HIPOTECA
DISTRATE
JUROS
Sumário

1. Tratando-se de juros, a hipoteca nunca abrange, não obstante convenção em contrário, mais do que os relativos a três anos, contados a partir do incumprimento do devedor.
2. Relativamente ao devedor, o nº 2 do artigo 693º do Código Civil não proíbe que se executem juros de mais de três anos, não beneficiando da garantia hipotecária e, por isso, os juros que excedam esse período são exigíveis como crédito comum.
3. Os terceiros garantes (proprietários do imóvel hipotecado e responsáveis pela dívida na estrita medida das forças do imóvel) não respondem pelos juros que ultrapassem os três anos, contados a partir da data do incumprimento.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Processo nº 2029/17.0T8SLV-A.E1

Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Execução de Silves – J1
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
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I – Relatório:
Na presente oposição à execução mediante embargos de executado, apensa à acção executiva proposta por “(…) – Gestão de Activos, SA” contra (…) e (…), esta não se conformou com a sentença proferida.
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A embargante pedia que a excepção de prescrição fosse declarada julgada procedente, devendo consequentemente a hipoteca ser declarada extinta. E, mesmo que assim não for entendido, deveria a oposição ser julgada procedente e provada, reduzindo-se, quando muito, o montante exequendo à quantia de € 127.193,46, pelo facto da inexigibilidade dos juros ora reclamados, ou àquele que vier a ser apurado, com todas as legais consequências.
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A parte contrária apresentou articulado de contestação, sustentando a improcedência da defesa apresentada.
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Em sede de audiência prévia, o Tribunal julgou improcedentes a excepção de prescrição, o pedido de não pagamento de juros e a questão do erro no cálculo do capital em dívida.
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Inconformada com tal decisão, a recorrente apresentou recurso de apelação e as suas alegações continham as seguintes conclusões:
A) A Mmª Juiz “a quo” deveria ter-se pronunciado pelos factos alegados pela recorrente quanto à prescrição da obrigação garantida pela hipoteca e se a mesma poderia ser considerada extinta ao abrigo da al. a) do artigo 730º do CC.
B) Exorbitando os poderes de cognição, conheceu de matéria não suscitada, como conheceu ao entender que, sendo a recorrente terceira adquirente das fracções dadas à execução, a hipoteca não está prescrita nos termos do preceituado na al. b) do artigo 730º do CC, fazendo “tábua rasa” do que lhe foi colocado e que se pretendia ver decidido.
C) Decidindo, como decidiu, a Senhora Juiz violou o disposto no artigo 309º, alíneas a) e b), do artigo 730º todos do CC, tendo como consequência proferido decisão nula nos termos do disposto na alínea d) do nº 1 do artigo 615º do CPC.
Sem prescindir e subsidiariamente,
D) A Mmª Juiz “a quo”, mais uma vez, deixou de pronunciar sobre a questão levantada pela recorrente que se reconduzia a, tão só e simplesmente, saber e decidir se os juros reclamados na execução estariam cobertos pela garantia hipotecária, ou se, no entendimento de corrente jurisprudencial que interpreta o nº 2 do artigo 693º tais juros são apenas os devidos nos três primeiros anos subsequentes ao incumprimento.
E) Extravasando o seu poder jurisdicional a Mmª Juiz “a quo” entendeu conhecer da prescrição dos juros reclamados pela exequente, julgando prescritos alguns deles, questão que nunca foi levantada pela recorrente.
Assim,
F) Decidindo, como decidiu, a Mmº Juiz a quo fez interpretação e aplicação errada das normas e, em consequência, violou o disposto nos artigos 309º, 310º, al. b), 693º, nº 2, 730º, als. b) e c), proferindo decisão nula e violadora do disposto nas alíneas c), d) e ) do 615º do CPC.
Termos em que, no provimento do recurso deverá revogar-se a douta sentença ora impugnada, e substitui-la por acórdão, que respeitando o direito, decida em conformidade com as conclusões formuladas.
O que confiadamente se espera resulte da serena e esclarecida reflexão de Vossas Excelências, como é de Justiça!
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A parte contrária contra-alegou, defendendo a manutenção da decisão recorrida. *
Admitido o recurso, foram observados os vistos legais.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de:
i) nulidade por omissão e excesso de pronúncia.
ii) erro na apreciação do direito, consubstanciado na não validação da tese da prescrição do crédito exequendo, da não obrigação de pagamento de juros e no erro do cálculo da quantia exequenda.
