do que adveio da contestação e do que emergiu da discussão em audiência, com reporte ao modo de aquisição, permitindo a “transparência do processo e da decisão”, para utilizar a expressão de Michele Taruffo, Note sulla garantia constituzionale della motivazione, in BFDUC, ano 1979, volume LV, pág. 31, citado, i. a., no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 680/98, de 2 de Dezembro de 1998, in Diário da República, II Série, de 5 de Março de 1999, tendo que deixar bem claro que foram por ele apreciados todos os factos alegados, com interesse para a decisão, incluindo essa apreciação os que não foram considerados provados - cfr. acórdãos do STJ, de 18-12-1991, BMJ n.º 412, pág. 383; de 11-02-1993, CJSTJ 1993, tomo 1, pág. 191, donde se extrai que «Na fundamentação do acórdão deve constar os factos provados e os não provados que tiverem sido alegados na contestação»; de 11-05-1994 (dois), BMJ n.º 437, págs. 382 e 389; de 28-09-1994, CJSTJ 1994, tomo 3, pág. 206; de 30-04-1997, CJSTJ 1997, tomo 2, pág. 195; de 09-10-97, BMJ n.º 470, pág. 364; de 16-10-97, CJSTJ 1997, tomo 3, pág. 210; de 12-03-98, BMJ n.º 475, pág. 233; de 20-10-2011, processo n.º 36/06. 8GAPSR.L4.S4-3.ª.

     Enumerar é enunciar, ou expor um a um, narrar minuciosamente, especificar, demarcar, seleccionar, metodicamente.

      Assim, tal exigência só poderá cumprir-se através de uma enunciação ou indicação, um a um, isto é, de uma descrição especificada, dos factos alegados pela acusação e pela defesa, como ainda os resultantes da discussão da causa.

     Estará satisfeita a exigência de fundamentação de facto no acórdão recorrido?

     Sendo decisão recorrida um acórdão da Relação, estamos face a uma fundamentação derivada, havendo que convocar o disposto no artigo 425.º do CPP.

     Inserto no Capítulo II - “Da tramitação unitária”, do Título I - “Dos recursos ordinários” do Código de Processo Penal, estabelece o artigo 425.º, sob a epígrafe (Acórdão), que:

      (…)

      4 – É correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto nos artigos 379.º e 380.º, sendo o acórdão ainda nulo quando for lavrado contra o vencido, ou sem o necessário vencimento”.

      Este n.º 4 foi introduzido pela reforma operada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, a qual alterou e republicou o Código de Processo Penal, tendo modificado a redacção do n.º 2 e aditado os n.º s 3, 4 e 5, regulando pontos em que a versão originária se mostrava omissa, sendo por isso necessário recorrer a dispositivos do processo civil, contrariamente à orientação geral do Código de 1987, com a inicial proclamação de autonomia e auto suficiência regulamentadora.

     O referido n.º 4 teve por fonte o artigo 716.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (actual artigo 666.º), o qual sob a epígrafe “Vícios e reforma do acórdão”, dispunha: “É aplicável à 2.ª instância o que se acha disposto nos artigos 666.º a 670.º (actualmente, artigos 613.º a 617.º), mas o acórdão é ainda nulo quando for lavrado contra o vencido ou sem o necessário vencimento”.

      Ora, os artigos 666.º a 670.º do Código de Processo Civil reportam-se aos vícios e reforma da sentença, abrangendo rectificação de erros materiais, nulidades da sentença, esclarecimento ou reforma da sentença e suprimento de omissão ou de nulidades.

     Com o Decreto-Lei n.º 320-C/2000, de 15 de Dezembro, foi alterado o n.º 5, cujo teor passou a constituir o n.º 6.

     O artigo 425.º veio a ser de novo alterado pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, a qual alterou os n.º s 1, 2, 3 e 7, mantendo imodificado o n.º 4, inalterado nas subsequentes modificações.  

     Se é certo que por força do n.º 4 do artigo 425.º do CPP é correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto no artigo 379.º, ou seja, a arguição ou o conhecimento oficioso de nulidade (por violação da injunção contida no n.º 2 do artigo 374.º, ou por o tribunal ter deixado de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar - alíneas a) e c) do n.º 1 daquele artigo 379.º), não menos verdade será que tal aplicabilidade terá os limites decorrentes da própria natureza da intervenção do tribunal de recurso a nível da fundamentação de facto e, mais especificamente, da motivação e do exame crítico das provas, que têm lugar na 1.ª instância, com amplas possibilidades de cognição e investigação, actuando em registo de oralidade, imediação e concentração, o que não acontece na Relação.