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III – Dos factos apurados:
Do histórico do processo e da factualidade referida na decisão recorrida com relevo para a justa composição da causa importam os seguintes factos:
1) A exequente é titular do direito de crédito, garantido por hipoteca por ter adquirido o crédito que a Caixa Económica do Montepio Geral detinha sobre “(…) – Construções, Lda.”, que, por sua vez o havia adquirido à “Caixa Económica Comercial e Industrial anexa ao Montepio Comercial e Industrial, Associação de Socorros Mútuos”.
2) A exequente adquiriu o crédito que detém sobre a sociedade por quotas “(…) – Construções, Lda.”, através de contrato de cessão de créditos outorgado por escritura pública exarada de fls. 88 a 90 do livro n.º (…) do Cartório Notarial de Lisboa da Lic. Júlia Silva, em 06 de Abril de 2010.
3) O crédito peticionado na presente acção é denominado por contrato n.º (…), celebrado em 08/02/1995, por escritura pública datada de 08 de Fevereiro de 1995, lavrada de fls. 88v e ss, do livro de notas para escrituras diversas, número (…) do 2.º Cartório Notarial de Lisboa, sendo a mutuante a “Caixa Económica Montepio Comercial e Industrial anexa ao Montepio Comercial e Industrial”, associação de Socorros Mútuos e mutuada “(…) – Construções, Lda.”.
4) Para garantir o cumprimento da sua obrigação contratual, a “(…) – Construções, Lda.” constituiu hipoteca – Ap. (…) de 1995/01/26 – sobre o prédio urbano designado por lote 3, sito em (…), freguesia de Algoz, concelho de Silves, descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves sob o nº (…), inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo (…), o qual foi constituído no regime de propriedade horizontal, integrando-o as fracções «B» a «P», encontrando-se actualmente garantido apenas pelas fracções “E”, “F”, “G”, “M” e “N”.
5) Em 28 de Fevereiro de 1996, por escritura pública, lavrada de fls. 88v e ss, do livro de notas para escrituras diversas, número (…) do 2.º Cartório Notarial de Lisboa, sendo a mutuante a Caixa Económica Montepio Comercial e Industrial anexa ao Montepio Comercial e Industrial, associação de Socorros Mútuos e mutuada “(…) – Construções, Lda.”, foi mutuado o valor de € 49.879,79 (quarenta e nove mil, oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos), o qual foi denominado por contrato n.º (…).
6) Para garantir o cumprimento da obrigação contratual identificada no artigo 4), a “(…) – Construções, Lda.” constituiu hipoteca – Ap. (…) de 1996/03/25 – sobre o prédio urbano designado por lote 3, sito em (…), freguesia de Algoz, concelho de Silves, descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves sob o nº (…), inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo (…), o qual foi constituído no regime de propriedade horizontal, integrando-o as fracções «B» a «P», encontrando-se garantido apenas pelas fracções “E”, “F”, “G”, “M” e “N”.
7) No total, fruto dos dois contratos n.ºs (…) e (…), a anterior titular do crédito “Caixa Económica Montepio Comercial e Industrial anexa ao Montepio Comercial e Industrial, Associação de Socorros Mútuos” emprestou à sociedade por quotas “(…) – Construções, Lda.” o valor de € 399.038,33 (trezentos e noventa e nove mil, trinta e oito euros e trinta e três cêntimos).
8) E para garantir o bom cumprimento de ambos os contratos, a sociedade por quotas “(…) – Construções, Lda.” hipotecou o prédio urbano designado por lote 3, sito em (…), freguesia de Algoz, concelho de Silves, descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves sob o nº (…), inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo (…), o qual foi constituído no regime de propriedade horizontal, integrando-o as fracções «B» a «P» (15 fracções autónomas).
9) Com emissão de distrates de hipoteca e vendas judiciais foi abatido capital no valor de € 271.844,87 (duzentos e setenta e um mil e oitocentos e quarenta e quatro euros e oitenta e sete cêntimos).
10) A respeito do contrato n.º (…), à data da instauração da execução, o montante em dívida era de € 127.193,46 (cento e vinte e sete mil, cento e noventa e três euros e quarenta e seis cêntimos).