      Não sendo de exigir a amplitude que deve estar presente na decisão de primeira instância, a verdade é que havendo, como no caso presente, alteração substancial do conjunto dos factos provados e não provados, impõe-se a observância da injunção do disposto no artigo 374.º, n.º 2, do CPP, com a enumeração dos factos provados e não provados.  

      A bem das garantias de defesa do arguido e melhor percepção por parte do tribunal de recurso, na fundamentação do acórdão deveriam constar, em bloco, de modo definitivo, preciso, claro e transparente, todos os factos provados e os não provados, que emergiram das modificações operadas pelo recurso em sede de matéria de facto, as quais foram significativas, bastando ter em conta que a formulação do juízo substitutivo da Relação com diversa qualificação jurídico – criminal, conduziu a que o acórdão condenatório de Vila Nova de Famalicão por homicídio qualificado, desse lugar a condenação por crime diverso, de ofensa à integridade física agravada.

      Vejamos como procedeu o acórdão recorrido.

      A alteração da matéria de facto foi efectuada por o Tribunal da Relação do Porto ter entendido que o acórdão recorrido padecia do vício «Erro notório na apreciação da prova», conforme fls. 2534, em função do que alterou a redacção dos FP 10 a 14 e depois, para prevenir o vício da contradição insanável na fundamentação procedeu a outras alterações.

     Logo de seguida avança-se de imediato para o tratamento da matéria de direito, quando a anteceder o tratamento subsuntivo, impunha-se a enumeração, consignação, certificação na sua globalidade, do acervo factual dado por provado e não provado.

     No segmento da fundamentação de facto o acervo adquirido ficou disperso, sendo uma parte de fls. 2503 até fls. 2510 com a elencagem de todos os factos, em transcrição/reprodução do texto do acórdão do Colectivo de Vila Nova de Famalicão, seguindo-se a nova fixação de facto, resultante das alterações introduzidas, denominada de “uma versão condensada de factos que ficam uns «provados» e outros «não provados», de fls. 2534 e verso e 2535, com nova redacção dos FP 10, 11, 12, 13 e 14, seguindo-se “Congruentemente, para se precludir o vício «contradição insanável …» do art 410-b-2 do CPP”, a indicação de um «não provado», “em condensação do teor dos factos a quo julgados provados sob 10 a 12 e 14”, sem atribuição de número próprio e “desgarrado” dos precedentes FNP.

     A definição da matéria de facto na opção do Tribunal da Relação do Porto é feita, pois, em dois momentos diversos e colocada em espaços distanciados, de forma fragmentária, não se podendo olvidar que houve FP e FNP presentes no acórdão de 1.ª instância, cujo teor foi eliminado, restando apenas a indicação de um número, que passa a não corresponder a coisa alguma e nos casos de cortes parciais de teor temos factos com texto integral na formulação inicial e mais de vinte folhas à frente a afirmação de que afinal o texto completo não vale, mas apenas a parte sobrante à que foi excluída, num exercício de convivência pacífica entre um número com texto completo e o mesmo número com texto em parte excluído, o que obrigará o leitor a um contínuo exercício de vai vem e de composição própria, que de todo, é de evitar, excluindo-se este tipo de composição, em respeito aos destinatários.

     Os FP com eliminações de teor na totalidade e por segmentos, cortes parciais, deveriam ser reformulados num contexto global onde ganhassem congruência.   

     Após estas modificações com a matéria de facto definida em dois sectores, intrometendo-se de permeio texto de 24 folhas com versos, o acórdão avança de imediato para a integração da conduta em crime diverso, a fls. 2535, dizendo “Como os factos que ficam provados consubstanciam a autoria material pelo Arguido de um crime doloso de ofensa à integridade física qualificada, p. p. arts 144.d e 145-1- b -2 ex vi 132-2-c agravado pelo resultado morte conforme art 147-1 todos do Código Penal”.