11) A executada é terceiro adquirente das fracções autónomas penhoradas “M” e “N” por escritura datada de 16/05/2008, cuja hipoteca não foi distratada.
12) A aquisição a seu favor está registada na Conservatória do Registo Predial de Silves pela Ap. (…) de 16/05/2008.
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IV – Fundamentação:
4.1 – Nulidade relativa à omissão ou excesso de pronúncia:
De acordo com a primeira parte da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, a sentença é nula, quando «o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».
Entende a recorrente que o Tribunal «a quo» violou a sobredita norma. Em traços gerais, invoca que, por um lado, o Julgador não relevou a factualidade de suporte na questão da prescrição, a qual levaria inequivocamente à extinção da hipoteca, por outro, ultrapassou os limites do conhecimento daquilo que era a pretensão da embargante no que concerne à questão do pagamento de juros.

A nulidade da decisão por omissão de pronúncia só acontece quando o acto decisório deixa de decidir alguma das questões suscitadas pelas partes, salvo se a decisão tiver ficado prejudicada pela solução dada a outra questão submetida à apreciação do Tribunal.
Questões submetidas à apreciação do Tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as excepções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio.
É a violação daquele dever que torna nula a decisão e tal consequência justifica-se plenamente, uma vez que a omissão de pronúncia se traduz, ao fim e ao cabo, em denegação de justiça e o excesso de pronúncia na violação do princípio dispositivo que contende com a liberdade e autonomia das partes.
Coisa diferente são as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, as quais correspondem a simples argumentos e não constituem questões na dimensão valorativa estipulada no artigo 615º, nº 1, al. d), do Código de Processo Civil.
Na esteira do preconizado por Alberto dos Reis há que não confundir questões suscitadas pelas partes com motivos ou argumentos por elas invocados para fazerem valer as suas pretensões. Na realidade, «são, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao Tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o Tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão»[1].
Amâncio Ferreira evidencia que se trata da nulidade mais invocada nos tribunais, «originada na confusão que se estabelece com frequência entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos no decurso da demanda»[2].
Deste modo, o julgador não tem que analisar e a apreciar todos os argumentos, todos os raciocínios, todas as razões jurídicas invocadas pelas partes em abono das suas posições. Apenas tem que resolver as questões que por aquelas lhe tenham sido postas[3] [4].
É jurisprudência consolidada e absolutamente pacífica que não pode falar-se em omissão de pronúncia quando o Tribunal, ao apreciar a questão que lhe foi colocada, não toma em consideração qualquer argumento alegado pelas partes no sentido de procedência ou improcedência da acção. O que importa é que o julgador conheça de todas as questões que lhe foram colocadas, excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras[5].
E na hipótese vertente existe uma identidade absoluta entre as pretensões deduzidas pelas partes e a matéria solucionada pelo Tribunal e, por conseguinte, aquilo que se acabou de expressar é suficiente para concluir que não existe omissão de pronúncia. E, assim, necessariamente a apreciação da possibilidade de levantamento da hipoteca fica prejudicada pela solução dada à questão da prescrição.
Relativamente ao excesso de pronúncia, a questão dos juros foi levantada precisamente pela embargada, como se extraí da simples leitura do artigo 16º da petição de embargos. E, logo no artigo seguinte, no desenvolvimento da argumentação de apoio, a embargante defende que não está vinculada ao respectivo pagamento, «uma vez que os juros ora reclamados não são os que imediatamente se seguem ao incumprimento, que, conforme confessado pela exequente, ocorreu em Fevereiro de 1996 e que sempre estariam prescritos» (artigo 17º da petição inicial).
Assim sendo, também carece de fundamento a arguição efectuada ao abrigo do disposto na alínea d) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil.
Apesar de não a invocar expressar nas conclusões, na parte final do pedido a recorrente invoca ainda a nulidade inscrita na al. c) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil. Porém, não estamos numa hipótese jurisdicional em que os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou onde ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
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4.2 – Da prescrição:
O decurso do tempo é especificamente causa de extinção ou perda de direitos, por inobservância do prazo para o seu exercício, sendo que a prescrição se destina a sancionar a negligência do titular do direito.
O tempo e a sua repercussão nas relações jurídicas no domínio da prescrição tem assento nos artigos 296º a 327º do Código Civil e a extinção da hipoteca por prescrição está provisionada no artigo 730º do mesmo diploma.
Estão sujeitos a prescrição os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição (artigo 298º, nº 1, do Código Civil).
Diz-se prescrição quando alguém se pode opôr ao exercício dum direito pelo simples facto de este não ter sido exercido durante determinado prazo fixado por lei[6].
Vaz Serra[7] escreveu «sem querer entrar na discussão de qual seja exactamente o fundamento da prescrição, que uns veem na probabilidade de ter sido feito o pagamento, outros na pre­sunção de renúncia do credor, ou na sanção da sua negli­gên­cia, ou na consolidação das situações de facto, ou na pro­tecção do devedor contra a dificuldade de prova do paga­mento ou no sossego quanto à não existência da dívida, ou na ne­cessidade social de segurança jurídica e certeza dos di­rei­tos, ou na de sanear a vida jurídica de direitos prati­ca­mente caducos, ou na de promover o exercício oportuno dos direitos – pode dizer-se que a prescrição se baseia, mais ou menos, em todas estas considerações, sem que possa afirmar­-se só uma delas ser decisiva e relevante».
Em trabalho sobre esta temática, Aníbal de Castro comenta que «a prescrição destina-se a contrariar a situação anti-jurídica da negligência; a caducidade a limitar o lapso de tempo a partir do qual há-de assegurar-se a eficácia, de que é condição, mediante o exercício tempestivo do direito, a pôr termo a um estado de sujeição decorrente dos direitos potestativos. Estes os motivos específicos de cada uma das limitações temporais, sendo comuns as razões que as determinam por destinarem-se ambas a servir a segurança e certeza da ordem jurídica, pondo-se assim termo a situações contrárias ao direito e à prejudicial ou perturbante dilação do seu exercício, distinguindo-se ainda pelos efeitos, paralisação num caso, extinção no outro»[8].
Dias Marques define a «prescrição como a extinção dos direitos em consequência do seu não exercício durante certo lapso de tempo, o que significa, em outros termos, que, uma vez completada a prescrição, tem o sujeito passivo por ela beneficiado a faculdade de recusar o cumprimento da obrigação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito»[9].
Sobre a questão específica da extinção da hipoteca por extinção da obrigação que lhe serve de garantia ou por prescrição pronunciam-se Pires de Lima e Antunes Varela[10], Maria Menéres Campos[11], Romano Martinez[12], Mónica Jardim, Margarida Costa Andrade e Afonso Patrão[13], Pestana de Vasconcelos[14], Brandão Proença[15], Menezes Cordeiro[16] e Menezes Leitão[17] [18], para além de outros autores com obra genérica publicada na área dos direitos reais de garantia e das garantias de cumprimento das obrigações.
O artigo 730º do Código Civil contempla as causas de extinção da hipoteca – que não são taxativas, uma vez que a hipoteca pode ainda extinguir-se por acordo dos intervenientes, quando resulte do contrato, na situação prevista no artigo 717º do Código Civil e por caducidade – e nesse elenco está integrada a extinção da obrigação a que a hipoteca serve de garantia. E é com base nessa primeira hipótese que a recorrente contesta a decisão.
Naquilo que se reporta à al. a) do artigo 730º do Código Civil, o crédito hipotecário pode extinguir-se por variadas causas como o pagamento, por ter sido resolvido ou extinto o contrato que lhe serve de base ou por outra causa de extinção das obrigações diferente do cumprimento como a dação em cumprimento, a compensação, a novação, a remissão ou a confusão.
Dada a acessoriedade da hipoteca, cessando a obrigação, termina a hipoteca que perde a sua razão de ser[19]. Efectivamente, como direito acessório, não pode a garantia subsistir após a extinção do direito principal, qualquer que seja a causa da extinção deste[20], sendo que também a prescrição da obrigação principal, quando invocada, se reflecte, nos mesmos termos, no direito hipotecário.
Porém, é aceite que, quando constituída por terceiro, os factos constitutivos, suspensivos e interruptivos da prescrição relativamente ao devedor não se aplicam a terceiros[21]. E nesta situação concreta, tanto o credor como o devedor não são os sujeitos iniciais da relação controvertida, pois houve a transmissão subsequente do direito de propriedade e do próprio direito de crédito correspondente e daqui decorre que a prescrição relativa ao crédito assegurado não determina naturalmente a extinção da hipoteca, por não ter decorrido relativamente aos sucessores adquirentes o prazo prescricional previsto na lei.