     Ora, a verdade é que o acórdão avança para a subsunção sem se mostrar definida na sua completude e inserta num corpo único, global, completo, coerente, congruente, inteligível, imediatamente acessível aos destinatários (uma decisão judicial será sempre uma declaração receptícia), toda a facticidade tida por provada e por não provada.

     Face às alterações introduzidas na fixação da matéria de facto, em caso em que o juízo substitutivo conduziu a subsunção em crime diverso, fechando-se o ciclo da matéria de facto na Relação, e não sendo a nova fixação de matéria de facto susceptível de impugnação pelo arguido, impunha-se maior rigor na enunciação de todo o acervo fáctico adquirido, sem deixar quaisquer margens para dúvidas relativamente ao que ficou provado e não provado.

     O acórdão recorrido referiu a ausência de condensação no acórdão da primeira instância, na nota de rodapé, n.º 109, na pág. 2530 verso, ao referir não ter sido efectuada “uma condensação lógico-cronológica dos factos que teriam historicamente ocorrido sucessivamente por forma a se apresentar uma única explicitação de devir de acontecimentos”, tendo afirmado na mesma página, estar-se “perante a «tergiversação» factual a quo provada em III partes”.

     Neste ponto, acompanhamos o acórdão recorrido, quanto ao consignado na nota de rodapé.

     Acontece, porém que as coisas não se alteraram com o acórdão recorrido, faltando condensação e ligamento entre sectores.

     O acórdão recorrido não teve em conta a injunção do n.º 2 do artigo 374.º do CPP.

     O modo de proceder nestes casos e consequências da inobservância da norma foram abordados da forma exposta em vários acórdãos deste STJ proferidos no âmbito do processo n.º 36/06.8GAPSR.L4.S4, que relatámos em 4.ª via, em 20-10-2011, e que é invocado pela Exma. PGA no parecer emitido.

     O anterior acórdão deste STJ, de 24-02-2010, proferido no aludido processo, apontava o seguinte: “Porém, não cuidou a Relação de, após, ter procedido a tais alterações - muitas e significativas - enumerar/elencar, de forma perfeitamente clara e inequívoca, quais os factos que, a final, considerou provados e quais os não provados.

Aliás, em rigor, o acórdão recorrido não refere expressamente quais os factos que considera provados e quais os que considera não provados”.

     Apontava ainda a necessidade de o novo acórdão a reformular, conter “fundamentação da matéria de facto, designadamente com a enumeração clara e precisa, de todos os factos provados e não provados”.

     E no subsequente acórdão de 13-01-2011, proferido no mesmo processo, afirmava-se: “a estruturação da sentença tal como se condensa no art.° 374.° n.° 2, do CPP, deve, pela sua fundamentação, habilitar os cidadãos à compreensão do raciocínio do juiz e proporcionar do modo mais adequado e eficaz o exercício do direito de submeter a sentença à apreciação de uma jurisdição superior pela via de recurso”.

     Prosseguindo, disse ainda: “A motivação, propriamente dita, enquanto enumeração dos factos provados e não provados, os motivos de facto e de direito fundantes da decisão e das concretas provas que serviram para formar a convicção do julgador, pela sanção legal cominada no art.° 379.° n.° 1 a), do CPP, mostram bem a importância que o legislador lhe atribui, como forma de o arguido ficar a conhecer as “reprovações contra ele formuladas”, os demais sujeitos processuais os seus direitos, designadamente o sucesso do recurso, como elementos constituintes do direito a um processo justo (cfr. A motivação da sentença, de Lopes Rocha, in Documentação e Direito Comparado, N.°s 75 e 76, Fevereiro de 1999, pág. 99 e segs.) e a comunidade mais vasta de cidadãos a justeza das decisões proferidas pelos seus órgãos estatais, a quem incumbe o monopólio da aplicação da justiça (Miguel Taruffo, BFDUC, vol. LV( 1979), pág. 29 e segs .

     Segue-se, pois, que a sentença constitui uma “incindível unidade lógica” (Ac. do STJ, de 17.3.2004, P.° n.º 4026/03 -3.ª Sec.) e não um mero somatório atomístico de peças, desarticuladamente entre si, desgarradamente dos seus segmentos, tal como o art.° 374.º, do CPP prevê”.

     E mais à frente, esclarecia:

    “De todo o modo o acórdão recorrido nenhuma alusão faz ao contributo do recurso da assistente e filha em termos de matéria de facto.