Apesar de nos termos da lei ser denominada como uma hipótese de prescrição, em sentido técnico rigoroso a alínea b) do artigo 730º do Código Civil é uma situação de caducidade[22] e na esfera de actuação da norma estabelecem-se dois prazos cumulativos para o respectivo acionamento. O de vinte anos a partir do registo da aquisição do prédio e o de cinco anos a partir do vencimento da obrigação. E, neste domínio interpretativo, mantém-se aqui válido o entendimento de Pires de Lima e de Antunes Varela que o decurso de qualquer deles, de per si, é irrelevante[23].
Confrontando as datas do registo da aquisição (16/05/2008) e da citação da embargante (10/11/2017), não está prescrita a garantia hipotecária. Na realidade, nos termos do artigo 306º, nº 1, do Código Civil, «o prazo de prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido» e relativamente aos terceiros (actuais credor e devedor) esses prazos só se iniciaram na data da celebração das escrituras em que adquiriram os correspondentes direitos.
É ainda de assinalar que aqui na integração da al. b) do normativo em análise se trata de prescrição relativa à própria garantia, a qual não se confunde com a prescrição relativa ao crédito assegurado[24]. Neste horizonte interpretativo, esta extinção da hipoteca por prescrição, nas palavras da lei, não determina a extinção da obrigação garantida, continuando esta sujeita às respectivas causas de extinção e ao prazo de prescrição ordinária ou outro que, em concreto, lhe caiba[25].
E, deste modo, a equação jurisdicional presente no acto postulativo recorrido está sustentada, quando afirma que, ao abrigo da alínea b) do artigo 730º do Código Civil, não está prescrita a garantia por a embargante ser terceira adquirente das fracções.
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4.3 – Dos acessórios do crédito (juros):
A hipoteca assegura também os acessórios do crédito que englobam as despesas de constituição da hipoteca e do registo desta, os juros, as cláusulas penais convencionalmente estabelecidas para o caso de incumprimento e ainda outras despesas que o credor hipotecário se veja forçado a realizar para cobrar o seu crédito, desde que indicadas no registo como ressalta da leitura do artigo 96º[26] do Código do Registo Predial.
Tratando-se de juros, a hipoteca nunca abrange, não obstante convenção em contrário, mais do que os relativos a três anos, como se pode retirar do nº 2 do artigo 693º do Código Civil.
A lei limita a garantia da obrigação pela obrigação de juros a um período de três anos sem concretização dos períodos a que respeitam e com isso pretendeu-se estimular a diligência do credor exequente, evitando, por essa via, a acumulação de juros que daí pudessem resultar para outros credores e para terceiros que assumam a posição de actuais proprietários do bem hipotecado, bem como atalhar a necessidade de instaurar uma pluralidade de execuções por parte do credor (uma, relativa ao capital inicialmente garantido, outra ou outras quanto aos juros posteriormente vencidos e acumulados).
Esta limitação abrange tanto os juros remuneratórios como os juros moratórios e a limitação ocorre mesmo que a execução se prolongue anormalmente além desse prazo[27] [28] [29] [30] [31] [32][33].
A questão judicanda resume-se a saber se os juros referidos no nº 2 da norma sub judice correspondem aos juros contados desde a data do registo da hipoteca ou se são os juros devidos desde a data do incumprimento da obrigação garantida – em especial no domínio do direito bancário em que usualmente o período de amortização do mútuo garantido pela garantia real ultrapassam o período de 3 anos – ou se esses juros podem ser contabilizados à data da instauração da acção executiva independentemente da correspondente data de vencimento.
A tendência doutrinal[34] e jurisprudencial[35] [36] [37] dominante considera que os juros a que se refere o preceito são os que se contam a partir do incumprimento. Logo, a partir da data do vencimento da dívida, que ocorreu em 9 de Fevereiro de 1996, como apregoa o exequente. E, partindo dessa data, como consequência, esses juros não gozam dos benefícios da garantia hipotecária, cuja área de influência está circunscrita aos primeiros três anos contados do vencimento da obrigação principal.
É certo que, relativamente ao devedor, o artigo 693º do Código Civil não proíbe que se executem juros de mais de três anos, apenas os exclui da garantia[38]. Sendo os juros que excedam o período de três anos exigíveis como crédito comum, isto é, são devidos mas não beneficiam da garantia hipotecária. No entanto, neste particular, o campo de acção está limitado à pessoa do devedor.
Todavia, o beneficiário de uma hipoteca constituída por terceiro não é credor deste, nem este, logicamente, é seu devedor. Ao não ter a recorrente a posição de devedor, a sua responsabilidade limita-se ao alcance objectivo contratualizado na hipoteca. E, assim, perante um crédito garantido por hipoteca sobre um bem de um terceiro, que não do devedor, não pode o credor reclamar os juros vencidos que não se encontrem no lapso temporal posterior aos três anos seguintes ao do vencimento do crédito, ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 693º do Código Civil.
Ou seja, como se nota na jurisprudência mais qualificada, enquanto que, no caso do devedor ser o titular do bem, os juros de mais de três anos podem ser objecto da execução e esta prosseguir para o seu pagamento, com a simples limitação de que não beneficiam de preferência que a hipoteca confere, já no caso do titular do bem não ser o devedor mas sim um terceiro garante, os juros de mais de três anos, não podem, sequer, ser objecto da execução, ou, sendo-o, estão excluídos da garantia hipotecária[39].
E, nesse quadro referencial, como síntese final, é de concluir que os terceiros garantes (proprietários do imóvel hipotecado e responsáveis pela dívida na estrita medida das forças do imóvel) não respondem pelos juros que ultrapassem os três anos, contados a partir da data do incumprimento. Do mesmo modo, o credor não pode invocar a garantia quanto a tais juros a preferência que a garantia lhe confere[40].
Quanto à questão do valor da dívida de capital não existe qualquer sinal nos autos que viabilize a respectiva alteração e quanto à sanção pecuniária compulsória – ou cláusula penal – a mesma, além de não constar do enunciado contratual da hipoteca, não pode incidir sobre o património registado a favor de terceiro.
Nesta ordem de ideia, ponderados todos os elementos atrás referenciados, julga-se parcialmente procedente o recurso interposto, revogando-se a sentença recorrida na parte em que considerou que os juros e demais acessórios gozavam da garantia hipotecária em causa, reduzindo-se nessa medida o valor da quantia exequenda ao montante do capital e às despesas de constituição da hipoteca e do registo da mesma referenciadas na cláusula décima da escritura pública que consagrou a garantia hipotecária.
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V – Sumário:
(…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar parcialmente procedente o recurso interposto, revogando-se a sentença recorrida na parte em que considerou que os juros e demais acessórios gozavam da garantia hipotecária em causa, reduzindo-se nessa medida o valor da quantia exequenda ao montante do capital e às despesas de constituição da hipoteca e do registo da mesma nos termos da cláusula décima da escritura pública que consagrou a garantia hipotecária.
Custas a cargo da apelante e do apelado na proporção do respectivo decaimento, nos termos do disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº 5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 12/06/2019
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Isabel Maria Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões

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[1] José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Coimbra Editora, Coimbra, 1981 (reimpressão), pág. 143.
[2] Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª Edição, pág. 57.
[3] Alberto dos Reis, ob. cit., pág. 141.
[4] A. Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pág. 688.
[5] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23/06/2004 e 02/12/2013, in www.dgsi.pt.
[6] Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, vol. II, AAFDL, Lisboa, 1986 (reimpressão), pág. 155.
[7] Vaz Serra, Prescrição Extintiva e Caducidade, 1961, pág. 32.
[8] Aníbal de Castro, A caducidade, 3ª edição melhorada e actualizada, Petrony, Lisboa, 1984, pág. 30.
[9] J. Dias Marques, Noções Elementares de Direito Civil, 7ª edição (com a colaboração de Paulo de Almeida), AAFDL, Lisboa, 1992, pág. 114.
[10] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição (com a colaboração de Henrique Mesquita), Coimbra Editora, Coimbra, 2010 (reimpressão).
[11] Maria Isabel Helbling Menéres Campos Da hipoteca: Caracterização, Constituição e efeitos, Almedina, Coimbra, 2003.
[12] Romano Martinez, Da cessação do contrato, Almedina, Coimbra, 2006.
[13] Mónica Jardim, Margarida Costa Andrade e Afonso Patrão, 80 perguntas sobre a hipoteca imobiliária, Cenor, Coimbra, 2015.