     Desejável seria que, como operação final na reflexão sobre a premissa da matéria de facto do silogismo judiciário a fixar, se explicitasse o elenco factual provado e não provado oriundo de l.ª instância; depois em resultado da impugnação deduzida alinhasse os novos factos provados e não provados e, por fim, apresentasse um acervo factual incorporando a versão definitiva, em fácil consulta, de modo claro, concentrado, imediatamente sequente e proximal, não disperso.

     Veja-se, por ex.°, que se reservou a afirmação da intenção homicida para depois do início do descritivo típico da profanação de cadáver, de permeio com ele, e não imediatamente antes daquele descritivo”.

    Voltando ao caso concreto.

   

    Uma narrativa lógica imporia que se agregassem todos os factos relativos ao iter executivo do crime agora dado por preenchido, sem hiatos e interpolações da descrição, em sequência lógica e não de forma esparsa, descontínua, desconexa, sem fio condutor, reformulando-se a fundamentação de facto, a descrição da matéria tida por assente, de modo a conferir ritmo descritivo, optando por uma narrativa factual sequencial, perceptível com uma simples leitura, sem demanda de “trabalho de pinças”, tentando juntar as peças dispersas.

    Na verdade, a fundamentação é apresentada de modo fragmentário, incompleto, desconexo, com falta de clareza, sequência lógica, cadência, ritmo, fluidez e de transparência, ao jeito de conjunção de peças de autêntico puzzle, a impor trabalho de busca de interligação e de conexão, não permitindo uma percepção directa, imediata, rápida, tratando-se de composição de decisão que não obedece aos cânones legais, antes emergindo do texto uma estruturação desgarrada e desconexa.

    Como anota Oliveira Mendes no Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 1169 “A omissão de fundamentação ou a fundamentação deficiente constituem nulidade de conhecimento oficioso – artigo 379.º, n.º 1, alínea a) e 2”. 

    No caso presente é patente a deficiência da fundamentação derivada presente no acórdão recorrido.   

    Repetindo-se o afirmado no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 17-03-2004, proferido no processo n.º 4026/03-3.ª Secção, e que convocámos no acórdão de 20-10-2011, no já aludido processo n.º 36/06.8GAPSR.L4.S4, “a sentença constitui uma incidível unidade lógico-jurídica, não mera soma de segmentos autónomos, qual manta de retalhos”.

    A incompletude de fundamentação é motivo de nulidade, como decorre dos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a), ambos do CPP.

    Ora, o acórdão recorrido não cumpriu a injunção legal, pois tinha o dever de enunciar com precisão e de forma hialina todos os factos provados e não provados relevantes para a imputação penal que considerou cabida e não cumpriu tal exigência de fundamentação.

    Estamos, pois, perante o incumprimento do disposto no artigo 374.º, n.º 2, do CPP, o que fere o acórdão de nulidade, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, por não conter as menções referidas no n.º 2, sendo tal nulidade de conhecimento oficioso, como decorre do n.º 2 do mesmo preceito, introduzido com a Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto.

                                                                  *******

    Atento o decidido, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões submetidas a reexame pelo recorrente (pretendida qualificação jurídica e redução da medida da pena e suspensão da execução, expressas nas conclusões 43.ª a 53.ª), bem como  do recurso das assistentes (requalificação jurídica e medida da pena, traduzidas na reposição da decisão de 1.ª instância ), nos termos dos artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aqui aplicáveis, ex vi do artigo 4.º do Código de Processo Penal.

    Decisão

    Pelo exposto, acordam nesta 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

    I - No recurso interposto pelo recorrente AA:

    I. 1. - Rejeitar o recurso interlocutório.

    II. 2. - Rejeitar o recurso principal, na parte em que impugna matéria de facto, invocando como fundamento de recurso a presença de vícios decisórios previsto no artigo 410.º, n.º 1, alíneas a), b) e c) do CPP, erro de julgamento e violação do princípio da livre apreciação da prova.

    III. 3 - Oficiosamente, anular o acórdão recorrido, por violação da injunção do artigo 374.º, n.º 2, do CPP, constituindo a nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do CPP, que deverá ser substituído por outro que contemple a observância do dever de fundamentação de enunciação clara dos factos provados e não provados, e caso entenda, face a outras deficiência assinaladas, proceder ao reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426.º, n.º 1, do CPP.

    II – No recurso interposto pelas assistentes:

    II. 1. - Rejeitar o recurso, na parte em que pretendiam impugnação da matéria de facto, com invocação do vício decisório de erro notório na apreciação da prova.  

    II. 2. - Não tomar conhecimento das demais questões colocadas, como qualificação jurídico criminal e medida e espécie da pena aplicada, atenta a anulação. 

    Sem custas, nos termos dos artigos 374.º, n.º 3, 513.º, n.º s 1, 2 e 3 e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (na redacção que lhes foi dada pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 22/2008, de 24 de Abril, e com as alterações introduzidas pela Lei n.º 43/2008, de 27 de Agosto, pelo Decreto-Lei n.º 181/2008, de 28 de Agosto, pelo artigo 156.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro (Suplemento n.º 252), pelo artigo 163.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, pelo Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de Abril e pela Lei n.º 7/2012, de 13 de Fevereiro, o qual aprovou – artigo 18.º – o Regulamento das Custas Processuais, publicado no anexo III do mesmo diploma legal), uma vez que de acordo com os artigos 26.º e 27.º daquele Decreto-Lei, o novo regime de custas processuais é de aplicar aos processos iniciados a partir de 20 de Abril de 2009, e o presente teve início em 2012).

    Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do CPP.


Lisboa, 20 de Novembro de 2014

Raul Borges (Relator)

Armindo Monteiro



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[1] Cf. Certidão de nascimento a fls. 891
[2] Cf. averbamento no registo de nascimento de fls. 881 v.
[3] Cf. averbamento de falecimento em 17.5.2012 no mesmo registo
[4] Cf. registos de nascimento de fls. 879 v. e 881 v., onde se afere esse parentesco
[5] Cf. certidão de nascimento a fls. 879 v.
[6] Cf. assento de nascimento a fls. 891
[7] Cf. respetivo assento de nascimento acima citado
[8] Cf. registo civil a fls. 6.
[9] Cf. autópsia a fls. 599 v.
[10] Cf. cliché/imagem de fls. 620
[11] Cf. imagem a fls. 56, onde se observam...
[12] Cf. relatório de autópsia médico-legal a fls. 600
[13] Cf. imagens de fls. 70 e ss. e reconstituição protagonizada pelo arguido...
[14] Cf. reconstituição a fls. 365 e ss.
[15] Cf. registo dessa operação a fls. 221
[16] Cf. registo dessa operação a fls. 222
[17] Registos dessas operações a fls. 223 e s.
[18] Cf. fls. 44 do apenso II (Listagem de chamadas efetuadas pelo n° 912 555 898), conjugada com identificação do n° chamado - 918776350, atribuído à mãe do arguido, conforme interceções notadas a fls. 17, do apenso I e 258 do processo, vol. 1°.
[19] Cf. documento de fls. 2 quanto ao momento do evento.
[20] Cf. escritos a fls. 2 e ss. do apenso IV
[21] Cf. registo de fls. 41 do apenso II
[22] Cf. simulação de fls. 784, em parte conferida pelo documentado pelo arguido a fls. 1720 e ss.
[23] Cf. fls. 42 do apenso II
[24] Cf. registos de fls. 1335
[25] Cf. CRC a fls. 1441
[26] Cf. assentos de nascimento a fls. 1075 e 1077
[27] Cf. autos de fls. 90 e ss.

[29] Cf. assento de nascimento de fls. 1079
[30] Cf. assento de nascimento de fls. 1080
[31] Cf. assento de nascimento de fls. 1082

[32] Além do que positivamente não ficou apurado supra.  /  O sublinhado pretende evidenciar o sentido da decisão.


[28] Facto público http://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ineindicadores&indOcorrCod=0001724&contexto=bd&selTab=tab246. Não é possível que o arguido estivesse em Campo às 2:03:47 e passados cerca de 12 minutos, às 2:15:17 estivesse em Joane a tentar fazer as referidas operações com o multibanco, pois Campo dista de Joane cerca de 55 km, o que torna necessário cerca de 60 minutos para os percorrer, a uma velocidade de cerca 50/70 km hora. [22]32. Tendo dado código errado, repetiu a operação às 02h16mn de 30.3.2012, tendo surgido a mesma mensagem de código errado. [16]