[14] Luís Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, 2ª edição (reimpressão), Almedina, Coimbra, 2017.
[15] José Carlos Brandão Proença, Lições de Cumprimento e não Cumprimento das Obrigações, 2ª edição (revista e actualizada), Universidade Católica Editora, Porto, 2017.
[16] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil – Direito das Obrigações. Garantias, Vol. X, Almedina, Coimbra, 2017.
[17] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Garantia das Obrigações, Almedina, Coimbra, 2006.
[18] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direitos Reais, 7ª edição, Almedina, Coimbra, 2018.
[19] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil – Direito das Obrigações. Garantias, Vol. X, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 367.
[20] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª Edição revista e actualizada (com a colaboração de Henrique Mesquita), Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pág. 751.
[21] Paulo Cunha, Da Garantia das Obrigações, lições recolhidas por Eduardo Pamplona Côrte-real, vol. II, Lisboa, policopiado, 1938-1939, pág. 481.
[22] Rui Pinto Duarte, Direitos Reais, 2ª edição, Princípia, Lisboa, 2007, pág. 228.
[23] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª Edição revista e actualizada (com a colaboração de Henrique Mesquita), Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pág. 751.
[24] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direitos Reais, Almedina, Coimbra, 2009, pág. 481.
[25] Isabel Menéres Campos, Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações. Das Obrigações em geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, pág. 975.
[26] Artigo 96.º (Requisitos especiais da inscrição de hipoteca):
1 - O extrato da inscrição de hipoteca deve conter as seguintes menções especiais:
a) O fundamento da hipoteca, o crédito e seus acessórios e o montante máximo assegurado;
b) Tratando-se de hipoteca de fábrica, a referência ao inventário de onde constem os maquinismos e os móveis afetos à exploração industrial, quando abrangidos pela garantia.
2 - Se os documentos apresentados para registo da hipoteca mostrarem que o capital vence juros, mas não indicarem a taxa convencionada, deve mencionar-se na inscrição a taxa legal.
[27] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª Edição revista e actualizada (com a colaboração de Henrique Mesquita), Coimbra Editora, Coimbra, 2010, págs. 716 e 717.
[28] Oliveira Ascensão e Maria Augusta França, As repercussões da Declaração de Falência sobre a situação dos credores Hipotecários, Estudos de Direito Comercial, vol. I, Das Falências, Almedina, 1989, págs. 55 a 67.
[29] Almeida e Costa, Obrigações, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 1991, pág. 798-799, nota de rodapé nº5.
[30] Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 2ª edição, almedina, Coimbra, 1997, pág. 119, nota de rodapé. 205.
[31] Rui Pinto Duarte, Direitos Reais, 2ª edição, Princípia, Lisboa, 2007, pág. 221-222.
[32] Acórdão do Tribunal ad Relação de Lisboa de 06/05/2010, in www.dgsi.pt.
[33] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21/12/2010, in www.dgsi.pt.
[34] Isabel Menéres Campos, Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações. Das Obrigações em geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, pág. 928.
[35] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 05/11/1980, no BMJ nº 301, págs. 395-398, do Tribunal ad Relação de Lisboa de 11/12/1972, no BMJ 222, págs. 463-464 e de 22/03/1974, BMJ 235, págs. 346-347 e do Tribunal da Relação do Porto de 08/10/1981, CJ 16 (1991), vol. IV, págs. 261-263.
[36] A mesma tese pode ser encontrada no convocado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/06/2006, in www.dgsi.pt, que afiança que a contagem do período dos três anos de juros abrangidos pela hipoteca deve ter lugar a partir do momento em que os primeiros juros forem exigíveis. No mesmo sentido vejam-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27/01/2000 e do Tribunal da Relação do Porto de 23/10/2001, disponíveis em www.dgsi.pt.
[37] Mais recentemente pronunciaram-se nos mesmos termos os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30/11/2010, Tribunal da Relação de Coimbra de 13/11/2007, do Tribunal da Relação do Porto de 26/04/2010, do Tribunal da Relação de Lisboa de 01/10/2015 e do Tribunal da Relação de Évora de 12/03/2015, in www.dgsi.pt.
[38] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/01/2000, in www.dgsi.pt.
[39] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/02/2009, in www.dgsi.pt.
[40] Isabel Menéres Campos, Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações. Das Obrigações em geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, pág. 928.